Vida e Morte no Epicentro
27.04.20
Louis Proyect*
Apesar da rejeição de Bernie Sanders de Cuba, como estado policial, há o que poderíamos chamar socialista, em oposição às virtudes bárbaras. Dada a sua generosa assistência médica à Itália e a outros Estados que enfrentam calamidades, Cuba mostra que um outro mundo é possível.
Photograph Source: Angel Talansky – CC BY 2.0
No evitar a COVID-19, tenho estado à
frente da curva. Em outubro passado, depois de uma crise de bronquite
aguda que durou a maior parte do mês, resolvi nunca mais passar por tal
provação. Comecei a usar desinfetante para as mãos e a evitar tocar no
meu rosto. Tal como o meu glaucoma, é uma doença geriátrica. Quando
investiguei os arquivos do New York Times em busca de dicas
sobre como lidar com bronquites, fiquei chocado ao descobrir quantos
velhos, conhecidos e poderosos, adoeceram com essa doença: Konrad
Adenauer, Boris Yeltsin, Franklin Roosevelt, Winston Churchill e Paul
Robeson. Nenhum morreu de bronquite, mas cerca de metade foi
hospitalizada, um tratamento de rotina para poderosos chefes de Estado
(exceto Robeson).
Embora a bronquite não seja fatal, a
COVID-19 certamente o é. Como septuagenário, sou vulnerável. Além disso,
a doença indicava que o meu sistema imunológico estava comprometido,
como seria de esperar. Superar esta pandemia é uma questão de vida ou de
morte para mim, principalmente porque moro na cidade de Nova York, o
epicentro.
Uma vez por semana, vou às compras com a
minha mulher e não consigo deixar de me sentir enjoado ao pegar num
abacate para ver se está suficientemente maduro. Na minha memória, isto
evoca cenas, com um toque zombie, de George Romero, ou “The Walking Dead” [série de televisão dramática e pós-apocalíptica norte-americana
– NT]. Da sua bem guardada base, os vivos fazem incursões periódicas em
várias cidades, em busca de comida, remédios ou outros bens
essenciais. Isto equivale a irmos a uma mercearia ou a uma farmácia. Em “The Walking Dead”
(eu abandonei o espetáculo depois de Rick morrer), um da sua equipe
teve de abrir uma porta à procura de produtos enlatados, só para
descobrir que zombies espreitavam por trás dela. A morte podia chegar na
forma de um ataque de zombies, ou numa acidental exposição a um abacate
cheio de coronavírus. A lógica dos zombies e do coronavírus é
mortal. Ambos existem para se replicarem, tal como acontece com a classe
capitalista.
Em 2004, Luis P. Villarreal, professor emérito de Biologia e Bioquímica Moleculares da UC Irvine, colocou a questão na Scientific American: “Os vírus estão vivos?”:
Os vírus, no entanto, parasitam
essencialmente todos os aspetos biomoleculares da vida. Ou seja,
dependem da célula hospedeira para obterem as matérias-primas e a
energia necessárias à síntese de ácidos nucleicos, à síntese de
proteínas, ao processamento e transporte e a todas as outras atividades
bioquímicas que permitem que o vírus se multiplique e se espalhe. Pode
então concluir-se que, muito embora esses processos apareçam sob direção
viral, os vírus são simplesmente parasitas não vivos de sistemas
metabólicos vivos. Mas pode existir um espectro entre o que está
certamente vivo e o que não está.
Parasitas entre a vida e a morte? Isso descreve certamente os zombies e, também, a burguesia. Eu não ligava muito ao “Parasita” de Bong Joon-ho [cineasta sul-coreano – NT], mas ele estava, com certeza, por dentro de algo com essa metáfora.
A cidade de Nova York era suscetível de
se tornar um epicentro, pois estava também muito perto do conforto. O
que nela agradou a pessoas como eu, nos anos sessenta, foi a vida nas
ruas que juntava ricos e pobres. Quando morei em Houston, em meados dos
anos 70, nunca me habituei à ideia de ter de ir de carro para encontrar
uma livraria ou um restaurante. Ou que, quando ia dar uma volta no meu
bairro, ninguém estava ao meu lado. Eu estava com saudades de Nova York,
onde nos misturávamos com as massas e encontrávamos tudo o que
precisávamos em poucos minutos a pé. Afortunado o bastante para viver no
lado leste superior, onde há museus e parques a uma curta distância.
Devagar, mas progressivamente, tudo o
que me encantou Nova York morreu, em grande parte por causa da natureza
predatória do desenvolvimento imobiliário, simbolizada pela maligna
presença da Casa Branca.
Jeremiah Moss, que bloga no Vanishing New York , acaba de colocar um post sobre
o fotógrafo Robert Herman, que saltou para a morte do apartamento do
16º andar do seu prédio, em Tribeca, na última sexta-feira à noite. A
nota de suicídio de Herman dizia: “Como é que gostam da vida?”.
Por acaso, Moss entrevistou Herman há algum tempo. Como Moss e como eu,
Herman amava a Nova York que está a desaparecer. Moss fez-lhe uma
pergunta sobre as diferenças entre as pequenas lojas caseiras e as mega
lojas empresariais, que simbolizam a sobrevivência das mais aptas, mas
menos desejáveis. Herman respondeu:
A diferença entre as mega lojas
empresariais e as independentes é a de que o aspeto das placas e os
arranjos são determinados a um nível de corporação e feitos para
múltiplas lojas ao mesmo tempo. O proprietário da loja local está a
criar o aspeto da sua loja localmente e em reação ao ambiente e à
vizinhança. Tudo isto é óbvio, mas são as lojas independentes que criam a
sensação de especificidade do lugar: “só em Nova York”.
Com os exorbitantes arrendamentos em
todos os bairros devido à gentrificação, as diferenças de classe também
aumentam. Apenas alguns dias atrás, o Times noticiou a morte de treze
pessoas de COVID-19 no Hospital Elmhurst, em Queens. Este
é um hospital público, com 545 camas, e carência de ventiladores. Para
lidar com a acomodação de cadáveres, o hospital tem agora uma morgue
improvisada na rua – um camião refrigerado. Aberto ao público em 1832, é
um dos mais antigos hospitais da cidade. Dois terços dos residentes de Elmhurst
nasceram fora dos Estados Unidos, a taxa mais alta da cidade. O Times
referiu-o como um hospital de rede de segurança, atendendo
principalmente pacientes de baixos rendimentos, incluindo muitos que não
têm médicos de cuidados primários. Pode ficar-se com uma ideia do tipo
de pessoas que vão ao hospital, a partir do artigo:
Julio Jimenez, 35 anos, esperou seis
horas na sala de emergência, no domingo à noite, após ter sentido
febre, enquanto trabalhava num armazém em Nova Jersey. Regressou na
segunda-feira de manhã para ficar na fila de testes, à chuva. Na
terça-feira, ainda com tosse e com os olhos inchados, ficou na fila
quase sete horas e voltou para casa sem ser testado.
“Não sei se tenho o vírus”, disse o Sr. Jimenez. “É tão difícil. E não só para mim. É-o para muitas pessoas. É de loucos”.
Além dos idosos serem vulneráveis,
podemos também incluir os imigrantes que têm de contar com cuidados de
saúde inadequados. Ironicamente, a suscetibilidade dos pobres à doença
–, por causa dos seus trabalhos, principalmente orientados para serviços
como os de porteiros, zeladores, empregadas domésticas, guardas de
segurança, auxiliares hospitalares etc. –, também ameaça os ricos. Os
vírus, como os zombies, são assassinos com iguais
oportunidades. Passando por algum gestor de fundos abutres na rua, pode
acontecer a Julio Jiminez espirrar.
Sempre houve uma mística sobre centros
metropolitanos como Nova York, Paris, Londres, Viena, Tóquio e
Pequim. Eles representam a “civilização”, em oposição aos
subúrbios e aldeias rurais maçadores e desanimadores. No conflito
político dos últimos quatro anos nos Estados Unidos, os apoiantes de
Donald Trump veem os lugares como Nova York como território inimigo. Nos
anos sessenta, os yahoos [pessoa não sofisticada ou violenta – NT] costumavam referir-se-lhe como Jew York [judeu York – NT] .
Além de museus e teatros de ópera, a
cidade também abriga pragas. Se vivêssemos numa tribo nómada, talvez
tivéssemos de lidar com lobos ou leões, mas as pragas eram menos
problemáticas. Espirros e tosse são problemas associados, na maior parte
das vezes, à proximidade de multidões e vastas populações. Vírus
mortais como os da varíola, da peste, do sarampo e da gripe florescem
numa alta densidade populacional de humanos, de manadas de animais e na
interação das suas excreções. Quando a agricultura suplantou a caça e a
recolha, a civilização tornou-se possível, pois grãos como o trigo e o
arroz permitiram permanentes culturas. Mas este benefício também
permitiu que os patógenos passassem de uma pessoa para outra através de
gotículas no ar, exatamente como as que eu temo na Whole Foods [empresa de produtos alimentares estadunidense – NT].
O académico anarquista James C. Scott abordou estes problemas no seu último livro, “Against the Grain” [Contra o grão]. Usando a mesma metodologia de trabalhos marxistas anteriores –, como “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, de Friedrich Engels, ou “O homem faz-se a si próprio”, de V. Gordon Childe –, interroga toda a noção de progresso em “Contra o grão: uma história profunda dos primeiros Estados”. Este livro, de 2018, antecipou a pandemia de hoje, referindo-se às “imprevisíveis doenças epidémicas decorrentes da aglomeração de plantas, animais e grãos", como menciona o sítio na rede da Universidade de Yale.
No penúltimo parágrafo do capítulo final, Scott refere-se a uma “era de ouro para os barbarismos”, quando havia uma alternativa aos prazeres ocos, se não letais, da civilização:
A vida dos “bárbaros tardios” teria
sido, em geral, bastante boa. A sua subsistência ainda estava espalhada
por várias redes alimentares; dispersos, teriam sido menos vulneráveis às falhas de uma única fonte de alimentos. Era mais provável que fossem mais saudáveis e
vivessem mais – especialmente se fossem mulheres. Um comércio mais
vantajoso gera mais tempo livre, ampliando ainda mais a proporção
lazer-trabalho entre forrageiros e agricultores. Finalmente, e de
maneira alguma trivial, os bárbaros não estavam subordinados ou
domesticados à ordem hierárquica social da agricultura sedentária e do
Estado. Eles eram, em quase todos os aspetos, mais livres do que o
celebrado pequeno proprietário rural. Este não é um mau balanço para uma
classe de bárbaros sobre os quais as ondas da história supuseram ter
ocorrido há muito tempo.
O próximo e conclusivo parágrafo é um elogio a um tipo de vida que sucumbiu à “civilização”. Mesmo
que eles tivessem uma vida mais saudável e livre, a maior parte dos
guerreiros equestres acabavam como vassalos de potências estatais, como
os otomanos ou as dinastias chinesas.
Isso, é claro, levanta a questão da
alternativa que temos à civilização que nos está a matar. Como Samuel
Moyn assinala numa perspicaz análise de “Against the Grain” em The Nation, intitulada “Virtudes bárbaras”, o próprio estado está dentro e fora, não necessariamente de forma opressiva. Ele escreve: “No
entanto, Scott está tão enamorado pela versatilidade dos nossos
ancestrais caçadores e coletores – especialmente quando comparados com
as monotonias do cultivo de grãos – que nunca pensa em descrever como
interpretavam a liberdade e a igualdade que ele lhes atribui. Ele nunca
confronta a possibilidade de que só um novo tipo de Estado pode
possibilitar novos tipos de ideais, inclusive o dele”.
Apesar da rejeição de Bernie Sanders de
Cuba, como estado policial, há o que poderíamos chamar socialista, em
oposição às virtudes bárbaras. Dada a sua generosa assistência médica à
Itália e a outros Estados que enfrentam calamidades, Cuba mostra que um
outro mundo é possível.
Há cinquenta e três anos, quando me
tornei socialista, a maioria das pessoas entendeu que tínhamos uma dura
batalha para convencer os americanos de que este sistema poderia
beneficiá-los. Tudo o que sabiam sobre o socialismo era a sua crónica
escassez e má qualidade dos bens. Quando a União Soviética colapsou,
colocámo-nos na defensiva, pois não havia alternativa, ao que parecia,
às capacidades produtivas dinâmicas e inovadoras do capitalismo. Como
poderia, afinal, o socialismo competir com jeans Levi, bananas e
pornografia?
Com a atual pandemia e uma economia que
ameaça transformar-se numa depressão em grande escala, do tipo da dos
anos de 1930, o sistema capitalista perdeu a sua
invencibilidade. Entrando numa das mais graves crises do século XXI,
lembrei-me das palavras de Rosa Luxemburgo em “O Folheto de Junius”, escrito após o rebentar da Primeira Guerra Mundial:
Este brutal desfile de vitórias do
capital pelo mundo, conseguido através da utilização todas as formas de
violência, assalto e infâmia, tem o seu lado positivo. Cria as
pré-condições para a sua própria destruição final. Põe em prática o
sistema capitalista de dominação mundial, pré-condição indispensável
para a revolução socialista mundial. Isto, por si só, constitui o lado
cultural e progressivo de sua reputada “grande obra de civilização” nas
terras primitivas. Para economistas e políticos burgueses liberais, as
ferrovias, os fósforos suecos, os sistemas de esgoto e as lojas
departamentais são "progresso" e "civilização".
Estes trabalhos em si, executados em
condições primitivas, não são civilização nem progresso, pois são
comprados com a rápida ruína económica e cultural dos povos que têm de
experimentar, simultaneamente, a completa miséria e o horror de duas
épocas: a do tradicional e natural sistema económico e a do mais moderno
e voraz sistema capitalista de exploração. Assim, o desfile da vitória
capitalista e de todas as suas obras têm o selo do progresso, no sentido
histórico, apenas porque criam as pré-condições materiais para a
abolição da dominação capitalista e da sociedade de classes em geral. E,
neste sentido, o imperialismo, basicamente, trabalha para nós.
* Louis Proyect – tem o blog em http://louisproyect.org e é o moderador da lista de discussão do marxismo. Nas horas vagas, analisa filmes para o CounterPunch.
Fonte: https://www.counterpunch.org/2020/03/27/life-and-death-in-the-epicenter/, colocado e acedido em 2020/03/27
Tradução do inglês de MFO
in Pelo Socialismo. blog
Sem comentários:
Enviar um comentário