
Epidemia econômica: Covid-19 e a crise capitalista
A crise que se anuncia não resulta de uma interferência externa, muito menos é o mecanismo de “limpeza de terreno” de sempre. Aqui temos problemas estruturais em processo há quatro décadas que têm empilhado soluções mundiais fracassadas. Somente o positivismo sedimentado como forma corriqueira do pensamento pode estabelecer um vírus como causa de uma crise econômica.
Por Maurilio Lima Botelho.
[A crise que se anuncia não resulta
de uma interferência externa, muito menos é o mecanismo de “limpeza de
terreno” de sempre. Aqui temos problemas estruturais em processo há
quatro décadas que têm empilhado soluções mundiais fracassadas. Somente o
positivismo sedimentado como forma corriqueira do pensamento pode
estabelecer um vírus como causa de uma crise econômica.]
I.
A explicação para tudo parece muito
simples: a preocupação com a contaminação pelo coronavírus reduziu a
circulação das mercadorias e, em alguns pontos, até provocou bloqueios. O
primeiro ato do governo chinês para evitar a proliferação do vírus foi
fechar os mercados na província de Wuhan, diminuindo assim os postos de
vendas. Logo a preocupação se estendeu aos meios de transporte,
principalmente os de massa (trem, metrô). Em várias partes do mundo, por
exemplo na Coreia do Sul e em Portugal, fábricas estão sendo fechadas
para desinfecção logo que se descobre algum funcionário com a doença.
Portos gigantescos estão com dificuldade para desembarcar e distribuir
as cargas que chegam de outros países: em meados de fevereiro
reportagens davam conta de milhares de contêineres de carne congelada
parados nos portos chineses. Notícias de todo o mundo tratam da
interrupção da produção de eletrônicos em virtude da falta de
componentes oriundos principalmente da China e Coreia. Um economista
sempre disponível para fazer comentários à imprensa informou que “talvez
seja preciso restringir a circulação de mercadorias”.1 A
gravidade da situação pode ser avaliada pela decisão das autoridades
chinesas em fazer a desinfecção de notas com luz ultravioleta ou até
mesmo destruir dinheiro para eliminar os riscos de contágio.2
Talvez a melhor imagem para compreender esse nexo entre crise sanitária
e crise econômica seja aquela utilizada há mais de dois séculos, no
nascimento da economia política moderna: a da circulação sanguínea.
O modelo de circulação sanguínea de
William Harvey, elaborado no século XVII, demonstrou o papel de
bombeamento realizado pelo coração e como a saúde dos organismos
dependia de uma adequada circulação do sangue. Essa imagem foi
fundamental para a teoria de François Quesnay dos fluxos agregados e
serviu para compor uma imagem do capitalismo como um grande sistema de
movimentação de riqueza, a ponto de a própria dinâmica da circulação ser
tomada como algo tão ou mais importante do que a produção – ainda que,
por óbvio, a riqueza fosse produzida em determinada parte da sociedade,
era a boa circulação dessa riqueza que caracterizava o capitalismo como a
sociedade mais perfeita e racional que já existiu. Assim, o fluxo livre
de mercadoria, dinheiro, renda etc. permitia que a sociedade fosse
irrigada pela riqueza em todos os cantos e isso estimularia ainda mais a
produção.
Seja na forma do Tableu Économique de Quesnay – ainda amparado na agricultura como única fonte de riqueza –, seja na forma do laisse faire
de Adam Smith, a centralidade da circulação era fundamental na
estrutura nascente da economia política e a base de um dos seus
ideologemas repetido cegamente à exaustão: apenas a liberdade mercantil,
a livre circulação, em suma, o livre mercado pode conduzir a humanidade
a uma era de riquezas ilimitadas. Qualquer entrave para a circulação
bloquearia as qualidades da maquinaria capitalista – tanto William
Harvey quanto François Quesnay, ambos médicos, consideravam,
respectivamente, o organismo corporal e o organismo econômico como
máquinas.
Obviamente, apesar de toda aparente
semelhança, isso não passa de autolegitimação burguesa barata que
naturaliza a economia ao mesmo passo em que objetifica a natureza como
uma máquina. Ela serve sobretudo para fixar na dinâmica circulatória um
equilíbrio imanente e assim estabelecer que qualquer bloqueio no fluxo
de mercadoria e dinheiro é uma interferência indevida externa que
precisa ser removida. Assim, toda a crise passa a ser vista como
interferência de um elemento exterior à máquina bem lubrificada do
mercado. A profunda crise econômica em formação no horizonte atual é o
resultado… de um vírus.
Não é a primeira vez que se aponta a
causa da crise econômica em elementos alheios aos processos econômicos
básicos – baseando-se no pressuposto circulatório perfeito, qualquer
evento ou coisa podem ser responsabilizados. A própria história das
crises poderia ser reconstituída por essas falsas atribuições. A crise
do subprime, em 2008, por exemplo, foi culpa dos pobres que
contraíram hipotecas sem ter condições de pagar (ou, numa versão
antissemita, provocada pelas gananciosas instituições que forneciam
crédito imobiliário para qualquer um). A crise da nova economia, em
2000, foi causada pela falsificação de balanços por algumas empresas ponto-com.
A crise de 1974 foi provocada pela Opep que cortou a produção de
petróleo no ano anterior. Exemplos não faltam e os neoliberais encontram
constantemente motivos para culpar o Estado, sempre com sua autoritária
mania de ingerência externa no mercado. Nesta versão, por exemplo, a
crise de 2008 foi o resultado dos incentivos criados pelo governo
Clinton que forçou o crédito imobiliário para as populações mais pobres,
tradicionalmente alijadas do financiamento. Milton Friedman já até
estabeleceu, em uma interpretação que pretendia refutar todos os
teóricos até então, que a crise de 1929 foi provocada pela criação e
pelas políticas adotadas pelo Fed tentando regular o mercado.3
Por fim, no caso mais famoso pelo exagero, o economista Stanley Jevons
argumentou, num artigo de 1875, que as instabilidades na oferta de
mercadorias estavam relacionadas às variações das manchas solares,
responsáveis, em última instância, pelas crises comerciais ao afetarem
os preços das commodities.4
Com o coronavírus se repete a constante
externalização de causas. Embora seja motivo para grande preocupação, o
vírus está longe de ser a razão da crise.
II.
Somente o positivismo sedimentado como
forma corriqueira do pensamento pode estabelecer um vírus como causa de
uma crise econômica: a prisão cognitiva a um mundo factualmente
articulado por causas e efeitos imediatos é parte da estrutura mecânica
abstrata da ciência moderna.
Nos seus estudos críticos da economia
política, Karl Marx compreendeu já muito cedo que não eram as quebras de
colheita, as políticas monetárias, as elevações salariais, as variações
na oferta de ouro ou prata, a especulação financeira etc. as “causas”
das crises. Mesmo esses eventos de natureza econômica são “fenômenos” de
disrupções, “sintomas” que expressam as contradições mais profundas da
economia de mercado e que, por isso, podem ser factualmente
catalisadores que detonam os processos críticos já gestados. Eles
formam, portanto, uma “causa” para as crises apenas no sentido
convencional de estopim da quebra econômica – somente com uma
compreensão das estruturas internas e externas do mercado, de suas
categorias fundamentais e suas expressões aparentes, é que a empiria
bruta do nexo entre os eventos pode ser ultrapassada.
Apesar de sua grande consideração pelo modelo de fluxos circulares de riqueza do Tableau
de Quesnay, Marx o utilizou como uma referência para compreender que o
caráter inexorável de expansão e abrangência da circulação capitalista
tinha por base a dinâmica de uma produção cada vez mais acelerada –
seria redundante explicar a natureza expansiva do capitalismo por seu
processo circulatório. A dinâmica ascendente do capital é o resultado
externo, a manifestação histórica de uma lógica interna mais profunda e
essencial – a acumulação sem fim da forma valor. A multiplicação de
dinheiro sob a forma do lucro, já reconhecido de modo límpido pela
economia política inglesa clássica, é a manifestação imediata da
produção incessante de valor através do trabalho e, como essa dinâmica
só funciona nesse regime de ampliação constante, a expansão da base
circulatória nada mais é do que o resultado da própria necessidade de
ampliação da exploração de trabalho. Assim, quanto maior o influxo de
trabalho para manter o sistema em dinâmica lucrativa, maior a riqueza
produzida para colocar em circulação e maior a estrutura montada para a
movimentação dessa riqueza.
Mas não é apenas a dimensão absoluta da
circulação que segue uma tendência crescente nessa sociedade, sua
própria qualidade muda de figura para fazer a riqueza fluir: além de
percorrer maiores distâncias – uma base de circulação maior, que vai
ganhando todo o planeta –, a expansão capitalista altera também,
periodicamente, os modos de circular a riqueza, acelerando os fluxos. A
obsessão circulatória do capital tende progressivamente a comprimir o
espaço e o tempo (David Harvey),
fazendo com que a riqueza possa se mover instantaneamente de um
hemisfério a outro, ignorando até mesmo os limites de dia e noite.
Aqui, a imagem do bloqueio provocado pelo
coronavírus salta aos olhos: os esforços de contenção do vírus atuam
exatamente contra essa intensa integração gerada pela “circulação global
do capital” e afetam aeroportos, portos, estações ferroviárias, grandes
mercados etc. As repercussões rapidamente são sentidas em toda parte,
não porque o local está articulado ao global, mas porque com o
capitalismo as “condições de produção se originam no mercado mundial”
(Marx),5 que é o fiador inicial e final de todo processo de circulação.
Entretanto, se a crise é uma “interrupção
da circulação” (Marx), não é em si o fenômeno imediato que bloqueou os
fluxos a causa para a crise, mas as contradições acumuladas internamente
e que saltam com as barreiras levantadas à circulação. Em 1855, Marx
apontou que uma crise comercial nos EUA não era o motivo para os
percalços econômicos que afetavam a economia inglesa, pois nos dois
casos “a crise pode[ria] ser rastreada até a mesma fonte: o
funcionamento fatal do sistema industrial inglês que leva[va] à
superprodução na Grã-Bretanha e à superespeculação em todos os outros
países”.6 Ou seja, era “a mais elevada expressão do mercado
mundial”, a produção inglesa, que possuía no seu ventre contradições
radicalizadas que foram atingidas e reveladas pela crise comercial
originada no outro lado do oceano, em solo norte-americano.
Obviamente, nosso patamar econômico atual
está muito longe daquele da época de Marx, mas a mesma relação pode ser
estabelecida: o coronavírus apenas trouxe à tona os problemas
estruturais da produção capitalista avançada. Não é por acaso que, antes
da Covid-19, era a desaceleração chinesa a justificativa esperada para a
nova rodada de crise – a demora do governo chinês em reconhecer a
existência de uma nova epidemia se deu exatamente diante do temor de que
o desempenho econômico do país piorasse ainda mais. Há pelo menos dois
anos os conflitos comerciais entre EUA e China têm provocado
turbulências periódicas no mercado devido às tensões acumuladas e muito
analistas responsabilizavam o “nacionalismo econômico” de Trump pela
possibilidade de um novo crash. O coronavírus não é o
responsável pela epidemia econômica que se desenvolve, mas apenas o
gatilho de uma crise em processo há anos na economia mundial.
Desde a década de 1970, uma crise
estrutural do capitalismo originada na Terceira Revolução Industrial
transformou a contradição interna lógica do capital – sua fundamentação
na produção de riqueza abstrata por meio de trabalho e sua tendência
inversa de expulsar força de trabalho dos processos de produção – num
limite objetivo para o seu desenvolvimento. Como as novas tecnologias
geram mais economia de trabalho do que os mercados são capazes de criar
em sua expansão, o coração da economia capitalista começa a fraquejar – a
produção de valor. A partir de então, uma série de mecanismos foram
utilizados para compensar os lucros cada vez mais minguados da produção
capitalista, principalmente trocando os ganhos operacionais da produção
por rendimentos derivados do mercado financeiro. O inchaço da
“macroestrutura financeira” foi um resultado da crise estrutural, pois
somente os juros obtidos por meio da ficcionalização de riquezas
poderiam manter em fluxo circulatório o capital global.
Dívida estatal crescente, bolha nos
mercados imobiliários, bolha nos mercados acionários, emissão
desenfreada de moeda pelos bancos centrais e endividamento do consumidor
são alguns dos dispositivos acionados nas últimas décadas para manter a
aparência de vitalidade da economia – ou seja, manter o capital
circulando. Entretanto, esses mecanismos desencadearam mais
instabilidade do que propriamente solidez econômica e seus efeitos são
bem conhecidos: quebra de nações inteiras, fuga de capitais de economias
em dificuldade, desvalorização monetária acentuada, estouro de bolhas,
falência generalizada de bancos e empresas. Desde a última grande rodada
de crise mundial, em 2008, todos esses mecanismos foram acionados ao
mesmo tempo, mas nenhuma solução duradoura se obteve. Talvez doze anos
possa parecer um ciclo longo de “mitigação” de crise, mas é preciso
lembrar que nesse intervalo outros eventos catastróficos ocorreram no
mercado mundial, como a crise das dívidas soberanas europeias e o
estouro da bolha das commodities que levou a periferia do
capitalismo novamente à lona. Não houve ciclo de prosperidade algum, mas
apenas uma administração desesperada de processos críticos.7 Agora começamos a sentir de modo mais profundo os efeitos do esgotamento dos corticoides financeiros – a epidemia se alastra.

III.
Uma das informações mais utilizadas para
exprimir o “impacto econômico” do coronavírus é a que mede a atividade
industrial da China. O “índice de gerente de compras” (PMI) apresentou
em fevereiro a maior queda em sua série. Atingiu um número inferior até
mesmo ao de dezembro de 2008, auge da crise do subprime. A queda brusca é
usada como justificativa para a força da epidemia: mesmo durante a
crise mundial, há 12 anos, o fundo do poço foi obtido gradualmente
depois de vários meses de desaceleração.8
Não se pode negar esse aspecto agudo da
paralisação econômica provocada pelo vírus, mas o índice deveria ser
lido pelo seu desempenho histórico: depois do colapso imobiliário nos
EUA, nunca mais foram registrados os pontos mais elevados do aquecimento
industrial anterior, nem mesmo com o pesado investimento realizado em
2012, quando a formação bruta de capital fixo mobilizou metade do PIB
chinês – a partir desse ano ocorreu uma queda progressiva na atividade
produtiva. Ou seja, a desaceleração chinesa acusada pelo PIB foi o
resultado de uma estagnação e recuo da produção industrial devido ao
peso gigantesco do excesso de produção obtido nos anos anteriores. Não é
por acaso que, há dez meses, o Partido Comunista da China acionou uma
série de estímulos econômicos após quedas sucessivas da atividade
industrial: ampliação de gastos do governo, facilidade de crédito e
interferência no câmbio para aumentar a exportação. Não promoveu nada
além de um espasmo imediato: em 2019 foi anotado o pior resultado do PIB
em 29 anos. O bloqueio econômico da Covid-19 pode colocar abaixo também
a imensa pirâmide de dívida acumulada em território chinês: o problema
não é apenas a dívida pública de quase 18 trilhões de dólares, mas o
imenso sistema financeiro informal (não-regulado pelas autoridades) que
sustenta mais de 8 trilhões de dólares em empréstimos acumulados e que
há anos atormentam os membros do PCCh (shadow banking system).9
Embora tenhamos no Império do Meio o
maior parque industrial do mundo, é a epidemia nos EUA que deve provocar
o colapso da economia mundial, já ensaiado pelas maiores perdas
acionárias desde o crash imobiliário. Não se trata obviamente
de um “contágio”. Integrados por um “circuito deficitário do Pacífico”
(Robert Kurz) – a demanda norte-americana aciona a produção industrial
chinesa que, por sua vez, financia os déficits comerciais e fiscais dos
EUA10 –, os mercados dos dois países são tão íntimos que o historiador conservador Niall Ferguson criou a expressão “Chimérica”.11
A crise no Oriente, portanto, atinge diretamente as fontes de
sustentação da maior economia mundial, principalmente o fluxo monetário
que infla a maior bolha financeira de todos os tempos.
Apesar da medíocre recuperação do
crescimento da economia norte-americana a partir de 2010 – a taxa média
de variação anual do PIB não chegou a 2,3 % durante essa década –, as
bolsas norte-americanas registraram um impulso histórico sem
equivalentes. O Nasdaq duplicou seu índice, o Dow Jones quase triplicou e
o Standard & Poor’s 500, que basicamente lista as maiores empresas
de Wall Street, literalmente triplicou nesse intervalo de dez anos. O
altismo acionário desse período não se compara à velocidade galopante da
“exuberância irracional” da década de 1990, mas naquela época o produto
interno apresentou taxas de crescimento muito maiores (com picos de
quase 5 %). A discrepância entre o baixo crescimento da economia
americana como um todo e a multiplicação financeira nas bolsas é a mais
escandalosa de todos os tempos. A injeção de dinheiro patrocinada pelo
Fed (“flexibilização monetária”) resultou em investimentos produtivos,
mas como eles são cada vez mais voltados para a indústria 4.0, ou seja,
alta tecnologia desempregadora de força de trabalho, a multiplicação
monetária efetiva foi produzida no cassino das bolsas de valores,
alimentando a “retomada” mesmo em meio à falta de lucros efetivos. Isso
criou um fenômeno gigantesco de financiamento de empresas que não são
lucrativas.
Stanley Jevons, que escreveu um Princípios de Economia Pura,
ficaria assustado ao ver que, sob o sol do século XXI, algumas das
maiores e mais famosas empresas do mundo se expandem de modo acelerado
sem apresentar um níquel sequer de lucro. Antes mesmo do coronavírus
assustar o mercado mundial, alguns colunistas econômicos já se
perguntavam como uma realidade dessas poderia se sustentar. Em 2018, por
exemplo, foi registrado o maior número de ofertas públicas de ações por
empresas que não apresentaram lucros: 81 % de todos IPOs realizados no
mercado financeiro americano eram de empresas com prejuízos. Um recorde
só comparado a 2000, exatamente quando a bolha das ponto-com explodiu.12
Sobrevivente do colapso da nova economia,
quando quase faliu, a Amazon demorou mais de 6 anos para apresentar
lucros, mas seus ganhos continuam reduzidos diante do volume de recursos
mobilizados pela empresa. O mesmo é o caso da Netflix, cujos custos de
operação são elevadíssimos para receitas líquidas minguadas. De qualquer
modo, essas empresas ainda são exemplos a serem seguidos por outras que
sequer registraram oficialmente lucro, como a Uber, que há dez nunca
apresenta um saldo positivo em seus balanços, ou a Tesla e o Spotify.
Para a consciência comum fixada no mundo das aparências, pode parecer um
absurdo que a Uber não dê lucro, mas é a realidade do castelo de
riquezas fictícias erguido pelo capital em seu período de declínio
histórico.13
O paradoxo de uma empresa em expansão
contínua e com prejuízos acumulados só pode ser explicado pela ampliação
e barateamento do crédito. As estatísticas de crescimento dos serviços e
maior abrangência na atuação de uma empresa são mais significativas
para investidores do que o próprio balanço contábil, o que alimenta a
procura incessante pelas ações e uma alta contínua de papéis que
financiam as atividades, mesmo em contraste com as receitas. No caso de
empresas de capital fechado, é o acesso a fundos de investimento ou
recursos públicos que garante a sustentação prolongada de empresas com
dificuldade. A miragem futura de um ganho, em algum momento, é a caução
para o constante fluxo de dinheiro: embora isso possa se efetivar para
uma empresa ou outra, uma dinâmica sistemática dessas não passa de um
esquema de pirâmides onde a riqueza só circula enquanto recursos
monetários continuam a entrar. A exploração energética do shale oil,
por exemplo, que tornou os EUA novamente autossuficiente em petróleo
depois de décadas, só se explica por essa enxurrada de crédito farto, já
que a maioria das empresas estão enfiadas em dívidas e seus custos de
operação são elevadíssimos.14
Gigantescas empresas não-rentáveis são
sustentadas por uma bolha acionária que ameaça explodir de vez com a
agulha oferecida pelo coronavírus. E esse não é o caso somente dos EUA. O
próprio governo chinês há décadas financia empresas notoriamente
improdutivas devido à sua importância “estratégica”. Corporações de
várias partes do mundo sustentam suas operações de produção
não-lucrativas com os ganhos do mercado financeiro, até no mercado
periférico do Brasil isso acontece: grandes marcas como a Netshoes nunca
deram lucro e há dúvidas se a gigante iFood tem receitas líquidas
devido ao pesado investimento e subsídios constantes que oferece aos
seus clientes. A diferença entre o financiamento privado e o subsídio
governamental pode produzir efeitos imediatos distintos (por exemplo, a
manutenção de empregos), mas como o fluxo de capital é único e
globalmente interconectado, essa rede insustentável atingirá a todos, de
qualquer modo, quando o fluxo de dinheiro for bloqueado. A rápida
depreciação acionária vai travar o movimento de crédito que sustenta
essas empresas não-rentáveis, assim como a crise da dívida soberana deve
secar os recursos dos subsídios estatais. Não é por acaso que, em
setembro passado, bem antes do coronavírus, uma súbita elevação da taxa
de empréstimos interbancários nos EUA fez o Fed intervir nesse mercado
depois de uma década – o sistema financeiro americano começava a indicar
a falta de fluxo monetário.15
Essa é a originalidade de nossa época.
Não se trata do mesmo fenômeno de crise de sempre. É a teoria econômica
burguesa que acredita que “as crises sempre estiveram conosco e
permanecerão para sempre”.16 A visão sempre-idêntica dos
fenômenos de crise é parte da naturalização da economia capitalista e
ela atinge até mesmo os seus pretensos críticos de esquerda, que se
fixam num logicismo e ignoram que o capital se desdobra num processo
histórico cego e destrutivo. A crise que se anuncia não resulta de uma
interferência externa, muito menos é o mecanismo de “limpeza de terreno”
de sempre. Aqui temos problemas estruturais em processo há quatro
décadas que têm empilhado soluções mundiais fracassadas.
É verdade que o bloqueio na produção
industrial deve reduzir uma parte do excesso de mercadorias disponíveis
nos estoques, mas a capacidade produtiva excedente vai continuar depois
da suspensão das medidas de contenção sanitárias, assim como as dezenas
de milhões de imóveis continuarão sem comprador na China e o poder de
compra mundial resultará mais comprimido depois das demissões em massa.
Governos de todo o mundo já anunciaram pacotes de salvação com injeção
de recursos, mas isso dificilmente servirá de vacina quando é a própria
dívida pública que está no centro da epidemia – a depreciação de
diversas moedas (à frente de todas, o real) já começou a se acelerar.
Também o governo de Trump anunciou medidas de resgate, mas resta saber
se o dólar não será afetado também pela desvalorização monetária geral
que representa exatamente a própria incapacidade do dinheiro de
circular. Uma queda da última moeda hegemônica, simultânea às demais
moedas do mundo, é a verdadeira peste que se deve temer: ela
representará o bloqueio completo dos fluxos sanguíneos da economia
capitalista, demonstração de que o seu coração (a produção de valor) já
não funciona.
* * *
* * *Quatro dicas de leitura da Boitempo, para aprofundar a reflexão
Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx, de Moishe Postone
Os sentidos do mundo: textos essenciais, de David Harvey
O capital: crítica da economia política, de Karl Marx
Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social, de Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira (orgs.)
O Blog da Boitempo apresenta um dossiê urgente com reflexões feitas por alguns dos principais pensadores críticos contemporâneos, nacionais e internacionais, sobre as dimensões sociais, econômicas, filosóficas, culturais, ecológicas e políticas da atual pandemia do coronavírus. Confira aqui a página com atualizações diárias com análises, artigos, reflexões e vídeos sobre o tema.
NOTAS
1 “Coronavírus: ‘Talvez seja preciso restringir a circulação de mercadorias’, diz economista”, GloboNews, 27 jan. 2020.
2 “China desinfeta e destrói dinheiro para conter avanço do coronavírus”, Exame, 17 fev. 2020.
3 Milton Friedman e Rose Friedman. Liberdade de escolher: o novo liberalismo econômico (Rio de Janeiro, Record, 1978), p. 86-89.
4 “Sunspots and the Price of Corn and Wheat”, Time-Price Research.
5 Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro III: o processo global da produção capitalista, São Paulo, Boitempo, 2017, p. 252..
6 Karl Marx, “The Commercial Crisis in Britain”, New-York Daily Tribune, n. 4294, 26 jan 1855.
7 Maurilio Lima Botelho, “Entre as crises e o colapso: cinco notas sobre a falência estrutural do capitalismo. Revista Maracanan, n. 18 (29), p. 157-180.
8 O índice pode ser consultado aqui.
9 Jeff Cox, “Shadow banking is now a $52 trillion industry, posing a big risk to the financial system”, CNBC, 11 abr. 2019.
10 Robert Kurz. Poder mundial e dinheiro mundial: crônicas do capitalismo em declínio (Rio de Janeiro, Consequência, 2015), p. 31-35.
11 Niall Ferguson. A ascensão do dinheiro: a história financeira do mundo (São Paulo, Planeta, 2009).
12 Camila Veras Mota, “De Uber a Nubank: as empresas que valem bilhões, mas nunca registraram lucro”, UOL, 30 set. 2019.
13 Marcelo López, “Bolha das empresas que não dão lucro está ocultando a inflação no mundo todo”, InfoMoney, 13 dez. 2019. Ver também: “Como o Uber sobrevive com prejuízo de US$ 1,2 bilhão e sem nunca ter dado lucro?”, ÉpocaNegócios, 11 nov. 2019.
14 A tênue esperança para o setor de energia para os EUA, enfiado em uma dívida total de 85 bilhões de dólares, é que a maioria das obrigações é de longo prazo e não vence em 2020, portanto, o socorro monetário do Fed pode adiar o crash. Sobre isso ver: Tim Mullaney, “In oil crash, energy debt loads are not the immediate problem for most drillers”, CNBC, 13 mar. 2020.
15 “Fed intervém para controlar taxas interbancárias pela 1ª vez em mais de uma década”, Valor, 17 set. 2019.
16 Nouriel Roubini e Stephen Mihm. A economia das crises: um curso-relâmpago sobre o futuro do sistema financeiro internacional (Rio de Janeiro, Intrínseca, 2010), p. 12.
2 “China desinfeta e destrói dinheiro para conter avanço do coronavírus”, Exame, 17 fev. 2020.
3 Milton Friedman e Rose Friedman. Liberdade de escolher: o novo liberalismo econômico (Rio de Janeiro, Record, 1978), p. 86-89.
4 “Sunspots and the Price of Corn and Wheat”, Time-Price Research.
5 Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro III: o processo global da produção capitalista, São Paulo, Boitempo, 2017, p. 252..
6 Karl Marx, “The Commercial Crisis in Britain”, New-York Daily Tribune, n. 4294, 26 jan 1855.
7 Maurilio Lima Botelho, “Entre as crises e o colapso: cinco notas sobre a falência estrutural do capitalismo. Revista Maracanan, n. 18 (29), p. 157-180.
8 O índice pode ser consultado aqui.
9 Jeff Cox, “Shadow banking is now a $52 trillion industry, posing a big risk to the financial system”, CNBC, 11 abr. 2019.
10 Robert Kurz. Poder mundial e dinheiro mundial: crônicas do capitalismo em declínio (Rio de Janeiro, Consequência, 2015), p. 31-35.
11 Niall Ferguson. A ascensão do dinheiro: a história financeira do mundo (São Paulo, Planeta, 2009).
12 Camila Veras Mota, “De Uber a Nubank: as empresas que valem bilhões, mas nunca registraram lucro”, UOL, 30 set. 2019.
13 Marcelo López, “Bolha das empresas que não dão lucro está ocultando a inflação no mundo todo”, InfoMoney, 13 dez. 2019. Ver também: “Como o Uber sobrevive com prejuízo de US$ 1,2 bilhão e sem nunca ter dado lucro?”, ÉpocaNegócios, 11 nov. 2019.
14 A tênue esperança para o setor de energia para os EUA, enfiado em uma dívida total de 85 bilhões de dólares, é que a maioria das obrigações é de longo prazo e não vence em 2020, portanto, o socorro monetário do Fed pode adiar o crash. Sobre isso ver: Tim Mullaney, “In oil crash, energy debt loads are not the immediate problem for most drillers”, CNBC, 13 mar. 2020.
15 “Fed intervém para controlar taxas interbancárias pela 1ª vez em mais de uma década”, Valor, 17 set. 2019.
16 Nouriel Roubini e Stephen Mihm. A economia das crises: um curso-relâmpago sobre o futuro do sistema financeiro internacional (Rio de Janeiro, Intrínseca, 2010), p. 12.
***
Maurilio Lima Botelho é
Professor de geografia urbana da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ), e autor do artigo “Crise urbana no Rio de Janeiro:
favelização e empreendedorismo dos pobres” que integra o livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social,
organizado por Pedro Rocha de Oliveira e Felipe Brito (Boitempo, 2013),
e do artigo “Guerra aos ‘vagabundos’: sobre os fundamentos sociais da
militarização em curso”, publicado na revista Margem Esquerda #30. Colabora com o Blog da Boitempo esporádicamente. Dele, leia também, “Um mundo afogado em capital: a queda global da taxa de juros e a nova rodada da crise estrutural do capitalismo“, “Rumo ao desconhecido: endividamento mundial, crise monetária e colapso capitalista“, “O suicídio da classe média” e “A aprovação do fim do mundo” (este último no dossiê “Não à PEC 241” do Blog).
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