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terça-feira, 28 de março de 2023

Cada partido revolucionário deve ser isso mesmo: revolucionário. O socialismo é a alternativa. A unidade não pode ser somente em determinadas ações, sem concepções e valores

 


Kemal Okuyan, Secretário-Geral, Partido Comunista Turco (TKP)

 

Quaisquer que sejam as condições em que opere, quaisquer que sejam as oportunidades que tenha, é sempre possível para um partido comunista agir mais, melhor e de forma mais revolucionária do que antes. Assim, os princípios de respeito mútuo e não interferência em questões internas não devem anular as abordagens críticas, e os partidos comunistas não devem permanecer numa zona de conforto onde estão sozinhos.

 

 

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Por hábito, muitas vezes tendemos a usar a expressão "movimento comunista mundial". No entanto, hoje não podemos falar de um fenómeno que mereça ser rotulado como  movimento comunista mundial.

 

Há comunistas em quase todos os países do mundo; partidos ou formações com o nome de comunistas estão ativos em muitos países. Alguns deles são bastante influentes nos seus países, alguns estão no poder. Podemos até dizer que os partidos comunistas são muito mais abrangentes hoje do que  eram em 1919, quando a Internacional Comunista foi fundada, e nos poucos anos que se seguiram.

 

Mas ainda não podemos falar de um movimento.

 

Porque um movimento, apesar de todas as suas contradições internas, tem uma trajetória. É claro que os partidos comunistas hoje não têm a trajetória comum que esperaríamos de um movimento.

 

Então precisamos de responder à pergunta: É possível que os comunistas de hoje sejam transformados num movimento internacional?

 

O "Partido Comunista" pode ser definido pela sua vontade e determinação de levar a humanidade a uma sociedade livre de classes e de exploração. Preservando a originalidade e a riqueza dos seus componentes, uma soma que não se caracterize por esta vontade e determinação em todo o seu tecido não pode transformar-se num "movimento comunista mundial".

 

Isto não deve ser tomado como uma crítica ou uma polémica, mas como uma avaliação objetiva da situação.

 

A luta pela democracia ou pela paz, e estando na vanguarda de tal luta, não pode substituir a missão histórica dos partidos comunistas. Da mesma forma, enquanto a luta contra o imperialismo dos EUA é uma tarefa indispensável para os partidos comunistas, não é uma característica distintiva para eles.

 

Podemos beneficiar do testemunho da história para entender melhor o que queremos dizer.

 

Sabemos que, entre 1933 e 1945, o movimento comunista mundial se concentrou predominantemente na luta contra o fascismo, enquanto outras missões e objetivos foram relegados para segundo plano. Mas ainda usamos o termo "movimento comunista mundial" para esse período. Ao explicar isso com a existência da URSS, o que não devemos esquecer é o facto de que, mesmo durante esse período, a URSS manteve a perspetiva central de "uma luta por um mundo livre de classes e de exploração" e, apesar de alguns erros, manteve os seus esforços com o objetivo de aproveitar as oportunidades que surgiram para um salto em frente do processo revolucionário mundial.

Se a Internacional Comunista pudesse ser reduzida exclusivamente à política da Frente Popular, poderíamos muito bem dizer que, no contexto histórico, o movimento comunista mundial estava em declínio a partir da década de 1930.

 

Deve ficar claro que essa abordagem não tem nada a ver com denegrir a luta contra o fascismo ou outras tarefas semelhantes. É apenas para nos lembrar que a definição de "movimento comunista mundial" requer uma trajetória comum em linha com a missão histórica do comunismo.

 

De facto, aquilo em que precisamos de nos concentrar é como chegar a um momento em que essa missão histórica venha à tona novamente, tornando-se um centro de gravidade que influencia e molda cada um dos partidos comunistas com diferentes caminhos e agendas.

 

É óbvio que, para o comunismo atingir tal nível de influência e  importância na arena internacional, certamente há a questão das condições objetivas. No entanto, seria um grave erro atribuir o salto do movimento comunista a alguma conjuntura favorável que aparecerá nalgum momento desconhecido, especialmente nos nossos tempos em que o capitalismo enfrenta um impasse económico, político e ideológico insuperável em todo e qualquer país. Sob as condições em que o domínio do capital está a cair de crise em crise e é incapaz de oferecer quaisquer esperanças à humanidade, mesmo falsas esperanças, deve ser evidente que os comunistas precisam priorizar a análise do fator subjetivo em vez de se queixarem da existência dessas condições.

 

Temos de fazer debates ousados.

 

O processo revolucionário mundial tinha começado a ter as referências teóricas e políticas necessárias para as difíceis lutas que se avizinhavam, seguindo as poucas décadas após a redação do Manifesto do Partido Comunista com  palavras incomparáveis. A divergência e a convergência exigem sempre referências. Na viragem do século XX o marxismo  tinha-se tornado a principal referência para o movimento da classe operária, prevalecendo sobre o seu rival, o anarquismo. No entanto, não demorou muito para o movimento marxista se desintegrar. Foi uma cisão que, mesmo aqueles que argumentaram que a "unidade" era, em qualquer caso, algo bom, consideraram inevitável e necessário. Os marxistas tinham tomado dois rumos diferentes, o revolucionário e o reformista.

 

Com o tempo, tornou-se claro que não poderia haver interpretação reformista do marxismo. A social-democracia abandonou as fileiras revolucionárias, infligindo à classe operária a pior traição da sua história.

 

Isso significou também o aparecimento de um período em que os revolucionários no mundo, que agora preferiam o nome "comunista", renovaram e fortaleceram as suas referências. As 21 condições para a adesão à Internacional Comunista fundada em 1919 poderiam muito bem ser vistas como a expressão mais nítida dessas referências.

A partir de 1924, quando a onda revolucionária no mundo recuou, era inevitável uma certa erosão nessas referências teóricas e políticas. O fascismo alemão e, mais tarde, a Segunda Guerra Mundial aceleraram essa erosão.

 

De facto, o período entre 1924 e 1945, contrariamente à filosofia fundadora da Comintern, confrontou cada um dos jovens partidos comunistas com as suas próprias realidades e, além disso, impôs diferentes responsabilidades a cada um deles em termos dos interesses gerais do processo revolucionário mundial.

 

Apesar de tudo isso, a existência da Revolução de Outubro e o seu resultado mais precioso, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, bem como a vontade de estabelecer o socialismo naqueles anos, fortalecida pela transição para uma economia planificada, industrialização e coletivização na agricultura, forneceram um quadro histórico imensamente valioso para os partidos comunistas. Tal vontade não só impedia desvios, mas também serviu como o terreno necessário para saltos em frente. A derrota do fascismo e o fortalecimento do socialismo após a Segunda Guerra Mundial reforçaram isso.

No entanto, o movimento comunista mundial estava a enfrentar problemas internos muito sérios que minavam a integridade que era  capaz de preservar graças ao prestígio da União Soviética.

 

As referências desvaneceram-se, e o "marxismo reformista", que em alguns aspetos se supunha ter sido abandonado,  fez-se novamente ouvir.

 

O discurso de Khrushchev, o então secretário-geral do PCUS, no encerramento do seu XX Congresso, em 1956, cortou as últimas  amarras que ancoravam o movimento comunista mundial nos portos seguros e, ainda mais importante, esmagou o otimismo que prevaleceu desde 1917.

 

O que é interessante é que o discurso de Khrushchev, cheio de distorções, não levou a um debate sólido e, consequentemente, levou a uma divisão no movimento comunista mundial.

 

No entanto, esperava-se que o movimento comunista preservasse e atualizasse os princípios de 1919 e se vinculasse a referências teóricas e políticas mais consolidadas. Em vez disso, o que emergiu foi uma desordem em que um grande número de partidos sem um terreno comum teve  uma relação individualizada, à maneira de cada um, com a União Soviética, que permaneceu como a conquista mais importante da revolução mundial.

 

O conflito entre a República Popular da China e a URSS, que terminou numa divisão violenta, também não deu lugar a uma divisão saudável. No período que se seguiu a essa divisão, a distância entre os partidos que mantinham relações estreitas com o PCUS continuou a aumentar. À medida que alguns dos partidos dominantes nas Repúblicas Populares da Europa Central e Oriental tentaram superar as suas deficiências durante o período entre 1944 e 1949 por hibridização ideológica, a correlação interna de forças dentro do movimento comunista mundial tornou-se ainda mais complicada. Mas o problema era muito maior. Por exemplo, a amizade com a União Soviética era quase a única semelhança entre o Partido Comunista de Cuba - que na década de 1960 trouxe um novo dinamismo ao movimento comunista não só na pequena ilha onde chegou ao poder, mas também em toda a América Latina e no mundo -, e alguns outros partidos que viraram  a face para o eurocomunismo. No final, até à dissolução da União Soviética, não houve nenhum debate ou divisão  que empurrassem o movimento comunista mundial para a frente.

 

Depois de 1991, nem o PCUS - que mantinha muitos, se não todos, os partidos próximos de si - existia, nem havia um eixo segundo o qual os partidos comunistas se pudessem ajustar. 

 

Pelos esforços muito significativos de alguns partidos, nomeadamente o Partido Comunista da Grécia, tornou-se uma tarefa prioritária reunir o que restou em nome do comunismo. Os Partidos Comunistas e Operários reuniram-se 22 vezes. Isso, por si só, tem sido extremamente importante. No entanto, esse período não serviu para o movimento comunista reconstruir as suas próprias referências da maneira de que precisava.

 

E, eventualmente, a visão de que os partidos comunistas não precisam realmente de referências teóricas e políticas, começou a consolidar-se .

 

Hoje, não temos um mecanismo funcional para examinar as diferenças fundamentais que podem ser observadas quando olhamos não apenas para os partidos membros da Solidnet que participam nos Encontros Internacionais dos Partidos Comunistas e Operários, mas para todos os partidos que se identificam como comunistas.

 

Seria um grande erro racionalizar essa falta de comunicação escondendo-a atrás do princípio da não interferência nos assuntos internos, apesar de ser um princípio que pensamos que deve ser rigorosamente preservado no período que se avizinha.

 

Em última análise, o processo revolucionário mundial é um todo, e a forma como cada partido que se identifica como comunista se relaciona com esse processo diz respeito a todos os outros atores que fazem parte desse processo.

 

Este artigo pode ser considerado como uma maneira modesta de pensar em voz alta sobre as diferentes formas que as relações entre os partidos comunistas devem assumir sob as circunstâncias dadas.

 

Vale ressaltar neste momento o que podemos dizer no final. Apesar das inegáveis e amplas divergências entre os partidos comunistas de hoje, não há base para uma cisão ou divisão saudável.

 

Precisamos de organizar um debate, um debate realmente ousado.

 

Isto não deve ser entendido como um apelo para que os partidos comunistas se envolvam num confronto ideológico dentro de si e entre si. A extensão da decadência do capitalismo confronta os partidos comunistas com a tarefa de canalizar uma alternativa real o mais rápido possível. Neste momento, não podemos limitar-nos a um debate académico e teórico.

 

Do  que precisamos é do seguinte: estabelecer um esclarecimento dos pontos teóricos e políticos de referência a partir dos quais cada partido comunista atua. Não faz sentido considerar isso como um problema interno de cada partido. A interação é um dos privilégios mais importantes de um movimento universal como o marxismo.

 

Infelizmente, não estamos a passar por um período saudável para os partidos comunistas se ouvirem e se compreenderem.

 

Do que precisamos é que todos contribuam para criar verdadeiros motivos de discussão sem rotular qualquer outra parte.

 

Mesmo que existam factos suficientes para rotular um partido, a necessidade de abster-se de fazê-lo não é uma questão de cortesia política, mas está totalmente relacionada com as condições particulares de hoje.

 

O processo em que os partidos comunistas perderam os seus pontos de referência durou quase mais de 70 anos. O problema é profundo demais para ser superado por tentativas prematuras de cisões ou separações.

 

Sem dúvida, os partidos que têm posições semelhantes ou aqueles que consideram a formação de parcerias estratégicas podem e devem estabelecer plataformas bilaterais, múltiplas, regionais ou internacionais para reforçar isso. Mas a realidade é que a sua contribuição para a formação desses pontos de referência será limitada.

 

A organização de um debate saudável requer ficar longe de recorrer a epítetos como reformista, sectário, aventureiro ou oportunista. Como dissemos acima, a cortesia política não é o fator decisivo aqui. De facto, no passado, epítetos muito mais duros e dolorosos foram usados pelos marxistas. Mas cada um desses conflitos anteriores amadureceu sobre os pontos de referência que se pensava existirem e compartilhados entre eles.

 

Suponho que o ponto em que precisamos de esclarecer o que entendemos pela palavra "referência" está agora alcançado.

 

Estamos a falar de pontos de partida históricos, teóricos e morais que floresceram no seio do marxismo e foram  adotados internacionalmente.

 

Por exemplo, antes de a Segunda Internacional ter sido manchada com a vergonha de 1914, opor-se categoricamente à guerra imperialista era uma posição de princípio que foi unanimemente assumida. Este princípio foi o resultado do marxismo agindo  com referências comuns, apesar das diferenças sobre a questão ainda não estarem totalmente cristalizadas até então.

 

Outro princípio bem conhecido, não participar em governos burgueses, também derivava das mesmas referências.

 

Tais exemplos podem ser multiplicados. O que precisamos de ter em mente é que, o que está na raiz dos conflitos e divisões entre os marxistas no primeiro quartel do século 20 são essas antigas referências comuns.

 

Essa semelhança foi a razão que levou Lenine a acusar Kautsky e outros como "renegados".

 

Como sublinhei acima, a Terceira Internacional desenvolveu códigos que se transformaram em novas fontes de referência para o movimento comunista após o aprofundamento das diferenças em 1914 que levaram a uma divisão. Enquanto alguns partidos não foram suficientemente corajosos  para declarar abertamente a sua distância dessas referências, alguns outros partidos sinceramente defenderam-nas e seguiram-nas. Em qualquer caso, o movimento comunista mundial moveu-se dentro de um quadro teórico e político.

 

Mencionei acima que essas referências já tinham começado a perder a sua influência muito antes de 1991, quando a União Soviética se dissolveu e, além disso, é impossível hoje estabelecer um novo quadro que seja adotado por todos.

 

No entanto, é óbvio que haverá graves consequências para os partidos comunistas se agirem sobre um terreno cujas fronteiras históricas, teóricas e políticas estão completamente perdidas.

 

O debate e a comunicação aqui devem servir para estabelecer uma clareza sobre o conjunto de princípios que são vinculativos para os partidos comunistas, sem ceder a essa falta de referências. A divergência (se for inevitável) só servirá para o avanço quando for o resultado de tal processo.

 

É claro que, neste processo, é possível e necessário, apesar de todas as diferenças, desenvolver posições e ações comuns sobre questões internacionais, como a guerra e a paz, ou a luta contra o racismo, o fascismo e o anticomunismo. Se não ignorarmos e banalizarmos as diferenças, as posições tomadas podem tornar-se mais reais e as ações conjuntas mais poderosas.

 

O objetivo não é, certamente, a divisão. O objetivo deve ser ajudar o movimento comunista, que afirma ser a vanguarda do processo revolucionário mundial desigual e combinado, a transformar-se num movimento conjunto acima e além dos elementos únicos.

O que queremos dizer com um movimento conjunto não é, naturalmente, formar um modelo que não leve em conta as particularidades das lutas que ocorrem em diferentes países. Por outro lado, todos nós precisaríamos de estar preocupados com a razão pela qual a dicotomia de "questões internas" e "relações internacionais" se transformou numa zona de confronto como nunca antes na nossa história de 170 anos.

 

Debate, interação e comunicação são importantes por causa de tudo isso.

 

Mas como, e sobre o que vamos discutir?


Neste ponto, não deve haver espaço para "tabus" ou áreas intocadas.

 

É claro que precisaremos de partir das nossas próprias histórias. O  TKP, corajosamente, fez esforços para analisar um ponto de viragem muito crítico para si, que é o complicado problema que surgiu logo após a sua fundação, e incluiu o assassinato de quase todos os seus líderes fundadores.

 

As relações com o movimento kemalista, que tinha uma aliança com a Rússia soviética com resultados muito importantes, ainda que temporários, e a aproximação  da revolução burguesa que levou à fundação da República da Turquia em 1923, estavam entre os problemas fundamentais para o TKP, que também tiveram impacto nos anos seguintes. O nosso estudo sobre a história do Partido, cujos dois primeiros volumes foram publicados no centenário da nossa fundação, provou que podemos enfrentar tais problemas com responsabilidade revolucionária.


Estamos a tentar expressar a mesma atitude corajosa diante das ruturas, cisões e liquidações na história do TKP, e estamos a arcar com os custos de uma análise honesta das preferências políticas e ideológicas do partido.


As questões que estamos a discutir não dizem respeito apenas à Turquia. A luta do TKP nunca  se desenrolou num país isolado desde sua fundação, em 1920. Quando examinamos toda a nossa história, podemos ver que o terreno em que o nosso partido lutou interagiu com a Rússia, a Grécia, o Irão, a Índia (e Paquistão), a Arménia, o Azerbaijão, a Geórgia, a Bulgária, a Alemanha, o Chipre, o Iraque, a Síria e muitos outros países.


Além disso, não podemos falar da influência internacional da luta de classes na Turquia como se fosse apenas sobre o TKP. Nesse sentido, o TKP jamais recorrerá à abordagem simplista de “Somos donos dos nossos problemas” e levará a sério qualquer crítica, sugestão ou avaliação que seja fundamentada e respeitosa.


O TKP também realiza debates e estudos  internos sobre questões pouco discutidas da história do movimento comunista, mas sem tirar conclusões precipitadas ou rotulá-las. Não é  bom que os partidos comunistas permaneçam calados sobre muitas questões, incluindo o 7º Congresso do Comintern, as políticas de Frente Popular, a Guerra Civil Espanhola ou o Eurocomunismo, e deixar o campo aberto para os anticomunistas e  a “nova esquerda”.


Não há problema que possa ser deixado de lado para aqueles que testemunharam o trágico colapso da União Soviética. Para nós, é infundada a ideia de que discutir determinados assuntos ameaçaria os valores que nos ligam ao nosso próprio passado. O que realmente ameaça os nossos valores é a falta de referências de hoje. Se pudermos evitar que algumas questões se transformem em tabu, veremos claramente que a história comum do movimento comunista é muito mais rica do que se supõe.


O melhor exemplo do tipo de adversidades que podem surgir quando nos afastamos de um processo saudável de debate e avaliação é a era de Estaline que, depois de 1956, se tornou um tema obscuro e eventualmente um tabu, e depois  objeto de qualquer calúnia ou glorificação. Não se deve esquecer que os anos sob a liderança de Estaline podem tornar-se o capítulo mais ilustrativo e honroso do movimento comunista mundial, quando o fanatismo é deixado para trás.


Os comunistas não devem ter reservas em discutir qualquer tema pertencente à história da luta de classes. No entanto, são necessários mecanismos de debate mais sofisticados se não quisermos permitir que as nossas discussões sejam inibidas pelo respeito das preferências dos partidos comunistas que lutam em cada país.


Vale a pena pensar um pouco mais na ideia de que os debates não devem envolver estigmatização. É óbvio que um partido comunista pode rotular outro, explícita ou implicitamente. Claro, não podemos considerar tudo isso como infundado. Hoje, não é segredo que existem alguns partidos comunistas que estão a adquirir um caráter social-democrata. A identificação como “propagandistas” ou “sectários” de alguns partidos praticamente inexistentes politicamente  também pode ser tomada como justificada. No entanto, podemos observar que esses rótulos não servem para a interação e o debate de que mais precisamos no momento.

Já dissemos que faltam referências comuns no cenário internacional. No entanto, outra verdade é que muitos partidos carregam dentro de si o potencial de mudança. Podemos caracterizar essa mudança como positiva ou negativa em cada caso. No entanto, também podemos ver que as réplicas do grande terremoto que atingiu todos os partidos comunistas na segunda metade da década de 1980 ainda continuam e que muitos partidos não se estabilizaram ideológica e politicamente.

Seria errado atribuir um significado negativo a essas dores de mudança, que às vezes levam a ruturas e cisões. O que está errado, na verdade, é que esses conflitos internos, muitas vezes, não coincidem com um processo tangível e percetível de debate ou divisão. A falta de “debate” entre os partidos comunistas também desempenha um papel nesse defeito.

Neste sentido, podemos argumentar que os problemas são causados por tentativas de desvalorização ou difamação disfarçadas de cortesia,  mais do que por acusações abertas.

É inevitável que as relações se tornem menos saudáveis na falta de uma verdadeira plataforma de debate.

Até agora, discorremos sobre as consequências da falta de referências teóricas e políticas. Outro problema surge nos critérios de avaliação dos partidos comunistas. Ao avaliar um partido comunista, prestamos atenção ao seu programa, ideologia, status organizacional, ações, à sua influência na sociedade, desempenho eleitoral, publicações e padrões de quadros. Alguns deles são puramente qualitativos, mas outros podem ser medidos quantitativamente. Porém, deixando de lado as preferências ideológicas, e não levando em conta rótulos fáceis de colocar como “reformista”, “sectário”, “aventureiro” etc., podemos julgar um partido político apenas questionando se ele é influente ou não.

Nesse contexto, fica claro que a distinção “grande partido-pequeno partido” não é um critério “revolucionário”. Em particular, não faz sentido avaliar a magnitude de um partido com base principalmente nos resultados eleitorais.

Não é preciso lembrar que estamos a levantar esta questão não  referindo-nos a um partido   de que não se espera uma vitória parlamentar nos tempos mais próximos, mas com base na tradição que se formou desde o início do século XX.

Como a igualdade entre os partidos comunistas é um dos princípios mais importantes e universalmente defendidos, vale a pena dar-lhe uma maior ênfase. 

A classificação de “partido grande-pequeno partido” não serve para estimular os partidos a progredir. Mas um verdadeiro debate é absolutamente benéfico. Hoje, qualquer comunista que viva em qualquer país tem o direito, e o dever, de se perguntar como outro partido comunista está a reagir aos acontecimentos naquele país, de fazer perguntas e de expressar opiniões a respeito disso.

Quaisquer que sejam as condições em que opere, quaisquer que sejam as oportunidades que tenha, é sempre possível, para um partido comunista, agir mais, melhor e de forma mais revolucionária do que antes. Assim, os princípios de respeito mútuo e não interferência em questões internas não devem anular as abordagens críticas, e os partidos comunistas não devem permanecer numa zona de conforto onde estão sozinhos.

Os partidos comunistas não se classificam, mas acompanham-se, discutem e procuram formas de colaboração. As bases para isso podem ser criadas avaliando os partidos comunistas com critérios sólidos.

Neste momento vale a pena abordar a situação dos partidos comunistas no poder hoje. Todos esses partidos são portadores de imensa legitimidade histórica. Na medida em que “revolução” e “poder político” são de importância central para os partidos comunistas, não há qualquer problema em considerar que estes partidos terem  um papel acrescido no processo revolucionário mundial.

Hoje, sabemos que existe uma ampla gama de avaliações sobre a política interna desses partidos, o seu caráter ideológico e de classe e o papel que desempenham no cenário internacional. Claro, a legitimidade histórica que acabei de mencionar não cria automaticamente qualquer impunidade para críticas. Todas os partidos podem fazer livremente as suas próprias avaliações, desde que seja preservado certo nível de maturidade e respeito. Também é inevitável que parte dessas avaliações possam ser um pouco prejudiciais. Os partidos comunistas dominantes, neste ou naquele grau, também são atores internacionais que têm influência na luta de classes noutros países.

É necessário que esses partidos tenham um lugar particular entre os partidos comunistas mundiais, com base na extensão acima mencionada? Sabemos que alguns partidos que lutam nos países capitalistas são dessa opinião. Em algumas reuniões internacionais ou bilaterais, deparamo-nos com algumas propostas que  a favor de que os partidos comunistas no poder estejam na vanguarda e tenham um papel decisivo, ou pelo menos regulador.

Muito pode ser dito sobre o papel do PCUS no movimento comunista internacional no passado, positivo e negativo. Mas hoje, a situação é muito diferente. A União Soviética, pelo menos até certo ponto, tentou relacionar a sua própria existência e a sua política externa com o processo revolucionário mundial, mesmo nos momentos mais difíceis. Os partidos comunistas no poder hoje claramente não têm tal posicionamento.

 

As razões para isso serão tema de outro debate. Além disso, as possibilidades e condições de cada um dos países onde os partidos comunistas estão no poder são bastante diferentes entre si. O  TKP nunca  apreciou julgamentos totalistas. Os responsáveis pela luta socialista não estar numa posição mais avançada nos países capitalistas somos nós e as nossas deficiências como partidos comunistas nos países capitalistas.
 
Além disso, na complexa correlação de forças de hoje, é óbvio que, para a agenda dos partidos comunistas no poder, outros partidos comunistas não constituem prioridade.

Isso por si só põe em causa as  afirmações de que os partidos comunistas no poder desempenham um papel mais especial.

O resultado de considerar que os partidos comunistas no poder devem dar hoje o passo em frente nas reuniões internacionais e nas relações entre os partidos comunistas seria que os partidos comunistas passariam a analisar as lutas de classes a partir de uma perspetiva geoestratégica. Mais uma vez, isso não se baseia nas nossas opiniões “subjetivas” sobre as prioridades da política externa dos partidos comunistas no poder.

Embora não o enfatizemos tanto, a abordagem geoestratégica seria a escolha mais perigosa se os partidos comunistas se quiserem posicionar dentro do processo revolucionário mundial. Os partidos comunistas devem abordar a arena internacional tentando harmonizar os interesses da luta revolucionária nos seus próprios países com os interesses gerais do processo revolucionário mundial.

Essa harmonia pode ser difícil ou mesmo impossível, às vezes. No entanto, para os partidos comunistas, é necessário reconhecer os custos da alienação do objetivo da revolução nos seus próprios países e tornar essa harmonia o mais sólida possível.

A geoestratégia poderia, na melhor das hipóteses, ser um elemento analítico complementar para o marxismo. Não é correto substituir a perspetiva em que conceitos como imperialismo, Estado, revolução e luta de classes desempenham um papel central, por lutas de poder que podem a qualquer momento trivializar estes conceitos.

E aqui, precisa de ser apresentado outro problema.

A Rússia Soviética e mais tarde a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas exerceram uma séria influência ideológica e psicológica “a favor do socialismo” entre os trabalhadores e as nações oprimidas nos países capitalistas. E isso foi conseguido mesmo nos momentos mais desafiantes para a União Soviética. Isto aconteceu porque centenas de milhões de pessoas no resto do mundo sentiram que na URSS continuava a luta pela “construção de uma sociedade igualitária”.

Com o tempo, essa influência diminuiu. A União Soviética desintegrou-se. Este artigo é composto por reflexões expressas em voz alta e atenta para não destacar exemplos negativos. Mas sinto a necessidade de prosseguir com um exemplo positivo. Precisamos pensar por que razão Cuba, apesar de todas as circunstâncias extraordinariamente difíceis em que se encontra o país, ainda pode ser um centro de atração para pessoas em busca de um “outro mundo”. Isso é possível porque a Revolução Cubana, apesar de uma série de contratempos, continua a defender um forte sistema de valores.

A realpolitik implementada sem limites, que é o resultado inevitável do pensamento geoestratégico, pode excitar alguns estrategas, intelectuais e políticos, mas não serve como centro de atração para as massas trabalhadoras.

Os partidos comunistas são obrigados a transformar em bandeira sua o ideal de uma sociedade igualitária e um sistema de valores compatível com esse ideal. Mesmo a tarefa indiscutível e mais difundida de hoje de derrotar ou repelir o imperialismo dos EUA não deve  tornar-se um pretexto para ofuscar esse ideal e sistema de valores.

Os partidos comunistas no poder devem manter os seus papéis importantes dentro da família dos partidos comunistas com a sua legitimidade e prestígio históricos, mas  não se deve insistir em apelos para lhes atribuir um papel decisivo. Tal insistência, deve-se ter em mente, pode levar a uma rutura muito dura dentro dos partidos comunistas.

Afinal, o princípio da igualdade e não-ingerência, que talvez seja o princípio mais comummente reconhecido entre os partidos comunistas hoje, não permite tal hierarquia interna.

Neste momento, podemos ser mais específicos sobre o que queremos dizer com um “debate real”. O que está por trás da necessidade de não deixar um único ponto de nossa própria história não clarificada ou sem avaliação honesta, certamente não é o rigor académico. Quando examinamos com atenção, vemos que a “identificação das tarefas prioritárias” esteve no centro de todos os debates, desde a 1ª Internacional até à dissolução da União Soviética. É esta simples questão que determina os debates e as divisões dentro do marxismo.

As tarefas prioritárias foram definidas uma vez como o derrube da monarquia e do feudalismo, outras vezes a expansão do direito da classe trabalhadora  se organizar e se envolver na política e, em alguns outros casos, a neutralização da ameaça do fascismo ou da guerra.

Agora também, os partidos comunistas têm visões diferentes sobre qual é a tarefa prioritária do processo revolucionário mundial, do qual eles próprios constituem elementos.

As necessidades do processo revolucionário mundial são determinantes.

Naturalmente, cada partido comunista avalia essas necessidades do ponto de vista do seu próprio país e dos interesses da luta no seu próprio país. A distância entre as necessidades gerais do processo revolucionário mundial e os interesses de um país é um dos problemas mais sérios que os comunistas têm de resolver ou gerir. Às vezes, essa distância pode transformar-se num conflito. Também aqui os partidos comunistas têm um papel importante a desempenhar.

Devemos admitir que, hoje, as diferenças entre os partidos comunistas são produzidas pelas diferentes respostas à questão de qual é a tarefa prioritária da revolução mundial.

Uma abordagem muito difundida e antiga afirma que expandir o espaço para a democracia e as liberdades é a tarefa prioritária do processo revolucionário mundial.

Mais uma vez, ouvimos cada vez mais descrições de tarefas como “repelir o imperialismo dos EUA” e “repelir o perigo do fascismo e da guerra”.

É óbvio que essas tarefas não podem ser negligenciadas. No entanto, tais definições de tarefas podem eventualmente transformar-se  em defesa de iniciativas e movimentações de política externa deste ou daquele país.
É também uma escolha definir a tarefa urgente no que diz respeito aos interesses da revolução mundial hoje, de como tornar o socialismo uma opção do nosso tempo. Esta abordagem, que também adotamos, deve ser vista como o produto da determinação de rejeitar e acabar com o status em que o socialismo, única alternativa ao capitalismo,  está a passar pelo seu momento menos influente e afirmativo durante um período de 170 anos.
 
Determinar a tarefa principal com base na oportunidade do socialismo e, portanto, na revolução, significa também eliminar as adversidades que podem ser causadas por outras abordagens que limitam ou pacificam a classe trabalhadora.

Falando realisticamente, é impossível para a classe trabalhadora na sua forma atual ser a principal força capaz de repelir o imperialismo dos EUA ou neutralizar a ameaça do fascismo e da guerra. Para que os comunistas  tenham peso nessas tarefas históricas, eles precisam de ter vontade de cumprir a sua principal missão.

O movimento comunista não terá futuro imitando outras forças, enquadrando-se numa definição mais ampla de esquerda. Isto nem chega a ser um mergulho kamikaze porque não fará mal ao inimigo. Também não é um harakiri porque não levará a um fim “honroso”.

Como estratégia de crescimento, as prioridades acima mencionadas não ajudarão o movimento comunista a florescer e a desenvolver-se.

Claro, não podemos falar aqui de um teste de sinceridade. A história é o juiz mais justo. Mas todos nós sabemos que o comunismo tem linhas vermelhas.

Se essas linhas se tornaram ambíguas, isso pode ser um ponto de partida para nós. Sem cair em repetições, sem nos cansarmos uns aos outros com  frases feitas, citações ou repetições.
 
A grande obra de Marx e Lenine está na totalidade dos seus pensamentos e ações. Se o que define a vida de Marx foi o seu ódio infinito ao capitalismo, para Lenine é-o a revolução e a tomada do poder político.

Nos anos anteriores, a cada momento em que os partidos comunistas se esqueciam da sua própria razão de ser, passavam por alguns percalços que hoje podem ser julgados como “erros”.

Por esta razão, se ao invés de querelas caóticas e infrutíferas, os partidos comunistas puderem contribuir para os debates, dando respostas claras sobre como se relacionam com o processo revolucionário mundial e demonstrando referências ideológicas e políticas apropriadas, surgirá para cada um  dos partidos comunistas um resultado coletivamente significativo. Assim, posições comuns, ações conjuntas ou separações terão lugar num terreno muito mais sólido.
 
O TKP dará as suas modestas contribuições na arena internacional com esta perspetiva.

 

Fonte: Thinking Aloud on the “World Communist Movement” | MLToday , publicado e acedido em 20.02.2023

 

 

Tradução de TAM

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