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segunda-feira, 31 de agosto de 2009

«Viagens Extraordinárias», novela, 1º capítulo

Francis Bacon tossiu com força, assoou-se e puxou de uma cigarrilha. Cofiou as barbas enquanto fixava o olhar no ângulo direito do poster emoldurado que cobria boa parte da porta do largo gabinete, retracto aéreo de uma espessa floresta atravessada por um rio que se adivinhava ser de colossal largura.
Acabara de ler o relatório enviado pela nave Quimera, transmitido de uma zona celeste registada com o número de código XZ 2.018. Imprimiu três cópias e guardou a gravação no cofre-forte do Directório. O triunvirato responsável pelo Programa Quimera, cujo coordenador era ele próprio, será a única entidade a tomar conhecimento. Não havia maneira de localizar imediatamente o lugar exacto onde se encontraria o autor do relatório, apesar das coordenadas que este continha a cada passo, teria de esperar várias horas até que o potente computador do Instituto construísse o mapa celeste e o itinerário provável da nave. Emitiu a ordem, exigindo máxima prioridade na resposta e que esta lhe fosse destinada exclusivamente a si próprio. Não decidira ainda informar os restantes membros do Directório fosse do que fosse.
O Programa Quimera iniciara-se muitos anos antes, por volta de 2.050, com sondas não tripuladas e naves tão rudimentares que não regressaram nunca ; novos protótipos foram sendo fabricados, navios espaciais cada vez mais velozes e melhor equipados ; esta astronave pertence à penúltima geração, classificada como A, ou seja a primeira capaz de mover-se a uma velocidade próxima da velocidade da luz, e de utilizar pela primeira vez os túneis do tempo, “buracos de verme” na gíria antiga, fenómeno estudado apenas teoricamente, pelo qual se “atalhava” caminho, e até se poderia provavelmente “saltar” de uma galáxia para outra, ou mesmo deste universo para outro.
O Directório esperava saldar a vultosa dívida contraída com o investimento, mas lucrar sobretudo, dando como adquiridas as vantagens económicas das descobertas efectuadas. Os três directores que coordenavam o programa, haviam sido nomeados pela Organização dos Accionistas Unidos, que detinha o comando.
A Terra vivia, desde há décadas, num completo reboliço : dois terços dela encontrava-se libertada do domínio dos Accionistas Unidos ; a competição entre as partes era dura e tenaz, a ameaça de uma conflagração mundial mantinha o globo em estado de tensão permanente.
O tempo decorrido no nosso planeta multiplicara-se várias vezes, comparativamente com o tempo transcorrido no interior da nave; por conseguinte, Bacon é, agora, um homem muito idoso. Desde há cerca de vinte anos que a humanidade recebia notícias, de quando em vez, da soberba astronave Quimera. Já se conheciam algumas das extraordinárias descobertas que os seus tripulantes iam efectuando, mas não se conhecia tudo e, muito menos, o termo da viagem.

Bacon alisou as barbas brancas como a neve, e isso sempre assinalava nele profunda preocupação. Pela enorme janela que separava o gabinete do exterior, via como a cidade se ia iluminando ainda em pleno dia. O tecto denso de nuvens cinzentas, feias, obscurecia-a permanentemente. Nem uma ave, sequer solitária, passava nas alturas. Pôs-se a andar de um lado para o outro do compartimento, esfregando os olhos que lhe doíam. Sentia-se muito fatigado, mas perfeitamente lúcido e alerta.
O relatório recebido era muito estranho. Não que não fosse tudo sempre estranho, estes viajantes intrépidos informavam de coisas e acontecimentos os mais insólitos, muitos dos quais para além das previsões e dos cálculos de probabilidades , muito acima da compreensão do homem comum; apesar disso, o relatório, que ele acabara de ler, provocava-lhe profundas reflexões, como se um engenheiro, um “prático” como ele próprio gostava de dizer, visse abanadas de repente de alto a baixo as suas convicções e as suas expectativas.
O director tossiu novamente. A cigarrilha ainda ia a meio e já ele tirava outra. Sentia uma mistura intensa de incredulidade e pena, de fascínio e poderosa atracção, perante aquela visão fantástica de mundos contraditórios que coabitavam no mesmo espaço-tempo contínuo, mas, simultaneamente, colidiam como se fossem frutos díspares e desavindos da mesma árvore misteriosa. Como se na realidade não existisse um único espaço-tempo, mas vários. Ou ainda, quem sabe?, como se não existisse nenhum. Nem sequer a própria realidade.
O estilo em que vinha redigido o relatório, denotava não só as certezas factuais do seu autor, mas suscitava ao mesmo tempo perplexidade no leitor, pois, se não revelava dúvidas sobre os factos em si, transmitia, porém, semeando o texto de interrogações, uma notória inquietação que introduzia uma tonalidade dramática e enigmática. Eram, porém, as palavras finais que o perturbavam.
Recebeu a xícara de café que o robô confeccionara, reclinou-se confortavelmente, dirigiu a mão para o inter-comunicador com intenção de chamar o secretário e ordenar-lhe que enviasse imediatamente as cópias aos restantes directores, mas hesitou, reflectiu um instante e desistiu. Como teria de aguardar mais umas horas, colocou sobe os ombros o blusão standard que o identificava, cerrou o gabinete com o sinal de código pessoal, percorreu o longo corredor com passo lento mas tranquilo, respondeu com cordialidade formal aos cumprimentos que lhe faziam os seus subordinados, meteu-se no elevador que, em poucos segundos, desceu cinquenta andares, e saiu para a ampla praça que circundava o edifício.
A atmosfera pesava como chumbo. Árvores mirradas lutavam com dificuldade para se conservarem vivas. A relva, pelo contrário, reverdecia e reverberava com um brilho desagradavelmente metálico. Escassos transeuntes atravessavam a praça rapidamente, curvados e absortos.
Dirigiu-se para o café mais próximo, com uma esplanada triste, um empregado que parecia do outro mundo, e um enorme televisor que transmitia um concurso idiota. Deixou-se ficar no exterior, bebericando um martini e folheando os jornais e as revistas que ali mesmo se vendiam. Sentiu fome e pediu uma sanduiche com queijo, que sabia a plástico.
Por fim, consultou o relógio, pagou e regressou ao gabinete de trabalho.
Leu novamente o longo texto, agora com atenção redobrada, procurando quaisquer sinais que, à primeira leitura, lhe houvessem escapado, daquele tristemente famoso delírio dos espaços de que eram acometidas tantas vezes as tripulações submetidas a longas viagens. Tudo na biografia do comandante da nave lhe incutia confiança : John Dos Santos, de origem portuguesa e que tinha precisamente trinta anos quando fora escolhido para aquela missão, fora o mais brilhante dos jovens oficiais aviadores da sua geração. Além de qualidades indiscutíveis de comando, revelava uma razoável cultura em áreas diversas do conhecimento, e uma inteligência aberta que conciliava a auto disciplina com a liberdade de pensamento. Bacon não encontrava motivos para suspeitar da credibilidade do relatório : o seu subordinado participara evidentemente em tudo aquilo que descrevia. No entanto, a chegada já pouco provável da nave e a escassez de provas concludentes anexas ao relatório, tornavam muito difícil a tarefa de convencer também os outros membros do directório. Dos Santos não enviava nenhum pedido desesperado de socorro, contudo os sinais da estranha doença de que estava sendo acometido, ele e talvez os restantes membros da tripulação, e a imprevisibilidade associada à travessia dos "túneis do espaço-tempo”, suscitavam medidas urgentes. Por conseguinte, Bacon ordenou, por sua conta e risco, ao pessoal do cosmódromo, para preparar imediatamente a melhor das naves para uma missão de longo curso. Não sabia ainda o que iria fazer, mas, nesta altura, não congeminava outra atitude senão efectuar uma missão de resgate da nave Quimera.
Eis o relatório do comandante Dos Santos:

“ O que passo a relatar, o mais rigorosamente possível, irá constituir com toda a certeza uma dos mais prodigiosas revelações observadas pelas naves Quimera, se não mesmo a mais assombrosa. Informamos desde já que perdemos cerca de metade da tripulação (constituída por trinta e cinco, como sabeis, dos melhores especialistas): nove homens e cinco mulheres; quatro faleceram em acidentes ou por doenças para as quais não se encontravam imunizados e cujas causas não conseguimos sequer diagnosticar ; os restantes resolveram permanecer em alguns dos planetas visitados e não houve maneira de dissuadi-los ( tal atitude não é punível à face dos regulamentos, como sabe, quem decidir residir em qualquer local, não só não é punido como receberá todo o apoio disponível). Não saímos ainda do “túnel” que permitirá (permitiria?) atingir a Terra praticamente de um salto; verificaram-se consequências imprevistas, que eu classifico de dramáticas, passam-se ainda fenómenos insólitos e perturbadores, tanto no interior da nave como no espaço-tempo circundante ; apesar de não conhecer ainda as causas e ignorar quando e como as venceremos, julgo com certeza absoluta que estão relacionados com a travessia do “túnel”. Creio mesmo que ficámos “atolados” nele. Deixarei para o fim a descrição do que nos está sucedendo nesta altura. Entretanto, no termo do relato, alguma coisa já sucedeu. Estou a utilizar extensos extractos do diário de bordo. A parte que redijo pela primeira e última vez, cinge-se aos factos ocorridos aquando do encontro e no início da passagem. Se acaso nos salvarmos, não virá a ser por meios próprios, pois que, de certeza absoluta, não os possuímos. A salvação só poderá vir deles. Se eles o quiserem.

domingo, 30 de agosto de 2009

As duas fontes

As duas fontes para filosofar a sério são: as experiências e os bons filósofos. A bem dizer é só uma: a experiência por nós e nossa, e a de outros por eles mesmos.Observação, controvérsia, acordo, diálogo. Assim é nas artes em geral. Quem despreza a arte dos outros ou é um génio ou um ingénuo.

Aniversário

Neste modestíssimo blog transmito, para que se registe, os meus agradecimentos a todos os amigos e amigas que se lembraram de mim (outros apenas não sabiam). Os anos não têm que ser um fardo; melhor serão se forem um cavalo bravo e dócil ao mesmo tempo. Cavalguemos!

TARANTINO

Os filmes de Tarantino apresentam-se como uma re-visitação de todos os géneros de cinema (ainda não foram todos, mas lá chegará). Por exemplo, o «cinema-noire»-os filmes «negros», ou «policiais» como os designamos entre nós, aquelas maravilhosas fitas dos anos trinta, quarenta, com histórias do D. Hammett e do Chandler, nas perfomances imortais do H. Boggart e outros, provavelmente os filmes que ele, Tarantino amou na juventude, como sucedeu connosco. A «brincadeira» com os filmes tão populares do extremo-oriente- Chineses, japoneses, com aquela violência ballética, os rituais de duelos infindáveis, porém mais mortíferos que os filmes de classe B de Hollywood. E, agora, a homenagem aos filmes «de guerra» (também assim por nós conhecidos). Quem conhece alguma filmografia (será preciso conhecer bastante) reconhece facilmente não apenas o género mas os grandes filmes que fizeram o género: neste «Sacanas sem lei» aquele que logo evoquei foi «Os onze patifes» (?), não recordo o título com exactidão, mas recordo a história de uns tantos «patifes» americanos prisioneiros de um campo de concentração nazi e que dele tudo fizeram para se escapulir (o tom de comédia estava presente, logo no título). Contra os verdadeiros sacanas – os nazis – sacanas e meio (sob a crueldade dos nazis não havia lei, contra eles não havia misericórdia, «olho por olho»). Ironia, muita ironia. Um pensador do pós-modernismo caracterizou este nosso período contemporâneo como sendo a governância da ironia, como se não houvesse razão e espaço para a seriedade solene, para a adesão crente dos crédulos, histórias sem doutrina e convicção, puro entretenimento. Distanciação, aquele estilo inaugurado e teorizado por Brecht e tantas vezes utilizado já no teatro. Contudo, entre o conteúdo e a intenção ética e política das obras de Brecht e as de Tarantino não há semelhanças. O «pós-modernismo» não tem nada para oferecer, excepto o gozo, o movimento, a acção pura, a magia do cinema.
Milan Kundera executa o mesmo artifício, noutros moldes evidentemente, na sua peça para teatro «Jacques e o seu amo» (Edições Asa), homenagem ao génio do Autor inaugural, Diderot. Uma «variação», como ele designa, jamais um plágio (no pós-modernismo só há plágio nos medíocres).

sábado, 29 de agosto de 2009

As Duas Damas

Uma disse: "Anuncio mais um caso de gripe A em Alguidares de baixo"...E lavou as imaculadas mãos na torneirinha da escola.
Outra declamou:"Anuncio a descida drástica do insucesso escolar"...E lavou as puras mãos na torneirinha da escola.
Uma disse:"O Serviço Nacional de Saúde está na mesma, o que significa que está melhor"...e voltou a lavar as doces mãos na torneirinha da escola.
Outra decretou:"O concurso dos professores é mais um grande sucesso que a mim é devido, passo a imodéstia»...e lavou as translúcidas mãos na torneirinha da escola.
As funcionárias olhavam directamente para as câmaras das televisões. Os secretários de estado olhavam directamente para as damas com veneração e auto-estima. Os professores olhavam directamente para a senhora directora. A senhora directora olhava directamente para a torneirinha da escola.
As crianças olhavam para as pequeninas mãos.
O país olhava para o infinito, onde talvez uma grande torneira escoasse leite e mel em abundância.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Carta aberta sobre as eleições autárquicas

Revejo-me no projecto utópico do torreense José Félix de Henriques Nogueira, introdutor das ideias republicanas e socialistas em Portugal, que morreu cede, porque os deuses levam para si bem cedo alguns grandes espíritos, talvez por ciúme, talvez por serem seus filhos dilectos. Não me revejo em tudo, não creio que seja possível conciliar longamente e sem conflitos o capitalismo (ainda que médio e pequeno) com o socialismo (devemos conservar ambos numa etapa mais ou menos longa, mas sempre de modo a que o socialismo extinga o capitalismo que tende sempre para se transformar em grande capital). Mas revejo-me na utopia concreta de conservar as nossas aldeias com as grandes cidades (que não podemos eliminar, mas devemos reduzir, qualificar, fragmentá-las com largos espaços de verde e de lazer). Sou conservador e revolucionário. Sinto-me bem nas vilas alentejanas, com a sua praça ajardinada no centro, as laranjeiras nos passeios, os bancos de madeira, os velhos à sombra cavaqueando, as crianças no pequeno parque infantil chilreando ao desafio com os pardais. Admiro a escolinha primária, pese embora o seu estilo «Estado Novo», acolhedora, próxima, e sinto nostalgia. Imagino no meio do breve casario, nobre ou humilde, o posto de saúde, à beira-mão, o médico amigo já idoso, afável, recebendo-os sem esperas, chamando-os pelos seus nomes próprios. Imagino caminhos vicinais limpos, bucólicos, por onde passeávamos à noite, inventando sustos, o cemitério da aldeia que circulávamos com temor e respeito, o grande charco que as chuvadas enchiam regularmente, o nosso lago, oceano de piratas e ilhas imponderáveis. No interior da Região (estou falando de regionalização) uma universidade, um Hospital, uma via-rápida sem portagens, um moderno caminho-de-ferro… A modernidade, os benefícios da civilização, as tecnologias benfazejas, o conhecimento e a cultura.
Ser ambas as coisas, conservador e revolucionário, eis, em duas palavras, a minha utopia. Porque a utopia é a contradição supostamente, desejavelmente, re-conciliada. E que outra coisa é a ecologia? Por isso, na filosofia amo Espinosa e na poesia Alberto Caeiro.

ELOGIO DA POESIA

Ler poesia é difícil
mais difícil é fazê-la.
É mais fácil ouvir música,
mais fácil ainda ver escultura
mais do que ver teatro.
Aqueles que cantam bem a poesia
não são inferiores aos poetas que cantam.
Dizer bem a poesia também não é fácil.
Há muita poesia na rua,
mas os grandes poetas são raros.
A poesia pode chegar às massas,
devia chegar,
Neruda comoveu auditórios operários com a sua.
Nerudas, porém são muito escassos,
oiro ou diamante,
sem a ganância e a morte que estas pedras provocam.
Os poetas matam-se a si próprios, mas ninguém mata por eles.
Alguns não se matam nem sofrem mais que muitos,
vivem comodamente, burgueses, aristocratas,
e contudo criaram objectos de sublime sensibilidade.
Reaccionários, conservadores, revolucionários,
contrariando sistemas e regimes,
as suas mensagens são mais directas nos seus romances,
mais subtis nos seus poemas.
É no seu tom triste que se expõem,
nas suas metáforas,
na musicalidade dos seus versos.
Quando gostamos de um poema
sentimo-lo com a inteligência.
Perturba, encanta, ou desafia.
Os grandes poetas falam sempre do mesmo sentimento
(o mais complexo dos sentimentos): do amor.
Do amor por um ser amado, ou por todos seres,
pelas coisas amadas, perdidas ou maltratadas,
pelo pão, pelas cebolas -sim, pelas cebolas!-,
pelo vinho, pelas searas de trigo, pelo antiquíssimo
chiar das carroças puxadas pelos bois, pelo cheiro da bosta,
pelas vítimas inocentes de uma guerra,
de todas as guerras (por isso são mal compreendidos por uns e por outros!)
pelos que sofrem de injustiça e morrem de inanição,
ao pé de um poço que não lhes pertence ou de um celeiro.
Os piores poemas dos grandes poetas são os escritos panfletários,
cheios de doutrina, de propaganda, de moral edificante.
Neruda, que era comunista, não publicava os maus poemas.
Que existe de comum entre um Neruda e um Fernando Pessoa?
Tudo os diferenciava.
Que existe de comum?
O modo como fazem tanger as cordas da nossa sensibilidade.
Por isso preferimos um ou o outro conforme o que estamos sentindo,
conforme o apelo urgente dos acontecimentos.
Porque a grande poesia é um acontecimento,
desassossega, aviva o amor ou a decisão de agir,
mas ela mesma dá-nos uma viva sensibilidade
relativamente aos acontecimentos.
A matemática é dificílima? Que nada,
a poesia é bem mais.
Se o não fosse
não valia a pena.
Quanto mais fácil e escorreita pareça,
mais trabalhosa foi.
É admirável a poesia popular,
repentista ou sedimentada por longas gerações;
porém,não nos iludamos: confessar sentimentos apenas
sem trabalho algum sobre as palavras, as metáforas, os símbolos,os ritmos,
equivale a escrever cartas de amor,
que são todas ridículas.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

A RIMBAUD (Mu`in Besseisso (1926-1984)- Palestina

quando Rimbaud se tornou negreiro
e lançou sua rede
sobre a Etiópia
para caçar leões pretos
cisnes pretos
abandonou a poesia...
como era honesto aquele rapazinho...
mas muitos poetas
se tornaram traficantes de escravos,
usurários
e não abandonaram a poesia.
no palácio do sultão os seus poemas
viraram portas e janelas
e não abandonaram a poesia...
elogiaram,
receberam medalhas e títulos,
ouro, prata e taças de pedra
e não abandonaram a poesia...
a marca do gendarme
e pegada do gendarme estava nos seus poemas
e não abandonaram a poesia...
como era honesto Rimbaud...
como era honesto aquele rapazinho.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

GERAÇÕES

A minha geração asas tinha mas não voava, como as galinhas. Havia sem pré um galo vigilante e um peru na engorda para o natal.
A tua geração tem asas mas não comunica, nas múltiplas formas de comunicar com o indicador direito. Há sempre um cartão de memória e uma mão cheia de palavras esdrúxulas.
A minha geração contemplava a outra margem e poucos ousaram desafiar a correnteza.
A tua geração não vê as margens para que não veja outras alternativas.
A minha geração sorvia golfadas de erva e imaginava diamantes no céu, à medida em que as pedras rolantes lhe esmagavam a cabeça.
A tua geração embebeda-se e vomita nas sarjetas e tropeça nos destroços das barbies, enquanto os papás assistem a realities-shows.
A minha geração não ia à escola; quando ia, abandonava-a; quando não a abandonava depressa, trazia na algibeira um curso superior de pedreiro.
A tua geração foi à escola ainda mal lhes cresciam os dentes; também a abandona, sem palmatoadas e sem curso de pedreiro. Quando prossegue, persegue o sonho do papá que gostaria de ser arquitecto, mas ficou-se pela construção civil.
A minha geração tinha medo, um medo obscuro, mas viscoso como um verme. Havia um poço onde se trituravam os ossos com um torniquete.
A tua geração não acredita nas bruxas mas vai a Fátima; não teme monstros paternais que caem das cadeiras, nem papões a espreitar das esquinas disfarçados de abutres distraídos. A tua geração teme o futuro porque ignora que eles escrevem torto por linhas direitas.
A minha geração foi à guerra e quem vai à guerra dá e leva. Hoje é pó a sete palmos de chão.
A tua geração assiste à guerra nos telejornais, enquanto pensa noutra coisa, ou lê as sms dos múltiplos amigos virtuais.
A minha geração debandou para o estrangeiro, atravessou a fronteira com os ouvidos alerta para os lobos e os carabineiros.
A tua geração vai estudar para fora ao abrigo de programas comunitários, não deixando para trás comunidades nenhumas.
Quando eu morrer levo a certeza de que pus o pé na outra margem numa certa madrugada de Abril. O antes e o depois foram meros episódios de uma história que há-de ter um fim.
A tua geração consome novidades sem história, crendo que são verdadeiras as histórias que lhes contam.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O CONTADOR DE HISTÓRIAS

Encarreguei-me eu mesmo de vistoriar e dar um destino aos bens que ele deixara. O apartamento sendo embora pequeno ( e para que necessitava de um maior um homem só sem família?) acolhia quem lá fosse com a dose certa de bom gosto e comodidade. Ismael habitara-o durante vinte anos, episodicamente entrecortados de viagens que empreendera sempre sozinho conforme me relatara. Foi precisamente na Sicília, na semana transacta, que eu o encontrei pela última vez, por mero acaso, quando saímos, eu e os meus companheiros, a dar um passeio pelas avenidas de Messina, numa esplanada, sozinho, já no seu terceiro uísque. Não pude prolongar a conversa, retirei-me quando os demais haviam terminado o giro nocturno, demos um abraço afectuoso e prometemos reciprocamente um lauto jantar um dia próximo em Lisboa, talvez na Festa do Avante! Conhecêramo-nos uns vinte anos antes, precisamente numa edição da Festa, porém enquanto nessa altura as nossas conversas haviam decorrido sobretudo sob o signo da política, com um intervalo dedicado aos livros que lêramos na juventude e que tanto nos marcaram, à música que escutávamos agora com nostalgia, aos livros que escrevêramos e que nunca publicáramos, em Messina, pelo contrário, os sessenta minutos de conversa foram quase todos ocupados por mim, relatando com minúcia as viagens que já fizera e inventariando aquelas que ainda tencionava fazer. Sobre isto ele pouco disse, do passado alguma coisa, do futuro, nada.
Soube da sua morte primeiro que ninguém (se é que alguém daria conta do seu cadáver num apartamento entre dezenas de outros num prédio urbano de cinco andares), soube do dia e da hora da sua morte. O envelope que me entregou na Sicília era para ser aberto somente nesse dia, ignorando eu porquê. Regressei no sábado já noite cerrada, após as duas viagens de avião: Palermo-Roma, Roma-Lisboa. Fizéramos ambos as mesmas viagens mas o contacto fora reduzido, primeiro porque andei atarefado com o meu grupo excursionista e, segundo, porque ele se distanciara propositadamente. O envelope continha uma carta cujo relato me pôs num estado de estupefacção completa e me fez acorrer imediatamente à morada nele indicada, ontem pela manhã, num táxi, sem direito ao repouso merecido pelos atrasos e trâmites das viagens. A carta era para ser aberta ontem e foi o que fiz. O seu conteúdo era simplesmente espantoso:
«Fui três pessoas ao mesmo tempo desde a adolescência: fui professor, militante político e amante. Tudo o mais foram fugas e contra-fugas, como na música. Entreguei-me com generosidade e lealdade às três dimensões: ao ensinar, ao mesmo Partido de sempre e à mesma mulher. No ensino e no Partido geri o melhor que pude as hipocrisias, traições, ingratidões, mas conservei-me igual a mim próprio, intolerante com as baixezas e sacanices, sempre próximo do que de melhor pulsa nos jovens e nos adultos, senão em todos, pelo menos em alguns. Com as mulheres somente amei uma, das outras apenas gostei: nas paixões o real amor é raro, ao contrário do que queremos crer então. Conheci o amor da minha vida, o único, na escola primária, íamos sempre de mão dada desde as respectivas casas de ambos –éramos vizinhos – caminhando a pé, de lancheira na mão (trocávamos os almoços, porque o do outro sabia sempre melhor), e separávamo-nos em salas de aula distintas. Ela fez o exame da quarta classe e o de candidatura ao Liceu. Eu também. Frequentámos o mesmo Liceu, nesse tempo de desorientação e inquietude em que tememos que nos faltem amigos e em que namoriscamos com mais do que um; ela fez isso e eu também. Todavia, na hora certa, no sítio certo, lá estávamos sempre os dois. Foi com ela que troquei o meu primeiro beijo, foi comigo que ela perdeu a virgindade, nem cedo nem tarde demais. Afastámo-nos na universidade: seguiu um curso diferente, talvez ao gosto dos pais. Foi a primeira vez que nos perdemos um do outro,, mais viriam mais. No termo do curso já ela era noiva de outro, talvez também mais ao gosto dos pais. Antes de casar hesitou e procurou-me. Era Agosto: pusemos uma mochila às costas e partimos de comboio e às boleias até Paris, a cidade que ansiávamos conhecer. A felicidade foi tamanha que, houvesse acaso paraíso, ele seria sempre assim. Mas nada dura aqui na terra. A dureza da vida chamava por nós: empregou-se numa clínica como psicóloga e eu ingressei no ensino público. Casou um ano depois, eu casei duas vezes e em todos elas falhei. Sempre que me divorciava procurava-a e sempre ela me aceitou, porque na verdade não era amor que sentia pelo marido, ou, se preferires, o amor não era igual. Porém, não sendo igual, amava o marido (não é isto um paradoxo?) e, sobretudo, tinha duas filhas e um elevado bem-estar que nunca usufruiria comigo. Como o marido veio a saber da nossa relação (aliás sempre episódica ou entrecortada) e o casamento soçobrava, decidi afastar-me: escolhi uma escola longínqua e parti resolvido a não voltar. A minha vida ruiu definitivamente. Nunca mais fui o mesmo. Enfronhava-me nas leituras, na escrita, na política, nas viagens, cada vez mais solitário e ensimesmado. Dez anos se passaram num fôlego, num ápice, e certo dia caiu-me à frente dos olhos num jornal uma notícia devastadora: «Faleceu a Dra…..de doença prolongada». Não fui ao funeral. Embebedei-me literalmente dias a fio, ou mesmo semanas, até que um medico amigo me internou e sujeitei-me a uma cura pelo sono. Meti sucessivas baixas médicas e nunca mais me entreguei ao ensino como dantes, nem à política. Escrevi um diário, deves encontrá-lo num armário. Esta viagem à Sicília foi a última. Quando chegar a casa suicido-me. Trata, por favor, do destino das tralhas que encontrares em minha casa, fica com elas, faz o que entenderes, não tenho ninguém a quem deixar os livros e as músicas que ajudaram a suportar a mais terrível das solidões.
Adeus amigo. Se acaso houver paraíso lá nos encontraremos todos. O suicídio não é uma cobardia, é uma aposta: se houver paraíso, pois será óptimo, se não houver, que é o mais provável, com a morte acaba-se a memória.»
Fiquei a tremer como uma criança com medo do escuro. Encontrei-o já cadáver deitado como se acabasse de adormecer. Depois de resolvidos os trâmites necessários, a ambulância, a polícia, etc., antes mesmo de fazer o inventário dos bens, procurei com uma ânsia desconhecida o diário. Encontrei-o num armário na verdade, porém não era um caderno, mas dezenas deles. E folheando um a um somente encontrei uma palavra, um nome: «Sara». Nada mais escreveu em milhares de linhas.

domingo, 23 de agosto de 2009

Medjmar (?-1811), Pérsia

Quem é o mensageiro abençoado quando chega, que nos torna felizes com a sua presença, que passeia noite e dia e não pára ao longo dos anos e dos meses? Na aba do seu trajo, traz almíscar, e âmbar cinzento no colarinho. Caminha sem pés nem cabeça; é um louco privado de espírito e de razão, um apaixonado errante, um vagabundo sem alimento ou sono. Ninguém sabe por amor de quem não pode parar; ninguém sabe qual a ausência que tanto o perturba. Como os corações dos apaixonados sob o efeito dos caracóis das belas mulheres, as ondas debaixo dele são como anéis, ora são curvas e revoltas. Ora a terra morre por causa dele, como as nossas faculdades morrem por causa da velhice; ora, pelo contrário, ele vivifica o mundo, como a juventude vivifica a natureza humana.

Konishi Raizan (1674-1738), Japão

Brisa da Primavera -
Como é branca a garça
Entre os pinheiros!

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Os poderosos

O cidadão fala uma língua desconhecida, como se não tivesse pátria, no seu BI não deve constar a naturalidade, no seu sotaque confundem-se desarmonicamente dois mundos, das grandes metrópoles e das aldeias sem brasão e sem nobreza, os jornalistas correm pressurosos com os gravadores e as câmaras, fingem que escrevem o que não compreendem, pouco importa, é de vital importância fazê-lo ouvir e ver, essa imagem coreografada, essa escassa retórica cujo valor não está no modo como se diz, nem sequer o que diz, mas quem o diz, esse perfil que não disfarça as origens de pés-descalço, o que o torna mais simpático que odioso, bem diferente daqueles banqueiros, os nossos e os dos outros, ornamentados de fatos que custaram mais que um ano de salário mínimo, colocando a voz no registo exactamente idêntico ao dos seus pares, o movimento das mãos controlado, o olhar estudadamente neutro, majestáticos, continuadores da estirpe que frequentava com à vontade o palácio de Versailles nas cortes dos Luíses, nobreza de peruca olhando de longe com indiferença os bairros sombrios e fétidos de Paris, escutamo-los longínquos no ecrã dos nossos televisores tal qual aquela populaça que se acotovelava aos portões do palácio real. O cidadão é igual e é diferente. Pela sua costela popular, ofereceu ao povoléu o que julga que ele merece: a fruição de uma quinta povoada de bonecos de pau e granito, exótica, pós-modernista, inter-culturalista, que o povinho agradece e percorre com os olhos cheios daquela religiosidade que faz vergar os corpos na praça de Fátima. Pela sua costela cosmopolita, vendeu por uma pipa de massa uma colecção de obras de arte que ele foi acumulando da mesma forma como se acumula o capital. E nós vamos apreciá-la como os súbditos acorriam admirativos a deleitar-se com os presentes magníficos que o Sultão recebia dos embaixadores dos reinos dependentes da periferia do império.
Eles são in, nós somos out. Eles foram ex qualquer coisa que já se esqueceu: ex-fascistas, ex-maoístas, ex-estalinistas, ex-marcelistas, ex-comunistas, ex-revisionistas, ex-socialistas ciclicamente socialistas, ex-governantes chamados a governar, ex-generais nomeados administradores, ex-administradores nomeados generais, ex-gestores públicos empregados no sector privado, ex-gestores privados chamados de novo ao sector público, rotativos, sucessivos, dinásticos, insubstituíveis. Quando um cai é porque outro pôs a boca no trombone. Guardam os dossiês em cofres-fortes para a hora certa em que algum escorrega, apunhala nas costas, exagera no desfalque, em que se torna o idiota da família.
Nós também somos ex qualquer coisa: ex-funcionários públicos, ex-operários, ex-existencialistas, ex-estruturalistas, ex-maridos, ex-capitães ou soldados, ex-iludidos, ex-cepto qualquer coisa. Mas estamos out. Champalimaud deixou em herança uma Fundação multimilionária e multi-filantrópica. É um ex-fascista, é um filantropo. Se Salazar voltasse seria ex-ditador acolitado por uma ex-pide. Uma poderosa dirigente política julga urgente colocar a democracia entre parênteses para arrumar a casa, isto é, a democracia é um ex. Excedente.
É um país ex-traordinário. Os espanhóis dizem o mesmo do seu.
Por isso este texto é ex-temporâneo.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

AS HORAS

Gota a gota se fez o charco.
Uma mancha verde-escura não estava lá ontem.
Insectos vêm e, logo, bocas maiores se banqueteiam.
Cada hora é um espaço neutro.
Sólidas e silenciosas, abrem fendas
Por onde se escapam os dias.

Tantas causas, tantas lutas!

Ambiente - Era preciso que os países signatários dos acordos internacionais cumprissem com eles; e mesmo assim, porque são mínimos, não salvariam o planeta das destruições que já sofreu. O abate da Amazónia e a desflorestação na Ásia é uma calamidade catastrófica. A poluição pelos combustíveis sujos traz o desastre para o pé das nossas portas. Quantos avisos, quanta indiferença! As energias alternativas? Só e quando são, ou forem, um grande negócio para os capitalistas. Os governos? Privatizam e prometem…
As guerras – Quem termina a guerra que iniciou no Médio Oriente? Que autoridade moral tem quem a continua? Porque não cumprem com os acordos razoáveis, sempre adiados, para o problema da Palestina? Que andam a fazer certas potências na guerra sangrenta da Somália? Porque é que o Sudão é uma orgia de sangue? Quem atiça, quem se aproveita? E o Congo de fabulosas riquezas minerais? Que tem andado lá a fazer a França? Porque se acusa apenas o tribalismo após séculos de colonização e escravatura? É a África um continente perdido, pelo qual ninguém quer saber, ou foi e continua a ser alvo de cobiça, e a corrupção dos chefes políticos o principal estratagema?
A economia financeira – Porque ninguém fala das multinacionais que tudo governam e aproveitam a crise que criaram para se concentrarem e re-partilharem os recursos do planeta? Que poder detêm os governos sobre elas?
Que podemos fazer nós, meros peões, indivíduos atomizados, de classes sociais fragmentadas, atemorizados pelo desemprego, manietados pelo trabalho precário e, portanto, ameaçado?
Um planeta em perigo, uma humanidade escrava, uma minoria opulenta, um bando de bandidos a governarem o mundo.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Reflexões caseiras

Os temas, os problemas, que merecem análise são mais que muitos. Não é por falta deles que não temos ideias. Os aspectos globais afectam as pequenas comunidades locais e é nestas que os problemas globais se produzem (o Ambiente, por exemplo). O que faz falta é a solução. Nalguns casos a solução até existe, porém falta a força material para a impor. Casos há em que até se reivindica, se protesta e se luta, mas com uma força insuficiente para a impor a um poder mais forte. Daí a sensação de que não existem alternativas radicais, que vivemos num tempo de pensamento único porque aquele que o contesta é um pensamento débil. Por isso vamos olhando para a América Latina com expectativa e simpatia (Venezuela, Bolívia, Brasil…), ou ficamos desorientados quando seguimos os acontecimentos no Irão, que encarávamos como uma fortaleza que travava os apetites imperialistas do Ocidente e auxiliava, de muitas maneiras, os movimentos da resistência. As coisas não são simplesmente pretas ou brancas, os bons e os vilões como os filmes de cowboys que aplaudíamos nos saudosos cinemas do nosso bairro. Bastaria exemplificar com o papel da China: o imperialismo capitalista não a domina politicamente, porém o capitalismo sente-se lá muito bem e recomenda-se. Não vale a pena citar a Coreia do Norte, um país isolado, com uma miséria escondida e um regime sinistro (só reforça o nosso cepticismo e até repugnância por determinadas experiências ditas socialistas). É por isso, pelo presente e pelo passado, que determinadas doutrinas e soluções não são boas, de modo nenhum apesar de parecerem radicais. Radical vem do étimo «radice», raiz, e exprime uma actividade simultaneamente teórica e prática que é capaz de ir à raiz dos problemas. As ditaduras políticas, as dinastias, a desigualdade brutal, a corrupção, a violência, constituem o caminho inverso. Compreender os contextos não é justificar. Nem os meios são bons, nem os fins.
Uma coisa temo-la como certa: sem a prática, a acção, a luta, não se vai a lado nenhum. Sem uma solução concreta, um programa justo e humanista, aqueles que lutam confiantes e generosos vão ser atraiçoados. A participação e a vigilância permanentes ainda são os melhores antítodos.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Presente e futuro da Filosofia

1. A filosofia produz teorias, sempre o fez e ainda o faz, incluindo as que os positivistas fizeram e desfizeram. E é também uma actividade (sem ela não construiria teorias) com diversos propósitos e diferentes resultados. Ou seja, não se limita a análise das proposições, filosóficas ou não. Ou seja ainda, não se reduz à análise da linguagem, filosófica, científica ou comum. Quando tal pratica tem de justificar o atributo de juíza suprema da veracidade ou não dos juízos afirmados pelas outras actividades. No caso da ciência, quem decide é a comunidade dos cientistas segundo os seus critérios, discutíveis ou não. Contudo, nada proíbe, ou deve proibir, que um especialista da filosofia proponha critérios de verificabilidade ou falsicabilidade, tal como um cientista não está inibido de se pronunciar sobre proposições filosóficas.
2. Se é certo que filósofos abriram áreas de investigação – e a linguagem foi uma delas- muitas delas conquistaram estatutos científicos, ou, pelo menos, técnicos, dificultando, por exemplo, a classificação de «filósofo» a um linguista.
3. Destas considerações resulta a interrogação lógica: Sobra algo ainda para a filosofia?
4. Para iniciarmos uma resposta ter-se-ia que descrever o que é a filosofia, para que serve ainda (para o que serviu está a resposta implícita nas considerações anteriores), o que produz ou cria, quais os seus critérios de verdade, etc. Argumentar que a sua utilidade prova-se na existência dos cursos académicos, é uma falácia ou tautologia. De resto, o que mais prova é que a filosofia ou os professores de filosofia se limitam a ensinar outros filósofos e fazem da leitura desses outros a sua carreira.
5. A importância da filosofia na história das ideias, na história das ciências, é indiscutível: foi através dela, muitas das vezes com os seus métodos convencionais, com as controvérsias entre os filósofos, que a Ciência se organizou. Também é indiscutível que foi contra ela, ou contra os académicos, que a Ciência se fundou (Galileu Galilei).
6. Não se trata também de questionar a utilidade da filosofia para os jovens ou menos jovens, porque sempre se dirá, e com acerto, que ajuda a interrogarem-se e a interrogarem, a descobrirem o falso sob a aparência da verdade, a exigirem argumentos e razões para as afirmações alheias (a começar neles mesmos), a não se iludirem com promessas retóricas sem fundamento, ou a descobrirem por eles próprios o fundamento de muitas afirmações propagandísticas.
7. A questão não é essa.
8. Quando, por exemplo, se analisam (desmontam, desconstroem) palavras que constituem crenças, a que métodos e saberes recorremos? À filosofia, ou às ciências (Sociologia, psicologia social, História, antropologia, etc.)? Tomemos como exemplo a análise da crença contida nas palavras portuguesas «Inferno» e «Céu»: para descontruirmos esta crença (popular mas também, filosófica, isto é, teológica) teremos de recorrer a um vasto conhecimento dos símbolos, e, através destes, à relação com as práticas sociais, ao imaginário dos povos, ao seu modo de vida, aos sonhos, etc. Que designação teria esta actividade?
9. De valor inquestionável foi a actividade filosófica iniciada por Frege, Russell, Wittengenstein, o neo-empirismo, o positivismo lógico, a filosofia da linguagem. As escolas e as correntes filosóficas do século passado, que foram ricas e profícuas, devem-lhes muito. Entretanto, desmoronou-se muita coisa, o pós-modernismo chegou. Filósofos ainda há muitas, às vezes parece que em demasia, mas o legado de G. Deleuze, sobretudo, é imenso. Ninguém melhor e mais do que ele se esforçou por «salvar» a filosofia.
10. Sobra à filosofia a metafísica? Admitamos que sim; porém, muita da sua especulação já foi resolvida pela astronomia e astrofísica, e é da ciência que aguardamos as respostas. Quanto à existência ou não de Deus criador, é uma atitude: ter fé ou não ter. Não é ciência, nem filosofia. A chamada «espiritualidade do homem» não é filosofia. O combate é que pode ser filosófico.
11. Sobra a Ética? Bom, isso fica para outra reflexão.

O Fogo e o Inferno

1. Porque é o Inferno uma fornalha eterna? Na mitologia cristã o fogo é o supremo castigo. No entanto, em várias representações do Inferno de maiores ou menores pintores os castigos submetidos aos pecadores não se resumem ao fogo, antes se imaginam «adequados» aos diversos pecados (a imaginação do pintor quanto mais fantasiosa, mais claramente revela uma tal perversidade que denuncia uma espécie de gozo sádico, fantasmas de conteúdo sexual, erupções de um inconsciente reprimido).
2. O fogo é um símbolo recorrente nas mais diversas mitologias. Regra geral ele é o elemento purificador por excelência (relação primitiva com as práticas agrícolas) e criador (criação e recriação do mundo) ou regenerador (ciclo destruição/criação). Os ritos passam nomeadamente pela utilização do fogo sacrificial (os deuses apreciam os sacrifícios de carne grelhada). Prometeu roubou o fogo celeste (equivalente à árvore do conhecimento e, esta, à Árvore da Vida), símbolo da descoberta maior da humanidade e início da civilização, isto é, do trabalho). O fogo como veículo, ou mensageiro, entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, em algumas cremações rituais. Na Índia cremam-se os cadáveres (é provável que nos tempos primitivos da espécie humana, os mortos tanto fossem enterrados cobertos de ocre e flores (neanderthais) como fossem cremados.
3. O cristianismo parece ter excluído o fogo criador, ao transformá-lo em castigo eterno máximo. Contudo, esse elemento positivo permanece nos evangelhos e em práticas cristãs (o Espírito santo, Jesus associado ao fogo, as «línguas de fogo», os anjos, ou determinados anjos, são fogo, emanações de Deus). O cristianismo é, aqui como em outros aspectos, contraditório, herdou ou assimilou diferentes símbolos. Entre os gregos o fogo era um elemento leve, subia, como se lê em Aristóteles; em Heráclito, o Mundo é um Fogo perpétuo; Empédocles lança-se para a fornalha de um vulcão. O Hades é, sobretudo, gelado, desolador, tal como é o interior dos subterrâneos. Faz mais sentido que o Inferno seja um gelo eterno…
4. O fogo parece ter tido clara conexão com a sexualidade: obtenção do fogo por fricção, em movimento de vaivém (Miercea Eliade e outros). Segundo algumas mitologias o fogo tanto é divino como demoníaco ( gerado magicamente no órgão sexual das feiticeiras. Atente-se nos rituais imaginários praticados pelas feiticeiras (Autos da Inquisição): pela noite, nos bosques, à roda de fogueiras, práticas sexuais com Satã, um quase bode, figura que lembra perfeitamente Diónisos e os faunos).

domingo, 2 de agosto de 2009

A identidade sem rumo

A época em que nos encontramos, designada «pós-modernidade» ou da globalização total, caracteriza-se por transformações profundas nos comportamentos, na acção social e nas instituições sociais, isto é, muito do que a Modernidade construiu. Na Economia a globalização financeira, nomeadamente especulativa, o neo-liberalismo com o dogma do mercado livre, o desemprego maciço e o emprego precário, a deslocalização das empresas, a tentativa de dissolução dos contratos colectivos de trabalho, etc. Os estados-nação tão sólidos parecem hoje dissolver-se no ar. O Estado-Providência mingua sob os golpes de governantes que obedecem aos directórios europeus. As lógicas do mercado e correlativa publicidade reduzem tudo a mercadoria, cujo destino é necessariamente o consumo imediato, segundo os ditames da acumulação e reprodução infinita do capital. A crise do sistema capitalista veio, instalou-se e está para durar, rasgando compromissos, engordando comprometidos, impondo aos trabalhadores europeus soluções sem alternativas, com os olhos postos nos imensos mercados potenciais do chamado Terceiro Mundo.
«Portugal mudou», declarava uma série televisiva, e quanto ao facto não há discussão. Tecnologias da comunicação, isto é telemóveis, colocam-nos em lugar cimeiro, relativamente falando. O Estado-mínimo, corta, sacode responsabilidades e deveres, descentralizando serviços sociais, privatizando o mais que pode. A falência do sistema de Ensino, da Saúde, da Segurança Social, encobre responsáveis, mas descobre vítimas. A propaganda culpabiliza, mente, divide, acusa sem pudor. As chamadas «classes médias» endividam-se, hipotecam, assistem ao abaixamento -rebaixamento- do seu status.
Sumariamente estatuto é o conjunto de comportamentos que uma pessoa espera dos outros, pelo facto de ocupar determinada posição social; resulta da posição de ordem social dentro de um grupo. O conjunto dos comportamento adequados a uma determinada posição é o papel dessa pessoa que ocupa uma determinada posição na ordem social. Assiste-se, portanto, às mudanças nos estatutos (tradicionais ou adquiridos) e nos papéis desempenhados. Os papéis podem manter-se, mas o estatuto degrada-se, comparativamente com o aparecimento de novos estatutos de valor socialmente superior. A coesão social encontra-se fragmentada, os ressentimentos e as invejas acumulam-se, os comportamentos perdem hábitos, a insegurança instala-se, as expectativas recuam, as certezas claudicam. Difunde-se o medo: da pobreza, da solidão e abandono, da exlusão.
A identidade social é a soma de todas as relações de inclusão ou exclusão em relação a todos os grupos constitutivos de uma sociedade; é sempre o resultado da classificação do indivíduo ou grupo na hierarquia social. Os processos de identificação social – processos pelos quais cada membro de uma sociedade identifica, sem grande risco de erro, a identidade social de um outro membro – dependem do funcionamento do sistema cultural interiorizado por todos os membros de uma mesma sociedade.
Por conseguinte, a identidade (quase sempre atribuída) anda a sofrer tratos de polé. Uns perderam-na já, outros vão perdê-la, e a outros é atribuída nova identidade. O mundo pessoal dissolve-se, de repente por vezes. O conformismo social comprime como um céu de cimento ou indiferencia como um rolo compressor. A propaganda dissemina os consensos convenientes.
Escreveu o velho Tucídides que «os poderosos fazem o que querem, os fracos sofrem como devem». A propaganda ideológica é uma arma insidiosa e invasora -não há espaço privado que não sucumba-, a opinião pública uma opinião fabricada, o pensamento único assemelha-se ao pronto-a-vestir que passa por «bom-senso», a indústria do espectáculo maquilha-se de «cultura» (que até o é, porém industrial), e reproduzem-se estereótipos e preconceitos, desigualdades e classes sociais. Em lugar da autonomia individual fomenta-se o individualismo que equivale à uniformidade e à submissão a múltiplas formas de poder. Sociedades de controlo onde a singularidade e o Novo constituem uma utopia. Utopia é também a Sociedade da Comunicação Universal e Emancipada. O que temos à frente dos olhos é a «sociedade em rede», onde os poderosos não têm rosto nem responsabilidade.
Tradições já se foram, grupos e movimentos sociais que há décadas permitiam sentimentos de pertença esboroam-se ou são substituídos por pólos de encontros «virtuais», minorias buscam espaço e indícios de identificação uns nos outros em forma de «tribos», «irmandades». É provável que o tipo de construção de identidade mais importante seja a identidade destinada à resistência. Ignoro qual seja o seu destino aqui e amanhã.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.