O liberalismo se caracteriza por privilegiar e centrar suas analises na esfera política, em ruptura com as esferas econômica e social. Seu objetivo fundamental é a democracia – no sentido que lhe dá essa corrente, a da formalização de direitos políticos, separados das outras esferas. O capitalismo e sua fase superior, o imperialismo, ficam totalmente ausentes do cenário liberal.
Um dos mais extraordinários ensaios de Perry Anderson expressa isso de forma crucial e atual. Se trata de “Armas e direitos: o centro ajustável” (in Espectro: da direita à esquerda no mundo das ideias, Boitempo, 2005), em que ele analisa como pensadores progressistas como Habermas, Bobbio e Rawls puderam render-se às “guerras humanitárias” dos EUA e da OTAN.
Para eles os EUA são uma referência democrática, que salvou a Europa dototalitarismo. Seu caráter imperialista lhes escapa completamente. Assim, as guerras imperialistas, sob o pretexto de guerras humanitárias, são apoiadas por eles.
O direito dos povos “autoriza intervenções militares para defender os direitos humanos em países que não são nem decentes, nem liberais, e cuja conduta os coloca como marginais na sociedade das nações” (p.170). Com essa argumentação eles apoiaram as duas guerras norte-americanas contra o Iraque, o bombardeio da Iugoslávia, a guerra do Afeganistão.
“Como superpotência, os Estados Unidos adquiriram uma espécie de ‘direito absoluto que os coloca acima da ordem internacional constituída. Na prática os Estados Unidos não precisavam de justificativa legal para suas guerras, porque seu histórico de defesa da democracia nas três guerras decisivas do século XX – a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais e a Guerra Fria – deu legitimidade ética à sua primazia de facto. Os europeus deviam sua liberdade aos Estados Unidos e, com ela, uma gratidão incondicional.” (p.193)
O ensaio esmiúça detalhadamente a trajetória intelectual dos três autores – Habermas, Bobbio e Rawls –, explicando como partiram de posições progressistas que têm seu núcleo na incapacidade do liberalismo de assimilar o capitalismo e o imperialismo.
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Sobre Jürgen Habermas leia também, no Blog da Boitempo As guinadas de Jürgen Habermas e A modernidade filosófica: Habermas contra Hegel, na coluna de Ricardo Musse e Contra os direitos humanos, de Slavoj Žižek.
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Espectro: da direita à esquerda no mundo das ideias, de Perry Anderson, está disponível em versão eletrônica (ebook) por metade do preço do livro impresso nas livrarias Travessa e Saraiva, entre outras.
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Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). É secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena a coleção Pauliceia, publicada pela Boitempo, e organizou ao lado de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile a Latinoamericana – enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006), vencedora do 49º Prêmio Jabuti, na categoria Livro de não-ficção do ano. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quartas.