A espuma das palavras
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terça-feira, 4 de março de 2025
Basta mudar o nome "Brasil" para "Portugal"
O especialista em filosofia

Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO*
O especialista em filosofia, que não é filósofo strictu sensu, toma o texto de filosofia como uma verdade revelada a ser interpretada rabinicamente
No Brasil, devido à influência do paradigma uspiano (e consequentemente do método estrutural francês), nos departamentos de filosofia a figura do “filosofante”,[i] que escrevia ensaios de modo amador e de acordo com a última tendência intelectual europeia, foi substituída pelo acadêmico profissional, treinado em sofisticadas técnicas de análise e interpretação de textos. Ao invés do ensaísmo amador, os departamentos de filosofia se profissionalizaram a maneira francesa de modo que o nosso autodidata ensaísta cedeu lugar ao especialista universitário.
O especialista é aquele que domina tudo sobre Platão ou Descartes e sempre pergunta sobre a referência de qualquer afirmação (ou negação) que o leigo faz. O especialista em filosofia é o proprietário das ideias do filósofo que ele pesquisa e se esforça para mostrar que ninguém entendeu o que seu autor quis dizer, mas que somente ele é seu interprete autorizado. Ele não pensa a partir de si, mas a partir do outro, que é o filósofo europeu ou norte-americano. Ele sabe tudo sobre o contexto do seu filósofo, se estuda Descartes, sabe mais da França seiscentista do que do Brasil atual, se é hegeliano sabe mais das invasões napoleônicas do que da Guerra do Paraguai. Em suma, vive com os pés no Brasil, mas com a cabeça fora.
O especialista em filosofia, que não é filósofo strictu sensu, toma o texto de filosofia como uma verdade revelada a ser interpretada rabinicamente. Os textos filosóficos são lidos não para ser discutidos, mas para serem comentados. Nós, como especialistas, não procuramos falhas no argumento do autor, mas compreendê-lo e interpretá-lo rigorosamente. Não nos esforçamos para debatermos e superarmos o autor do texto, ou mesmo para aprendermos com ele e utilizá-lo para fins especulativos pessoais, mas para sermos reconhecidos como um grande especialista em Kant ou Descartes, para sermos verdadeiros Maomés da filosofia: os únicos e legítimos profetas dos filósofos europeus.
Para justificar suas posições de poder e sua autoridade intelectual os especialistas tentam dificultar um escrito filosófico ou convencer os imperitos ou novatos em filosofia que o texto é hermético, de difícil compreensão, que é necessário saber ler no original, o quanto as traduções não são confiáveis, que todo “tradutor é traidor” e que só posso entender um filósofo se ler toda sua bibliografia, se entendi seu contexto e conheço sua correspondência intelectual, ou seja, preciso me dedicar única e exclusivamente a um autor, fazendo disso o trabalho da minha vida, esperando o julgamento de outros especialistas para enfim ser reconhecido como um deles.
Com isso acabamos limitando os “debates” filosóficos no Brasil a interpretações de conceitos e de assuntos em um determinado filósofo, cada especialista insistindo o quanto sua leitura é a melhor e mais correta do que a de outro especialista, que o que comentador X diz de Y não é correto, que “as coisas não são bem assim”, que é preciso entender o contexto, depende da tradução etc.
Quando o neófito em filosofia escuta ou lê o especialista falando da dificuldade de entender um conceito ou compreender um livro que são como códigos confidenciais que poucos iniciados conseguem decodificar, o aspirante sente-se intimidado e com receio de dizer alguma coisa, por medo de dizer algum absurdo e escutar as conhecidas perguntas feitas de praxe pelo especialista “onde você leu isso?”, “de onde tirou isso?”, “quais suas referências?”, enfim, fica parecendo que pensar por conta própria é um crime, algo que somente o outro, o europeu, tem permissão e nós não.
Em certo sentido os departamentos de filosofia no Brasil se assemelham a Igreja Católica em sua defesa do monopólio da interpretação da Bíblia, assim como somente o padre é autorizado a ler e interpretar o texto sagrado, somente o especialista em Kant tem autoridade para decidir a leitura corretada Crítica da razão pura. Por vezes é possível que o kantiano brasileiro “entenda” mais o texto de Kant do que o próprio.
O especialista depende e é favorecido pelo nosso narcisismo às avessas.[ii] Ele precisa reforçar a impossibilidade do desenvolvimento de uma filosofia nacional para manter seu status quo e preservar seus privilégios acadêmicos. Ele precisa nos convencer que filosofia não é coisa para nós e que só resta sermos glosadores de textos filosóficos europeus. E um desses artifícios é o desmerecimento da nossa língua portuguesa direta ou indiretamente. Por isso a questão da tradução e da linguagem é capital para o nosso mandarinato filosófico.
Os nossos peritos em filosofia se dedicam a querelas de tradução em detrimento do debate e da argumentação, e para justificar sua posição de autoridade insistem que só é possível compreender corretamente o autor se lê-lo no original. Se isso for verdade a maioria das pessoas estão condenadas a nunca entender Sören Kierkegaard, afinal não existem muitos cursos de dinamarquês por aí, ou os trabalhadores jamais serão marxistas, pois dificilmente aprenderão alemão e por uma questão de tradução a revolução estaria fadada ao fracasso. Além disso, desmerece o trabalho de tradução que é um trabalho bastante sério e difícil e que contribui com a democratização do conhecimento.
Se no Brasil as obras filosóficas não tivessem sido traduzidas, continuando a chegar até nós apenas as versões francesas ou originais dos filósofos, ainda estaríamos excluindo do conhecimento filosófico a maioria da população. Com isso não quero dizer que ler no original é desnecessário, não é isso. Apenas defendo que não precisamos saber alemão, francês ou inglês para elaborar um pensamento autônomo e para fazer filosofia. Os gregos iniciaram a filosofia na língua deles e não na de outros.
Nossa tradição uspiana acabou criando um verdadeiro sistema de inibições que promove entre nós um medo patológico do erro, como se errar fosse algo inaceitável. Ao temermos o erro nós acabamos não tentando, não nos arriscamos, mantendo uma postura cautelosa no que se refere a qualquer iniciativa filosófica. Evidentemente que o achismo e os equívocos devem ser evitados, mas eles são inevitáveis. Nós sempre teremos opiniões sobre um determinado assunto ou tema, o que importa é saber sustentar essa opinião com argumentos convincentes ou mudar de opinião diante de argumentos melhores. Do mesmo modo com o erro. O problema não é errar, mas permanecer no erro, afinal Errare humanum est, perseverare autem diabolicum!
Ninguém duvida da estatura filosofia de Hegel, pode-se discordar dele ou criticá-lo, mas somos obrigados a reconhecer seu mérito intelectual enquanto filósofo. Pois bem, Hegel na sua Filosofia do direito comete uma gafe intelectual que não seria tolerada pelos nossos especialistas em filosofia. Ele interpreta de forma completamente equivocada a noção de vontade geral de Jean-Jacques Rousseau. Segundo Hegel, o filósofo suíço teria entendido corretamente que a vontade é o princípio do Estado, mas teria errado ao fazer da vontade individual e da maioria e não da vontade enquanto tal o fundamento do Estado. O contratualismo de Rousseau derivaria dessa concepção equivocada da vontade geral, que faria da vontade da maioria, o coletivo, o elemento fundante do Estado.
Diz Hegel: “Rousseau teve o mérito de ter estabelecido como princípio do Estado um princípio que não apenas segundo sua forma (…), porém segundo o conteúdo é pensamento, e de fato é o próprio pensar, a saber, a vontade. Visto que ele apreendeu a vontade somente na forma determinada da vontade singular (como também posteriormente Fichte) e a vontade universal não enquanto o racional da vontade em si e para si, porém apenas enquanto o coletivo, que provém desse vontade singular enquanto consciente: assim a união dos singulares no Estado torna-se um contrato, que com isso tem por fundamento seu arbítrio, sua opinião e seu consentimento expresso caprichoso” (HEGEL, 2010, §258).
Ora, Rousseau diz exatamente o contrário do que Hegel interpreta,[iii] ou seja, Hegel leu e entendeu errado o conceito rousseauniano. Isso diminui o mérito de Hegel? Evidentemente que não, porque o que interessava a ele não era ser o melhor intérprete de Rousseau, mas desenvolver um argumento contra o voto per capta e o contratualismo. Por qual motivo aludimos a essa falha exegética de Hegel? Para mostrar que os filósofos são falíveis e que eles não só podem como de fato erraram. O erro não é e nem deve ser um privilégio dos europeus e norte-americanos, nós também podemos falhar, o importante é não persistirmos no erro e estarmos aberto à correção. Em suma, o fundamental da atividade filosófica não é a interpretação, mas a argumentação.
Não é saber ler no original ou o número de citações e notas de rodapé no artigo científico que caracterizam a atividade filosófica, mas a capacidade de argumentação. Ao filósofo interessa levar até as últimas consequências a prática discursiva racional no que Robert Brandom caracteriza como um jogo de dar e pedir razões, “a ideia geral é que a racionalidade que nos qualifica como sapientes (…) pode ser identificada como sendo um jogador no jogo social, implicitamente normativo de oferecer e avaliar, produzir e consumir razões” (BRANDOM, 2013, p. 95).
Em suma, filosofia nunca foi e continua não sendo leitura e interpretação de texto do filósofo X ou Y, e por mais que seja difícil estabelecer uma definição geral do que seria a filosofia, podemos concordar que se Platão, Hegel e Marx são filósofos, eles fizeram qualquer coisa menos exegese de textos como nós praticamos em nossos departamentos como se fosse filosofia.
*John Karley de Sousa Aquino é professor de filosofia no Instituto Federal do Ceará (IFCE).
Referências
BRANDOM, Robert. Articulando razões: uma introdução ao inferencialismo. Tradução de Agemir Bavaresco et al. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2013.
COSTA, João Cruz. A filosofia no Brasil – Ensaios. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1945.
HEGEL, G.W.F. Linhas fundamentais da filosofia do Direito. Tradução de Paulo Menezes et al. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2010.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato social e outros escritos. Introdução e tradução de Rolando Roque da Silva. São Paulo: Editora Cultrix, 1978.
Notas
[i] “Não tivemos nem podíamos ter filósofos. Tivemos filosofantes, letrados que se afastaram, quase sempre, da nossa realidade, que fugiram da nossa história e do seu verdadeiro significado” (COSTA, 1945, p. 14). Veremos que o especialista não foge a esse perfil distanciado da nossa realidade, sempre pensando para fora.
[ii] Vide o texto Narcisismo às avessas e a nossa filosofia brasileira (https://ojs.ifch.unicamp.br/index.php/modernoscontemporaneos/article/view/4164)
[iii] Na obra Do contrato social Rousseau faz questão de distinguir vontade geral de vontade da maioria ao dizer que a maioria pode errar, mas que a vontade geral é infalível. Segundo Rousseau as diferenças entre vontade geral e vontade da maioria são que a primeira “olha somente o interesse comum, a outra o interesse privado, e outra coisa não é senão soma de vontades particulares” (ROUSSEAU, 1978, p. 41).
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025
Razões da ascensão dos nazi-fascismos na Europa no século vinte, por António Avelã Nunes, in Revista VÉRTICE
(:::)
Após a experiência do thatcherismo, a aproximação da ‘Europa’ à ideologia neoliberal
contou, a partir de meados dos anos 1980, com a adesão da social-democracia europeia aos
dogmas da ideologia neoliberal e ao argumento TINA (There Is No Alternative) de que não há
alternativa ao capitalismo e às políticas de globalização neoliberal. Os momentos críticos da
acentuação e aceleração da submissão da ‘Europa’ ao espírito do Consenso de Washington (e à
‘filosofia’ segundo a qual “ninguém pode fazer política contra os mercados”) são o Ato Único
Europeu (1986), que criou o mercado interno único e o Tratado de Maastricht (1992), que criou
a União Europeia, bem como a União Económica e Monetária-UEM [moeda única (o euro),
Banco Central Europeu (BCE) e Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC)] e, já em plena crise,
o Tratado Orçamental. Com eles, a ditadura do grande capital financeiro passou a dominar a
Europa.
Perante a acentuação das dificuldades estruturais, o sistema cerrava fileiras na tentativa
de compensar a tendência para a baixa da taxa média de lucro e de prevenir e combater as crises
cada vez mais frequentes.
Num mundo e num tempo em que a produtividade do trabalho atinge níveis até há pouco
insuspeitados, as políticas neoliberais no quadro do Consenso de Washington agravaram as
contradições do capitalismo, que podem estar a atingir um limite insuportável. A presente crise
tem evidenciado, com efeito, as debilidades e as contradições de um sistema económico e social
que hoje só sobrevive à custa do agravamento da exploração dos trabalhadores, para tentar
contornar os efeitos da tendência para a baixa da taxa média de lucro e para tentar satisfazer as
rendas (verdadeiras rendas feudais) de que vive o grande capital financeiro. A discussão sobre o
fim do estado social – que a crise tem dramatizado – talvez seja um sinal de que, como o aprendiz
de feiticeiro, o capitalismo pode morrer imolado pelo fogo que está a atear.
O empobrecimento dos povos não os torna mais competitivos, torna-os mais vulneráveis
e menos capazes de se desenvolver. Porque a pobreza não significa apenas baixo nível de
rendimento e reduzido poder de compra: ela atinge a capacidade das pessoas para defender a sua
liberdade e a sua dignidade. Amartya Sen tem sublinhado isto mesmo: “a privação de liberdade
económica, na forma de pobreza extrema, pode tornar a pessoa pobre presa indefesa na violação
de outros tipos de liberdade.” E Paul Krugman lembra-nos que “a concentração extrema do
rendimento” significa “uma democracia somente de nome, (…) incompatível com a democracia
real.”
O empobrecimento de povos inteiros, o alargamento da mancha de pobreza, o
aprofundamento da desigualdade, o aumento dramático do número dos pobres que trabalham
(mesmo nos países ditos ricos) e a chaga da exclusão social (a nadificação do outro, na expressiva
caraterização do cineasta brasileiro Walter Salles) justificam plenamente as nossas preocupações
relativamente à preservação da democracia e da paz na Europa e no mundo.
Apesar de a ‘endeusada’ Constituição Europeia (assinada pelos Chefes de Estado e de
Governo em outubro/2004) ter morrido de “morte matada”, pelos votos de franceses e holandeses,
os partidos socialistas europeus continuaram a favorecer o curso da contra-revolução
monetarista, ao provarem o chamado Tratado de Lisboa (dezembro/2007) e, mais recentemente,
Tratado Orçamental (março/2012).
Um momento marcante desta ‘evolução’ foi sem dúvida o Congresso do Partido Social
Democrata Alemão (SPD), realizado em Bad Godesberg, em 1959, que aprovou o novo programa
do partido, no qual não figura qualquer referência a nacionalizações e se proclama que a
propriedade privada merece a proteção da sociedade, desde que não impeça a realização da justiça
social.
Preocupados fundamentalmente com a necessidade de ganhar ‘respeitabilidade’, os
partidos socialistas e sociais-democratas europeus proclamaram o seu respeito pelo deus mercado
e a sua ‘fé’ nas virtudes da “concorrência livre e não falseada” e da “economia social de mercado”
(ou “economia de mercado regulada”), ‘aliviados’ pela ‘crença’ de que não há alternativa ao
mercado e ao capitalismo. Resolveram fazer política a sério, afirmando a sua ‘vocação
governamental’ e a sua disponibilidade para ‘assumir a responsabilidade’ (responsabilidade de
estado...) de assegurar a gestão leal do capitalismo, sem pôr em causa o próprio sistema.
7. – O ‘delírio’ federador (escondido mas presente desde o início do processo de integração
europeia) atingiu o seu ponto mais alto com a tentativa de aprovação da chamada Constituição
Europeia. Diria mesmo um ponto patológico, bem patente na patética proclamação de Dominique
Strauss-Kahn: “Fizemos a Europa, agora é preciso fazer os europeus.”
Como se vê, os fanáticos construtores da ‘Europa’ acreditaram que poderiam ‘construir’ a
‘Europa’ não apenas contra os cidadãos europeus, mas também sem cidadãos (fazem-se depois,
talvez made in China, que ficam mais baratos...). Não compreenderam que os povos, as nações e
os estados não se abatem por decreto ou por decisões de puro voluntarismo político, com recurso
ao velho método do ‘rolo compressor’. Além do mais, os povos aperceberam-se de que se tratava
de matar as soberanias nacionais em nome de uma ‘Europa’“com falta de definição e de limites”
(Pierre Nora), uma ‘Europa’ marcada pela “insegurança social, pela insegurança identitária, e pelo
sentimento de desapossamento democrático” (Hubert Védrine), e os povos sabem que os estados
nacionais soberanos constituem a matriz da liberdade e da cidadania e são a única entidade política
que, nas condições atuais, pode opor-se às forças do capital. Por isso ‘chumbaram’ a Constituição
Europeia.
Os ‘donos’ da ‘Europa’, porém, fizeram de contas que os europeus não tinham rejeitado “a
Europa como ela é” (Jacques Chirac) e aprovaram, nas costas dos povos, no ambiente almofadado
dos parlamentos, o Tratado de Lisboa, que deixou tudo na mesma, acentuando escandalosamente
o desequilíbrio de poderes entre os estados-membros da UE, apesar de continuar a proclamar,
hipocritamente, a igualdade entre eles.
E em março/2012 foi aprovado, mais uma vez “à porta fechada”, o chamado Tratado
Orçamental. Sempre com a cumplicidade ativa da “esquerda choramingas” (Frédéric Lordon), a
‘esquerda’ que “nunca quer questionar nada” (arriscando-se a nunca compreender nada), a
‘esquerda’ que lamenta, com uma lágrima ao canto do olho, o desemprego, a precariedade, as
desigualdades e a exclusão social, mas que se recusa a identificar as suas causas estruturais, para
não ter de as combater, levando tudo à conta da globalização incontornável, para a qual não há
alternativa…
Como tudo o que de relevante vem acontecendo na UE desde Maastricht, o Tratado
Orçamental é “um modelo político de marca alemã”, um produto imposto não por uma
“Alemanha cooperante”, mas pela Grande Alemanha, liberta da “consciência de uma herança
histórico-moral comprometedora” que, após a derrota militar, política e ética da Alemanha nazi,
ditou uma atitude de “moderação diplomática e disponibilidade para adotar também as perspetivas
dos outros”, mas por uma Alemanha ciosa de afirmar “uma clara pretensão de liderança” numa
“Europa marcada pelos alemães.”
Ignorando todas as críticas feitas às deficiências estruturais da UEM (que a presente crise
tornou visíveis a olho nu), este Tratado persiste em negar o que Paul Krugman considera “o
fracasso de uma fantasia”. 24 Só esta atitude de ‘negação’ explica que se insista no erro de impor
as mesmas regras (saídas da cabeça de tecnocratas iluminados e muito sensíveis aos interesses do
grande capital financeiro) a países com situações e com histórias completamente diferentes,
ignorando que a política não pode reduzir-se à aplicação mecânica de regras iguais para todos.
Nos termos deste Tratado, alerta Habermas, “os chefes de governo comprometeram-se a
implementar nos seus respetivos países um catálogo de medidas a nível da política financeira,
económica, social e salarial que, na realidade, seriam da competência dos Parlamentos nacionais
(ou dos parceiros sociais).” Por outro lado, insiste o filósofo alemão, “o direito da Comissão a
analisar atempadamente, portanto antes das decisões dos Parlamentos, os orçamentos dos estados-
membros” “afeta competências fundamentais dos estados-membros e dos seus Parlamentos”, o
que traduz “a arrogância de criar um precedente eficaz”. Para os cidadãos dos estados-membros
(especialmente os mais fracos), fica a suspeita de “os seus governos nacionais serem apenas atores
no palco europeu” e de os parlamentos nacionais “se limitarem a aprovar obedientemente (...) as
decisões prévias tomadas noutro lugar.” Estas são soluções que não podem deixar de “corroer
qualquer credibilidade democrática.”1817
Tem razão o Primeiro-Ministro britânico quando afirmou que este tratado traduz o
propósito de tornar ilegal o keynesianismo. Creio, porém, que é necessário ir mais longe. Porque
o que está em causa, verdadeiramente, é a ilegalização da democracia, num Tratado que
transforma em normas jurídicas pontos de vista doutrinários em matéria de política económica.
Com efeito, a regra de ouro das finanças sãs (que, até há poucos anos, todos os manuais
ridicularizavam...), à semelhança de outras constantes dos Tratados estruturantes da UE (a regra
da independência dos bancos centrais, os requisitos do PEC, etc.), são meras sínteses das opções
políticas do grande capital financeiro, as opções que têm servido de base à política de
globalização neoliberal, transformadas, como que por magia, em normas jurídicas, de tipo
‘constitucional’.
Na minha leitura, estas regras (normas-travão) são as regras do jogo impostas à economia
real e aos cidadãos pelo setor dominante da classe dominante do capitalismo de casino e visam
garantir que os eleitos para cargos políticos (nos parlamentos ou nos governos) não tenham a
veleidade de pretender honrar o mandato popular que receberam dos seus eleitores, prosseguindo
políticas que não respeitem as regras do jogo. A mensagem que se quer fazer passar para os
cidadãos da ‘Europa’ é clara: podem eleger partidos de direita ou partidos de esquerda, mas
aqueles que forem eleitos ficam impedidos de respeitar aquele mandato, amarrados que estão por
estas regras decorrentes do figurino neoliberal.
Mais uma vez por portas travessas, este Tratado visa, fundamentalmente,
‘constitucionalizar’ e eternizar o neoliberalismo e as políticas de austeridade, tornando o
crescimento impossível para muitos países, que, como Portugal (e os ‘países do sul’) sofreriam
um brutal retrocesso civilizacional, vendo inviabilizada a sua capacidade de desenvolvimento
autónomo. Agravando o adquirido anterior, ele perfila-se como um verdadeiro pacto colonial
imposto pelos ‘arianos’ do norte aos ‘bárbaros’ do sul, incapazes de autogoverno, visão que,
embora traduza uma certa realidade, não pode esconder a verdadeira essência do que está a passar-
se: uma imposição do capital financeiro e dos estados e outras instâncias do poder político ao seu
serviço – a ditadura do grande capital financeiro – à grande massa dos que, em todo o mundo,
vivem do seu trabalho.
As posições doutrinais e a prática política dos governos nacionais e das instituições
comunitárias justificam inteiramente as preocupações do antigo Presidente socialista do governo
de Espanha, Felipe González, que, no início deste ano de 2013 (Expresso, 5.1.2013), reconhecia
os perigos inerentes à crise da democracia representativa: “Os cidadãos pensam, com razão, que
os governantes obedecem a interesses diferentes, impostos por poderes estranhos e superiores, a
que chamamos mercados financeiros e/ou Europa. É perigoso, pois tem algo de verdade
indiscutível”
8. – A chamada crise das dívidas soberanas dos “países do sul” (apresentada deste modo
para esconder a crise do euro e a crise da Europa) veio pôr a descoberto as debilidades da
‘Europa’ enquanto estrutura política e a vontade da Alemanha de pôr a Europa a falar alemão.
Com o objetivo de ‘esconder’ as causas e a natureza da crise, optou-se pela ‘solução’ de castigar
os ‘povos inferiores’, pôr-lhes a rédea curta, e convencê-los de que a sua ‘cura’ tinha de passar
por um calvário de sacrifícios, indispensáveis para que eles aprendam que não podem querer viver
acima das suas posses (o sacrifício purifica…). Foi o tempo em que os portugueses (e outros
‘europeus’) se apressaram a dizer que Portugal não era a Grécia, outros a dizer que a Espanha não
era Portugal, outros ainda a dizer que a Itália não era a Espanha, e ainda outros a dizer que a
França não era a Itália… Foi um espetáculo pouco edificante. Foi a desunião europeia no seu
melhor!
A meu ver, a leitura alemã da crise e as políticas que dela têm resultado podem ter servido
os interesses (conjunturais) da Alemanha, mas ameaçam destruir a Europa. Estão a destruir as
economias europeias e estão a romper o tecido social dos estados europeus, e podem até destruir
a ‘Europa’ que os seus mentores têm vindo a construir à socapa, que poderá não resistir à
destruição da credibilidade do euro enquanto moeda que aspirava ao estatuto de moeda mundial
de referência, projeto em que tanto investiram os seus ‘inventores’.Tal ‘leitura’ e tais políticas
podem muito bem anular os objetivos de paz originários das comunidades europeias (a começar
pela Comunidade Europeia do Carvão e do Aço), que pressupunham um ‘projeto europeu’ com
uma Alemanha europeia (uma Alemanha com raízes fundas na ‘Europa’ e respeitadora dos
interesses europeus).
Em 1953, falando em Hamburgo para estudantes universitários, Thomas Mann exortava-
os a construir uma Alemanha europeia e a rejeitar a ideia de uma Europa alemã, exortação
recordada, recorrentemente, logo após a ‘reunificação’ da Alemanha. Hoje, não faltam razões
para temer que aquele apelo se tenha esfumado. Um homem tão comedido e tão conhecedor das
‘regras do jogo’ como Jean-Claude Juncker (atual Presidente da Comissão Europeia) não foi
capaz de calar o que lhe vai na alma, declarando, numa entrevista (30.7.2012), que “a Alemanha
trata a zona euro como se fosse uma sua filial”. Com efeito, a Alemanha, cada vez mais alemã,
parece ter perdido “a consciência de uma herança histórico-moral comprometedora” que, durante
alguns anos após a 2ª Guerra Mundial, ditou uma atitude de “moderação diplomática e
disponibilidade para adotar também as perspetivas dos outros” (Habermas). E a ‘Europa’,
‘governada’ por esta Alemanha alemã, que coloca acima de tudo os interesses da Alemanha,
tornou-se uma Europa alemã. E “a Europa alemã – quem o diz é Ulrich Beck – viola as condições
fundamentais de uma sociedade europeia na qual valha a pena viver”.
O novo poder da Alemanha, nesta Europa à deriva, que parece perdida na história, está,
com razão, a assustar muita gente. Em julho/2012, o semanário inglês New Statesman
proclamava: “A mania da austeridade de Angela Merkel está a destruir a Europa”. Alargando o
âmbito da reflexão, o antigo ministro alemão dos Negócios Estrangeiros, Joschka Fischer,
escreve: “A Alemanha destruiu-se – a si e à ordem europeia – duas vezes no século XX. (…)
Seria ao mesmo tempo trágico e irónico que uma Alemanha restaurada (…) trouxesse a ruína da
ordem europeia pela terceira vez”.
A História não se reescreve, mas também não se apaga. Não tenho tanta certeza de que não
se repita. Acredito, porém, que, tal como as pessoas, os povos têm de assumir a sua história por
inteiro, com as suas grandezas e as suas misérias. Por isso entendo que a Alemanha, sem ter de
esquecer as suas grandezas, não pode esquecer as suas misérias.
A Alemanha não pode esquecer que foi o devedor mais relapso ao longo do século XX,
durante o qual cometeu, contra os povos da Europa e de todo o mundo, gravíssimos crimes conta
a humanidade. Apesar disso, beneficiou do perdão de dívidas, oito anos apenas depois do fim da
Guerra, contando-se a Grécia (e também a Espanha e a Irlanda) entre os países que perdoaram
dívidas à Alemanha, permitindo ao inimigo da véspera condições para o crescimento da sua
economia (Acordo de Londres, assinado em 27.2.1953).
A Alemanha não pode esquecer, sobretudo, que as tropas nazis assassinaram, em 1940,
mais de um milhão de gregos, infligindo também à Grécia enormes prejuízos materiais, para além
do roubo de obras de arte sem preço. Não é fácil calcular os danos morais (qual a recompensa por
uma pessoa assassinada? E por uma pessoa torturada e condenada a morrer à fome em campos de
concentração? E qual a recompensa pelo roubo do património artístico e cultural de um povo?).
Mas poderão calcular-se os danos materiais.
A Alemanha não pode esquecer que nunca recompensou o povo grego pelos danos morais
e materiais que lhe foram infligidos pelas forças armadas nazis. Por isso mesmo, o Ministro das
Finanças alemão – que está sempre a dar lições aos ‘povos do sul’, exigindo-lhes que paguem as
suas dívidas e impondo-lhes pesados sacrifícios – não pode vir dizer que a questão das reparações
de guerra é assunto do passado. É uma arrogância que ofende o mundo inteiro, só comparável à
daqueles que querem negar o holocausto. Por isso mesmo, faz muito bem o atual Governo da
Grécia, que já anunciou o seu propósito de negociar com a Alemanha o pagamento desses danos,
estimados em mais de 160 mil milhões de euros. Chegava para resolver os problemas financeiros
da Grécia, que refletem ganhos fartos do capital alemão.
Em novembro/2011, o secretário-geral do partido da Srª Merkel proclamou, no Congresso
do seu partido realizado em Leipzig: “Agora na Europa fala-se alemão”. Muito bem (ou muito
mal). A Alemanha poderá, finalmente, tornar-se a potência hegemónica da Europa, ambição que
parece não abandonar os dirigentes alemães. Esta Europa poderá até falar alemão, poderá até
aproximar-se do “quarto Reich” de que falam alguns, recuperando a expressão cunhada, em 1995,
pelo historiador inglês Andrew Roberts. Mas uma Europa de servos não será nunca uma Europa
de desenvolvimento e de paz. Não pode falar-se de paz quando alguns dos estados mais fortes e a
própria União Europeia impõem aos estados mais débeis políticas de austeridade que atentam
contra a dignidade dos povos, em vez de ajudarem estes povos a crescer, para não cairem na
miséria e para poderem poderem pagar a dívida que lhes seja exigível.
9. - O euro foi uma das ‘maravilhas’ anunciadas com o pacote da UEM. Desde o início,
porém, houve quem chamasse a atenção para as consequências negativas da adesão ao euro por
parte de países como Portugal, bem como para os ‘danos colaterais’ resultantes da
‘independência’ e das competências de inspiração monetarista do BCE e das exigências do PEC
(pacto “estúpido” e “medieval”, na catalogação de Romano Prodi, então Presidente da Comissão
Europeia).
Em 1997, Carlos Carvalhas (então Secretário-Geral do PCP) fez o seguinte diagnóstico,
ao anunciar, na Assembleia da República, a posição dos comunistas portugueses, contrária à
adesão de Portugal ao euro: “A moeda única é um projeto ao serviço de um diretório de grandes
potências e de consolidação do poder das grandes transnacionais (…), por uma nova divisão
internacional do trabalho e pela partilha dos mercados mundiais. A moeda única é um projeto
político que conduzirá a choques e a pressões a favor da construção de uma Europa federal, ao
congelamento dos salários, à liquidação dos direitos, ao desmantelamento da segurança social e
à desresponsabilização crescente das funções sociais do estado.” Parece um texto escrito agora e
antedatado…
Hoje muita gente partilha a opinião de que foi um erro a nossa adesão ao euro-moeda-única,
ainda por cima a este euro alemão, concebido e concretizado ao serviço da estratégia imperial da
Alemanha. Ao contrário do que anunciaram então os euristas militantes – talvez convencidos de
que ele seria uma nova ‘Índia’ que nos traria, como que por milagre, o leite e o mel da nossa
felicidade –, o euro não aproximou Portugal da ‘Europa’, muito menos do “pelotão da frente”…
Portugal está a afastar-se da ‘Europa’.
Em livro recente, J. Ferreira do Amaral confirma isto mesmo, com bons argumentos: “a
moeda única criou um enviesamento recessivo para a Europa, aprofundou o fosso entre países
mais competitivos e menos competitivos, criou um espaço economicamente instável, sem meios
de corrigir desequilíbrios conjunturais, e retirou possibilidades de crescimento às regiões
presentemente menos competitivas, mas que são justamente as de maior potencial de crescimento
futuro”. “O euro – conclui – poderá ter lançado a Europa num processo irreversível de decadência
e de ressentimentos amargos. (…)Vinte anos depois, a economia portuguesa está destroçada, o
estado em bancarrota, o País nas mãos de credores e sujeito a políticas ditas de ajustamento que
reforçam esse domínio, os jovens portugueses desesperam e vêem-se obrigados a emigrar em
massa; o desemprego ultrapassa todos os máximos anteriores; a própria sobrevivência de Portugal
está em risco.”26
26 Ver J. F ERREIRA DO A MARAL, Porque devemos…, cit., 15, 72, 92 e 93ss.
10. - À escala global, a presente crise do capitalismo tem evidenciado as debilidades e as
contradições de um sistema económico e social que não vive sem situações recorrentes de
desemprego e de destruição do capital em excesso e que hoje só sobrevive à custa do agravamento
da exploração dos trabalhadores, para tentar contornar os efeitos da tendência para a baixa da
taxa de lucro e para tentar satisfazer as rendas (verdadeiras rendas feudais) que são o suporte da
hegemonia do grande capital financeiro. A discussão sobre o fim do estado social – que a crise
tem dramatizado – talvez seja um sinal de que, como o aprendiz de feiticeiro, o capitalismo pode
morrer imolado pelo fogo que está a atear.
Desfeita, no início da década de 70 do século XX, a miragem do capitalismo sem crises
saído da ‘revolução keynesiana’, o triunfo da “contra-revolução monetarista” e dos dogmas
neoliberais significou, em certos aspetos, o regresso ao século XIX. Após o desmoronamento da
União Soviética e da comunidade socialista, os neoliberais de todos os matizes convenceram-se,
mais uma vez, de que o capitalismo tinha garantida a eternidade, podendo permitir todas as
liberdades ao capital e esvaziar todos os direitos dos trabalhadores. Foi o reino do pensamento
único e do deus-mercado. Foi a assunção (sem disfarce) do capitalismo como a civilização das
desigualdades. Foi o ‘regabofe’ do capitalismo de casino, arrastando consigo a praga do crime
sistémico e os perigos inerentes ao fascismo amigável (Bertram Gross) e ao fascismo de mercado
(Paul Samuelson), que estão agora mais claros e mais próximos.
Enquanto ideologia que visa reverter em sentido favorável ao grande capital financeiro a
correlação de forças entre o capital e o trabalho, o neoliberalismo, ao contrário do que por vezes
se quer fazer crer, não é uma ideologia libertária, que dispensa o estado. Nas sociedades de classes
em que vivemos, o capitalismo pressupõe sempre a existência do estado capitalista. E o
neoliberalismo e o projeto político por ele veiculado exige, como todos podemos observar nos
tempos que correm, um forte estado de classe, capaz de prosseguir objetivos ambiciosos.
Num livro de 1994, Andrew Gamble mostrou isto mesmo, com base na análise da
experiência do thatcherismo: “a Nova Direita acredita que para salvar a sociedade livre e a
economia livre é necessário restaurar a autoridade do estado. (…) A doutrina-chave da Nova
Direita e do projeto político que ela inspirou é a economia livre e o estado forte”, capaz de
“restaurar a autoridade a todos os níveis da sociedade” e dar combate aos inimigos externos
(“enemies without”) e aos inimigos internos (“enemies within”).27
E a análise do que se tem passado nos últimos trinta ou quarenta anos confirma isto
mesmo. Foram as instituições do poder político (a ditadura do grande capital financeiro: os
estados nacionais e as organizações internacionais dominadas pelo capital financeiro e pelos seus
estados) que construíram, pedra a pedra, o império do capitalismo neoliberal, assente nos
27 Ver A. G AMBLE, The Free Economy…, cit. 35 e 63-68 (todo o capítulo 2).
seguintes pilares: liberdade absoluta de circulação de capitais à escala mundial (a ‘mãe’ de todas
as liberdades do capital); desregulação de todos os mercados (em especial os mercados
financeiros, entregues ao “dinheiro organizado” comandado pelos especuladores, os ‘padrinhos’
do crime sistémico, a sida da economia mundial); imposição do dogma da independência dos
bancos centrais, que se traduziu na ‘privatização’ dos estados nacionais, dependentes dos
“mercados” (como as famílias ou as empresas) para o seu próprio financiamento (para o
financiamento das políticas públicas); privatização do setor público empresarial, incluindo os
serviços públicos (até a água!) e as empresas estratégicas que são o verdadeiro suporte da
soberania nacional; aplicação de sistemas fiscais que favorecem os ricos e sufocam os pobres.
Só um estado forte poderia ter criado as condições que permitiram levar à prática os
comandos do Consenso de Washington, dispensando o compromisso dos tempos do estado social
keynesiano, substituindo-o pela violência do estado neoliberal, que se vem abatendo sobre os
trabalhadores, com o objetivo de transferir para o capital os ganhos da produtividade, violência
que se tem traduzido: na desregulamentação das relações laborais; na ‘guerra’ contra os
sindicatos; no esvaziamento da contratação coletiva (que mostrou ser, como a OIT evidenciou,
um instrumento de redistribuição do rendimento em sentido favorável aos trabalhadores mais
eficaz do que as políticas de redistribuição de inspiração keynesiana); no desmantelamento do
estado social e no ‘confisco’ dos direitos económicos, sociais e culturais dos trabalhadores (que
muitas constituições consagram como direitos fundamentais dos trabalhadores).
11. – No contexto europeu, é hoje muito claro que a atual crise do capitalismo se está a
traduzir em uma crise do euro, uma crise da ‘Europa’, uma crise da democracia. Vários são os
autores que convergem nesta análise, com destaque (talvez não seja por acaso) para autores
alemães. Ulrich Beck não tem dúvidas: “a crise do euro tirou definitivamente a legitimidade à
Europa neoliberal.” 28
Segundo este destacado sociólogo alemão, os governos impõem políticas de austeridade
“geradoras de tanta desigualdade e injustiça, que imputam, escandalosamente, aos grupos mais
fracos os custos resultantes de um sistema financeiro que ficou descontrolado”; os governos
adotam um “socialismo de estado para os ricos e os bancos” e aplicam as receitas do
“neoliberalismo para a classe média e os pobres”; os governos adotam “políticas que salvam
bancos com quantias de dinheiro inimagináveis, mas desperdiçam o futuro das gerações jovens”.
Por isso é que “os governantes [governos e parlamentos] votam a favor da austeridade, as
populações votam contra”. Por isso é que Ulrich Beck tem razão ao concluir que a situação atual
na Europa se carateriza pela “assimetria entre poder e legitimidade. Um grande poder e pouca
28 Cfr. U. BECK, ob. cit., 111.
legitimidade do lado do capital e dos estados, um pequeno poder e uma elevada legitimidade do
lado daqueles que protestam.”
É notório o descrédito do neoliberalismo no plano teórico e não há como esconder os
resultados calamitosos das políticas neoliberais. Mas a verdade é que os partidos do ‘arco do
poder’ (que assim se assumem, como que confiscando a liberdade de escolha dos cidadãos
eleitores) continuam, por toda a Europa, fiéis à tese de que não há alternativa às políticas de
austeridade de inspiração neoliberal. Os reformistas de vários matizes estão, verdadeiramente,
num impasse. O projeto de Habermas de “civilizar e domesticar a dinâmica do capitalismo a partir
de dentro” não parece viável, porque, como o próprio Habermas reconhece, a ‘filosofia’ e as
consequências das políticas neoliberais são “dificilmente conciliáveis com os princípios
igualitários de um estado de direito social e democrático”. A submissão da Europa neoliberal ao
Consenso de Washington nega qualquer viabilidade a propostas como a de Ulrich Beck 29 : um
novo contrato social europeu, “uma nova era social-democrata a nível transnacional.” A social-
democracia europeia é estruturalmente neoliberal e está interessada em manter Keynes morto e
bem morto, para não ter insónias.
Não sendo de esperar, com as atuais lideranças europeias, que possa concretizar-se o seu
desejo de “aprofundamento da cooperação europeia”, Habermas vai ao ponto de defender que a
UE se encontra numa encruzilhada entre “um aprofundamento da cooperação europeia e o
abandono do euro”, não escondendo a sua procupação quanto à “possibilidade real do fracasso do
projeto europeu.”30
E Ulrich Beck sustenta que todos os povos da Europa estão a ser vítimas da crise financeira
e das políticas erradas adotadas para a enfrentar. Em resultado destas políticas, sublinha o
sociólogo alemão, “os países devedores formam a nova ‘classe baixa’ da UE”, e “têm de aceitar
as perdas de soberania e as ofensas à sua dignidade nacional”. A seu ver, tornou-se ambíguo o
significado da cooperação e da integração europeia, sendo que a principal vítima desta
ambiguidade é justamente “esta nova classe baixa da Europa” (os países devedores). “O seu
destino – conclui Beck – é incerto: na melhor das hipóteses, federalismo; na pior das hipóteses,
neocolonialismo”. 31 Venha o diabo e escolha..., porque, nestes tempos e com esta ‘Europa’, a
‘solução’ federalista não será, a meu ver, mais do que uma forma de (ou um caminho para o)
neocolonialismo. Creio que é esta mesma convicção que justifica a conclusão deste autor: “a
adesão a esta ideia de mais Europa [i. é, mais federalismo] é cada vez mais reduzida nas
sociedades dos estados-membros da UE.”
29 Cfr. U. BECK, ob. cit., 93ss.
30 As citações de J. H ABERMAS reportam-se à ob. cit., 135-140, 153/154, 157 168/169.
31 Cfr. Ulrich BECK, ob. cit., 21 e 64.
12. - Em livro recente, também Wolfgang Streeck analisa criticamente o processo em curso
de esvaziamento da democracia como “uma imunização do mercado a correções democráticas”.
Na sua ótica, esta imunização pode ser levada a cabo “através da abolição da democracia segundo
o modelo chileno dos anos 1970” [opção que entende não estar disponível atualmente], ou então
“através de uma reeducação neoliberal dos cidadãos” [promovida pelo que designa “relações
públicas capitalistas”, as grandes centrais de produção e difusão da ideologia neoliberal]. 32
E logo explicita quais os caminhos que estão a ser percorridos para conseguir “a
eliminação da tensão entre capitalismo e democracia, assim como a consagração de um primado
duradouro do mercado sobre a política” [os itálicos são meus. AN]: «’reformas’ das instituições
político-económicas, através da transição para uma política económica baseada num conjunto de
regras, para bancos centrais independentes e para uma política orçamental imune aos resultados
eleitorais; através da transferência das decisões político-económicas para autoridades
reguladoras e para grupos de ‘peritos’, assim como dos travões ao endividamento consagrados
nas constituições, aos quais os estados e as suas políticas se devem vincular juridicamente durante
décadas, se não para sempre”.
O “primado duradouro do mercado sobre a política” passa ainda por outros caminhos: “os
estados do capitalismo avançado devem ser reestruturados de forma a merecerem duradouramente
a confiança dos detentores e dos gestores do capital, garantindo, de forma credível, através de
programas políticos consagrados institucionalmente, que não irão intervir na ‘economia’ – ou,
caso intervenham, que só irão fazê-lo para impor e defender a justiça de mercado na forma de
uma remuneração adequada dos investimentos de capitais. Para tal – conclui o autor –, é
necessário neutralizar a democracia, entendida no sentido da democracia social do capitalismo
democrático do período pós-guerra, assim como levar por diante e concluir a liberalização no
sentido da liberalização hayekiana, isto é, como imunização do capitalismo contra intervenções
da democracia de massas”.
É uma longa transcrição, que me pareceu pertinente registar aqui, porque vejo nela a
síntese de pontos de vista que venho defendendo há anos em outros escritos.
A reflexão de Wolfgang Streeck ajuda-nos a perceber o que está em causa quando as
vozes ‘dominantes’ nesta Europa à deriva falam de reformas estruturais, de regras de ouro, da
independência dos bancos centrais, da reforma do estado, de finanças sãs, da necessária reforma
do estado social, do papel insubstituível das agências reguladoras independentes, dos benefícios
da concertação social, da flexibilização do mercado de trabalho, da necessidade de ‘libertar’ a
ação política (nomeadamente da política financeira) do controlo do Tribunal Constitucional.
E alerta-nos também para outro ponto: estas soluções ’brandas’ (apesar de ‘musculadas’
e até violentas) só serão prosseguidas se “o modelo chileno dos anos 1970” não ficar disponível
32 Ver W. S TREECK, ob. cit., 59-66 e 91-105.
para o grande capital financeiro. Se as condições o permitirem (ou o impuserem, por não ser
possível continuar o aprofundamento da exploração dos trabalhadores através dos referidos
métodos ‘reformistas’ do “capitalismo democrático do pós-guerra”), o estado capitalista pode
vestir-se e armar-se de novo como estado fascista, sem as máscaras que atualmente utiliza.
13. - No Ano Europeu de Luta Contra a Pobreza, o Parlamento Europeu aprovou um
Relatório onde se diz que, em 2010, cerca de 85 milhões de cidadãos da UE são afetados por
situações de pobreza e de exclusão social e que mais de 19 milhões de trabalhadores europeus são
considerados pobres.
São sinais de alarme particularmente significativos. Num mundo e num tempo em que a
produtividade do trabalho atinge níveis até há pouco insuspeitados, talvez esta realidade (que
quase parece mentira, de tão absurda que é) seja um alerta: ela pode significar que as contradições
do capitalismo estão a atingir um limite insuportável. Em dezembro/2011, ao apresentar em Paris
um Relatório da OCDE, o Secretário-Geral desta Organização recordava que, em virtude do
aumento continuado das desigualdades sociais ao longo dos últimos trinta anos, “o contrato social
está a desfazer-se em muitos países”.
As ‘reformas estruturais’ de que tanto se tem falado neste tempo de crise estão a conduzir
ao empobrecimento de povos inteiros, ao alargamento da mancha de pobreza e da exclusão social,
ao aprofundamento da desigualdade, ao aumento dramático do número dos pobres que trabalham
(mesmo nos países ditos ricos), justificando plenamente esta conclusão e justificando também
todas as preocupações relativamente à preservação da democracia e da paz.
Porque o empobrecimento dos povos não os torna mais capazes para se desenvolver, nem
mais competitivos; torna-os mais vulneráveis e menos capazes de progredir. Porque esta não é
uma estratégia promotora do crescimento, muito menos do crescimento equilibrado de todos os
povos da União e, ainda menos, uma estratégia de aproximação dos níveis de vida de todos eles.
É uma estratégia de domínio ‘colonial’ em benefício exclusivo da elite ‘colonialista’. Os mais
débeis estarão cada vez mais no lugar da panela de barro, necessariamente esmagada pela panela
de ferro.
É incontestável, por outro lado, que o alargamento da mancha de pobreza e da exclusão
social que delas tem resultado é algo que põe em causa a própria civilização, nomeadamente as
condições de vida em democracia. Porque a pobreza não significa apenas baixo nível de
rendimento ou baixo poder de compra, ela priva as pessoas de capacidades básicas essenciais para
a preservação e afirmação da sua dignidade enquanto pessoas. Amartya Sen tem sublinhado isto
mesmo: “a privação de liberdade económica, na forma de pobreza extrema pode tornar a pessoa
pobre presa indefesa na violação de outros tipos de liberdade”. 33 Uma situação de pobreza
33 Cfr. A. SEN, ob. cit., 109.
generalizada, acentuada e continuada não é compatível com a democracia. Vale a pena levar a
sério a advertência de Paul Krugman a este respeito: “a concentração extrema do rendimento”
significa “uma democracia somente de nome”, “incompatível com a democracia real”. 34
Quem não esquece as lições da história não pode ignorar que a ascenção do nazismo – e
a barbárie que ele trouxe consigo – está intimamente ligada à forte depressão e aos elevados níveis
de desemprego que marcaram a sociedade alemã no início da década de 1930, mais violentamente
do que em outros países da Europa, também em resultado das políticas contracionistas e
deflacionistas levadas a cabo pelo governo conservador de Heinrich Brüning.
Em 1943, Michael Kalecki formulou este diagnóstico: “O sistema fascista começa com
o desenvolvimento do desemprego, desenvolve-se no quadro da escassez de uma ‘economia de
armamento’ e termina inevitavelmente na guerra”. 35 Perante a chaga social do desemprego em
massa que assola a Europa, tudo aconselha a que levemos muito a sério o aviso de Paul Krugman:
“Seria uma insensatez minimizar os perigos que uma recessão prolongada coloca aos valores e às
instituições da democracia”.36
Quem conhece um pouco da história sabe que a democracia não pode considerar-se nunca
uma conquista definitiva. É preciso, por isso, lutar por ela todos os dias, combatendo os dogmas
e as estruturas neoliberais próprios do capitalismo dos nossos dias, porque este é, essencialmente,
um combate pela democracia.
Não quero ser pessimista, mas a verdade é que a persistência nas políticas da UE
(disfarçada de troika ou atuando como tal ou como BCE) que estão a arruinar a economia dos
‘países do sul’ e a minar a sua soberania, bem como a insolência com que os governantes dos
‘países do norte’ vêm enxovalhando a dignidade dos ‘países do sul’, têm todas as caraterísticas
de uma verdadeira guerra.
Porque é de ‘guerra’ que se trata quando os estados mais fortes e mais ricos da Europa
humilham os povos dos países mais débeis, ‘castigando-os’ em público com ‘penas infamantes’
e condenando-os a um verdadeiro retrocesso civilizacional em nome da verdade dos ‘catecismos’
neoliberais impostos pelo grande capital financeiro. Como se diz atrás, o chamado Pacto
Orçamental constitui um verdadeiro “golpe de estado europeu”, que, sob a capa de soluções
‘técnicas’, dá corpo a uma visão totalitária que suprime o que resta das soberanias nacionais,
ignora a igualdade entre os estados-membros da UE, ofende a dignidade dos chamados ‘povos do
sul’ e dos seus estados, e aponta para a colonização dos pequenos países pelos grandes.
Pode estar em perigo também a paz na Europa. Porque é de guerra que se trata quando as
políticas aplicadas pela UE são políticas que pecam contra a dignidade dos povos (como
confessou Jean-Claude Juncker, Presidente da Comissão Europeia), políticas que consituem,
34 Artigo no New York Times, 7.11.2011.
35 Ob. cit., 426.
36 Cfr. Acabem…, cit., 31.
portanto, verdadeiros crimes contra a Humanidade (ou não?). De resto, o mesmo Jean-Claude
Juncker (então Primeiro-Ministro do Luxemburgo e Presidente do Eurogrupo) alertava já em
2013 que “está completamente enganado quem acredita que a questão da guerra e da paz na
Europa não pode voltar a ocorrer. Os demónios não desapareceram, estão apenas a dormir, como
mostraram as guerras na Bósnia e no Kosovo”. 37
É um diagnóstico correto e preocupante: a presente crise do capitalismo tem vindo a
acentuar e a evidenciar as contradições do ‘mundo velho’ que se julga predestinado para ser
eterno. Só a luta organizada e consciente dos povos da Europa e do mundo pode evitar que este
poder ilegítimo, que representa já um grave retrocesso democrático, arraste, mais uma vez, a
Europa e o mundo para uma nova era de barbárie, e pode permitir que a crise abra o caminho para
uma nova ordem europeia e mundial, assente na cooperação e na paz entre os povos. As condições
não parecem particularmente favoráveis, mas não resta outro caminho, se queremos salvar a
democracia.
António Avelãs Nunes
Coimbra, março/2015
Viagem à Polónia
Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.
Viagem à Polónia
Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.