Por Gabriel Peters
Risos e psiquê
Por que rimos? Freud explica.
Naturalmente,
para entender sua explicação, é preciso partir do retrato da psique
humana pintado pelo pai da psicanálise. Como não quero ser esmagado por
uma biblioteca inteira, não mergulharei nos detalhes de tal retrato
aqui. Também não tratarei da gradual evolução desse modelo do psiquismo
humano ao longo das décadas em que o doutor Sigmund, trabalhador
prodigioso, foi publicando suas ideias. Finalmente (e daí paro com as
negações preliminares, juro), não me embrenharei na selva de leituras
variadas e conflitantes que o homem recebeu em escolas diversas de
psicanálise, como os clãs em torno de Klein ou Lacan (kleinicos e
laclânicos respectivamente).
Tudo
isso dito, quando se trata de juntar a teoria freudiana do riso à sua
concepção da psique, cabe lembrar que a principal obra de Freud sobre a
“graça” e o “engraçado”, O chiste e sua relação com o inconsciente ([1905],
1976a), foi publicada bem antes da sua “tópica” ([1923] 1976b) mais
famosa do psiquismo: aquela que divide a psique em “id”, “ego” e
“superego” (na tradução anglófona que lemos primeiro no Brasil) ou
“isso”, “eu” e “supereu” (na tradução do alemão, mais próxima da
linguagem coloquial do autor). Felizmente, ninguém menos do que o
próprio Freud (1974: 189) sublinhou a compatibilidade entre aquela
tópica madura e as conclusões a que ele chegara um tanto antes em seu
ensaio sobre os “chistes” ou "piadas" - se entendermos o termo em
sentido amplo, referente a construções verbais feitas para fazer rir
(por exemplo, um dito espirituoso no meio de uma conversa), para além do
sentido mais restrito de narrativas pré-fabricadas (p.ex., "um francês,
um inglês e um brasileiro entram num bar...").
É em nome do pai que podemos, assim, dar um trato “sincrônico” a esses diferentes textos.
Uma criatura internamente dividida
Os
contornos essenciais da “metapsicologia” de Freud são bem conhecidos
(Freud, 1976b: 33-54). A psique humana seria palco de um drama mais ou
menos intenso, mais ou menos “(a)normal”, envolvendo as relações de
conflito e “compromisso” entre três personagens: o id, o ego e o
superego. (Ficarei com os termos da tradução inglesa porque me acostumei
com eles).
A
primeira instância constitui o repositório de impulsos sexuais e
agressivos inconscientes que pressionam insistentemente a psique em
busca de imediata gratificação. As pulsões selvagens do id que clamam por satisfação se chocam com a oposição firme do superego,
o sítio psíquico em que as restrições que o meio social impõe aos
indivíduos tornaram-se interiorizadas, em um processo de socialização
cujo cerne é o Complexo de Édipo. Finalmente, o ego opera como o locus da
atenção e da consciência, mediante o qual o indivíduo se adapta aos
contextos práticos do mundo, isto é, às demandas e limites do “princípio
de realidade”.
A instância egoica também é a mediadora
entre os impulsos eróticos e agressivos do id, de um lado, e as
exigências e proibições morais internalizadas no superego, de outro.
Como mediador desse conflito estrutural que habita nossa psique, o ego
busca soluções negociadas ou “formações de compromisso” entre aquelas
partes conflitantes, formações das quais resultam fenômenos psíquicos
como os sonhos, os atos falhos e os sintomas neuróticos.
Freud
elucida essa concepção dinâmica da psique em uma passagem que indica,
de lambuja, o percurso biográfico de diferenciação interna por meio do
qual aquelas instâncias psíquicas se desenvolvem umas a partir das
outras:
“Se
o ego fosse simplesmente a parte do id modificada pela influência do
sistema perceptivo, o representante na mente do mundo externo real,
teríamos um simples estado de coisas com que tratar. Mas há uma outra
complicação. As considerações...nos levaram a presumir a existência de
uma gradação no ego, uma diferenciação dentro dele, que pode ser chamada
de...‘superego’. O amplo resultado geral da fase sexual dominada pelo
Complexo de Édipo pode, portanto, ser tomado como sendo a formação de um
precipitado no ego...(...) O superego, contudo, não é
simplesmente um resíduo das primitivas escolhas objetais do id; ele
também representa uma formação reativa enérgica contra essas escolhas” (Freud, 1976b: 42; 49).
Os
impulsos inconscientes que intensamente cobram satisfação à psique são
os mesmos cuja realização, ainda que apenas fantasiosa, provocaria uma
angústia insuportável para o ego e o superego. Um sonho no qual o id
realizasse abertamente o impulso edipiano inconsciente do indivíduo em
ter relação sexual com sua mãe, por exemplo, não seria prazeroso, mas
traumático para as outras partes da psique, justamente aquelas que
interiorizaram a proibição do incesto.
Levando em consideração os ditados do superego, o ego lança mão, então, de uma série de mecanismos de defesa dentre os quais o mais famoso é a repressão (“Verdrändung”),
graças à qual aqueles impulsos são subtraídos à consciência (Freud,
1976c: 265). As pulsões inconscientes que moram no id estão lá,
portanto, não porque foram meramente “esquecidas”, mas porque para lá
foram banidas. Mais do que isso: elas ali permanecem mantidas e vigiadas pela agência repressiva do superego.
Coagidos
e vigiados, aqueles impulsos, entretanto, não desistem nunca. Eles
continuam exercendo sobre a psique uma pressão contínua para escapar,
perfazendo caminhos tortuosos para driblar a vigilância (super)egoica e
encontrar uma satisfação, nem que seja apenas parcial.
Para Freud, essa teoria da estrutura e da dinâmica do psiquismo oferece a chave de decodificação
dos significados profundos ou “latentes” disfarçados sob a aparência
“manifesta” de fenômenos psicológicos como sonhos, atos falhos e
sintomas neuróticos. Os sonhos, por exemplo, resultam de uma “formação
de compromisso” em que um desejo inconsciente é satisfeito sob uma forma
disfarçada, da qual derivam os estranhos “significados manifestos” de uma experiência onírica. Esse disfarce simbólico ou hermenêutico permite ao desejo escapar parcialmente
ao monitoramento do ego, mas também garante que o mesmo desejo continue
escondido, em princípio, do próprio indivíduo em que ele habita.
O
impulso edipiano de ter relações sexuais com a mãe pode aparecer, por
exemplo, em um sonho no qual o indivíduo adulto se vê carregado no colo
por uma carinhosa senhora idosa. Graças ao mecanismo onírico do “deslocamento”,
a senhora idosa (conteúdo manifesto) aparece como uma representação
figurada da mãe (conteúdo latente). Mediante uma operação de
“condensação”, por sua vez, os atos envolvidos na consumação do impulso
sexual se agrupam na ação em que a senhora carrega o sujeito no colo –
ato cuja inocência “manifesta” é um modo de satisfação indireta e
parcial do desejo “latente”.
Mutatis mutandis,
poderíamos dar exemplos similares de interpretação psicanalítica tanto
de sintomas psicopatológicos quanto do que Freud chamou de “atos
falhos”. Os últimos são lapsos (de escorregadas verbais até lacunas de
memória) que o autor tomava não como meros erros cognitivos, mas como
irrupções momentâneas de impulsos do id, fossem sexuais stricto sensu (p.ex.,
alguém tenta dizer que vai chutar o pau da barraca e acaba dizendo “vou
chupar o pau da barraca”) ou agressivos (“quando um de nós morrer”, diz
um homem à sua esposa, “vou me mudar para Paris”, comentário que Freud
interpreta como expressão de um desejo agressivo inconsciente de
enviuvar [1974: 337]).
Freud não se surpreenderia se alguém achasse graça de tais atos falhos, os quais ele discutiu em Sobre a psicopatologia da vida cotidiana [1901], publicado alguns anos antes de seu livro sobre a graça.
Riso como alívio
A
pintura antropomórfica que Freud faz das instâncias psíquicas, pintura
na qual elas agem intencionalmente como “minipessoas” dentro da psique,
não deve ser, obviamente, tomada em sentido literal. Trata-se de uma
maneira didática pela qual esse escritor de mão cheia apresentava
processos cuja realidade ele compreendia, de maneira abertamente
biologizante, em termos de economia energética do cérebro
(Freud, 1976c: 266). A hipótese de que aquelas relações entre id, ego e
superego poderiam ser biologicamente traduzidas em fluxos de energia
nervosa é relevante, ademais, à visão freudiana sobre “os chistes e sua
relação com o inconsciente” (1976a).
Freud formulou, nas suas próprias categorias, uma tese que já havia sido aventada por Herbert Spencer: a risada é uma liberação
de energia nervosa. Utilizando-se de recursos semióticos (i.e., de
construção de sentido) similares aos da composição onírica, como a
condensação e o deslocamento, os chistes permitiriam uma via indireta de
expressão e gozo de impulsos agressivos e sexuais cuja realização
direta se encontra bloqueada. O montante de energia psíquica normalmente
requisitado para sustentar a inibição de tais impulsos é tornado
desnecessário diante do que “é só uma piada” (pelo menos para quem ri, é
claro), e o excesso energético resultante encontra na risada um caminho
de extravasamento. A liberação fisiológica de energia acarretada pelo
riso é experimentada como prazerosa, diz Freud, porque associada à
satisfação momentânea dos desejos evocados, mesmo que de modo
disfarçado, pelo gracejo (p.ex., uma piada pré-fabricada, um comentário
espirituoso etc.).
Um dos aspectos mais interessantes da teoria freudiana do riso como alívio é o fato de que ela não abandona, mas integra a si duas teorias anteriores da risada, condensadas nas noções de superioridade (ou agressão) e incongruência. De Platão (s/d: 38) e Aristóteles (1966: 73-74) até Hobbes (2002: 49), a compreensão do riso como expressão de um sentimento súbito de superioridade
foi hegemônica durante umas duas dezenas de séculos. Do ponto de vista
sociopolítico, tais risos incluem tanto aqueles do opressor frente ao
oprimido (p.ex., em piadas racistas, sexistas etc.) quanto os que
exprimem a resistência dos dominados em relação aos dominantes (p.ex., a
sátira como arma de crítica da dominação de classe, gênero, raça etc.).
Ainda
que visões alternativas à do riso agressivo já existissem desde a
Antiguidade, foi sobretudo nos séculos XVIII e XIX, segundo a história
padrão, que se desenvolveu uma segunda explicação influente do que faz
os seres humanos rirem (Billig, 2005). A ideia de que o riso emerge em
resposta à percepção de uma incongruência pode ser retraçada,
no mínimo, até o iluminista escocês Francis Hutchenson no século de
1700. Desde então, tal teoria pôde ser encontrada em Kant (1993:
177-181), Schopenhauer (2001: 68) e Kierkegaard ou ainda, mais perto de
nós, em Henri Bergson (2007), Arthur Koestler (1964) e Peter Berger
(1997). Segundo tais visões, a experiência do cômico derivaria de uma
disjunção entre nossas crenças e expectativas, de um lado, e o que
descobrimos frente ao acontecimento humorístico, de outro.
Não
é difícil reconhecer que algumas manifestações do riso se prestam
melhor, ao menos à primeira vista, a uma ou outra interpretação teórica.
Piadas racistas, por exemplo, envolvem uma reivindicação de
superioridade identitária. Um trocadilho erudito evidenciaria um prazer
puramente intelectual diante de uma incongruência cognitiva. Um happy hour com
conversas recheadas de palavrões, termos escatológicos e referências
sexuais pode ser experimentado por um indivíduo como alívio: uma
oportunidade relaxante para neutralizar parte do autocontrole exigido
por suas atividades profissionais.
Isto
dito, duas ressalvas cabem. Por um lado, não devemos deslizar para a
afirmação preguiçosa de que toda e qualquer manifestação da graça pode
ser “classificada” sob uma e apenas uma daquelas etiquetas (“isso é
superioridade”; “aquilo é incongruência”; “aquele outro é alívio”;
etc.). Em diversos casos, é mais proveitoso pensar naquelas grades de
interpretação como recursos analíticos com os quais podemos, em
princípio, capturar diferentes aspectos de uma mesma situação engraçada - isto
é, engraçada para alguém. Por outro lado, a ressalva anterior “em
diversos casos” indica que também não precisamos ir ao outro extremo,
deduzindo que toda e qualquer manifestação cômica carregaria,
necessariamente e no mesmo grau, os componentes de superioridade,
incongruência e alívio.
Pensemos
no riso diante do vídeo em que um chefe de estado leva um tombo em meio
a um pomposo rito oficial. Ele pode ser lido sob o aspecto do
sentimento momentâneo de superioridade que sentimos em relação a
ele - tanto mais satisfatório como compensação pelo fato de que, na
maior parte das circunstâncias, é ele quem tem mais poder sobre nós. Mas
a risada também pode ser resposta à súbita incongruência entre
a pompa do ritual, de um lado, e o ruinoso tombo que mostrou o
governante como um corpo tão vulnerável quanto outro qualquer, de outro.
Na
medida em que Freud conectou o alívio cômico à satisfação de impulsos
agressivos, ele já cavara um caminho para as teorias do humor como
“sentimento de superioridade”. Por exemplo, a expressão humorística de
reivindicações chauvinistas de superioridade em relação a outro grupo
social (p.ex., em uma piada homofóbica) poderia oferecer um alívio
momentâneo quanto às próprias inseguranças do piadista (p.ex., seus
desejos homossexuais enrustidos). Por outro lado, Freud também notou
que, mesmo quando um sentimento agressivo é a motivação de uma piada, ela ainda pode depender, no seu conteúdo linguístico, de um mecanismo cognitivo
de incongruência (p.ex., uma palavra de duplo sentido). O pai da
psicanálise foi sensível, portanto, às complexas misturas possíveis
entre diferentes teorias do humor.
Riso e brincadeiras infantis
Como
Freud se situa em relação à tradição intelectual que explica o riso
como resultado de incongruência? Em primeiro lugar, ainda que a
satisfação de impulsos reprimidos seja o núcleo da teoria freudiana do
riso, o pai da psicanálise também registrou a existência de chistes que
não estavam relacionados a pulsões sexuais e agressivas. O prazer
oriundo de tais piadas “inocentes” ou “não tendenciosas” resultaria do
fato de que as manobras cognitivas nelas envolvidas permitiriam que
aliviássemos as exigências lógicas e racionais dos “processos
secundários”, experimentando um estilo mais infantil de pensamento:
- A plantinha passou mal durante a madrugada. Foi levada ao hospital, mas não foi atendida.
- Por quê?
- Porque só tinha médico de plantão.
Era uma festa apenas para astericos. Controlando a entrada, o segurança vê chegar um ponto final e fala:
- Opa, amigo, você não pode entrar. Essa festa é só pra asteriscos.
- Mas eu sou um asterisco. É que tô usando gel.
Na sua obra de 1905, Freud também menciona formas não verbais
da graça, como o paradigmático tombo na casca de banana e a comicidade
física praticada por palhaços de circo ou exibida nos filmes mudos de
Chaplin. Os tropeços e quedas associados ao cômico evocam formas de
comportamento infantil. Por isso, o prazer experimentado com essas
formas cômicas é explicado por Freud como um gozo momentâneo do mundo
perdido da infância, ainda que ele admita que elas também possam dar
ensejo, é claro, à satisfação de impulsos inconscientes, como o regozijo
agressivo diante da dor e/ou humilhação de um sujeito que tomba.
O
grau de sadismo envolvido em alguns desenhos animados dirigidos
(supostamente) a crianças dá testemunho dessas misturas entre o inocente
e o não inocente.
Falando nisso...
Para além das incongruências inocentes
Voltemos
às piadas da plantinha e do asterisco. Por que elas soam bobinhas? Em
boa medida, diria um freudiano, porque suas incongruências são inocentes. Freud sugeriu que as incongruências que mais satisfazem nossos impulsos são, a bem da verdade, justamente aquelas que opõem o inocente ao não inocente.
Dois amigos solteiros se encontram:
- Então, você estava indo passar uma semana no acampamento de nudismo. Como foi?
- Muito duro nos primeiros dias, mas depois fiquei mais habituado.
O
prazer da piada, para quem acha graça, não deriva somente de que “duro”
pode ser entendido em dois sentidos diferentes, mas também de que um
dos sentidos introduz uma possibilidade erótica como alternativa ao
sentido inocente. De modo similar:
Ao ser perguntada se era a favor do sexo antes do casamento, Linda Porter respondeu:
- Por que não? Desde que não atrase a cerimônia.
O
duplo sentido implicado na noção de “antes de casamento” envolve, por
óbvio, uma acepção restrita e uma acepção ampliada do “antes”, bem como
os significados de “fenômeno prolongado” e “cerimônia festiva” que podem
ser atribuídos ao termo “casamento”. Mas o gozo intrínseco dessas
duplicidades de sentido se soma à satisfação em observar a passagem do
“puro” ao “impuro”, a transmutação de preocupações puritanas em uma
sexualidade liberta.
O
mesmo mecanismo retórico pode aparecer em piadas com conteúdo
agressivo, mesmo quando tal conteúdo é menos direto e mais relacionado a
alguma subversão de expectativas oriundas de nossa hierarquia habitual
de preocupações morais:
– Alô, Doutor Fulano? É a Sicrana, mãe do Pedrinho. Estou ligando porque ele acaba de engolir minha caneta.
- Você já chamou uma ambulância?
- Sim, mas o que devo fazer enquanto espero?
- Escreva com um lápis.
O consolo supergoico: humor
Em
uma breve palestra de 1928, mais de duas décadas após a publicação de
seu livro sobre os chistes, Freud discutiu mais uma categoria do
risível, a que deu o nome, em uma acepção restrita, de “humor”. No
léxico freudiano, o humor é uma espécie de operação anestésica ou analgésica:
circunstâncias que normalmente evocariam afetos negativos, como temor
ou tristeza, são apresentadas sob uma perspectiva que as torna risíveis.
A percepção humorística de situações perturbadoras não apenas previne
ou alivia emoções dolorosas, mas também oferece um prazer associado à liberação da energia nervosa que estaria atada àquelas emoções:
Alguns
minutos antes da execução do prisioneiro condenado, o carrasco oferece a
ele um último cigarro, ao que o prisioneiro responde:
- Não, obrigado. Estou tentando parar.
Freud
sublinhou que o tipo de libertação adquirida através do humor - i.e.,
dessa espécie particular da graça - possui um halo de “grandeza e
elevação” ausente nas satisfações agressivas ou eróticas presentes nos
chistes. Tal halo derivaria da...
“...afirmação
vitoriosa da invulnerabilidade do ego. O ego se recusa a ser afligido
pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer.
Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo;
demonstra, na verdade, que esses traumas para ele não passam de ocasiões
para obter prazer” (1974: 190).
Como um recurso para lidar com o sofrimento, o humor freudiano pode ser elencado entre os mecanismos de defesa
da psique: “a extensa série de métodos que a mente humana construiu a
fim de fugir à compulsão para sofrer – uma série que começa com a
neurose e culmina com a loucura, incluindo a intoxicação, a
auto-absorção e o êxtase” (Ibid.: 191). Em contraste com outras
formações defensivas, entretanto, Freud atribui ao humor a dignidade
especial de afirmar o princípio do prazer, contra as frustrações
exigidas pela realidade, de uma forma que não ultrapassa “os limites da saúde mental” (Ibid.; grifos meus).
O
pai da psicanálise se debruçava sobre uma modalidade da graça praticada
desde Demócrito até Machado de Assis, mas estava aparelhado para trazer
algo novo à análise desse fenômeno: a analogia entre a postura do
humorista que ri da própria insensatez angustiada, de um lado, e a
posição de uma figura paterna que “sorri da trivialidade dos interesses e
sofrimentos que parecem tão grandes” a uma criança, de outro (Ibid.).
De modo similar ao que ocorre quando os pais consolam risonhamente a
criança em seu berreiro angustiado diante de aflições que consideram
minúsculas, como um pirulito não comprado, o humor seria um fenômeno em
que o superego, justamente a instância psíquica que interiorizou o papel
das figuras paternas, intervém para confortar um ego ansioso e
aflito. Segundo a reinterpretação humorística do superego, o mundo que o
ego julga ser tão perigoso “não passa”, no fim das contas, “de um jogo
de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria” (Freud,
1974: 194).
O
textículo de Freud sobre o humor possui um interesse mais geral para a
teoria psicanalítica, portanto, na medida em que complexifica a
caracterização do superego, o qual aparece, na maior parte dos escritos
de Freud, como um senhor duro e punitivo a vigiar implacavelmente os
movimentos do ego – por exemplo, no famoso ensaio sobre Luto e melancolia ([1917] 2010) ou nas partes finais de O mal-estar na civilização,
escrito pouco depois daquela palestra de 1928 ([1930] 1974). Isto dito,
como ocorre com a sublimação dos impulsos pelo investimento da libido
em atividades como a arte e a ciência, a capacidade de apreciar e
produzir o humor, nesse sentido específico, é tida por Freud em uma
chave bastante elitista, isto é, como um dom possuído apenas por uma
minoria de indivíduos afortunados.
Empíricos unidos: testes da “hidráulica” freudiana da psique na psicologia estadunidense
Se
o prazer experimentado diante de um gracejo erótico ou agressivo vem da
liberação da energia psíquica até então mobilizada para reprimir
impulsos inconscientes, o gozo resultante seria tanto maior, supõe-se,
quanto mais alto fosse o montante energético contido pela repressão. Os
psicólogos que se dispuseram a testar tal predição empírica acarretada
pela teoria psicanalítica do riso não encontraram, entretanto, uma
confirmação dela.
O
psicólogo Rod Martin (2006: 38) faz um relato de diferentes
pesquisadores norte-americanos que desenharam protocolos experimentais
de avaliação das hipóteses de Freud. Tais pesquisadores descobriram que
os indivíduos rotulados, por si próprios e por outros, como mais abertos
na expressão de impulsos hostis eram precisamente aqueles que mais se
divertiam com formas agressivas de humor. O mesmo acontecia no que toca à
correlação entre desinibição sexual, de um lado, e nível de prazer
diante da graça de feitio erótico, de outro.
Os
resultados colhidos nesses estudos seriam inconsistentes, portanto, com
a “hidráulica da psique” apresentada por Freud. Aqueles achados soam
mais facilmente explicáveis por uma teoria de condicionamentos comportamentais ou disposições duráveis
fortalecidas por "reforços" vivenciais positivos. Tiradas humorísticas
de conteúdo agressivo ou sexual engendram e reforçam, pela experiência
reiterada, propensões conscientes da mesma natureza. Às vezes,
um charuto é só um charuto; e, às vezes, quem mais ri de uma piada
agressiva é o sujeito mais aberta e conscientemente agressivo.
No
mais, uma perspectiva oriunda das ciências sociais, diante do modelo da
piada como estratagema para a expressão autorizada de temas sujeitos ao
tabu e à censura, pode extrai-lo do plano intrapsíquico e projetá-lo no
próprio domínio da interação social (Mulkay, 1988). Desse ponto de
vista, sobretudo em um contexto “pós-vitoriano”, os indivíduos podem
saber muitíssimo bem, obrigado, o quão intensamente investidos eles são
em preocupações sexuais ou hostilidades pouco nobres. O que esses
indivíduos encontrariam em contextos de piada não seria tanto uma
válvula de escape para confessá-las a si próprios, mas um meio para
partilhá-las com outras pessoas de modos socialmente aceitáveis e menos
disponíveis no discurso normal e sério.
Conclusão
Um/a
psicanalista engenhosa/o poderia muito bem questionar as pesquisas
mencionadas acima. Seja como for, no que toca ao riso assim como a
outras questões relativas à alma humana, não é preciso comprar o sistema
teórico da psicanálise freudiana in toto para reconhecer nele um tesouro de insights valiosos e penetrantes. Dentre os vários desses insights que foram incorporados a perspectivas teóricas distintas sobre a subjetividade humana, podemos mencionar, por exemplo, a ideia de interações cooperativas ou conflituosas entre instâncias “intra-subjetivas” diferenciadas.
Um
leitor que conecte Freud a Machado de Assis e aos moralistas franceses
também reconhecerá o valor analítico da noção de “mecanismos de defesa”:
expedientes pelos quais camuflamos, para nós próprios, alguns dos
traços mais assustadores, mesquinhos, repugnantes etc. de nossas
psiques. A maior parte das abordagens não psicanalíticas que se
apropriam da noção de mecanismos de defesa tende, no entanto, a situar
tais mecanismos não em zonas psicológicas marcadas por rígidas
fronteiras, mas em um continuum cinzento de áreas de consciência, semiconsciência e inconsciência (Elster, 2008).
Finalmente, a tese de que o humor (isto é, o gracejo anestésico ou analgésico, não o sádico) constitui um mecanismo de defesa construtivo,
um recurso psicológico que ajuda os indivíduos a enfrentarem situações
desconfortáveis de um modo “compatível com a saúde mental” (Freud, 1974:
191), goza de ampla credibilidade na comunidade científica.
Por
isso, pedindo desculpas por repetir uma citação poética neste blog,
encerro com um dos meus exemplos prediletos de humor no sentido
freudiano:
“Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
-Diga trinta e três.
-Trinta e três...trinta e três...trinta e três...
-Respire.
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”[i]
(Pneumotórax, Manuel Bandeira [2006: 18]).
P.S.1: Feliz ano novo a você que chegou até aqui! Que ele seja um pedaço importante da vida inteira que ainda pode ser e será!
Aqui vai uma música festiva da gringa cantada por um ruivo talentoso e polimorfo:
P.S.2:
Agradeço a Danilo Manoel Farias e Moisés Mendes, os quais se tornaram,
pela leitura e aprovação deste texto, corresponsáveis por qualquer piada
cringe que você tenha encontrado nele.
Notas
[i] Repare que o poema contrasta a intensificação gradativa da tensão no relato dos sintomas de tuberculose, de um lado, com a evaporação repentina dessa
tensão no último verso, de outro. Eis um dos traços mais frequentes na
retórica humorística, semelhante ao estouro súbito de um balão depois de
uma demorada sessão de lufadas de ar. O contraste entre a longa
narrativa prévia e sua abrupta conclusão cômica ajuda a explicar a
importância do timing na fala humorística: o controle prático
sobre continuidades e pausas no discurso. Nesse sentido, o poema ilustra
um desenlace cômico inesperado não somente pela incongruência em
relação ao conteúdo grave e até trágico dos versos anteriores, mas
também porque o elemento cômico do final não foi sequer sugerido pelo
poeta. Manuel não deu bandeira de que faria piada.
Referências
Berger, Peter. Redeeming laughter: the comic dimension of human experience. New York/Berlin, Walter de Gruyter, 1997.
Bergson, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo, Martins Fontes, 2007.
Billig, Michael. Laughter and ridicule: toward a social critique of humour. London, Sage, 2005.
Elster, Jon. Explaining social behavior. Cambridge, Cambridge University Press, 2008.
Freud, Sigmund. Edição
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol.XXI
(1927-1931): O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros
trabalhos. Rio de Janeiro, Imago, 1974.
________Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. Os chistes
e sua relação com o inconsciente. Rio de Janeiro, Imago, 1976a.
________Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol.XIX (1923-1925): o ego e o id e outros trabalhos. Rio de Janeiro, Imago, 1976b.
________Edição
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol.XII
(1911-1913): O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos. Rio de Janeiro, Imago, 1976c.
Kant, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1993.
Koestler, Arthur. The act of creation. New York, Macmillan, 1964.
Martin, Rod. The psychology of humor: an integrative approach. Elsevier Academic Press, 2007.
Mulkay, Michael. On humor: its nature and place in modern society. New York, Basil Blackwell, 1988.
Schopenhauer, Arthur. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro, Contraponto, 2001.