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segunda-feira, 1 de junho de 2009

ALDEBARAN


Se acaso um dia perguntares onde fica Aldebaran, não esperes que te respondam. E mesmo que alguém entendesse a pergunta, dar-te-ia sempre respostas pragmáticas, com um pontinha de compaixão.
Na verdade, ninguém sabe. E ainda que o soubesse, tê-lo-á esquecido. Perguntarás somente àqueles em cujo olhar brilhar uma luz secreta, trazida das grutas antiquíssimas onde soprámos com ocre vermelho o contorno das nossas mãos.
Das perdas sem remédio a vida soma e segue, mas a cicatriz não deixa de ser cicatriz, por muito que se esconda. Conta-se aquela história do náufrago que, tendo posto o pé em terra firme, achou-se o mais feliz dos homens.
Contudo se, ainda que em Aldebaran não creias, a tua consciência admite a possibilidade, é porque a desejas, e o que quer que faças, ficará doravante sob essa contradição. É o desejo por Aldebaran que subtrai sentido àquilo que na verdade não possui valor algum.
Não sei se isto que digo é falso ou verdadeiro, mas convém acreditar que o movimento não é tudo.
Múltiplos estuários possui o eterno fluir; já reparaste, todavia, que as águas passadas são as primeiras a alcançá-los? Eu sei, eu sei, que a vida é um fio-de-prumo: a casa que erguemos é uma teia opaca pendurada entre duas mentiras. Eu também ignoro onde fica Aldebaran, mas desejo-a desesperadamente quando me sopra um vento de aflição; quando a nostalgia se disfarça de outono no olhar cego das toupeiras; quando o dia amanhece como um cadáver, e a alienação enche as ruas com cardumes agonizantes.
Um destes dias vou partir para Aldebaran. Nada levarei comigo, para além desta humanidade tão nua como no instante em que nasci. Em Aldebaran vou voltar a correr como um garoto, trepar ao cocuruto dos coqueiros e pintar a manta; chapinhar nas marés, rebolar pelas dunas, e cavar um túnel até ao outro lado do mundo. Nenhuma culpa, nenhuma condescendência. Em Aldebaran a ideia corresponde à intenção, e as declarações de amor são absolutamente escusadas. As portas não têm ferrolhos, porque do que eu comer comerás tu. Só encontra Aldebaran quem possuir um coração orgulhoso; é de pé que lá se chega.
Há quem diga que Aldebaran é uma estrela: nas noites sombrias contemplam-na à escuta de um sinal; há quem diga que é uma ilha que várias vezes emergiu e outras tantas desapareceu; há quem diga que não passa de uma miragem e que astuto é aquele que não se deixa enganar. Conforme imagino não é uma estrela ou ilha, mas constelação e arquipélago; uma cidade de pontes sobre canais, por onde navegam todas as diferenças; é Veneza à tardinha, é a Roma da Piazza Navona e Bernini, é a Florença da Ponte Vecchio e Cellini, é o Brasil de Sabará e de Ouro Preto, Barcelona e Granada, Leninegrado, Viena, Delfos, Tróia, o Nilo e o Amazonas; é uma planície comum onde a solidão é coisa do passado; um arvoredo sem muros, uma mão-cheia de amigos à volta de uma fogueira, uma merenda no campo sobre um chão de margaridas, uma mesa redonda onde todos saciam a fome e a justiça, e a palavra perfeita na hora do aperto. Não é, portanto, o outro mundo, mas este, humano simplesmente.
Vou partir um dia destes e, se navegar for preciso, faço-me nómada ou marinheiro, mais de sete são as partidas do mundo. Não há deserto que a águia não vença, nem abuso e violência que não desfaleça nas margens. Eu sei de ciência certa que à entrada de Aldebaran floresce a amendoeira; pelo seu fruto eu pressentirei o segredo da vida nova, a agitação rodopiante das infinitas possibilidades da existência.
Imediatamente se anularão os centros e os círculos, e o filho da noite galopará para mim trazendo a liberdade.
Se chegares do Ocidente, inflecte para Oriente. Quando uma coruja te chamar pelo teu nome verdadeiro, saberás que é a Oriente que a esfinge contempla o nascer do sol.
Não a olhes nos olhos (muitos cegaram por isso): Vê, antes, pelos olhos dela, emergir do sonho os verdes campos da atlântida naufragada.
Um destes dias vou partir para Aldebaran. Levo a mente lúcida como uma página de Diderot. Não há paciência que resista a esta fossa de simulacros e resignações.
Vou de mãos nuas, porque tudo que levasse só me empurraria para trás como um íman.
São tantos os vivos que a esperam e tantos os mortos que por ela morreram, que é mais fácil chegar a Aldebaran do que alcançar Andrómeda.
Vou mas é partir para Aldebaran!
Se me perguntas onde fica, não sei, mas asseguro-te que, sozinho, não a alcanças jamais. É preciso andar muito, mas até os mortos vão ao nosso lado.
Dizes-me, amigo, que tudo isto são palavras apenas? Uma viagem inútil e que a única realidade é aquela que se vê?
Se assim fosse, meu caro artista, porque te empenhas tanto na criação?
Se assim fosse, coração solitário, porque aguardas a madrugada?

1 comentário:

Joaquim Moedas Duarte disse...

Já há muito que por qui não passava. Muito belos, os teus textos!
Vou ficar seguidor. Mereces! Mereço!

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