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segunda-feira, 27 de julho de 2009

O cadáver roubado

Esperava ansiosamente as férias. Uma semana mais e estaria na aldeia natal, abancado à sombra da velha figueira, petiscando lascas de presunto, um cálice de vinho verde fresquinho abençoando a dança das abelhas sorvendo o pólen do roseiral, a erva suculenta que o vitelo estaria a manducar, o mugido das vacas no monte sobranceiro, o grasnido do milhafre sobrevoando os penedos de granito transmontano, e eu desatento ao colesterol, à gripe suína, ao buraco do deficit, ao Freeport e ao nariz do Pinóquio, à pensão a minguar da minha reforma anunciada, aos cortejos dos operários suspensos por enquanto que o despedimento há-de-lhes chegar, às fomes, às mortes e aos lutos…quando a ordem superior chegou:«Firmino, tens um caso bicudo para resolver, os factos estão no fax que vai a caminho!». Merda! Depois de ler o fax murmurei três vezes para me consolar «Merda!». Chamei o Baltazar que logo acorreu: «Ok, Senhor Inspector! Lixaram-lhe as férias não?».
O facto resumidamente era o seguinte: um cadáver desaparecera, ou fora roubado, do cemitério. Dirigimo-nos à morada indicada no fax, uma moradia espampanante em Azeitão. Gente rica. A viúva não estava, recebeu-nos o filho do morto, penteado à futebolista, olhos fugidios e mãos afeminadas. Enquanto respondia às nossas perguntas não lhe lobriguei sinal algum de choros recentes. Perguntado sobre a localização da mãe, meteu os pés pelas mãos, logo imaginei uma viúva gaiteira. Pouco saquei do maricas: que o funeral do pai havia sido há pouco mais de uma semana, tudo nas normas, o caixão depositado no túmulo da família, no dia anterior a esta conversa não se encontrava lá, no seu sítio, isto é, o féretro estava, mas aberto e vazio.
De regresso à Judiciária mandei recolher todas informações possíveis do morto e da respectiva família. Gente poderosa. Banqueiro ele, doméstica a mulher, o filho nada, ou seja, um estroina. Passei a noite, entre goladas de café a meditar, cruzando os fios da meada, roubar um cadáver para quê? Para transplantação de órgãos já não servia, não fora acompanhado para o inferno com oiro e pedrarias como os antigos faraós que despertassem apetite a ladrões, esquemas obscuros para ludibriar as Seguradoras também não via como nem para quê.
Sendo nada mais que um cadáver deixei arrastar o assunto, remeti-o para outro, fui gozar as férias antes que o verão terminasse. Chegou outro verão, outro e mais outro.
Estou sentado debaixo da figueira, uma brisa fresca leva-me as lembranças, as perdas e os lutos. Tenho sobre os joelhos o fax que acabo de ler (informado pelo telemóvel fui à cidade buscá-lo). Sucinto, reza o seguinte:
« O falecido banqueiro Norberto Rosado de Vasconcelos e Sá foi detectado nas Ilhas Caimão, paraíso fiscal como se sabe. Fotografias tiradas por um Director da Polícia que fazia parte de uma comitiva governamental, atestam a veracidade do facto. O cadáver está bem e recomenda-se.»

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