O que é o «Terceiro Estado»?
São os indivíduos que recebem em média salários mais baixos do que os seus semelhantes no distrito de Lisboa e, sendo mulheres, recebem metade dos salários dos homens. São aqueles que recebem dos salários mais baixos da União Europeia, o salário mínimo mais baixo da União Europeia, os trabalhos sem contrato, precários, a termo e a recibo verde.
São cidadãos com direitos iguais aos outros cidadãos segundo prescreve a Constituição da República. Porém, não gozam deles. Nem no interior das empresas, nem fora.
São os desempregados, aqueles que pertenceram ao estado anterior mas que hoje não auferem salário algum.
Permanecem cidadãos? Com certeza, porém perderam o rendimento, perderam a identidade, perderam o gosto de viver, perderam mais alguns direitos.
São os reformados, os idosos, que não sabem como sobreviver com as mais baixas pensões da União Europeia, isolados e não poucas vezes acamados, que vemos tristonhos num banco quebrado de um jardim desleixado, jogando às cartas um destino inexorável com uns tantos companheiros de amarguras.
São cidadãos? Com certeza, porém não gozam de qualquer estatuto, de qualquer protecção, e tão pouco daquela dignidade social que a velhice, as dezenas de anos a produzirem a riqueza para outros, devia ser credora.
Sãos emigrantes de tantas e diversas etnias e regiões do globo, cujo lar é lembrado, cujo pão não sobra.
São os filhos e os netos desses homens e mulheres que, nos infantários e creches, quando os há, não vestem como as outras crianças, não falam como as outras crianças, não brincam com os brinquedos que invejam nas outras crianças, que nas escolas fracassam mais do que os condiscípulos do Primeiro e Segundo Estado, que são submetidos ao mesmo discurso, à mesma cultura, formatados, destinados a reproduzirem o mesmo destino de seus pais, ou um pouco melhor, ou talvez pior, que não sabem o que é um bom teatro, um filme de autor, uma música sublime, que não frequentam aulas de ballet.
O que é a justiça? É dar a cada um aquilo que cada um merece.
O «Terceiro Estado» recebe o que é justo receber? Não. Fazem ou fizeram tudo para o merecerem? Tudo.
O que lhes devemos nós, que não recebemos pensões de miséria, que não labutamos numa fábrica, oficina ou loja, oito, dez, doze horas, sem contrato colectivo, ameaçados pelo lay-off e pelo desemprego, sem direitos de expressão, de organização e de participação na empresa grande ou pequena? Quase tudo.
O que lhes devemos nós, que nos movemos no Segundo Estado como marinheiros num navio que mete água, que não somos analfabetos, que não somos iletrados, que viajamos, que vestimos e consumimos produtos de marca, que temos filhos e netos no Ensino Superior ou a caminho, que frequentamos cinemas, teatros, salas de concerto, que nos tratamos uns aos outros por «Sr. Dr.», «Sr. Engenheiro », «Sr. Isto e aquilo»? Quase tudo: devemos-lhes as casas que habitamos e que eles construíram, as roupas que vestimos e que eles fabricaram, as estradas por onde circulamos com os nossos automóveis reluzentes, e até - porque não? - as salas de espectáculos eruditos e os próprios espectáculos a que assistimos.
O que lhes devem aqueles que estão acima de nós, os do Primeiro Estado, aqueles que espoliam o cérebro e os músculos de homens e mulheres, que se passeiam em iates, que almoçam em Roma e ceiam em Londres, que se utilizam dos off-shores e multiplicam os lucros nas bolsas, que tratam os políticos como súbditos, precisamente aqueles que deviam representar o povo, aqueles a quem o povo que detém a soberania em primeira instância delega representação e poder de representá-lo, defendê-lo, protegê-lo? Tudo.
A quem é oferecida ou vendida a arte, a beleza, o drama, a reflexão? A todos, menos ao Terceiro Estado. E desses «todos», não a todos, mas a uma minoria, a uma elite. O Primeiro Estado consome o que quer, o que gosta, sempre que quer. O Segundo Estado consome o que pode, quando pode. O Terceiro Estado não consome coisa alguma, excepto festivais pimba e tasquinhas nas Feiras. Não conhece, não sabe, não gosta. Poderiam acaso conhecer? Sim, sem qualquer dúvida, se fossem ensinados com boa pedagogia, se dispusessem de dinheiro para pagar, se as artes fossem ao seu encontro e eles ao encontro delas. Leriam bons romances se em petizes lhes soubessem mostrar as maravilhas que um livro encerra e descerra. Exigiriam bons filmes, boas peças de teatro, boas exposições de pintura, bons concertos, se os olhos e os ouvidos houvessem sido treinados. Somente não gosta quem não foi educado para gostar.
O que é a Cultura? É tudo. É um fenómeno social total. O mais total de todos. É a linguagem, a etiqueta, a sociabilidade e a convivência cívica, a compreensão e o saber, o ritual e o credo, a norma e a lei, o papel e a identidade, o gosto e o estilo de vida. É a riqueza da diversidade, do múltiplo e do plural. Do sotaque e do idioma. Da imaginação e da criatividade.
Que merece o Terceiro Estado? Os mesmos direitos de que gozam os outros. Que deveria receber o Terceiro Estado? Tudo aquilo que merece. Melhor: os idosos merecem um tratamento que os jovens não precisam; os pobres merecem uma protecção que os outros dispensam.
Que pode o Terceiro Estado? Poderia muito se pudesse.
Deixem-no chegar à Cultura que solta a voz e o pensamento e o seu brado abalará a tranquilidade do Primeiro Estado.
Nozes Pires
2 comentários:
Um texto vindo de quem olha e vê e nos faz pensar.
Subscrevo as ideias. Admiro a forma!
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