Translate

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Os poderosos

O cidadão fala uma língua desconhecida, como se não tivesse pátria, no seu BI não deve constar a naturalidade, no seu sotaque confundem-se desarmonicamente dois mundos, das grandes metrópoles e das aldeias sem brasão e sem nobreza, os jornalistas correm pressurosos com os gravadores e as câmaras, fingem que escrevem o que não compreendem, pouco importa, é de vital importância fazê-lo ouvir e ver, essa imagem coreografada, essa escassa retórica cujo valor não está no modo como se diz, nem sequer o que diz, mas quem o diz, esse perfil que não disfarça as origens de pés-descalço, o que o torna mais simpático que odioso, bem diferente daqueles banqueiros, os nossos e os dos outros, ornamentados de fatos que custaram mais que um ano de salário mínimo, colocando a voz no registo exactamente idêntico ao dos seus pares, o movimento das mãos controlado, o olhar estudadamente neutro, majestáticos, continuadores da estirpe que frequentava com à vontade o palácio de Versailles nas cortes dos Luíses, nobreza de peruca olhando de longe com indiferença os bairros sombrios e fétidos de Paris, escutamo-los longínquos no ecrã dos nossos televisores tal qual aquela populaça que se acotovelava aos portões do palácio real. O cidadão é igual e é diferente. Pela sua costela popular, ofereceu ao povoléu o que julga que ele merece: a fruição de uma quinta povoada de bonecos de pau e granito, exótica, pós-modernista, inter-culturalista, que o povinho agradece e percorre com os olhos cheios daquela religiosidade que faz vergar os corpos na praça de Fátima. Pela sua costela cosmopolita, vendeu por uma pipa de massa uma colecção de obras de arte que ele foi acumulando da mesma forma como se acumula o capital. E nós vamos apreciá-la como os súbditos acorriam admirativos a deleitar-se com os presentes magníficos que o Sultão recebia dos embaixadores dos reinos dependentes da periferia do império.
Eles são in, nós somos out. Eles foram ex qualquer coisa que já se esqueceu: ex-fascistas, ex-maoístas, ex-estalinistas, ex-marcelistas, ex-comunistas, ex-revisionistas, ex-socialistas ciclicamente socialistas, ex-governantes chamados a governar, ex-generais nomeados administradores, ex-administradores nomeados generais, ex-gestores públicos empregados no sector privado, ex-gestores privados chamados de novo ao sector público, rotativos, sucessivos, dinásticos, insubstituíveis. Quando um cai é porque outro pôs a boca no trombone. Guardam os dossiês em cofres-fortes para a hora certa em que algum escorrega, apunhala nas costas, exagera no desfalque, em que se torna o idiota da família.
Nós também somos ex qualquer coisa: ex-funcionários públicos, ex-operários, ex-existencialistas, ex-estruturalistas, ex-maridos, ex-capitães ou soldados, ex-iludidos, ex-cepto qualquer coisa. Mas estamos out. Champalimaud deixou em herança uma Fundação multimilionária e multi-filantrópica. É um ex-fascista, é um filantropo. Se Salazar voltasse seria ex-ditador acolitado por uma ex-pide. Uma poderosa dirigente política julga urgente colocar a democracia entre parênteses para arrumar a casa, isto é, a democracia é um ex. Excedente.
É um país ex-traordinário. Os espanhóis dizem o mesmo do seu.
Por isso este texto é ex-temporâneo.

1 comentário:

Joaquim Moedas Duarte disse...

Porreiro, pá! (Sem ofensa...)

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.