Foi
a 19 de Março de 2011 que forças militares francesas, britânicas e
norte-americanas, à frente de uma ampla coligação internacional,
iniciaram uma intervenção militar na Líbia. Poucos dias depois, a NATO
passou a assumir o comando das operações, que se prolongaram até 31 de
Outubro desse ano, consumado que estava o assassinato do chefe de
Estado, Muammar Khadafi.
Aspecto da destruição em Bengazi, LíbiaCréditos / Sputniknews
A
intervenção, para a qual foram invocados motivos de ordem humanitária –
a defesa dos civis cujos protestos pacíficos estavam alegadamente a ser
reprimidos na cidade de Benghazi pelo regime de Khadafi –, provocou a
morte a dezenas de milhares de civis e mergulhou o país numa situação de
caos, violência e guerra, que se arrasta até hoje.
A destruição do Estado
Como sublinha Carlos Lopes Pereira num artigo publicado
no final de Setembro do ano passado, «a destruição da Líbia em 2011,
pelos EUA, Grã-Bretanha, França e outros aliados, não foi apenas
militar, ela atingiu fortemente a economia, a organização social e o
próprio Estado», «construído por Khadafi, desde que chegou ao poder, em
1969, quando derrubou a reaccionária monarquia pró-ocidental do rei
Idris e fundou a República».
Lopes Pereira cita Achille Lollo, jornalista italiano radicado no Brasil e correspondente do Correio da Cidadania, para aprofundar a questão da destruição do Estado: «A destruição da Jamahiriya
(palavra que pode ser traduzida como Estado Popular) líbia provocou o
fim dos entendimentos e das relações que durante anos haviam permitido o
funcionamento centralizado de um Estado, com quase 35 tribos, étnica e
culturalmente diferentes, e quase um milhar de clãs familiares.»
Com
a queda do regime, deixou de existir unidade nacional, agravando-se
divisões étnicas «muitas vezes fomentadas e instigadas», e surgiram
centenas de milícias armadas. Para Lollo, a agressão e as ingerências
estrangeiras que se lhe seguiram potenciaram estas divisões, que se
transformaram, «rapidamente, numa guerra civil em função da necessidade
de controlar as refinarias de petróleo, os terminais marítimos de carga,
os oleodutos, os gasodutos ou os campos de extracção e depois negociar
com as multinacionais».
As milícias multiplicaram-se em função dos
ditames das multinacionais europeias e norte-americanas, que, afirma o
jornalista ítalo-brasileiro, «começaram a prometer a compra de
hidrocarbonetos somente a quem conseguia garantir o recomeço da produção
e, portanto, das exportações». A guerra civil agudizou-se,
transformando a Líbia num «não-Estado».
Os motivos eram outros
Jorge Cadima, num artigo publicado no Verão de 2011, e o Conselho Português para a Paz e Cooperação (CPPC), em comunicados que assinalam
o primeiro e o terceiro anos da ofensiva ao país norte-africano,
denunciam o papel que a comunicação social dominante teve na guerra de
agressão à Líbia: «uma enorme campanha mediática de mentiras preparou a
guerra», lembra Cadima; «guerra (…) [foi] preparada e acompanhada de uma
intensa e violenta operação de manipulação mediática sem paralelo»,
destaca o CPPC.
Essa manipulação, levada a cabo por meios de
comunicação social sob controlo do «partido da guerra» e do
imperialismo, teve um papel crucial na criação de uma «barragem de
mentiras», martelando a versão oficial das potências agressoras de que
«um levantamento popular pacífico» fora bombardeado pelas forças do
Estado líbio.
Evitando essa «barragem», ambos os textos, tal como o
de Carlos Lopes Pereira, acima referido, deixam claro que se tratou de
uma guerra de agressão, cujos objectivos passaram pelo derrube do regime
de Khadafi, a destruição do Estado líbio e o saque às imensas riquezas e
recursos do país: as dezenas de milhares de milhões de dólares do seu
fundo soberano, as enormes reservas de petróleo, de gás e recursos
aquíferos, entre outras.
De acordo com os dados divulgados pelas
Nações Unidas em 2010, a Líbia era o país com maior Índice de
Desenvolvimento Humano no continente africano e, pese embora as
contemporizações de Khadafi face às potências imperialistas, afirmava-se
como um Estado soberano, laico e independente, desenvolvendo uma
política pan-africana e relações externas que eram diversas dos
interesses do imperialismo, como salienta Lopes Pereira.
SirteCréditos / EPA/Contrainjerencia
Situação caótica: Obama critica fiéis aliados
Numa entrevista à revista The Atlantic
(edição de Abril de 2016), o presidente norte-americano assumia que a
situação na Líbia é «caótica», uma «confusão», «a shit show». E acusou
os líderes da França e do Reino Unido, seus fiéis aliados, de serem
responsáveis por este desenlace.
A acusação do chefe de Estado da
maior potência imperialista não tem a ver com arrependimento, mas sim
com a falta de empenho do então presidente da França, Nicolas Sarkozy, e
do ex-primeiro-ministro britânico, David Cameron, na sequência do
derrube de Muammar Khadafi.
«Quando me questiono sobre o que
correu mal, há espaço para a crítica, porque acreditava que os europeus,
dada a sua proximidade da Líbia, se empenhassem mais no que viria a
seguir», disse Obama à The Atlantic, antes de acusar Cameron de
andar «distraído com outras coisas» e Sarkozy de querer «exibir os seus
êxitos na campanha aérea». Na perspectiva das potências imperialistas, o
pós-intervenção militar resultou num tremendo fracasso porque não foi
acautelado, e a situação é assumida como caótica.
Relatório britânico sobre intervenção na Líbia
A
Comissão dos Negócios Estrangeiros do Parlamento britânico divulgou, no
dia 14 de Setembro, um relatório sobre a intervenção na Líbia levada a
cabo pela NATO em 2011, no qual o primeiro-ministro britânico da altura,
David Cameron, é acusado de ter cometido graves erros, que «levaram a
que o país se tornasse um Estado falhado e à beira da guerra civil
disseminada».
Mais de cinco anos volvidos sobre a guerra de
agressão à Líbia, uma comissão parlamentar britânica admitiu que «a
intervenção foi mal concebida» e que se baseou em «premissas erradas». O
resultado da intervenção francesa, norte-americana e britânica foi «o
colapso político e económico, a guerra entre milícias e entre tribos,
crises humanitárias e de migrantes, violações generalizadas dos direitos
humanos, a disseminação do armamento do regime de Khadafi pela região e
o crescimento do Estado Islâmico no Norte de África», lê-se no
documento.
O relatório não coloca em causa o direito de ingerência
e agressão – prerrogativa frequentemente usada pela NATO e as potências
ocidentais –, mas assume que, na agressão à Líbia, foram cometidos
«erros» e que David Cameron é responsável por eles. De acordo com o
jornal The Guardian, o ex-primeiro-ministro britânico «culpou o povo líbio por não ter aproveitado a sua oportunidade de democracia».
O
mesmo periódico cita as palavras do presidente da comissão, Crispin
Blunt, que se refere ao debate existente em torno da necessidade da
intervenção militar e dos postulados em que foi executada. Se a ideia
era proteger os civis em Benghazi – tendo por base a mentira propalada
–, esse objectivo foi atingido em 24 horas. «Depois o assunto deslizou
para a mudança de regime e nós não aferimos devidamente aquilo que se
iria passar no caso de ocorrer uma mudança de regime, não conhecíamos
devidamente a Líbia e não tínhamos um plano devido para as
consequências», disse Blunt.
No relatório, lê-se ainda que o
governo de Cameron «não foi capaz de avaliar a ameaça real que o regime
de Khadafi representava para os civis; tomou à letra, de forma
selectiva, alguns elementos da retórica» do chefe de Estado líbio; e
«falhou a identificação das facções islamitas radicais na rebelião. A
estratégia britânica baseou-se em pressupostos erróneos».
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