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sábado, 29 de junho de 2024

 

Uma reportagem que desvenda a guerra no Donbass

– Prefácio de A guerra a Leste: 8 meses no Donbass, de Bruno Amaral de Carvalho

Carlos Branco [*]

Capa de 'Guerra a leste'.

Bruno Amaral de Carvalho conta-nos neste livro as suas experiências de repórter de guerra no Donbass, onde, durante oito meses distribuídos por três «comissões», acompanhou o conflito ucraniano. Esteve praticamente em todos os lugares problemáticos e seguiu os acontecimentos marcantes desses períodos, em particular a batalha de Mariupol. Teve o privilégio de estar no epicentro do maior acontecimento geopolítico do pós-Guerra Fria, determinante na definição dos termos da nova Ordem mundial que aí vem.

Conta-nos o que viu e sentiu num dos lados da guerra, que os media ocidentais pouco seguem e preferem não ver. Foi, em vários momentos, o único repórter a trabalhar para órgãos da comunicação social ocidental nos territórios controlados pelas forças russas. Este facto, por si só, diz quase tudo. Bruno teve a coragem de estar nos sítios certos correndo o perigo associado, ao contrário de muitos outros repórteres que acompanham a situação do quarto ou do átrio do hotel. Visitou prisões, acompanhou os referendos e esteve na central nuclear de Energodar, onde verificou in loco quem de facto a atacava.

Descreve com subtileza e sem alaridos as peripécias e os dilemas humanos de quem foi agrilhoado pela guerra. Partilhou as vicissitudes e as amarguras dos civis. Conta-nos o que é correr riscos, os truques da sobrevivência, a permanente ameaça das minas e dos bombardeamentos, o que é viver no limbo.

Escrever este livro e partilhar a sua vivência é também um ato de coragem, de quem não se amedrontou com os que o tentaram silenciar, e que diariamente jorram verborreia democrática nos canais televisivos. Questiona nas linhas que escreve muitas crenças propaladas pelo mainstream ocidental domesticado e obediente, pouco avesso a interpretações heréticas que perturbem verdades inquestionáveis, que as massas devem disciplinarmente abraçar. As intempéries ajudaram-no a caldear e a fortalecer o espírito.

Este documento proporciona-nos versões dos acontecimentos que escapam à triagem da censura, dá-nos acesso a informação que não dispomos e que não está normalmente ao nosso alcance. Fornece ao leitor dados importantes para poder em liberdade formar o seu juízo. Ficamos mais apetrechados para formularmos as nossas opiniões. É, por isso, extremamente bem-vindo.

Ao contrário do que insistentemente se pretende fazer crer, a guerra não começou em 24 de fevereiro. Bruno constatou isso durante a sua primeira visita ao Donbass em 2018. A guerra civil ucraniana iniciou-se com o golpe de Estado em 2014, patrocinado por potências estrangeiras, que derrubou um presidente democraticamente eleito, e que colocou no poder grupos ultranacionalistas e neonazis, que perseguiram deliberadamente as populações russófonas do Leste e Sul da Ucrânia, proibindo-as de falar a sua língua, professar a sua religião, obrigando-as a negar a sua cultura. O livro dá boa nota desses acontecimentos. O governo provisório entretanto instalado em Kiev após o golpe tinha a «originalidade» de incluir membros pertencentes a grupos assumidamente neonazis, algo inédito na Europa no pós-Segunda Guerra Mundial, sem que isso tivesse suscitado indignação no ocidente.

Nos oito anos que se seguiram aos fatídicos acontecimentos de 2014 não foi possível encontrar uma solução política. Pelo contrário, esse período foi utilizado por Kiev para se preparar para uma confrontação militar, enquanto acossavam a população do Donbass.

Outro aspeto marcante deste livro é o relato da constante morte de civis causada pelos bombardeamentos ucranianos, logo em 2014, e que prosseguiu até à publicação deste livro. A cidade de Donetsk terá sido a mais martirizada, com mortes diárias, perante o silêncio generalizado dos media, como se a vida de uns valesse mais do que a de outros. No ocidente falava-se cinicamente de ataques a civis no oblast de Donetsk, ou seja, na região controlada por Kiev, omitindo sistematicamente os horrores a que população russófona da cidade de Donetsk era sujeita diariamente pelos bombardeamentos ucranianos.

Falamos de ataques deliberados a civis, a locais onde não existiam instalações militares, que os pudessem legitimar. Mercados, hospitais e zonas residenciais eram os alvos prediletos da artilharia ucraniana. A população russófona podia ser morta sem restrições sem que isso merecesse revolta ou condenação. Era descartável! O autor testemunhou muitos destes casos. A morte e o sofrimento de civis no Donbass não eram propaganda.

Apesar de durante oito anos, desde 2014 até fevereiro de 2022, terem perecido 15 mil almas no Donbass, entre civis e militares, os jornais, rádios e televisões ocidentais ignoraram a guerra na Ucrânia, mesmo encontrando-se no território uma missão de monitorização da OSCE.

Ao mostrar «outras versões» dos acontecimentos, Bruno Carvalho desconstrói a narrativa dos «bons» contra os «maus» e deixa a descoberto o novelo de contradições em que está enredada. Isso é muito óbvio no que respeita à vontade genuína das populações russófonas do Donbass lutarem pela independência. Pura e simplesmente não tinham alternativas.

O assédio dos grupos ultranacionalistas de extrema-direita, fortalecidos pelo golpe de Maidan, tornou-se um perigo existencial concreto para as populações russófonas. Por aquelas terras andaram grupos armados de extrema-direita a amedrontar e a aterrorizar as pessoas, como os batalhões Aidar e Azov. Apesar de convenientemente varrido para debaixo do tapete, o neonazismo na Ucrânia não é uma figura de ficção, nem uma criação fantasmagórica do Kremlin.

As críticas do Parlamento Europeu ao florescimento da extrema-direita ucraniana esvaíram-se no dia 24 de fevereiro de 2024. Do dia para a noite, as instituições europeias passaram a apresentar a Ucrânia como uma democracia liberal saudável, contrariando tudo o que tinham dito, ignorando o facto de se tratar de uma autocracia comandada por uma elite imensamente corrupta.

Mais no capítulo pessoal, o livro é bem ilustrativo de como a guerra proporciona encontros e desencontros inesperados, onde se forjam amizades para sempre, se reforça a interajuda e o espírito de corpo; e onde também se vê partir amigos. Mostra como os seres humanos se adaptam e recorrem a métodos expeditos para sobreviver. Como diz o autor, mesmo sem bombas e minas, sobreviver é um milagre.

O detalhe e a minúcia das descrições transportam-nos para a ação. Alimentam o nosso imaginário. Emocionamo-nos com as histórias e com o sofrimento humano que nos é contado.

Um caso flagrante, são os dramáticos acontecimentos de Odessa, na casa dos sindicatos, em maio de 2014, contados por uma protagonista, onde pereceram meia centena de pessoas, algumas queimadas vivas, no rescaldo de Maidan. Mais uma vez, os paladinos dos Direitos Humanos optaram pelo silêncio e por deturpar os acontecimentos, procurando justificar o injustificável. O mesmo raciocínio aplica-se às valas comuns em Mariupol, comprovadas por «convincentes» imagens aéreas. Já era tempo de haver alguma contrição. Algumas descrições trazem-me à memória situações semelhantes às que vivi na Krajina. Uma delas prende-se com a trivialidade da destruição e da morte pela sua presença permanente diante dos nossos olhos.

Apesar da capacidade de o ser humano se adaptar às circunstâncias, algumas deixam marcas. É difícil esquecer os olhos e a expressão de quem nos implora para informar os familiares de que estão bem. «Diga-lhe que estou vivo», não sabendo se quando transmitirmos a notícia ela ainda é verdadeira.

Discretamente, o livro levanta algumas questões inultrapassáveis, como quando nos alerta para a forma expedita como a população se organizou com kalashnikovs e [sandálias] havaianas na linha da frente para lutar por sua própria iniciativa pela independência, o que levou a que fossem batizados de batalhão Somália.

Bruno Carvalho sugere-nos implicitamente duas leituras. Uma relacionada com o cordão umbilical que liga os habitantes do Donbass à Mãe Pátria russa, em que inequivocamente se reveem e buscam abrigo e proteção. O pulsar natural da atração à Rússia. A outra prende-se com o reconhecimento «tardio» das repúblicas independentista por Moscovo, apenas em fevereiro de 2022, tão ambicionado pelas populações do Donbass, cuja demora tantas críticas suscitou. Sentiam-se abandonadas. Desesperavam para que a Rússia entrasse na guerra e lhes estendesse uma mão salvadora.

Ao contrário da Abcázia e da Ossétia do Sul, cujo reconhecimento foi imediato, o Kremlin demorou oito anos a reconhecer as declarações de independência das duas repúblicas separatistas ucranianas. Só o fez quando se tornou claro que Kiev ia assaltar militarmente o Donbass. Até lá, o Kremlin não estimulou, nem alimentou as ambições separatistas, porque preferia uma solução autonómica para o Donbass dentro da Ucrânia, na esperança dos ucranianos virem mais tarde eleger novamente um presidente que respeitasse as ligações históricas da Ucrânia à Rússia. Isso só seria possível se o Donbass fizesse parte da Ucrânia.

Essa ausência de estímulo explica o reduzido apoio militar do Kremlin ao Donbass e os soldados de havaianas. O que contraria a tese de que uma Rússia imperialista, procurando reconstruir o império soviético, instigou a separação do Donbass. O Kremlin viu-se, em última instância, na contingência de ter de defender os seus irmãos russos que estavam a ser atacados por grupos neonazis.

Em grande medida, os relatos trazidos à colação por Bruno de Carvalho dão a entender, como dizia Saramago, que vivemos numa «democracia sequestrada, condicionada e amputada». Sem o fazer explicitamente, chama-nos à atenção que há um longo caminho ainda a percorrer nas nossas sociedades em matéria de democracia. Apontar o dedo às autocracias sem atentar ao que nos rodeia significa não perceber o mundo em que vivemos. Este livro ajuda a colmatar essa lacuna.

Do mesmo autor:

·  Biden e a perigosa ausência de um plano B,   27/Jun/24

[*] Major-General.

O original encontra-se em A guerra a Leste: 8 meses no Donbass

Este prefácio encontra-se em resistir.info


quinta-feira, 27 de junho de 2024

 O vício é a tal homenagem à virtude

 

   O grande dilema para aqueles que não querem o socialismo experimentado, nem o capitalismo comprovado há dois séculos, é descobrir outra alternativa. 

Deixe-se a descoberta à experimentação? à chamada "prática"? Ao devir dos acontecimentos que geram outros acontecimentos, sem modelos a priori?

Mas, então, como agir politicamente sem um programa estratégico?

Parece-me que o dilema capitalismo/socialismo é apenas fonte de confusões e arma de arremesso, divisão hostil. Os partidos auto designados socialistas (o PS português ou o francês) nada tiveram alguma vez a ver com socialismos em chave teórica e muito menos prática. Portanto, o termo antagonista "socialismo" é ambíguo, uma invenção das alas moderadas ou moderadoras do capitalismo. Julgo que esta afirmação é tão comprovada que é já uma banalidade. Por outro lado, os socialismos "realmente existentes", ou seja, os modelos que se auto designaram de socialistas, passaram mais depressa ou mais devagar a mostrar os vícios imanentes da falta de democracia (governo do povo pelo povo ,para o povo, com o povo), vícios que começam por serem visíveis logo no funcionamento do "centralismo" (orgânica interna) dos partidos que se reivindicam de comunistas e eclodiram exuberantemente na completa privatização e planificação da economia sem as maduras condições objetivas internas e externas, na censura sectária e securitária aos direitos de informação e de expressão, na violência da repressão e vigilância permanente por uma polícia política (aspetos absolutamente incompatíveis com o marxismo de Marx e Engels e com as liberdades políticas e culturais). Não vale a pena sequer lembrar que vícios têm-nos também os Estados do capitalismo e os partidos respetivos da Direita. Aqui os vícios derivam rapidamente para o fascismo e outras formas de autoritarismo.

(Os partidos comunistas necessitam de uma organização diferente para desenvolverem atividade diariamente e em todas as frentes na prossecução dos seus programas revolucionários. É a esta forma de organização - centralismo-democrático - que se aplica a expressão "Leninista". )

Aquele que não quer o passado, embora reconheça nele atos de imenso heroísmo e muitas façanhas notabilíssimas (a URSS, por exemplo, prova-as bem a quem não tiver palas nos olhos!), que lhe resta pois?

A utopia. É esta solução (?) que se cultiva sobretudo nos desaires e crises, e nos países onde sempre se mostrou impossível a revolução socialista pugnada por uma escassa minoria, ainda que esta fosse meritória a todos os níveis (a Grã-Bretanha e os EUA por exemplo).

Ou um programa de economia mista, que não afronte demasiado o sistema capitalista imperialista (e se proteja juntando-se a outros na mesma situação), e com garantias práticas (não apenas constitucionais) de respeito pelos direitos políticos individuais e coletivos.

No entanto, nesta solução coloca-se a interrogação capital : quem governa? quem controla o poder central? 

Se vier a ser uma coligação de partidos de esquerda, pode vir a suceder pelo menos, que alguns dos vícios apontados nos partidos comunistas não se manifestem (não convém de todo numa coligação!). 

Todavia, ou então a crise é tão profunda que uma coligação de esquerda (divergente no seu seio) aceita reformas profundas de salvação e aceita unanimemente usar todos os meios coercivos para se defender dos inimigos internos e externos. Nesse caso os abusos voltam inevitavelmente. Talvez que mobilizando permanentemente as massas populares (como mobilizá-las permanentemente se a economia tem que funcionar permanentemente ?), comunicando corretamente, criando condições de participação em todos os lugares e tempos, construindo comunas e outras instituições de crítica e fiscalização, se diminuam os inevitáveis. Talvez. Ma se a utopia é bem bonita, a ilusão não o é.

   Exemplos negativos :

   A URSS que se defendeu dos inimigos internos e externos (inventando alguns inimigos internos, como sucede sempre nessas situações de cerco e guerra quente ou fria) recorrendo a meios repressivos intoleráveis e anti democráticos , ou anti socialistas se preferirmos. Certamente que as causas da sua implosão foram mais complexas do que unicamente o cansaço ou desagrado popular (as sondagens à época não pareceram confirmar estes sentimentos). 

  A orgulhosa e digna Cuba, que, sobretudo após a implosão da URSS, viu o seu modelo de privatizações e estatização falhar completamente. Hoje apenas resiste aos apelos das sereias. Esperemos que não as oiça. E encontre uma saída democrático-socialista para o desenvolvimento e forneça a vida boa que o povo tanto merece.

E aquele que não quer de modo algum qualquer forma de capitalismo, isto é, de empresas nas quais boa parte do lucro é conseguida através da exploração da força de trabalho e, portanto, será sempre necessário que haja alguém que não possua nem controle mais nada senão a sua força de trabalho e que não tenha mais nada para subsistir senão vendê-la por um salário?

A esta alguém só lhe resta aguardar pacientemente que o cooperativismo floresça em toda a parte, que um Estado social proteja quem trabalha para o bem comum e que o trabalhador, seja qual for a profissão, participe nos planos da empresa e no controlo da produção e distribuição. E que não espere que tal se realize amanhã pela manhãzinha.

sexta-feira, 21 de junho de 2024


O primarismo da manipulação está ao nível da propaganda salazarista, quando os comunistas «comiam criancinhas» e se «viam livres dos velhos com injecções atrás da orelha». Mesmo assim, a manobra inspirada em Goebbels continua a fazer o seu caminho.

Há situações na sociedade da «democracia liberal» capazes de atingir picos de absurdo e de falta de pudor político que esgotam a paciência do mais pacato dos cidadãos.

Situações que podem ser fruto do vício político-económico-mediático de confundir o desejo com a realidade; da necessidade de praticar plenamente a ditadura económica neoliberal num quadro de fascização política; de um costume tão enraizado que os praticantes nem dão por ele – um comportamento pavloviano; ou situações que correspondem, nas suas versões mais trabalhadas, ao cumprimento estrito das orientações disseminadas pela miríade de centrais de propaganda política e militar imperial, colonial e globalista.

Não sou militante comunista; circunstâncias que não vêm ao caso fizeram com que assim seja, enquanto sigo o meu caminho profissional de referência, o de ser politicamente incorrecto. Isso não significa que não ache legítimo e compatível com a independência jornalística a opção de militância de um bom número de camaradas, por sinal os principais exemplos do bom jornalismo que ainda se pratica.

As recentes eleições europeias podem ter sido a gota de água, a rotura do limite pessoal de paciência. Talvez porque no meio do aparato circense próprio das campanhas eleitorais do regime, formatadas para ensinar ao povo o que o povo deseja sem o saber, tenha sido possível, em alguns debates e no meio de tanta imbecilidade, tomar o pulso ao nível de irresponsabilidade e de repulsa pela decência da sociedade política em que vivemos.

Esporadicamente vieram à tona alguns temas que têm a ver com a vida quotidiana e até com a própria sobrevivência da humanidade – embora isso não seja inquietação maior da nossa belicosa classe política.

Falou-se de guerra, mas evitou-se o perigoso tema da paz, cuja defesa pode até acarretar acusações de traição à pátria; prestou-se a indispensável vassalagem à União Europeia, fugindo como diabo da cruz da impossível conciliação entre soberania nacional e federalismo; discorreu-se sobre as  ameaças da extrema-direita com a prestável colaboração da extrema-direita lusitana, que afinal nada tem a ver com a extrema-direita nem com as heranças de Pinochet e Salazar; recitaram-se os habituais mantras das alterações climáticas, embora não tanto como os «ecologistas» à moda da sueca Greta e seus patrões Gore, Gates, Soros e o fascista Schwab do Fórum Económico Mundial desejariam; e consagrou-se a NATO, essa fábrica de heróis que, depois do engano de 25 de Abril de 1974, nos devolveu às guerras coloniais e poderá até levar jovens portugueses a «defender a pátria» na Ucrânia. Salazar mandava: «a pátria não se discute»; o regime de democracia liberal ordena: «a NATO e a Ucrânia não se discutem». E cá vamos, cantando e rindo.

Por vezes, nunca com prioridades, afloraram-se temas, dir-se-iam marginais, como os salários ínfimos dos portugueses, a situação dos trabalhadores (e não colaboradores), tratados pela União Europeia como potenciais escravos, a tragédia, igualmente escravocrata, do trabalho precário, de como a educação vai mal, a habitação pior, a saúde péssima.

Com a lógica própria do espírito de campanha, esses assuntos foram sempre impertinentes, ou mesmo abusivamente levantados por uma única força política e abafados tão depressa quanto possível pelas impaciências de quase todos os participantes e as urgências cronométricas dos moderadores.

A única força política que a tal se atreveu foi o Partido Comunista Português, em boa verdade a CDU – mas permitam-me os autênticos e legítimos Verdes e esse espelho de democracia que é a Intervenção Democrática que agora me foque principalmente no PCP, do alto dos seus 103 anos de luta pela liberdade, a democracia e pela soberania nacional; demonstrando que o combate pela democracia é inseparável da luta antifascista, correlação de que a classe política não pode ouvir falar.

«Salazar mandava: "a pátria não se discute"; o regime de democracia liberal ordena: "a NATO e a Ucrânia não se discutem". E cá vamos, cantando e rindo.»

João Oliveira, pela sua maior exposição mediática como cabeça de lista, mas também os outros candidatos da CDU, levantaram os problemas reais dos portugueses, esclareceram, desmontaram a hipocrisia dominante e governante. Fizeram-no dentro de condicionalismos, muitos deles ilegais, sobretudo no que diz respeito aos comportamentos mediáticos. Apesar disso, João Oliveira conseguiu fazer-se ouvir, não se deixou intimidar, meteu na ordem adversários que não sabem o que é debater ideias e até moderadores treinados nos mais primários tiques anticomunistas. Como disse lucidamente João Ferreira, na noite eleitoral na RTP, já é mesmo preciso ter coragem e um indomável espírito de combate para enfrentar o aparelho que montou e impõe ferreamente uma opinião única cuja contestação é silenciada, caluniada e até perseguida segundo os cânones autoritários da democracia liberal – isto é, neoliberal, o fascismo económico.

Inimigo a abater

O PCP foi sempre o alvo mais cruelmente perseguido pelo salazarismo; e agora continua a ser vítima de uma sanha que Oliveira Salazar não desdenharia, um inimigo a abater, um problema a liquidar para que a providencial democracia liberal deixe de ser incomodada.

Os comunistas portugueses lutaram 53 anos sob o regime fascista. Foram lançados nas masmorras, torturados, perseguidos, assassinados durante décadas negras sofridas pelo povo português. O PCP ajudou a juntar forças e a fazer avançar a consciência antifascista e da paz nas entranhas da guerra colonial. 

«João Oliveira conseguiu fazer-se ouvir, não se deixou intimidar, meteu na ordem adversários que não sabem o que é debater ideias e até moderadores treinados nos mais primários tiques anticomunistas.»

Que me perdoem os heróicos militares revolucionários, mas o PCP foi determinante para o apodrecimento e queda do fascismo, foi essencial para a fulminante adesão popular que complementou, deu alento e consolidou a vitória do movimento militar. Tudo fez, e faz, para que ainda se mantenham conquistas revolucionárias, apesar do novembrismo revanchista, desde logo contribuindo para que este não consumasse plenamente o regresso ao passado, como desejaram os que cavalgaram o golpe guiados pela máquina de conspiração norte-americana, da NATO e seus aliados internos.

A legalização do PCP e a libertação dos presos políticos foram, em si mesmas, vitórias populares, conquistas de Abril. Desengane-se quem pensa que eram dados adquiridos com a queda do fascismo. Sectores «continuistas» como os spinolistas tentaram travar e anular o movimento popular à partida, procurando estabelecer uma «democracia» sem o PCP, que não deixaria de ser uma «democracia ocidental», uma democracia liberal como se usa agora dizer. Já em pleno marcelismo circulara a ideia de uma hipotética «transição» com alguns partidos, mantendo ilegal o PCP.

Em paralelo, hoje há na classe política quem sonhe em afastar o PCP de todos os órgãos de poder, designadamente da Assembleia da República e do Parlamento Europeu. Na recente campanha valeu tudo, até fazer eco, como aconteceu com a agência Lusa, de uma publicação atlantista e imperialista, Politico, que identificou os eurodeputados comunistas entre os «maiores amigos de Putin».

Nos centros de decisão da democracia liberal não há muito pudor em excluir o Partido Comunista da intervenção directa nos mecanismos de poder. Reduzi-lo a um partido não parlamentar já seria uma grande vitória para o fascismo em ascensão, sintonizado com a tradicional política da NATO. E o espectro político, do Bloco de Esquerda ao Chega, que considera «democrático» e «civilizado» o regime nazi-banderista da Ucrânia, que começou por ilegalizar o Partido Comunista até suprimir mais de uma dezena de organizações políticas opositoras, não manifestaria incómodo se os comunistas portugueses desaparecessem dos parlamentos onde estão representados. 

No entanto, a História demonstra que o PCP lutou, implantou-se, não se deixou abater e cresceu durante 53 anos sem ter qualquer deputado nem poder actuar à luz do dia. 

A NATO, como já não é segredo, tem organizações clandestinas, como a Gladio, cuja função é impedir que os partidos comunistas da Europa intervenham nos centros governamentais de decisão. A violação dessa norma compulsória, por exemplo, esteve na origem do assassínio do primeiro-ministro democrata-cristão italiano Aldo Moro, em 1977.

Fazer sumir o PCP dos assentos parlamentares não é mais do que uma aplicação simples da ordem atlantista. Os ferrenhos da NATO prefeririam a ilegalização, mas vê-lo fora das instituições já seria uma enorme vitória.

«A NATO, como já não é segredo, tem organizações clandestinas, como a Gladio, cuja função é impedir que os partidos comunistas da Europa intervenham nos centros governamentais de decisão. A violação dessa norma compulsória, por exemplo, esteve na origem do assassínio do primeiro-ministro democrata-cristão italiano Aldo Moro, em 1977.»

Comentadores, analistas e académicos equipados com tapa-olhos, como as mulas e burros que puxam as noras, escandalizam-se com o facto de o PCP ser contra a NATO, um pecado lesa-pátria, lesa-civilização ocidental, lesa-democracia liberal. No entanto, os comunistas não poderiam ter outra posição, porque conhecem as lições do passado tão bem como as do presente. Não esquecem que o fascismo salazarista foi parte fundadora da Aliança Atlântica, distinção que deu gás suplementar ao regime quando ele tremia como varas verdes depois da derrota de Hitler e no turbilhão democrático do fim da Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, aplicando o velho dito popular «amor com amor se paga», se a NATO combate o PCP, natural é que o PCP seja contra a NATO. Mas há mais: a esquerda onde o PCP se enquadra repudia a «ordem internacional baseada em regras» como um embuste ocidental para não respeitar o direito internacional; e defende a negociação e a paz como os princípios dos princípios para buscar a solução de qualquer conflito, enquanto os atlantistas dão prioridade à guerra para que no final seja encontrada a «paz».

Ao nível de «comer criancinhas»

Em todas as campanhas eleitorais a estratégia anticomunista vai sendo apurada ao ritmo da fascização do meio político, no interior do qual foram outorgadas chancelas «democráticas» anticonstitucionais a organizações retintamente salazaristas. O desenvolvimento do fascismo, porém, acelerou-se desde que se iniciou a guerra na Ucrânia – em 2014, não em 2022.

O processo gradual de imposição da opinião única neoliberal graças à acção conjunta do poder económico, da classe política e do aparelho mediático de propaganda criou o dogma de que os pontos de vista dissonantes da NATO e da União Europeia representam uma adesão às teses do inimigo, uma identificação com o diabo de estimação, Vladimir Putin, incarnando agora a «ameaça russa», tal como em seu tempo acontecia com o regime soviético. 

Ora, alguma vez pode ser levada a sério ou faz algum sentido a acusação de que o PCP, um partido que defende o socialismo e luta pela erradicação do capitalismo, pode apoiar um sistema que está nos antípodas dos seus princípios de luta, um regime capitalista oligárquico, assente numa tradição retrógrada e no fundamentalismo cristão ortodoxo, como o chefiado por Vladimir Putin? O primarismo da manipulação está ao nível da propaganda salazarista, quando os comunistas «comiam criancinhas» e se «viam livres dos velhos com injecções atrás da orelha». Mesmo assim, a manobra inspirada em Goebbels continua a fazer o seu caminho.

O Partido Comunista é sempre o «inimigo interno», sequela da «caça às bruxas» praticada pelo macarthismo norte-americano, uma «quinta coluna» que precisa de ser removida para que o país cumpra, sem estorvos de maior, a sua política de guerra na Ucrânia, a cumplicidade para com as atrocidades do sionismo na Palestina, as sanções criminosas contra os povos de países indisponíveis para se acomodarem à canga colonial e imperial.

«O processo gradual de imposição da opinião única neoliberal graças à acção conjunta do poder económico, da classe política e do aparelho mediático de propaganda criou o dogma de que os pontos de vista dissonantes da NATO e da União Europeia representam uma adesão às teses do inimigo, uma identificação com o diabo de estimação, Vladimir Putin, incarnando agora a «ameaça russa», tal como em seu tempo acontecia com o regime soviético.»

Salazar e Marcello Caetano sentenciavam que «quem não está connosco está contra nós». A democracia liberal ordena da mesma maneira: quem defende a paz e o diálogo na Ucrânia, quem sempre se bateu, ao longo de mais de 70 anos, contra o colonialismo sionista e pela liberdade do povo palestiniano, está o lado de Putin e do Hamas, isto é, contra nós.

Como tal, há que apontá-lo a dedo na praça pública, fazer tudo, até desprezar a Constituição e as leis eleitorais, para o maltratar e vilipendiar. Há que manipular, mentir, difamar, caluniar, silenciar ou deturpar as suas posições, criar uma imagem de pária que está a mais na política e que serve para perturbar a tão idílica harmonia nacional – todos com a União Europeia, todos com a NATO. 

O fascismo económico neoliberal tem no fascismo político o seu cenário de sonho. Um passo significativo nessa direcção é o cavalheirismo com que a classe política do burgo aceitou a integração e os horizontes governamentais da Iniciativa Liberal e do Chega. Naturalmente, ambos vieram engrossar e reforçar as hostes da guerra contra o PCP: no regime de Pinochet, inspirador dos bem-falantes do fascismo Armani, o Partido Comunista foi proibido e perseguido, os seus militantes e simpatizantes fuzilados no estádio nacional e muitos continuam dados como «desaparecidos»; no salazarismo que serve de referência a Ventura e sequazes, o PCP estava na clandestinidade; e, mesmo já legalizado, não foi poupado à destruição de dezenas de centros de trabalho conduzida por grupos terroristas nos quais se destacaram criminosos que hoje são honrados e venturosos deputados da República.

Ao mesmo tempo que, depois da porta impudicamente aberta pelo Tribunal Constitucional, a classe política acolheu fraternalmente a chegada dos grupos fascistas, a comunicação social e aparelho de propaganda da democracia liberal empenhou-se em passear o Chega e a Iniciativa Liberal ao colo, promovendo-os inicialmente como coisas curiosas e «interessantes» num cenário político estagnado e monótono; e agora como fortalezas do regime, intrépidos apoiantes e praticantes da opinião única, juízes com direito pleno na campanha terrorista contra o PCP. Principalmente quando se trata da guerra da Ucrânia, onde Zelensky é um irmão do peito que dá asas a grupos nazis em toda a Europa; ou da situação na Palestina, em relação à qual as duas variantes do neo-salazarismo se comportam como genuínos militantes do terrorismo sionista – com toda a legitimidade, porque se trata de uma variante do fascismo.

As esquerdas que também colaboram

À esquerda, a pulverização política esquerdista serviu sempre o anticomunismo, porque muitos dos grupos que proliferaram a seguir ao 25 de Abril, hoje fundidos nas organizações mais reaccionárias, desempenharam a preceito o papel atribuído e claramente exposto, por exemplo, na criação de condições propícias ao reviralho de 25 de Novembro de 1975.

Ainda que hoje o panorama seja diferente – apesar de continuarem perceptíveis no PS algumas manifestações doentiamente anticomunistas – a esquerda parlamentar, incluindo grupos que confundem a esquerda com o palrar dos chefes e se derretem com as simpáticas palmadinhas nas costas prodigalizadas pelos media e pela classe política, cumpre a sua parte no anticomunismo.

Uma das estratégias das esquerdas não-comunistas ou anticomunistas que mais serve os interesses do capitalismo neoliberal é a fragmentação das causas que dizem defender, multiplicando focos de luta em vez de incidirem sobre o essencial, isto é, a defesa da paz, a denúncia da guerra e de todos os negócios que dela tiram proveito, a verdadeira salvaguarda dos direitos humanos – de todo e qualquer ser humano – o respeito pelo trabalho e os trabalhadores, o combate sem tréguas contra as desigualdades, em suma, o foco centrado na luta sem descanso pela transformação progressista da sociedade e contra o capitalismo.

O PCP trabalha e combate nesse sentido, porque das causas centrais derivam todas as outras, nenhuma das quais se resolve isoladamente sem alterar profundamente as estruturas sociais e desmantelar o capitalismo. Além disso, clarifica e defende o conceito de liberdade tal como está implícito nos objectivos e conquistas do 25 de Abril: uma liberdade para as pessoas e que deve sobrepõe-se sempre às «liberdades» do mercado, das empresas, do dinheiro.

O racismo é uma doença social inerente ao capitalismo, tal como a marginalização das minorias, o desrespeito pelos direitos da mulher, apesar de inscritos nas leis; o mesmo acontece em relação ao ambiente e às alterações climáticas, à salvaguarda dos animais e da vida selvagem, à segurança alimentar, ao tratamento humanizado e igualitário das migrações e dos migrantes.

O capitalismo, isto é, a «nossa» democracia, garante que tem soluções ambientais mágicas e resolverá o drama das alterações climáticas, mas agrava quotidianamente a situação e gera ainda mais fortunas com os «novos» negócios «verdes». Não existem quaisquer sinais, no regime em que vivemos, do retrocesso de doenças como o racismo e a xenofobia ou os preconceitos contra a comunidade LGTB+ – pelo contrário, avançam a ritmo alarmante. Por muito que as leis os garantam e as quotas sejam tratadas como uma ideia genial, os exemplos de violação dos direitos das mulheres são constantes. Em relação aos movimentos migratórios, ao respeito pelos direitos e a integração social dos migrantes basta olhar à nossa volta e passar os olhos pelas notícias. O problema continuará a agravar-se, com consequências imprevisíveis, porque a idolatrada NATO cria e alimenta guerras sem fim, gerando intermináveis vagas de refugiados em todo o mundo.

«O racismo é uma doença social inerente ao capitalismo, tal como a marginalização das minorias, o desrespeito pelos direitos da mulher, apesar de inscritos nas leis; o mesmo acontece em relação ao ambiente e às alterações climáticas, à salvaguarda dos animais e da vida selvagem, à segurança alimentar, ao tratamento humanizado e igualitário das migrações e dos migrantes.»

As esquerdas das causas fraccionadas não são transformadoras, não ameaçam o capitalismo, não travam nem invertem os sentidos sociais mais negativos, com a agravante de baralhar prioridades, cultivarem a confusão, dispersarem esforços quando a delicadeza e profundidade dos problemas exigem união, organização e convergência de esforços, não a mesquinhez de a «nossa» causa ser mais importante do que todas as outras. E, não poucas vezes, essas esquerdas, sejam falsas ou fofinhas, tão acarinhadas pela trapaceira indústria mediática, servem a classe dominante nas suas campanhas contra os comunistas.

A recente campanha eleitoral exibiu-nos um Livre cheio de ecologias e ademanes de esquerda ao mesmo tempo que defende o fundamentalismo federalista europeu. Ora o quotidiano da União Europeia não deixa dúvidas: ou se é de esquerda ou se é federalista. O federalismo, aliás, é aplicado sub-repticiamente, com as conhecidas e desastrosas consequências para o povo português, mas essa responsabilidade não tem o Livre a coragem de assumir.

O Bloco de Esquerda mantém um flirt com a NATO. As simpatias com o regime de Kiev, que proíbe partidos, assumiu uma censura oficial, restringe o direito à opinião livre e faz circular uma lista à mercê de bufos com os nomes de opositores a liquidar, não traduzem uma escorregadela ocasional. A incapacidade para assumir que a situação na Venezuela é essencialmente uma consequência das asfixiantes e desumanas sanções norte-americanas e da União Europeia; a atracção pelo federalismo europeu; a cumplicidade com o comportamento ocidental destruidor na Síria; e a posição carregada de ambiguidade em relação à operação criminosa da NATO para destruição da Líbia, e que abriu as portas de sucessivas vagas de refugiados em direcção à Europa, identificam um comportamento padrão: afinal, a coerência não é o forte dos bloquistas.

«O Bloco de Esquerda mantém um flirt com a NATO. As simpatias com o regime de Kiev, que proíbe partidos, assumiu uma censura oficial, restringe o direito à opinião livre e faz circular uma lista à mercê de bufos com os nomes de opositores a liquidar, não traduzem uma escorregadela ocasional.»

O PAN, que não sabe muito bem onde se situa no quadrante político, acha meritoriamente, pela voz do seu ex-candidato europeu, que a guerra é uma coisa má porque afecta o meio ambiente e os ecossistemas. A morte de centenas de milhares de pessoas parece ser um inconveniente colateral.

Esquecer as pessoas, desprezar a sua qualidade de vida, os seus direitos humanos sociais e políticos, a afirmação plena da sua dignidade através da saúde, de habitação condigna, de trabalho e salários decentes, da educação e cultura livres, abertas, sem censuras e propiciadoras de elevados índices intelectuais; a negação de condições de segurança e de verdadeira fruição da vida durante o processo de envelhecimento – tudo isto representa a essência do capitalismo. A relação entre o capitalismo e o ser humano é como a da água com o azeite – a incompatibilidade por definição. As esquerdas não-comunistas não são, na prática, anticapitalistas.

O povo tem onde apoiar-se

O PCP actua e luta nos antípodas do cenário próprio da sociedade capitalista, agravado quando a versão fundamentalista neoliberal se expande com ambições globalistas. O PCP é o principal alvo a abater, a alavanca popular capaz de emperrar a máquina trituradora patrocinada por todo o dinheiro disponível no mundo, a voz que nem o salazarismo silenciou.

Por muito que a classe política se desdobre em manobras legais e ilegais para o neutralizar; que a teia mediática propagandística multiplique as mais deslavadas mentiras e as mais vergonhosas calúnias; por muito que os poderes de Estado permitam, fiquem  insensíveis e silenciosos quando esbirros estrangeiros em Portugal ao serviço do nazi-banderismo de Kiev reclamam a sua ilegalização, a exemplo do que fizeram no seu país, o PCP não se intimida, resiste e não deixa o povo desamparado sob os ataques cerrados do autoritarismo conjugado da União Europeia, NATO e outras centrais do imperialismo. Prossegue dia-a-dia, sem esperar pelos circos das campanhas eleitorais, o seu trabalho de formiga esclarecendo, informando, alentando, unindo, organizando, mobilizando, lutando em todas as frentes sociais e políticas, como quem faz acção cívica de cidadão a cidadão para que a democracia liberal, corruptela e cemitério das esperanças libertadas com o 25 de Abril de 1974, entregue de vez a alma ao criador; e seja substituída por uma genuína democracia participativa, antifascista, respeitadora da Constituição e das autênticas liberdades, onde o povo, livremente informado e esclarecido, seja quem mais ordena. Pode parecer impossível, mas as ruas e praças do país encheram-se num ápice quando os corajosos e inesquecíveis cidadãos fardados do MFA avançaram para derrubar a besta fascista, feito histórico em que muitos não acreditavam. 

O povo que fez o 25 de Abril continua, contudo, a ser vítima das famílias oligárquicas, agora ainda mais poderosas, com a cumplicidade de uma classe política usurpadora e que odeia as pessoas. Nada nos convence, porém, que seja impossível, num mundo dinâmico e em mudança permanente, voltarmos a viver novos dias das surpresas. O PCP, independentemente das circunstâncias e das perseguições, continua a cumprir a sua tarefa; os mais desfavorecidos, apesar do poder de uma propaganda tóxica de alcance global, saberão sempre onde apoiar-se. É assim há 103 anos.

sábado, 8 de junho de 2024

CUBA : QUE FAZER?

 Raúl Castro assiste ao tradicional desfile do Primeiro de Maio na Praça da Revolução em Havana, Cuba, 1978. (Francois Lochon / Gamma-Rapho via Getty Images)

O legado de Raúl Castro

Tradução
Mauro Costa Assis

O ex-guerrilheiro e revolucionário cubano Raúl Castro nasceu neste dia em 1931. Ao longo de sua carreira, dois estereótipos enganosos distorceram nossa visão sobre ele, que não era nem uma sombra pálida de seu irmão, nem um ideólogo pró-soviético, mas uma importante figura histórica que desempenhou um papel fundamental na formação do sistema cubano para, em seguida, reformá-lo.

Em 19 de abril de 2021, o Oitavo Congresso do Partido Comunista Cubano finalmente encerrou a era política dos Castros ao eleger Miguel Díaz-Canel Bermúdez, presidente nacional desde 2018, como o novo primeiro secretário do partido. Essa mudança ocorreu após a confirmação de Raúl Castro, em 16 de abril, de que ele se retiraria após dois mandatos consecutivos, conforme havia prometido em 2011.

Embora não tenha sido nenhuma surpresa que Raúl tenha cumprido sua promessa, já tendo feito o mesmo com a presidência cubana em 2018, sua saída teve importância simbólica, encerrando a “geração histórica” de ex-guerrilheiros rebeldes em posições de autoridade. Então, neste momento de transição, o que devemos pensar dos anos de Raúl no poder e de sua importância geral na trajetória e no formato da Revolução Cubana de 1959 em diante?

Lendas dinásticas

As reações da mídia mundial à mudança do partido eram previsíveis, principalmente descartando Raúl como o irmão mais novo de Fidel e a sombra, e vendo sua liderança dentro da estrutura enganosa de uma dinastia Castro ao estilo da Coréia do Norte. De fato, em 2008, quando a Assembleia Nacional elegeu Raúl como presidente, a noção de “dinastia” era apenas a mais recente de uma longa linha de estereótipos que se acumulou a partir do início dos anos 1960 sobre a Revolução Cubana e sua liderança.

Esses estereótipos tendiam então a ver a revolução como uma tomada popular do poder por um caudilho supostamente típico e carismático da América Latina – começando cinco décadas de foco obsessivo na pessoa de Fidel – ou como um igualmente típico satélite comunista soviético ligado ao marxismo-leninismo. Ambos os conjuntos de suposições ressurgiram no período de 2006-8, quando Fidel adoeceu e “entregou” o poder a seu irmão, e novamente em abril de 2021.

Aqueles que fizeram essas primeiras suposições não perceberam que a revolução como um processo havia começado em 1959, encerrando a rebelião anterior contra o governo de Fulgencio Batista. Foi uma iniciativa amplamente popular para iniciar um processo de construção da nação para um estado que, depois de suportar o domínio colonial espanhol por cerca de oitenta anos a mais do que o resto da América espanhola, se tornou uma neocolônia formal dos Estados Unidos.

Os Estados Unidos condicionaram a independência cubana formal em 1902 à inclusão na Constituição cubana da Emenda Platt, que restringia sua soberania como Estado-nação por pelo menos trinta anos. Washington então supervisionou mais vinte e cinco anos de hegemonia econômica e política. Em 1959, a construção da nação ainda era algo a ser alcançado, e a maioria dos cubanos sabia disso – os rebeldes certamente sabiam. A única pergunta era “como?”

Em última análise, a resposta veio das próprias tradições de dissidência radical de Cuba – como visto na fusão de nacionalismo e socialismo que podia ser encontrada na negligenciada Constituição de 1940 do país – e do discurso prevalecente de anticolonialismo no mundo descolonizante: a saber, através de alguma forma de socialismo. No entanto, isso ainda deixava a questão de que tipo de socialismo deveria ser.

A emergência de Raúl

Foi aí que Raúl Castro entrou em cena, como uma das figuras-chave na adoção pela liderança cubana de um modelo socialista próximo à abordagem soviética. Esse foi um papel que em parte deu origem aos estereótipos sobre ele.

Em 1958, antes da vitória dos rebeldes do Movimento 26 de julho, Raúl era relativamente desconhecido em Cuba. Embora tenha seguido a trajetória acadêmica de seu irmão na Faculdade de Direito da Universidade de Havana, sua trajetória política foi diferente. Como um ativista estudantil em 1952-1953, ele gravitou em torno do comunista Partido Socialista Popular (PSP). Ele se juntou à delegação cubana que viajava para um Congresso da Juventude organizado por Moscou em 1953 na Europa Oriental, e à ala jovem do PSP, Juventude Socialista (JS).

Em seu retorno a Cuba, Fidel disse a Raúl sobre o plano iminente de atacar a guarnição de Moncada de Santiago de Cuba em 26 de julho de 1953. As pessoas que traçaram o plano eram um pequeno grupo pertencente ao Partido Ortodoxo de esquerda nacionalista – formalmente conhecido como o Partido do Povo Cubano. O golpe de Batista em março de 1952 negou ao partido a vitória amplamente esperada nas eleições que aconteceriam em junho, com Fidel como um de seus candidatos ao Congresso.

Apesar das origens deste projecto no Ortodoxo, Raúl concordou imediatamente em aderir. Esta foi uma postura que logo o distanciou do PSP, que condenaria veementemente o ataque de Moncada. O PSP também condenou a expedição de dezembro de 1956 lançada por Fidel do México e a campanha de guerrilha que se seguiu, até que a pressão interna obrigou o partido a aceitar o inevitável e se juntar à aliança rebelde em meados de 1958.

Raúl deixou o JS logo após Moncada. Preso na prisão da Ilha de Pines até junho de 1955, ele se politizou com os outros rebeldes. Ele os acompanhou ao México após sua libertação, a fim de se preparar para o lançamento de uma rebelião guerrilheira.

Esse link para o PSP atraiu a atenção da seção de inteligência da embaixada dos Estados Unidos em 1956. Tentando adivinhar a forma de uma futura Cuba sob o Movimento 26 de julho, eles procuraram o vermelho debaixo da cama ao estilo característico da Guerra Fria.

Junto com Che Guevara – sobre cujas interpretações não convencionais do marxismo eles nada sabiam – eles identificaram Raúl como o candidato mais provável para esse papel. Daí em diante, ele se tornou seu vermelho estatutário, um “ideólogo endurecido” pró-soviético. Essa definição contradizia estranhamente a narrativa da dominação total de Fidel ao retratar Raúl como o gênio do mal que supostamente planejava uma mudança para colocar Cuba sob o controle soviético.

Àquela altura, porém, um Raúl diferente estava surgindo. Embora ele tivesse sido apenas um soldado de infantaria no ataque de Moncada, ele subiu nas fileiras rebeldes à medida que suas qualidades se tornaram claras e sua importância cresceu. Foi ele quem apresentou Che Guevara ao grupo no México, estabelecendo assim a estreita e duradoura camaradagem ideológica entre Fidel e Che.

Nos treinamentos, Raúl mostrou-se líder e habilidoso estagiário, o que lhe valeu a capitania na eventual expedição no iate Granma. Depois que as tropas de Batista dispersaram violentamente a força rebelde três dias após o desembarque, ele liderou um pequeno grupo de sobreviventes para se juntar ao grupo igualmente diminuto de Fidel. Junto com os homens de Che, eles criaram a base do Exército Rebelde na Sierra Maestra oriental.

Em meados de 1958, sua liderança, nous política e habilidades militares lhe renderam o comando de uma frente de guerrilha separada na vizinha Sierra del Cristal. Nessa função, ele demonstrou as mesmas habilidades de liderança, mas também uma eficiência administrativa que ficaria evidente nos anos posteriores.

Mais importante ainda, embora tivesse rompido com o PSP, o seu marxismo – já mais profundo que o do irmão – deu-lhe a noção clara de que as pessoas sob o seu comando deviam receber uma educação política. Ele também viu a importância da colaboração com os quadros locais do PSP.

Institucionalizando a revolução

Essa vontade de colaborar continuou depois de janeiro de 1959. O PSP agora oferecia o apoio incondicional de seus membros – as estimativas variam de seis a dez mil – e tornou-se parte da emergente aliança rebelde tripartite. Isso gerou alarme e ressentimento no Movimento 26 de Julho, mas Raúl e Che viram o valor da inclusão do PSP e de laços mais estreitos com a União Soviética. Isso inevitavelmente reforçou as suposições sobre Raúl como um ideólogo comprometido.

Em 1960, essas suposições se tornaram mais fortes, quando Raúl, um dos três principais líderes da revolução cubana, recebeu o comando e o controle ministerial sobre as novas Forças Armadas Revolucionárias (FAR). Na verdade, seu papel no FAR o tornou central em grande parte de todo o processo, defendendo a revolução contra ameaças externas. Esse papel também alimentou em parte seu entusiasmo por ligações com Moscou, por meio de um relacionamento crescente com os militares soviéticos. No entanto, sua estratégia preferida para defender Cuba, por meio de uma “guerra de todo o povo” ao estilo guerrilheiro, diferia de suas recomendações.

Havia também outra dimensão para a admiração de Raúl pela URSS, já vislumbrada na Serra: sua crença na organização eficaz e na estabilidade econômica. Como muitos outros, Raúl percebeu que ambos estavam presentes na URSS, ignorando quaisquer dúvidas que ele pudesse ter nutrido sobre a falta de responsabilidade nas estruturas soviéticas. Sua crença na necessidade de um partido único eficaz, responsável e internamente democrático permaneceu consistente ao longo das décadas, refletindo sua preferência por incentivos materiais (em vez dos morais enfatizados por Che), responsabilidade constante e debate efetivo.

Essa preferência o fez saudar o período menos frenético e menos emocionante de “institucionalização” que se desenrolou em Cuba a partir de 1975. Durante este período, muitas vezes erroneamente referido como de “sovietização”, estruturas de estilo soviético substituíram a mobilização e a liderança cubana declarou que a revolução de seu país estava empenhada em uma transição para o socialismo, ao invés do objetivo de alcançar o comunismo rapidamente estabelecido por Che na década de 1960.

Raúl saudou a perspectiva de maior estabilidade e uma relação mais próxima com Moscou – as relações cubano-soviéticas tinham azedado danificamente desde a época da crise dos mísseis em outubro de 1962, atingindo o ponto mais baixo em 1968. Ele também acolheu a ideia de um Partido Comunista Cubano que se reuniu no congresso no ciclo programado de cinco anos: enquanto o primeiro congresso do partido, originalmente previsto para ser realizado em 1970, foi adiado por mais cinco anos, o segundo começou no prazo em 1980.

No entanto, seria errado ver quaisquer diferenças políticas ou ideológicas importantes entre Fidel e Raúl. Ambos acreditavam no mesmo projeto, aquele que haviam concebido em 1953 e moldado de forma mais concreta entre 1956 e 1959: a construção da nação pelo socialismo. Eles diferiam apenas em suas preferências sobre os meios de chegar ao socialismo e a velocidade desse processo.

Fidel concordou muito mais com a noção de Che das condições subjetivas para o socialismo – compromisso ideológico e conciencia sob a liderança de uma vanguarda comprometida – que poderia superar as barreiras objetivas. O ex-PSP e os líderes soviéticos argumentaram que o socialismo era impossível em Cuba, quanto mais o comunismo, por causa desses obstáculos objetivos.

Embora não concordasse totalmente com o PSP e Moscou, Raúl sempre favoreceu um impulso mais comedido em direção ao socialismo, com responsabilidade estruturada e recompensas materiais apropriadas – mas limitadas, mas sempre com um etos claramente socialista e moral por trás de tudo. A abordagem de Fidel ditou uma confiança na mobilização e “paixão”, enquanto Raúl enfatizou a estrutura e a viabilidade pragmática, mas eles trabalharam em conjunto. Ambos viam a meta como o processo de construção da nação que ainda faltava a Cuba em 1959.

Atualizando o sistema

Essa ainda era a meta de Raúl quando, em 2008, ele tranquilizou os duvidosos de que suas propostas de reforma não o tornariam Mikhail Gorbachev de Cuba. Não foi eleito, disse, para “destruir a Revolução”, como alguns temiam, mas como alguém que necessariamente “atualizava” o socialismo cubano para se adequar a um novo mundo, garantindo sua sobrevivência.

A Constituição de Cuba de 2019 mais tarde descreveria isso como um processo “em transição para o socialismo”. Como tal, ela poderia e deveria ser alcançada por meio de estruturas que funcionassem adequadamente com total responsabilidade e comunicação interna, não por meio de um partido ao qual as pessoas se unissem para o autopromoção, como Raúl observara no bloco socialista liderado pelos soviéticos pré-1989. Tão moralista quanto Fidel, ele abominava a corrupção como algo que solapava a consciência socialista.

A partir de 1986, Cuba adotou uma estratégia conhecida como “Retificação” (“dos erros do passado e das tendências negativas”). O papel de liderança de Raúl nessa estratégia tornou absurda a simplificação comum de que constituía um retorno aos anos 1960. Enquanto a ascensão de Gorbachev ao poder na URSS teve muitas implicações para Cuba, o foco de Raúl estava na mensagem subjacente para a economia cubana: o relacionamento benéfico com a URSS iria acabar, e os cubanos precisavam se preparar para isso por meio de racionalização econômica.

O colapso da URSS e do bloco socialista em 1989-91 ultrapassou esse processo de racionalização, desencadeando a crise mais profunda da revolução, momento em que Raúl veio à tona. Desmentindo sua imagem de ideólogo rígido e de linha dura, ele liderou o impulso urgente de reformas sem precedentes para “salvar a revolução”. Mostrou-se um negociador paciente mas determinado, que teve o cuidado de trazer consigo os dirigentes que duvidavam do alcance das reformas. A recuperação da economia cubana deveu-se em grande parte à presença de sua mão no leme, que acabou com a rígida centralização e restaurou o trabalho autônomo privado abolido em 1968.

Os acontecimentos no período de 2006-8, quando Raúl foi eleito para suceder Fidel, estimularam a noção de uma “dinastia” castrista entre os observadores externos. Muitos dos que acalentavam essa ideia esqueceram que Raúl devia seu título de vice-presidente sênior, não a qualquer relação familiar com o Comandante, mas a sua condição de único dos três líderes que restaram ao lado de Fidel. Ele, portanto, gozava de uma legitimidade histórica que já havia lhe dado autoridade suficiente para assumir o controle efetivo em meados de 2007, tendo em vista a condição crônica de saúde de Fidel.

Ele usou a mesma legitimidade para lançar a crítica mais feroz e abrangente à revolução que havia sido ouvida dentro de Cuba em 26 de julho, de uma forma que muitos acharam chocante, e para decretar a abertura de um debate nacional prolongado e público, via as Organizações de Massa e o Partido, para levar essa crítica adiante. Foi uma estratégia brilhante, usando o feedback daqueles que amplamente acolheram suas críticas e propostas como munição para desafiar a resistência antecipada da hierarquia do partido.

Embora essa resistência tenha durado três anos, em 2011, Raúl forçou o partido a convocar seu Sexto Congresso – que deveria ter sido retido em 2002 – embora com compromissos. Eleito primeiro secretário, passou a ter plena autoridade para reformar, sin prisa pero sin pausa (sem pressa, mas também sem pausa).

Novas direções

O que se seguiu pareceu transformar Cuba. Houve um anúncio surpresa de reconhecimento total dos EUA em 2014-15, embora o embargo permanecesse firme em vigor, aplicado pelo Tesouro dos EUA. As reformas que Raúl iniciou em 1992-93 foram ainda mais longe em áreas como trabalho autônomo e liberdade de viagem.

Nesse ínterim, no entanto, duas outras coisas mudaram. Em primeiro lugar, estava claro em 2006 que a liderança cubana havia discretamente reduzido a “Batalha de Idéias” que Fidel lançou seis anos antes, com o objetivo de revigorar a juventude cubana ideologicamente por meio da cultura, educação e mobilização. Isso refletia a preferência de Raúl por estabilidade produtiva em vez da custosa “paixão”.

Em segundo lugar, houve mudanças dentro do partido no poder. Antes de se tornar líder, Raúl já havia iniciado um processo de renovação em nível provincial, trazendo líderes mais jovens. Depois de 2008, ele continuou esse trabalho no governo, eliminando gradualmente a geração histórica e fortalecendo a autoridade da Assembleia Nacional.

Ao cumprir sua promessa de se aposentar como presidente de Cuba após dois mandatos, Raúl usou seus três anos restantes como líder do partido para continuar o esforço de renovação, distanciando o partido de uma participação ativa no governo, ao mesmo tempo que esclareceu seu papel como fonte de orientação ideológica. Em 2019, Díaz-Canel pediu-lhe para liderar a comissão para a nova constituição de Cuba. Raúl sabia que essa carta atualizada era necessária para legitimar a Cuba emergente e atualizar suas estruturas de legalidade.

O documento trazia a marca de Raúl. Ele manteve muitos aspectos da primeira constituição da revolução de 1976, que parecia seguir os modelos soviéticos, mas mudou sutilmente suas definições ideológicas. No lugar do compromisso com o marxismo-leninismo – sempre uma abreviatura de comunismo de estilo soviético – havia referências sem hifenização ao “marxismo, leninismo” como fontes de inspiração política, junto com as ideias de José Martí e Fidel Castro.

A Constituição de 2019 também começou a estabelecer uma separação de poderes, refletindo as dúvidas conhecidas de Raúl sobre a concentração de poder antes de 2008. Ela compartilhava a responsabilidade pelo governo entre quatro centros potenciais: o presidente nacional de Cuba, que ainda era eleito indiretamente; um primeiro-ministro para o governo do dia-a-dia; o presidente do reformado Conselho de Estado e Assembleia Nacional; e o líder do partido.

A combinação da presidência de Donald Trump com a pandemia de COVID-19 transformou o contexto externo em que essas alterações estavam sendo feitas. Primeiro, Trump impôs um pacote de duzentas e quarenta medidas para endurecer o embargo, depois a pandemia teve um impacto drástico na receita do turismo. A combinação produziu uma profunda crise econômica.

Essa crise acelerou a implementação de uma política que estava muito atrasada: a abolição do sistema de moeda dupla confuso e corrosivo de Cuba. Criado em 1993 como um conserto de curto prazo, já estava causando distorções econômicas e sociais no final daquela década, mas ninguém – incluindo o governo cubano – parecia saber como ou quando poderia ser encerrado. A COVID-19 forneceu a oportunidade de fazê-lo por necessidade.

Em dezembro de 2020, o povo da ilha ouviu um anúncio chocante de que seu governo fundiria as duas moedas a partir de 1º de janeiro de 2021. A mudança ameaçava causar desafios reais para muitos cubanos, mas provavelmente traria benefícios de longo prazo para a maioria . Embora a mudança tenha vindo de Díaz-Canel, ele nunca a teria proposto sem a aprovação ideológica de Raúl.

No geral, os estereótipos dominantes de Raúl sempre estiveram longe do alvo. Ele não era um irmão mais novo irrelevante, nem um gênio do mal, nem um ideólogo de linha dura, nem um chato “homem de sistemas”, mas sim o último dos três líderes históricos da revolução cubana, um dos que planejaram embarcar em um projeto de construção da nação por meio de alguma forma de socialismo.

Depois de suceder Fidel em 2006-8, ele herdou um processo que precisava urgentemente de ajuste. Ele se propôs a reformar, atualizar, reestruturar e agilizar o máximo que pudesse, precisamente para preservar a essência e o objetivo original da revolução. O futuro do sistema que ele ajudou a construir e transformar agora está nas mãos de uma nova geração.

Sobre os autores

é professor de história da América Latina no Centro de Pesquisa sobre Cuba da Universidade de Nottingham. Seu livros são: "Leadership in the Cuban Revolution: The Unseen Story", "A Short History of Revolutionary Cuba: Revolution, Power, Authority" e "The State from 1959 to the Present Day and Cuba in Revolution: A History Since the Fifties".

    in JACOBIN Br.

sexta-feira, 7 de junho de 2024

 “Podemos contar a história da escravatura de outra maneira, seguindo o dinheiro?”

“Podemos contar a história da escravatura de outra maneira, seguindo o dinheiro?”

O jornalista David Montero seguiu o rasto do dinheiro desde a fundação do seu país, os Estados Unidos. Escreveu um livro que ajuda a entender o fosso entre ricos e pobres. A escravatura está na raiz.



“Podemos contar a história da escravatura de outra maneira, seguindo o dinheiro?”
O que significa reparação quando aplicada a um passado ligado a potências escravocratas e colónias? A pergunta tem cada vez mais importância quanto mais divide opiniões e leva à criação de um pensamento ou de narrativas que põem em causa ou complexificam as tradicionais. David Montero, jornalista premiado, vai à génese do seu país, os Estados Unidos, para mostrar que “a ferida aberta” sobre a qual ele se fundou não se refere apenas ao passado nem ao Sul. Diz que os grandes bancos do Norte, como o Citibank ou o Bank of America, financiaram a escravatura e beneficiaram fortemente do seu envolvimento nesse tipo de negócios, fazendo parte de uma economia que cresceu exercendo poder sobre o corpo negro. Montero diz ainda que esta não é uma questão do passado. É do presente e do futuro. E não apenas da nação americana. Tem ramificações na Europa e no resto do mundo. Para chegar a essas conclusões, cruzou factos, fez investigação histórica e jornalística e propõe um novo olhar sobre o termo reparação em The Stolen Wealth of Slavery: A Case for Reparations. Esteve em Lisboa para participar no seminário Slavery Impacts & Meaningful Change, na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa, organizado pela Unbreakable Heritage, vocacionada para a educação, defesa, promoção e sensibilização para a realidade histórica e os impactos actuais da escravatura negra enquanto genocídio.

   (um exclusivo do jornal PÚBLICO)

Viagem à Polónia

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Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

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Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.