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quinta-feira, 17 de abril de 2025

Um abade ateu, materialista e comunista

 Escrevi vários ensaios sobre a vida e obra de um abade francês do século dezoito, de nome Dom Deschamps, ao qual se havia dedicado um colóquio em Poitiers e do qual há pelo menos três obras académicas de investigadores franceses e , no meu caso, de um português.

  Dom Deschamps foi um eclesiástico surpreendente : ateu e comunista. É verdade que não foi o único sacerdote católico francês da época do Iluminismo que fora agnóstico ou mesmo ateu e simpatizante das ideias reformistas dos filósofos Iluministas, mas, sobretudo, dos livros do famoso Jean-Jacques Rousseau (dissidente do Iluminismo materialista e ateísta). O padre elaborou uma utopia comunista, mas, mesmo aí, não foi o único utopista desse século que desembocou na Grande Revolução Francesa, na ditadura dos Jacobinos, na contra revolução do Diretório e na chamada Conspiração comunista liderada por Gracus Babeuf ("Os Iguais").

Para além de todas essas peculiaridades : comunista utópico, ateu sem reservas, materialista em Filosofia, a sociedade utópica que ele propôs era singular. Karl Marx não a conheceu. Aliás, Dom Deschamps só foi conhecido por muito poucos seus contemporâneos e logo esquecido após a sua morte. Foi resgatado dos fundos de uma biblioteca somente em meados do século dezanove.

A singularidade da sua utopia era esta : uma sociedade na qual tudo era comum, portanto desaparecia a propriedade privada fosse do que fosse, incluindo a educação das crianças. O casamento era eliminado e as mulheres escolheriam quando e quem entendessem escolher. As cidades desapareceriam e, com elas, qualquer forma de organização burocrática, o mercado ou comércio, e a indústria limitar-se ia ao básico à semelhança das sociedades pioneiras da humanidade ou das tribos das Américas.

 Demonstrei em ensaios académicos a ontologia materialista e dialética do pároco radical ( de certo modo precursora da Dialética Hegeliana) e a influência forte de Espinosa, não tanto o genuíno e original mas a versão espinosista que circulava nos círculos dos materialistas. Mais uma peculiaridade de Dom Deschamps : nos seus manuscritos refuta Espinosa , ou esse espinosismo (um Espinosa não lido mas comentado) através de teses materialistas diferentes. Ou seja : a ontologia espinosana não era suficientemente materialista e faltava-lhe a Tríade ! Mas esse foi o tema dos meus ensaios já publicados nos meus blogues e publicados em França, assim como podem ser lidos na Biblioteca da Faculdade de Letras da UC de Lisboa.

A utopia de Dom Deschamps pertence à categoria das utopias de um "comunismo grosseiro" conforme a classificação das utopias variegadas expostas em O Manifesto Comunista, de Marx-Engels.

Um tema que referi mas não desenvolvi é este : a influência não só desse espinosismo materialista e ateu , mas também de Rousseau. Advertência : não era, nem é ainda, consensual que Bento Espinosa haja sido ateu e materialista.

E porquê Rousseau? Porque a teoria do "Bom Selvagem" foi sumamente célebre e noto-lhe a sua presença nos supostos benefícios morais da sociedade despojada de bens materiais, de propriedade privada da terra, de luxos e desperdícios, de dominações. Uma sociedade sem monarcas, de liberdade absoluta. Ou quase, pois aí os seres humanos apenas dependeriam da Natureza. Sociedades recoletoras gozando de lazeres (o trabalho reduzido ao essencial, ou seja, caça e pesca), sem cobiças e crimes capitais. A sua utopia é Rousseau, tomado à letra (e provavelmente ao espírito de um Rousseau pré-romântico, o autor do "Émile" e do " Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens) e levado às últimas consequências : se a propriedade privada foi a causadora, e continua a ser, de todos os males, pois então abole-se!

O interesse que Dom Deschamps pode ainda suscitar na atualidade (para além do mero interesse historiográfico e académico) algum interesse, penso eu,  na medida em que foi juntamente com muitos outros, incluindo o grande Rousseau, cético em relação ao desenvolvimento que então se processava do capitalismo comercial e manufatureiro e ao prejuízos que a prata das Américas veio trazer ao continente europeu (a prata abundante roubada aos povos pré-colombianos através do genocídio acelerou o desenvolvimento capitalista e colonialista do continente europeu).

  Voltando a Léger-Marie Deschamps, Dom Deschamps. Foi visitante assíduo, muito estimado, de uma das mais poderosas e antigas famílias aristocráticas. Foi para o chefe a família Marc-René de Voyer de Paulmy d`Argenson que ele escreveu ou dedicou a sua utopia : Sistema Verdadeiro . Se ele tinha ou não consciência de que a sociedade utópica era impossível ou não, jamais o saberemos porque não se encontram indícios na sua correspondência. 

 Para nós o que é certo e de algum modo atual é a mensagem : o regresso à natureza na sua sociedade utópica era um apelo aos poderosos para que mudassem e fizessem mudar os costumes , era um apelo ético ou moral, que lembra São Francisco de Assis. A civilização não trouxe a felicidade. As cidades, com o seu luxo e os seus artifícios, maltratam a natureza. A Cultura (as normas modernas) não fez dos povos indivíduos mais honestos, pacíficos, solidários, felizes.

  E tudo isto lembra Rousseau.

Uma expressão de pré-romantismo. 

Dom Deschamps foi a contradição em pessoa : materialista ateu e comunista não foi um adepto de revoluções mas pareceu adivinhá-las.

                                     J. A. Nozes Pires

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