FÁBULAS – O Pensador
Eu guio-me pelo que sei, diz o homem. O que sei dizem-mo as
máquinas, os especialistas que controlam as máquinas. As máquinas não se
enganam, nem os números enganam. Dizem-me que amanhã será um dia muito quente,
dizem-nos e eu creio. Tudo se baseia na confiança, a confiança baseia-se na
eficácia, a eficácia baseia-se no crédito. Isto é, no credo. O credo é uma
espécie de fé. A dívida não é dúvida, é credo, isto é, crédito. Penso porque mo
dizem, por isso existo. Existe-se assim ou assado, e eu existo assim ou assado.
Pensa o homem. Agora está sentado, à fresca, com uma cerveja na mão. Neste
agora eu existo, sentado, com uma boa cerveja na mão. Assim pensa o homem.
Amanhã de manhã, se ao acordar conseguir mexer os dedos dos pés, eu existirei
ainda. Tomo o café, folheio o jornal que está ali posto de graça para os
clientes, o mesmo jornal que está ao dispor dos clientes dos outros cafés. O
mesmo significa segurança, provoca um sentimento de confiança. E a confiança é
tudo, pensa o homem. Um cancro no pulmão matou o meu cunhado mais depressa que
o diabo esfrega um olho. É a vida, pensou o homem, para morrer basta estar
vivo. É a ordem imutável das coisas. Não disse “imutável”, palavras dessas não
lhe ocorrem ao espírito. Conhece-as mas não se lembra delas quando são
precisas. Na realidade nunca delas precisou. O essencial resume-se a duas ou
três substâncias. A primeira é “Eu sou”, a segunda é “Eu tenho”, a terceira é”
Eu faço”. Posso juntá-las numa única, pensa o homem: “Eu sou o que tenho e o
que faço”. Com esta certeza o mundo tem sentido. A minha vida tem significado,
pensa o homem. Pensa, mas não penses naquilo que não te serve para nada,
repetia-lhe o pai quando era pequeno, tão pequeno que o mundo parecia-lhe uma
enorme desordem sem sentido. Agora, pelo contrário o mundo parece-lhe pequeno.
Não porque viaje muito, mas porque a televisão o mostra. E mostrar-se é ser. O
meu irmão não se mostrava nem acreditava no que lhe mostravam. Era casmurro e
solitário. Pensava demasiado. Falava pouco e o pouco que dizia era para colocar
um ponto de interrogação em tudo que lhe diziam. Por isso ele próprio era um
ponto a mais nos encontros da família. Uma carta fora do baralho. Paz à sua
alma atormentada. A minha, pelo contrário, é confiante. Acusava-me de
oportunismo e arrivismo (insulto pesado que nunca entendi muito bem), eu
respondia-lhe com um sorriso de desprezo. Tanto desprezo os ignorantes (os
falhados) como os que se julgam muito inteligentes e não sabem aproveitar as
oportunidades. Mas eu é que estou no caminho certo: mostro-me colaborador
quando o chefe pede (exige) colaboradores; mostro-me empreendedor quando a
sociedade o que precisa é de empreendorismo; ofereço almoços para que amanhã
receba em troca o que pedir. Tudo se resume a trocas. O mundo é um mercado, no
mercado fazem-se trocas. Assim pensa o homem.
Um dia, que se anunciava seguro e confiante, o homem foi
colocado na prateleira pelo chefe. Disponível para coisa nenhuma, descartável
como as latas de salsichas. Explicação: redução das despesas, redução do
pessoal, começando pelos mais antigos. O fisco, a seguir, encarregou-se de lhe
aplicar o golpe de misericórdia. O mundo para o homem tornou-se ainda mais
pequenino, miserável e injusto. Quebrou-se o elo da confiança. O homem passou a
odiar, primeiro o chefe, depois os garotos que o substituíram por tuta e meia,
a seguir generalizou, olhou para cima e viu o Estado, os governos, as leis, a
máquina incompreensível, distante e ingrata, que o esmagava. Em resumo: a corja
dos políticos. Assim pensou o homem. E desejou, dentro do nevoeiro sombrio dos
seus ódios, confiar em alguém. Num chefe redentor. Uma espécie humana de deus
vingador, que viesse destruir para criar tudo de novo. Eliminar a corja. Pôr na
ordem os oportunistas, arrivistas (agora julgava entender perfeitamente a
palavra), que não lhe retribuíram os almoços.
NOZES PIRES
1 comentário:
Flsh focando a actualidade. Tema oportuno.
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