Pós-teísmo

Os sistemas religiosos baseados na
consciência do pecado, da culpa, da expiação e redenção foram fortemente
impactados com essa diluição identitária. Os grandes sistemas
religiosos são herdeiros da revolução neolítica e foram criados para
atender à estrutura política e ideológica das civilizações que nasceram a
partir disso e dominaram o mundo pelos cinco a sete milênios
posteriores. Foi a religião das cidades-estado, dos impérios sagrados e
ancoradas no dualismo entre o sagrado e o profano, nas identidades
territoriais e coletivas. Os impérios da era neolítica substituíram as
religiões animistas com seus espíritos errantes e impuseram a disciplina
dos deuses da guerra, muito mais poderosos e exigentes.
O contraponto a isso ocorreu na Grécia
com a desmitificação da religião, especialmente na filosofia platônica. A
filosofia mostrou o quanto a religião e todos os aspectos de nossa vida
são governados pelos signos da linguagem que criamos, isto é, a
estabilidade do mundo depende da estabilidade dos nossos signos
linguísticos. Enquanto eles permanecerem inalterados, teremos um
conjunto de explicações coerentes do mundo. Posteriormente a metafísica
platônica foi fundida à metafísica cristã numa relação de subordinação.
Essa relação gerou o teísmo filosófico ou filosofia realista de Deus,
cujo fundamento enlaça elementos do judaísmo e do cristianismo numa
narrativa histórica do mundo, que por séculos justificou a missão
civilizadora da Europa em suas conquistas coloniais e missionárias.
Foi preciso o aparecimento da modernidade
e a criação da filosofia crítica para separar a filosofia da metafísica
e isso não foi possível sem que se degolasse as duas metafísicas,
platônica e cristã. Portanto, de Descartes a Derrida as ilusões da
metafísica ocidental foram sendo demolidas, e, juntamente com ela, a
credibilidade e inteligibilidade de Deus. O resultado foi o fim do
teísmo, da crença em absolutos e a crise dos sistemas religiosos
baseados em regras estabelecidas a serem rigidamente observadas.
No Cristianismo essa crise começou a
cristalizar-se no período pós-iluminista. O século 19 foi agonizante
para a teologia cristã. Depois de Hume e Kant, a metafísica ruiu e o que
sobrou dela foram versões seculares da escatologia cristã e o
historicismo. Na década de 1880 a velha ordem havia sido quase tão
completamente desmontada que Nietzsche anunciou a “morte de Deus”. A
narrativa está no livro “A Gaia Ciência”; é a metáfora de um homem louco
que vai ao mercado numa ensolarada manhã com uma lanterna acesa
gritando que procura a Deus. As pessoas, que já não acreditavam mais em
Deus, riem e perguntam se ele emigrou, se está viajando ou dormindo.
O homem louco então começou a discursar
para eles e disse que Deus estava morto e eles eram os responsáveis por
tal ato; começou a fazer-lhes questionamentos pungentes, no que
silenciou todo o mercado. “Como foi que matamos Deus? Como conseguimos
esvaziar o mar? Quem nos deu uma esponja para apagar o horizonte
inteiro? Que fizemos quando desatamos esta terra do seu sol? Para onde
vai ele agora? Para onde vamos nós mesmos? […] não estamos
incessantemente a cair? Não estamos errando através de um vazio
infinito? Não anoitece eternamente? Não ouvimos ainda o barulho dos
coveiros que enterram Deus? Quem nos limpará este sangue? Que água
poderá nos lavar?”
A parábola termina com o homem entrando
em várias igrejas no mesmo dia. “Expulso e interrogado teria respondido
da mesma maneira: ‘O que são estas igrejas senão túmulos e monumentos
fúnebres de Deus?” A metáfora do homem louco de Nietzsche prenunciava o
fim da religião como aquelas pessoas a conheciam e o triunfo do
niilismo. Essa crise teológica e de consciência teve como epicentro a
Alemanha até disseminar-se para outros lugares. Foi preciso
aproximadamente sete décadas para que essa consciência viesse a
cristalizar-se na Europa com o nome de pós-modernidade.
Esse é o tema do livro Depois de Deus: o futuro da religião
(Editora Rocco, 1999), do filósofo e clérigo inglês Don Cupitt. O autor
discute como a religião ainda pode sobreviver numa ordem cultural
marcada pela morte de Deus. Cupitt é conhecido como “sacerdote ateu” e
propõe uma espiritualidade que dispensa a expectativa em vida após a
morte. Ele reconhece que Deus está morto, mas propõe que ainda é
importante que as pessoas (ao menos aquelas que não conseguem viver sem
fé religiosa) ainda se comuniquem com ele, mas numa forma de comunicação
peculiar: da mesma forma que continuamos a amar nossos entes queridos
que já morreram e quando visitamos seus túmulos conversamos com eles,
tentamos imaginar sua presença e sua companhia, algo semelhante pode ser
feito com relação a Deus:
Nietzsche segue em seu estilo típico
do século XIX falando sobre as igrejas serem os “túmulos de Deus”, mas
não lhe ocorre que podemos um dia visitar igrejas para sermos
estimulados a falar com Deus, da mesma maneira que visitamos os túmulos
para nos comunicarmos com nossos mortos, e com benefícios semelhantes.
Cupitt sugere que o modelo de religião da
pós-modernidade é muito próximo do budismo, com uma ascese voltada para
a contemplação, o relaxamento e o esvaziamento. Nossa época é marcada
pela instabilidade dos signos e pelo trânsito de significados, o que
impossibilita a permanência de uma narrativa (Significado) totalizante,
onde o outro é herege, pecador, apóstata, pagão, inimigo de Deus. A
religião baseada no autoritarismo, no poder absoluto de uma divindade
que exclui e condena está fadada à rejeição e ressignificação.
Cupitt fala a partir da Europa, onde as
reações à religião são diferentes do que acontece em nosso meio. Aqui,
por exemplo, um número expressivo de pessoas enxerga as igrejas
neopentecostais, por exemplo, como empresas dirigidas por líderes
inescrupulosos ávidos por dinheiro. Do ponto de vista sociológico, é uma
visão equivocada. Elas possuem, sim, uma estrutura empresarial e não é
por acaso. As instituições da pós-modernidade são as grandes empresas
multinacionais, que rompem paradigmas territoriais, linguísticos e
culturais e desconstroem relações sociais baseadas em laços sanguíneos e
de fidelidade. É esse o modelo organizacional das igrejas
neopentecostais, internacionalistas em sua essência, afeitas à
publicidade, pós-cristãs e voltadas mais para a prosperidade material do
que à busca da vida eterna. Seu êxito em países pobres atende a uma
demanda por ascensão social e integração econômica, requisitos
indispensáveis à integração sociocultural. Mas não significa que essas
agências religiosas ainda não estejam vinculadas a esquemas teológicos
dualistas e ideologias salvacionistas. Estão, mas não mais da mesma
forma como o Cristianismo costumava se apresentar mesmo em suas variadas
versões protestantes. Essa mudança paradigmática é bem enfatizada por
ele dessa forma:
É muito curioso que Deus e Mamom (o
falso deus da riqueza e da cobiça) tenham trocado de lugar eticamente.
Mamon é um internacionalista. Ele quer que as pessoas sejam saudáveis e
bem-educadas. Ele quer paz e estabilidade, progresso e prosperidade
universal. Ao contrário, Deus (especialmente no Oriente Médio) parece
ter se tornado um Moloque que exige a ignorância, a pobreza e a guerra.
Por fim, ele propõe que a velha teologia
assentada em dogmas e numa linguagem obsoleta do divino seja substituída
por uma teologia poética, uma religião universal inclusiva, cujo ideal
tenha por base signos unificadores de valores, uma versão minimalista da
teologia cristã, que, segundo ele, seria a única justificativa para que
alguém ainda possa continuar cristão.
O autor dialoga muito com Kant e Derrida e
traz para a Teologia abordagens da Filosofia da Linguagem para mostrar
que a metafísica e o realismo (visão segundo a qual há absolutos que
coordenam a vida humana e uma realidade que independe de nossa
linguagem) são concepções ingênuas desmontadas pela filosofia
pós-modernista e sobre a qual ainda estão assentadas religiões mundiais
como o cristianismo e o Islã. Sua proposta é mostrar que a morte de Deus
é uma constatação irreversível e que essas religiões se refugiaram no
fundamentalismo para não abrir mão dos signos territoriais de exclusão e
com uma teologia sobrenaturalista.
Partindo da premissa de que criamos e
recriamos o mundo a partir das categorias linguísticas e culturais que
temos à nossa disposição, Cupitt diz que as religiões de deuses étnicos e
de guerra, cujos significados abarcam tudo já não correspondem mais à
atual tendência de afirmação de uma nova cultura mundial secular. Nesse
contexto o nacionalismo político e o fundamentalismo religioso subsistem
apenas “na boca daquelas pessoas que mais temem as mudanças que estão
ocorrendo e que tentam resistir-lhes ao máximo”.
Don Cupitt parece ser bastante otimista
em sua perspectiva de religião universal, haja vista que mesmo a ideia
de uma cultura mundial secular também pode ser tomada como a
universalização frequentemente belicista de um modelo cultural. Mas é
compreensível como ele coloca a universalização do modelo de modernidade
ocidental e as transformações culturais que produz. De toda forma, sua
abordagem a partir de Hume e Kant até chegar à filosofia da linguagem
contemporânea é bastante pertinente e não há dúvida de que a metafísica
platônica e cristã entrou em forte declínio a partir do último quarto do
século 19 num processo que se agudizou a partir da década de 1950, com a
tomada de consciência de uma modernidade mais crítica de si mesma e do
que a antecedeu. É uma leitura e proposta de religião humanista
instigante, crítica, mesmo que não seja completa ou parcialmente viável.
in Bertone Sousa.blogspot.com
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