Domenico Losurdo (1941-2018)
Perda imensurável para o pensamento crítico mundial, o filósofo italiano Domenico Losurdo deixa um precioso legado para o pensamento marxista. Leia aqui as páginas finais de sua última obra publicada em vida: "O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer".
É com profundo pesar que comunicamos o
falecimento de Domenico Losurdo, um dos maiores e mais originais
filósofos marxistas da atualidade, querido amigo e camarada. Ele nos
deixou nesta manhã de quinta-feira, dia 28, aos 77 anos, vítima de um
súbito câncer cerebral. Perda imensurável para o pensamento crítico
mundial, Losurdo deixa um precioso legado para o pensamento marxista.
Suas reflexões, sempre afiadas e eruditas, concentram-se na crítica
radical ao liberalismo, ao capitalismo, ao imperialismo e à “tradição
colonialista”. Sua última obra publicada em vida é O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer.
Como forma de homenagem, disponibilizamos abaixo as páginas finais da
obra, em que Losurdo reflete sobre as condições para o renascimento do
marxismo no ocidente. A TV Boitempo está atualmente preparando a publicação de uma série inédita de vídeos com ele sobre comunismo e revolução no século XXI.
* * *
Oriente e Ocidente: do cristianismo ao marxismo
Por Domenico Losurdo.
Nascido no coração do Ocidente, com a
Revolução de Outubro, o marxismo se difundiu por todo o mundo,
penetrando com força em países e áreas em condições econômicas e sociais
mais atrasadas e com uma cultura muito diferente. Tendo atrás de si a
tradição judaico-cristã, o marxismo ocidental, como vimos, não poucas
vezes evoca motivos messiânicos (a espera por um “comunismo” concebido e
sentido como a resolução de todos os conflitos e contradições e,
portanto, como uma espécie de fim da história). Mas o messianismo está
francamente ausente numa cultura como a chinesa, em geral caracterizada,
em seu desenvolvimento milenar, pela atenção reservada à realidade
mundana e social.
A expansão planetária do marxismo é o
início de um processo de distanciamento, que é a outra face de uma
retumbante vitória. É aquilo que historicamente se verificou no caso das
grandes religiões. No que se refere ao cristianismo, que não por acaso
Engels insistentemente compara com o movimento socialista, a divisão
entre ortodoxos, de um lado, e protestantes e católicos, de outro,
corresponde, grosso modo, à divisão entre Ocidente e Oriente. A
certa altura, entre o fim do século XVII e o início do século XVIII, o
cristianismo parecia prestes a se expandir amplamente também no Oriente
asiático: gozavam de grande prestígio e exerciam notável influência na
China os missionários jesuítas, que levavam consigo conhecimentos
médicos e científicos avançados e, ao mesmo tempo, se adaptavam à
cultura do país que os hospedava, rendendo homenagem a Confúcio e ao
culto dos antepassados.
Porém, diante da intervenção do papa em
defesa da pureza originária da religião cristã-católica, o imperador
chinês reagiu fechando as portas do Império do Meio aos missionários. O
cristianismo era bem-vindo quando aceitava sua sinificação e promovia o
desenvolvimento científico, social e humano do país em que era chamado a
operar; era, no entanto, repelido como corpo estranho quando visto como
uma religião que promovia uma salvação sobrenatural nem um pouco
respeitosa com a cultura e os laços humanos e sociais vigentes no país
em que se encontrava.
Algo semelhante aconteceu com o marxismo.
Já com Mao, o Partido comunista chinês promoveu a “sinificação do
marxismo” e com isso ganhou impulso para a luta de libertação do domínio
colonial, para um desenvolvimento das forças produtivas capaz de
possibilitar a realização da independência também no plano econômico e
tecnológico, para o “rejuvenescimento” de uma nação de civilização
milenar, submetida pelo colonialismo e pelo imperialismo ao “século de
humilhações” iniciado com as guerras do ópio. Longe de ser negada, a
perspectiva socialista e comunista é orgulhosamente proclamada pelos
dirigentes da República Popular da China: tal perspectiva, porém, está
despida de todo caráter messiânico; além disso, sua realização está
ligada a um processo histórico muito longo, no decorrer do qual a
emancipação social não pode ser separada da emancipação nacional. E, de
novo, o repúdio provém do Ocidente, guardião da ortodoxia doutrinária,
do marxismo ocidental.
Este, agora, fustiga o marxismo oriental,
que é pintado como desprovido de credibilidade e, portanto, banal do
ponto de vista de um marxismo fascinado pela beleza do futuro remoto e
utópico que ele mesmo evoca, e cujo advento parece ser independente de
qualquer condicionamento material (quer se trate da situação geopolítica
ou do desenvolvimento das forças produtivas), por ser determinado
exclusivamente ou de modo absolutamente prioritário pela vontade
política revolucionária.
O desencanto, o distanciamento, a cisão
de que aqui se fala não visam somente a China: seguido pelo marxismo
ocidental com atenção partícipe e apaixonada enquanto opunha resistência
épica a uma guerra colonial de décadas que teve como protagonistas,
primeiro, a França, depois, os Estados Unidos, embora hoje quase
sepultado no esquecimento, é o Vietnã que está empenhado na prosaica
tarefa da edificação econômica. A própria Cuba já não suscita o
entusiasmo dos anos em que lutava contra a agressão militar executada
(sem sucesso) em 1961 e por longo tempo preparada por Washington. Agora
que o perigo da intervenção militar passou a ser remoto, os dirigentes
comunistas de Cuba almejam reforçar a independência no plano, também e
sobretudo, econômico, e para alcançar esse resultado sentem-se obrigados
a fazer algumas concessões ao mercado e à propriedade privada
(inspirando-se de modo bastante cauteloso no modelo chinês). Pois bem, a
ilha, que já não se assemelha à utopia em pleno desenvolvimento, mas se
revela às voltas com as dificuldades próprias do processo de construção
de uma sociedade pós-capitalista, mostra-se bem menos fascinante aos
olhos dos marxistas ocidentais. Quando estava em seu estágio inicial,
aquele da luta militar pela independência política, a revolução
anticolonial raramente suscitou no marxismo ocidental a atenção empática
e o interesse teórico que ela merecia; agora que a revolução
anticolonial está em seu segundo estágio, o estágio da luta pela
independência econômica e tecnológica, o marxismo ocidental reage com
uma postura marcada pelo desinteresse, pelo desdém, pela hostilidade.
A cisão entre os dois marxismos se deu
pela incapacidade do marxismo ocidental em reconhecer a guinada da
guinada ocorrida no século XX. Enquanto se adensam as nuvens de uma nova
grande tempestade bélica, tal cisão se mostra ainda mais lamentável. É
hora de dar cabo dela. Naturalmente, nem por isso se dissiparão as
diferenças que subsistem entre Oriente e Ocidente no que se refere à
cultura, ao estágio do desenvolvimento econômico, social e político, e
às tarefas a serem enfrentadas: no Oriente, a perspectiva socialista não
pode abrir mão de concluir, em todos os níveis, a revolução
anticolonial; no Ocidente, a perspectiva socialista passa pela luta
contra um capitalismo que é sinônimo de aprofundamento da polarização
social e de crescentes tentações militares.
No entanto, não vemos motivos para a
transformação de tais diferenças em antagonismo. Sobretudo agora que a
excomunhão do marxismo oriental pelo marxismo ocidental promoveu o fim,
não do excomungado, mas do excomungador. A superação de todo
comportamento doutrinário e a disponibilidade de se confrontar com o
próprio tempo e de filosofar em vez de profetizar são a condição
necessária para que o marxismo possa renascer e se desenvolver no
Ocidente.