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sábado, 29 de março de 2025

Uma recente história da Internacional Comunista

 

O fracasso da Internacional Comunista ainda assombra a esquerda

Tradução
Pedro Silva

Embora tenha terminado derrotada, a Internacional Comunista foi um dos exercícios mais ambiciosos de ativismo político transnacional já concebidos. Sua ascensão e queda nos dão um vislumbre crucial da história do século XX.

Resenha do livro Travellers of the World Revolution: A Global History of the Communist International [Viajantes da revolução mundial: uma história global da Internacional Comunista] por Brigitte Studer (Verso Books, 2023)


A Internacional Comunista foi concebida em março de 1919 em meio a um contexto de cerco da Rússia revolucionária, poucas semanas após a Revolta Espartaquista de Berlim e os assassinatos de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Os vinte e quatro anos de atividade do Comintern antes de sua dissolução em 1943 foram um ápice histórico da busca racionalmente organizada e transnacionalmente coordenada de derrubada do capitalismo.

O Comintern foi o terceiro na sequência de internacionais socialistas modernas que começaram em 1864 com a Associação Internacional dos Trabalhadores de Karl Marx. Leon Trotsky declarou no discurso de fundação do novo movimento que esta seria “a Internacional da ação de massas aberta, a Internacional da realização revolucionária, a Internacional da ação”. Essa ação seria a revolução mundial. A sociedade global contemporânea está coberta com os destroços da derrota daquele empreendimento amplamente ambicioso.

Analisando o Comintern décadas após seu fechamento em 1943, pode-se ver um veículo sempre fadado a naufragar, navegando contra a maré em uma conjuntura reacionária entre guerras, onde a política de massa revolucionária-democrática incipiente ficou presa entre as engrenagens do imperialismo, do fascismo e do stalinismo. Para os jovens comunistas naqueles anos frenéticos, no entanto, os dois, três, muitos Outubros Vermelhos que a Terceira Internacional foi encarregada de fomentar — de Jacarta a Manágua e de Emília-Romanha ao Cabo da Boa Esperança — pareciam uma perspectiva política concreta, em alguns casos até iminente.

Sua fé na praticabilidade da transformação global radical foi fortalecida pelo convívio cotidiano dentro de um movimento real composto por milhares de militantes em todos os continentes. Para Brigitte Studer, “Os funcionários do Comintern que viajaram pelo mundo em missões políticas tornaram esse internacionalismo uma realidade por meio de sua própria atividade, vivendo seu internacionalismo como ação.” É com esses Viajantes da Revolução Mundial, e sua experiência de vida a serviço de “um dos maiores experimentos coletivos do século XX”, que a nova historiografia do Comintern proposta por Studer se preocupa.

Documentos de civilização e barbárie

Ler uma boa história do Comintern evoca a sensação de estar morto no olho do furacão do século XX, imerso, quase engolido pelos ventos de tempestade de época da era dos extremos. Revolução e contrarrevolução; comunismo e anticomunismo; fascismo e antifascismo; colonialismo e anticolonialismo; política de massa e burocracia estatal; inovação intelectual-cultural e censura; guerra interestatal e terror intraestatal — essas eram as forças olimpianas sob cujos caprichos os soldados de infantaria do Comintern viveram (e morreram). Reconstruir a arquitetura global da Internacional Comunista e a experiência histórica daqueles que a habitaram é, portanto, oferecer uma impressão, por meio de um visor arguto e seleto, de um mundo inteiro “em uma era de confusão sangrenta”.

“Os vinte e quatro anos de atividade do Comintern foram o ápice histórico da busca racionalmente organizada e coordenada transnacionalmente pela derrubada do capitalismo.”

Uma das primeiras reflexões em formato de livro, World Revolution, 1917–1936: The Rise and Fall of the Communist International [Revolução Mundial, 1917–1936: A Ascensão e Queda da Internacional Comunista] (1937) de CLR James, apareceu como uma intervenção contemporânea em uma situação política específica, logo após o “Julgamento dos Dezesseis” de Moscou e a execução — junto com quinze companheiros Bolcheviques veteranos — do presidente fundador do Comintern Grigory Zinoviev. James condenou a deterioração contínua da “maior força revolucionária que a história já viu” como “a vergonha e a tragédia gritantes de nossa era”.

O trotskista britânico Duncan Hallas aderiu a uma visão semelhante em The Comintern (1985), que trouxe a história de seu declínio até “o último espasmo” de 1939–43. Para estudantes anglófonos neste século, o texto referência pode ser The Comintern: A History of International Communism from Lenin to Stalin [O Comintern: Uma História do Comunismo Internacional de Lênin a Stalin] (1996), de Kevin McDermott e Jeremy Agnew, uma visão geral inteligente e justa de sua alta política “da perspectiva de meados da década de 1990”, em meio ao que seus autores veem como o fracasso “autoevidente” do “projeto marxista-leninista”.

Desde então, a abertura dos arquivos soviéticos para pesquisadores estimulou uma crescente literatura acadêmica especializada, incluindo obras de Silvio PonsLisa KirschenbaumNorman LaPorte, Kevin Morgan e Matthew WorleyMargaret Stevens e Oleksa Drachewych, entre outros. Graças ao trabalho de John Riddell e do Comintern Publishing Project, hoje desfrutamos de acesso abrangente a traduções dos procedimentos dos congressos canônicos (e menos conhecidos) da Internacional da era Lênin, um projeto importante que, como Paul Le Blanc observou recentemente , “sugere a necessidade de uma história atualizada”.

Nesse contexto, a nova tradução em inglês de Daffyd Roberts de Reisende der Weltrevolution, de Brigitte Studer (publicada pela primeira vez em 2020 pela Suhrkamp Verlag de Berlim) parece especialmente extraordinária. Professora emérita em história contemporânea na Universidade de Berna, com um histórico de publicações sobre assuntos como feminismosufragismo e nacionalidade suíça, Studer tem sido há muito tempo a decana da bolsa de estudos do Comintern Europeu. Ela lançou sua primeira monografia de oitocentas páginas sobre as relações da Internacional com o Partido Comunista da Suíça em 1994.

Ao pesquisar o terreno da historiografia do Comintern em 1997, Studer e Berthold Unfried argumentaram que o campo estava no início de uma “Nova História”. Eles insistiram para que os acadêmicos “ampliassem o quadro” das pesquisas incorporando “temas da história social contemporânea”, como identidade, gênero e as delimitações da vida pública e privada. Essa abordagem deu frutos no volume de Studer de 2015The Transnational World of the Cominternians [O Mundo Transnacional dos Cominternianos], uma compilação com capítulos independentes, compreendendo juntos um mosaico detalhado do compromisso comunista vivido por aqueles militantes. A autora apresentou uma citação reveladora do escritor comunista francês Paul Nizan: “O comunismo é política, mas também é um estilo de vida”.

Com um toque de The Transnational World em seus temas e argumentos elementares, embora tenha mais do que o dobro de sua extensão, Travellers of the World Revolution marca o provável desfecho do projeto contemporâneo de Studer de reivindicar uma história do Comintern a partir de “perspectivas culturais, experienciais, subjetivas e centradas nos sujeitos”. Seu título denota o que ela chama de “comunidade historicamente específica do destino” que abrange aquelas mulheres e homens “que fizeram da revolução sua vocação e para quem o engajamento político significava trabalhar pelo Comintern”. Dessa forma, Studer explica, a proposta dela é “uma história um tanto diferente do foco no Comintern, é uma história do Comintern como local de trabalho”.

Revolucionários profissionais

Travellers é um triunfo. Tomando como tema “as vidas no trabalho e as circunstâncias cotidianas” dos “revolucionários profissionais” da Terceira Internacional, postados em todos os lugares, “em missões que eles esperavam que trouxessem a transformação revolucionária das relações sociais e políticas”, o relato de Studer é um afresco Riverano em escala real da experiência Cominterniana, pintado em cores vivas.

“Escrever um livro como este — anto o ápice de décadas de pesquisa especializada quanto uma história popular — requer a soma total dos poderes de uma historiadora experiente.”

Escrever um livro como este — tanto o ápice de décadas de pesquisa especializada quanto uma história popular — requer a soma total dos poderes de um historiadora experiente: como investigadora e sintetizadora poliglota de arquivos, biógrafa individual e do movimento como um todo e, acima de tudo, como contadora de histórias. Onze capítulos densos ​​enquadram sua narrativa peripatética, transportando o leitor de um para o outro pelos sucessivos “pontos críticos revolucionários dos anos entre guerras” e os submundos cotidianos concebidos pelos itinerantes comunistas que operavam neles.

À medida que a onda revolucionária europeia pós-1917 começou a diminuir, também arrefeceram as esperanças de que uma Alemanha ou Itália soviética pudesse surgir para aliviar o isolamento e o atraso da Rússia. Em 1919, como Studer relembra, Zinoviev previu que “toda a Europa seria comunista dentro de um ano”, mas as repúblicas soviéticas na HungriaBaviera e Bremen acabaram tendo curta duração. O icônico Segundo Congresso Mundial do jovem Comintern no verão de 1920 resolveu se adaptar a um período de tempo mais longo:

Se a ordem mundial capitalista fosse destruída e uma revolução mundial fosse provocada por insurreição armada, um aparato político e administrativo e uma rede global teriam que ser construídos […] O poderoso inimigo não poderia ser superado por ações espontâneas, mas apenas pela intervenção de uma vanguarda contundente, bem treinada e coordenada. As massas também precisariam ser preparadas ideologicamente. Tal esforço transnacional exigia organização, diretrizes claras e recursos na forma de dinheiro, conhecimento prático e pessoal.

Presumindo a familiaridade dos leitores com Lênin, Trotsky, Zinoviev e outros grandes fundadores como Clara ZetkinKarl Radek e Nikolai Bukharin, Studer destaca o que ela chama de “geração de 1920”. Eram jovens comunistas, radicalizados pela experiência da guerra imperialista e pela inspiração da revolução liderada pelos bolcheviques, que “forneceram ao aparato [do Comintern] seu primeiro e, com certas exceções, mais duradouro quadro”.

Entre eles havia alguns que se destacavam, como o “maestro da propaganda” da Alemanha, Willi Münzenberg, e o cofundador indiano dos partidos comunistas do México e da Espanha, MN Roy, junto com muitas figuras menos conhecidas (ou simplesmente desconhecidas): “funcionários de nível médio e baixo […] principalmente assistentes, secretários, tradutores [e] mensageiros”. A talentosa linguista Hilde Kramer e as irmãs de Potsdamer Babette Gross e Margarete Buber-Neumann estão entre os viajantes cujas trajetórias Studer examina.

Com base em memórias e materiais biográficos diversos, incluindo as “autobiografias do partido” confessionais que os funcionários do Comintern foram encorajados (e mais tarde compelidos) a completar, Studer apresenta um elenco de personalidades bem abragente. Aprendemos não apenas sobre suas carreiras políticas, mas suas origens nacionais, de classe e familiares, histórias de suas educações e ocupações, caminhos rumo à política revolucionária, vidas e rotinas pessoais, gostos e preconceitos, fraquezas e falhas. Esses personagens principais se misturam ao longo do volume com nomes como Albert Einstein e Madame Sun Yat-sen, Marlene Dietrich e Augusto SandinoMahatma Gandhi e Orson Welles, cujas aparições especiais ilustram o meio progressista transnacional mais amplo pelo qual os quadros do Comintern circularam.

Studer se atenta ao “distinto mundo da vida” dos soldados de infantaria globalmente dispersos do Comintern, com uma “densa rede de conhecidos, amizades, casos amorosos e inimizades”, tanto quanto com as operações e políticas em macroescala da organização. Isso imbui sua narrativa de vitalidade humana, por vezes charmosa e pungente. Os objetos do livro estavam vinculados, como colocado por Buber-Neumann, “não por um contrato de emprego, mas por uma causa comum”. Cada célula de comunistas estrangeiros que o livro destrincha também era um emaranhado coeso de dependências interpessoais.

“Dentro desse grupo exclusivo de revolucionários que se cruzaram diversas vezes, o romance floresceu naturalmente junto com a camaradagem.”

Dentro desse grupo exclusivo de revolucionários que se cruzaram diversas vezes, o romance floresceu naturalmente ao lado da camaradagem. Muitos dos viajantes de Studer formaram casais, ela observa, em “um número notavelmente alto” fazendo isso mais de uma vez durante seus mandatos como Cominternianos. No entanto, relacionamentos duradouros, amorosos ou não, eram raros o suficiente, com as pressões do nomadismo rotineiro e o risco de prisão, ou pior, para separá-los. Do final da década de 1920 em diante, essa situação foi agravada por um ambiente político cada vez mais fragmentado, sectário e intolerante.

Envolvida em sua reconstrução detalhada de relacionamentos pessoais entre os revolucionários profissionais, a ênfase de Studer nos “aspectos das vivências e emocionais da história [do Comintern]” é uma das dimensões mais ressonantes do livro. Sintetizando variadas perspectivas e relatos contemporâneos, Travellers descreve como o espectro de sentimentos do Comintern oscilava entre otimismo transcendente e desespero aniquilador, sem mencionar admiração, excitação, ressentimento, terror físico e puro tédio ou solidão cotidianos. “O fracasso político e as muitas adversidades da vida cotidiana”, explica Studer em uma descrição que todo socialista ativo reconhecerá, “representavam uma ameaça recorrente à autoconfiança dos revolucionários profissionais”. Para aqueles que mantiveram o curso por meio de sucessivos desencantos em relação às suas expectativas, “uma capacidade de tolerar a frustração era essencial”.

Seguindo os cursos de carreira de dezenas de personalidades proeminentes, mencionando nominalmente mais de trezentas, Travellers reúne um mosaico de “engajamento total” na luta pelo socialismo internacional durante as vidas de seus sujeitos como Cominternianos. Foram vidas vividas e sacrificadas — muitas vezes literalmente — a serviço do “futuro político da humanidade, que perderia todo o significado na ausência de uma revolução mundial proletária”. Transmitindo a dimensão histórica mundial das apostas feitas por todos em seu sucesso, Studer vai um pouco em direção à explicação do “compromisso incansável” de seus protagonistas, bem como sua disposição de “justificar meios por seus fins”.

A maior parte da “geração de 1920” acabou experimentando desilusão, frequentemente em ondas que acompanhavam as mudanças de linha do Comintern e a consequente ostracização obrigatória dos oposicionistas, com as questões chegando ao auge para muitos durante o final da década de 1930 (às vezes de dentro de uma cela de prisão). Não era apenas uma questão de descartar um cartão de membro do partido: “No mundo social do Comintern, deixar o partido era trair a causa; os chamados renegados eram ostracizados socialmente e frequentemente difamados, até mesmo perseguidos depois […] Quanto mais forte o comprometimento, maior o perigo de que a renúncia ou a expulsão provocassem uma crise existencial.”

“Inflexivelmente crítica em alguns aspectos e inconfundivelmente afeiçoada aos seus temas em outros, Studer mantém um tratamento acadêmico, mas empático, dessas vidas ao longo de seu estudo.”

Inflexivelmente crítica em alguns aspectos e inconfundivelmente afeiçoada aos seus temas em outros, Studer mantém um tratamento acadêmico, mas empático, dessas vidas ao longo de seu estudo. Permitindo que eles falem por si mesmos, sempre que possível, a própria historiadora emprega uma voz narrativa sóbria, desapaixonada, mas vívida, permitindo que os leitores formem suas próprias opiniões.

Quando Studer intervém em questões de interpretação geral, é para repelir a condescendência anticomunista (e antiutópica) da posteridade. Em sua conclusão, ela cita uma réplica à retrospectiva paternalista do ex-comunista Manės Sperber: “Oh, a sabedoria mesquinha dos sobreviventes que veem em esforços que fracassaram apenas o fracasso em si e que podem descobrir tão facilmente as causas.”

A experiência da derrota

O livro de Studer é certamente, em última instância, um retrato meticuloso da experiência de derrota da Comintern. Sua narrativa se inicia com a maioria de seus personagens sobreviventes após a liquidação final da Comintern enfrentando a conclusão, como os republicanos ingleses do século XVII de Christopher Hill após a Restauração, “de que o mundo não seria virado de cabeça para baixo, afinal”.

“O livro de Studer é certamente, em última instância, um retrato meticuloso da experiência de derrota da Internacional Comunista.”

O fato inescapável dessa derrota eventual e memorável pesa muito em todo o texto, dando até mesmo aos momentos mais animados de seus personagens um tom melancólico para os leitores do mundo de hoje — separado daquele dos Travellers de Studer pela experiência da Segunda Guerra Mundial, o Holocausto, o Stalinismo e todas as depredações subsequentes do capitalismo imperialista. Sua capa estampada com o contorno fantasmagórico da Torre de Tatlin, a revisitação pós-moderna de Studer dos triunfos e tragédias da geração do Comintern resulta em uma leitura comovente e melancólica.

Mas tal “melancolia de esquerda”, como Enzo Traverso observa, não significa que devemos “abandonar a ideia ou a esperança por um futuro melhor; significa repensar o socialismo em um tempo em que sua memória está perdida, escondida e esquecida e precisa ser redimida. Essa melancolia não significa lamentar uma utopia perdida, mas sim repensar um projeto revolucionário em uma era não revolucionária.” A história de Studer constitui um exemplo primordial dessa “melancolia frutífera”: lançando nova luz sobre as poderosas energias emancipatórias que a causa da revolução socialista mundial outrora despertou entre milhões, que por meio de sua redescoberta por quadros de esquerda hoje podem — para citar Edward Thompson — “ser trazidas mais uma vez para o nosso lado.”

Embora os desafios históricos enfrentados pelos viajantes tenham se mostrado intransponíveis, a experiência de sua tentativa diante dessas probabilidades permanece inigualável na história global. A cultura intelectual do movimento socialista em nosso próprio século seria muito enriquecida pelo aprendizado com essa experiência.

Uma das grandes realizações de Studer é sua recuperação — contra o que ela vê como concepções comuns, porém enganosas, da “força de trabalho do Comintern” como funcionários stalinistas “monocromáticos” — da incrível diversidade dos Cominternianos, em termos de nacionalidade, origem de classe, idade, tipo de personalidade, atitudes sociais, cultura política e processual e orientação em direção à stalinização progressiva da organização: “Os comunistas nunca formaram uma classe uniforme, nem mesmo na segunda metade da década de 1930, quando Stalin havia se arrogado todo o poder”.

Enquanto o centralismo democrático da era da guerra civil do Partido Bolchevique significava que o Comintern operava sob uma expectativa de “disciplina partidária” majoritária desde o início, as questões eram mais complicadas na prática, explica Studer. Demonstrando com referência em particular ao Segundo Congresso de 1920 que a história do Comintern era de “conflitos, diferenças e dissidências” tanto quanto de uniformidade, ela conclui que a “extrema homogeneidade” da organização na década de 1930, “tal qual era, foi amplamente alcançada por meio da repressão e aniquilação física”.

A recuperação acadêmica de Studer da pluralidade e altivez deste mundo entreguerras é, portanto, um corretivo vital para as falsificações anticomunistas e stalinistas da história do Comintern. Como o falecido Theodor Bergmann, último quadro sobrevivente do Partido Comunista da Alemanha (KPD) da era de Weimar, disse à Jacobin em 2016:

A história do comunismo não é como Stalin descreveu, nem como a burguesia descreve. Historiadores burgueses dizem “é tudo a mesma coisa, tudo stalinismo” — isso é mentira. Temos que tentar escrever uma história diferente do comunismo e segui-la.

Brigitte Studer fez uma contribuição importante para essa busca necessária.

A Internacional

Além de uma história convincente do comunismo e dos comunistas, Travellers também é um estudo sobre um tipo particular de globalização. “O século XX”, Studer nos conta, “não conheceu nenhuma outra organização ou movimento social tão internacional em sua retórica, tão transnacional em sua prática, tão global em suas ambições” quanto o Comintern. Os funcionários do Comintern viveram o internacionalismo revolucionário que o marxismo clássico havia defendido enquanto “viajavam pelo mundo em missões políticas”.

Seu relato atravessa sua topografia necessariamente planetária em sequência cronológica por uma cadeia de “cidades globais”: Moscou revolucionária, Baku e Tashkent; Berlim cosmopolita, Paris e Bruxelas; Guangzhou nacionalista (antigamente Cantão), Wuhan e Xangai; e Madri, Valência, Albacete e Barcelona durante a “Última Missão” para a Espanha devastada pela guerra — com a capital soviética sendo um “lar” recorrente (embora progressivamente inóspito) para os viajantes de toda parte. Sua narrativa transcontinental traz à mente o avião de Indiana Jones, traçando linhas vermelhas em um mapa em tons de sépia do mundo entreguerras; leitores não familiarizados com o dinamismo mochileiro das operações de campo do Comintern seriam aconselhados a apertarem os cintos.

“A narrativa intercontinental de Studer lembra o avião de Indiana Jones, traçando linhas vermelhas em um mapa em tons de sépia do mundo entreguerras.”

Para os protagonistas do livro, o internacionalismo assumiu “uma grande variedade de formas práticas”, com a viagem física como pré-condição para todas elas. Studer inicia sua narrativa com as respostas pessoais de seus sujeitos ao seu primeiro “Encontro Revolucionário” em meio ao internacionalismo cuidadosamente coreografado do Segundo Congresso dos anos 1920, tendo feito seu caminho para Moscou através de frentes de batalha e bloqueios. A maioria dessas jornadas por terra e água foram feitas ilegalmente, o que poderia envolver o fretamento de embarcações usando documentos falsos ou o contrabando para a Rússia com prisioneiros de guerra repatriados; no caso de uma parte, significou sequestrar um barco a vapor alemão. Nem todos os que embarcaram nessa peregrinação conseguiram retornar, com vários perdidos no mar (incluindo dois comunistas turcos que foram afundados pela polícia no Mar de Mármara).

As notáveis excursões ​​— às vezes teatrais — rotineiramente exigidas dos agentes do Comintern durante seus perigosos “cursos de vida transnacionais” são um elemento memorável e emocionante que pontua os capítulos de Studer. Elas incluem a viagem de trem blindado de John Reed sobre o Cáucaso devastado pela guerra, bem como uma jornada de cinco semanas até Wuhan através do interior chinês brutalizado e uma viagem de carro pelo deserto de Gobi até a Mongólia Soviética. Studer também nos fornece os detalhes da fuga de um ativista de Cantão com a ajuda de um puxador de riquixá subornado, tendo instigado uma revolta de trabalhadores que foi brutalmente esmagada, juntamente com a participação de um comunista europeu na fatídica Longa Marcha de Mao Zedong para Yan’an.

O ano de 1933 viu uma corrida desesperada por passaportes para escapar da Alemanha, enquanto aqueles que viajaram para a Espanha alguns anos depois tiveram que escalar os Pireneus congelados antes de experimentar a alegria no cume: “Nós levantamos nossos punhos cerrados e gritamos ¡Viva España! Começamos a cantar A Internacional, baixinho, um pouco constrangidos no início, depois cada vez mais alto.”

Com voos disponíveis somente a partir do final da década de 1930 para aqueles que receberam o (agora sinistro) “convite para casa” em Moscou, as fronteiras nacionais — e a arte de sua subversão — eram centrais para a existência dos viajantes como Studer descreve. Eles passavam o tempo “implantando inúmeros pseudônimos, disfarçando-se de escritores, jornalistas, viajantes comerciais”, atravessando fronteiras estatais com “passaportes falsos e malas de fundo falso”.

Esses disfarces nem sempre eram infalíveis: Studer cita um episódio quando dois secretários do Comintern em Berlim descobriram “com consternação que ambos tinham recebido exatamente o mesmo passaporte falsificado”. No entanto, a profissionalização progressiva significou que, no início da década de 1930, todos os agentes “viajavam sob pseudônimos com documentos falsos correspondentes”. Comunicados e recursos escondidos eram transportados através de fronteiras por mensageiros treinados, com “ouro, joias e pedras preciosas” expropriados de aristocratas czaristas costurados em suas mangas ou “escondidos em solas de couro” para ajudar a financiar empreendimentos revolucionários.


Cheios de siglas e contrações, os capítulos de Studer familiarizam o leitor com os órgãos que compunham o que ela chama de “sistema planetário do comunismo internacional”. O Comintern incorporava uma superestrutura “altamente ramificada” de comitês, escritórios e secretarias regionais. Havia “escolas de quadros” como a Universidade Comunista dos Trabalhadores do Leste de Moscou, jornais como Inprekorr e o Negro Worker, “organizações de fachada” como a Liga Contra o Imperialismo de Münzenberg e o Comitê Mundial Contra a Guerra e o Fascismo, e até formações militares como as Brigadas Internacionais da Espanha. Esses vários órgãos eram, como Studer explica, “interligados, mas também competiam” por recursos e aprovação oficial.

Embora o Comintern tenha instituído como padrão uma jornada de trabalho de seis horas “genuinamente revolucionária”, seus quadros frequentemente trabalhavam até tarde da noite, enquanto a equipe do Inprekorr “trabalhava dia e noite em semanas alternadas, e, portanto, muito café era consumido”. Mesmo onde o comunismo não era formalmente proibido, a discrição era uma necessidade para os viajantes; o mundo deles era de “apartamentos secretos e pensões”, de livrarias que funcionavam como frentes comunistas clandestinas de Berlim a Xangai. Operando disfarçados, muitos receberam pseudônimos elaborados, com um agente “encontrando emprego como secretário de um professor chinês de música”, conspirando para manter a rede do Leste Asiático do Comintern sempre que não estivessem ocupados organizando apresentações de fachada.

“Uma disjunção entre as políticas elaboradas em Moscou e as práticas de campo mais ou menos distantes foi uma característica consistente da história do Comintern.”

Uma disjunção entre as políticas elaboradas em Moscou e as práticas de campo mais ou menos distantes era uma característica consistente da história do Comintern, com agentes em missões estrangeiras rotineiramente obrigados a tomar decisões arbitrárias e urgentes eles mesmos. Studer enfatiza as dificuldades na comunicação de longo alcance entre o Comintern, seus emissários e partidos comunistas nacionais, tanto logísticas quanto linguísticas.

O contato soviético com o Partido Comunista da China (PCC) durante a década de 1920 dependia de cartas codificadas e telégrafos de rádio criptografados transmitidos por estações de passagem do Comintern com “operadores de rádio, codificadores e tradutores” especializados para garantir o sigilo. MN Roy e Mikhail Borodin, que foram enviados para persuadir “seus camaradas chineses” de que a linha de Moscou estava correta, não falavam chinês: como muitos agentes soviéticos naquele país, eles dependiam de intérpretes de “qualidade variável” para cada interação com os quadros do PCC.

Cada estágio de decodificação e tradução somado à natureza “ambivalente, até mesmo contraditória” das diretivas de Moscou, deixava muito espaço para interpretação. O apoio do Comintern à frente única do PCC com o Kuomintang burguês-nacionalista de Chiang Kai-shek antes do massacre de Xangai em 1927 encontrou “resistência obstinada” entre alguns comunistas chineses, como Studer relata. A liderança do PCC se recusou a “simplesmente ceder e aceitar a imposição de uma linha política sobre a qual tinha sérias dúvidas”, o que significava que Borodin e Roy — que para complicar as coisas estavam cada vez mais em desacordo um com o outro — tiveram que apresentar seu caso perante o congresso do partido.

A esquerda anti-stalinista há muito tempo interpreta o infame desastre da política da Comintern em relação à China, que efetivamente subordinou a luta proletária da China à preservação de uma aliança com os nacionalistas governantes, aliados aos soviéticos, como um exemplo clássico das tensões entre o internacionalismo revolucionário da organização e os interesses concebidos pela URSS como um Estado limítrofe sob a política de “socialismo em um só país” de Joseph Stalin. Como a própria Studer afirma, “os interesses do governo soviético como representante de um Estado e os interesses dos comunistas organizados dentro do Comintern não coincidiam mais necessariamente, e as contradições começaram a aparecer”.

No entanto, ela conclui em outro ponto que tais falhas “não derivaram simples e exclusivamente do choque entre os interesses da política externa soviética e os da revolução mundial, como às vezes é sugerido por alguns”. A interpretação de Studer enfatiza as dificuldades inerentes de “analisar e interpretar as complexas realidades sociopolíticas” em todos os países nos quais o Comintern operou, além de “formular e implementar táticas apropriadas” para aproveitar as oportunidades políticas.

Nesse aspecto, como em outras partes do livro, Studer retrata as falhas do Comintern, individuais e coletivas, dentro de seu contexto histórico. Ao fazê-lo, pronuncia um veredito mais sensível e leniente sobre aqueles condenados na história da esquerda por sua associação com os naufrágios (às vezes catastróficos) de manobras revolucionárias que foram colocadas sob sua responsabilidade.

“Studer reafirma categoricamente o papel histórico do Comintern como ‘o pioneiro de uma política global, anticolonial, antirracista e anti-imperialista’.”

A relação do bolchevismo com o pensamento e a política anticoloniais tem sido o assunto de vários estudos acadêmicos e populares nos últimos tempos. Studer reafirma categoricamente o papel histórico do Comintern como “o pioneiro de uma política global, anticolonial, antirracista e anti-imperialista”, com o ano de 1920 marcando “o início de uma mudança perceptível do Ocidente para o Oriente na orientação estratégica do Comintern” que fluiu do Congresso de Baku dos Povos do Oriente daquele ano.

O que Tim Harper apelidou de “Ásia subterrânea” está na vanguarda do relato de Studer, com empreendimentos latino-americanos, caribenhos, africanos e do Oriente Médio do Comintern relegados a uma presença mais periférica. As seções que destacam o engajamento do Comintern com a política global da libertação negra são bem elaboradas, embora breves: o camaronês-berlinense Joseph Ekwe Bilé recebe um perfil extenso, e contemporâneos como George PadmoreJames La Guma e Claude McKay aparecem fugazmente, embora Harry Haywood do CPUSA esteja surpreendentemente ausente.

Studer elabora o seguinte balanço do legado anticolonial geral do Comintern: “Os comunistas não foram os primeiros a entrar no campo da luta anticolonial, mas, como Mustafa Haikal bem disse, depois de 1925 eles agiram como o ‘fermento decisivo’ que brevemente transformou elementos políticos díspares em um todo global, embora volátil.” A iniciativa do Comintern “não apenas internacionalizou e globalizou os movimentos de libertação regionais até então de continentes muito distantes uns dos outros, ao destacar o que suas lutas tinham em comum; também lhes deu uma vantagem política mais nítida ao promover a demanda por independência nacional.”

Studer reincorporou de forma convincente uma das dimensões mais orgulhosas (e, em última análise, mais importantes) de seu dedicado internacionalismo com seus viajantes na história popular do Comintern para uma nova geração de leitores.

Contra o “plano de vida burguês”

Embarcar voluntariamente nessa “existência perpetuamente precária e instável” necessariamente implicava uma rejeição do que Studer chama de “um plano de vida burguês”. Isso se refere não apenas ao universo político e ao habitus aquisitivo da burguesia, mas à totalidade dos costumes sociais e culturais tradicionais que eram hegemônicos dentro do capitalismo contemporâneo. Seu livro se distingue pela atenção que dispensa não apenas ao mundo profissional coletivo de seus sujeitos, mas também às suas vidas pessoais (e íntimas).

Canalizando sua especialização em história das mulheres e feminista, a provisão de Studer de uma “perspectiva histórico-gênero” sobre o Comintern que ela corretamente afirma ser “absolutamente necessária” como um corretivo historiográfico encontra expressão em sua envolvente discussão dos papéis que os efetivos femininos desempenharam dentro da organização e, mais amplamente, dos temas que caracterizam sua experiência como mulheres. Ela também fornece um retrato evocativo da arte e cultura populares do comunismo internacional em uma era de experimentação modernista, observando que o estilo de vida Cominterniano frequentemente incorporava um paradoxo curioso, com “uma vanguarda boêmia e artística de um lado e estruturas familiares e hábitos de vida burgueses do outro, apesar das demandas de atividade ilegal”.

“Studer descreve a experiência de gênero e liberdade sexual alcançada por (algumas) mulheres na era do Comintern.”

Embora constituíssem apenas uma “pequena minoria” entre os agentes do Comintern, mulheres como Tina ModottiAgnes SmedleyRuth Werner e a tragicamente fadada Olga Benário Prestes representam muitas das personalidades de destaque na narrativa de Studer. Em um período em que a participação de mulheres em organizações políticas em termos de igualdade permaneceu extremamente rara, a abertura formal da Internacional para mulheres em todos os níveis de suas estruturas (e alinhamento retórico com “as demandas das feministas de esquerda”) atraiu uma série de jovens mulheres radicais com a “nova oportunidade para atividade política e pública de fato”.

Seguindo a política radical de gênero de Clara Zetkin e da líder bolchevique Alexandra Kollontai, a emancipação das mulheres era “um princípio fundamental incontestado” nos primeiros anos do Comintern, e que era “ativamente promovido” em suas conferências internacionais. Discursos francos de comunistas “orientais” pioneiros como Naciye HanimKhaver Shabanova-Karayeva e Bibinur, “insistindo na autonomia da luta pelos direitos das mulheres”, ilustraram para Studer como “o comunismo havia encontrado um novo aliado no feminismo”:

Ao garantir proativamente às mulheres um papel no Congresso de Baku, o Comintern sinalizou claramente a importância que concedeu à emancipação das mulheres muçulmanas e das mulheres em sociedades patriarcais tradicionais em geral. No processo, o Comintern também fez das mulheres os sujeitos de sua própria libertação.

Studer descreve a experiência de gênero e liberdade sexual alcançada por (algumas) mulheres na era do Comintern. Um feminismo igualitário surgiu com “o discurso da reforma sexual dos anos 1920”, do qual os comunistas participaram. Animadas por noções da “Nova Mulher”, as jovens operativas femininas do Comintern rejeitaram os valores burgueses e as normas patriarcais, engajando-se em um estilo de vida efervescente de experimentação utópica.

Studer identifica “uma liberalização das práticas sexuais” e “mudanças no relacionamento entre os sexos” entre seus personagens, envolvendo relacionamentos abertos, casamentos informais, casos breves e filhos de pais diferentes. Dada essa ética sexual libertina revolucionária, “a fronteira entre relacionamentos políticos/profissionais e privados” entre os Cominternianos, sem surpresa, “era frequentemente fluida”. A homossexualidade também era “tolerada quando não totalmente aceita”, enquanto vários funcionários do Comintern seguiam os passos de Munzenberg e Gross como inquilinos do sexólogo Dr. Magnus Hirschfeld, um dos primeiros defensores dos direitos gays e trans: Hirschfeld, observa Studer, era “ele próprio um social-democrata, mas bastante aberto ao comunismo”.

Esse espírito estava vivo entre as mulheres comunistas em todo o mundo transnacional do Comintern: na China, Agnes Smedley “não apenas encontrou a garantia de que ainda era sexualmente atraente, apesar de seus quase quarenta anos, mas também percebeu a importância da Revolução Chinesa para a emancipação das mulheres”. No entanto, foi na Alemanha que as operativas femininas do Comintern estavam mais imersas na atmosfera de gênero e emancipação sexual, em meio às “novas e radicais formas de vida e arte” que permeavam a Berlin Babilônia:

Os membros do Partido Comunista encontraram intelectuais progressistas, artistas, jornalistas, diretores, atores e músicos em pubs, em apresentações teatrais e, por último, mas não menos importante, em salas de reunião […] Havia noites de discussões intelectuais, palestras sobre marxismo, leituras de literatura de vanguarda. Funcionários do Comintern de outros países também apreciavam a animada vida intelectual e artística da cidade, alguns deles se tornando intensos contribuintes para ela.

Apesar dessa atmosfera progressista, no entanto, Studer explica como o gênero provou ser continuamente o fator mais importante na determinação do papel de um revolucionário no Comintern. Na prática, as mulheres eram amplamente excluídas de posições de autoridade, enquanto forneciam a maioria dos recrutas para o trabalho “administrativo, de secretaria e linguístico”. O trabalho das mulheres para o Comintern era, ela enfatiza, “indispensável” para suas operações, mas a Internacional, no final das contas, provou ser “nada diferente da sociedade civil do entreguerras ao simplesmente não considerar as mulheres aptas para a liderança ou a responsabilidade política”.

A persistência do antigo regime de gênero dentro do Comintern “apesar de seu compromisso ostensivo com a igualdade dos sexos” era ironicamente mais pronunciada nas vidas familiares dos próprios viajantes. Enquanto mulheres comunistas solteiras eram “mais propensas a serem vistas como atrizes políticas independentes”, explica Studer, “o Comintern tendia a tratar as esposas como apêndices de seus maridos”. Com os homens designados para o trabalho da revolução internacional e as mulheres com a reprodução administrativa e social desse trabalho, Smedley experimentou a dependência absoluta de seu esposo Virendranath Chattopadhyaya em seu trabalho auxiliar como “a exploração tipicamente masculina de uma parceira feminina”.

“Studer detalha o ‘espanto e horror’ de muitos comunistas estrangeiros com a recriminalização do aborto na URSS em 1936.”

Studer retrata essa dinâmica longamente em seu relato post-mortem do casamento nômade de MN Roy e Evelyn Trent, nascida na Califórnia, cercado por “dificuldades e tensões”, incluindo chauvinismo masculino: “O comprometimento de Roy com a Revolução não o tornou automaticamente um feminista. Como Roy aparentemente confidenciou a [Henk] Sneevliet, ‘ele não gostava da combinação de esposa e política.’”

A contradição entre o feminismo revolucionário-utópico de muitas mulheres Cominterianas e a realidade patriarcal duradoura tornou-se mais nítida, sugere Studer, à medida que a União Soviética sob Stalin regrediu de muitas das conquistas provisórias para a emancipação das mulheres que haviam sido instituídas após a Revolução Bolchevique. Studer detalha o “espanto e horror” de muitos comunistas estrangeiros com a recriminalização do aborto em 1936: “A União Soviética, frente a todos os outros lugares, recuaria no direito que eles insistentemente exigiam para as mulheres no Ocidente.”

Escuridão ao meio-dia

O status de Travellers of the World Revolution como uma obra de imensa tragédia é revelado de forma mais pungente nas passagens finais do livro — embora a virada da maré histórica contra os Cominternianos se torne dolorosamente evidente a partir dos capítulos sombrios de Studer sobre a China. Os rigores de sua missão e a perspectiva terrível de seu fracasso provaram ser exaustivos para muitos dos protagonistas do livro. Como Trent confessou em uma carta de 1927 a Sneevliet, que, como ela, estava prestes a deixar o Comintern: “Eu estava muito cansado de ser caçado de um lugar para outro, de um país para outro, de ter que me esconder e sempre estar cercado por uma terrível névoa de suspeita e medo, e ter outros suspeitando e temendo a mim.”

“A perseguição política e a repressão legal se intensificaram internacionalmente desde a época do terror branco de Chiang Kai-shek em 1927.”

As forças policiais representam os antagonistas implacáveis ​​dos viajantes em todo o relato de Studer: Roy certa vez reclamou que a polícia imperial britânica o perseguiu “de Java ao Japão, da China às Filipinas, à América, ao México e pela maioria dos países da Europa”. Ele acabou preso por seis anos no Raj após sua expulsão do Comintern.

A perseguição política e a repressão legal se intensificaram internacionalmente a partir da época do terror branco de Chiang Kai-shek em 1927. A ascensão de Adolf Hitler na Alemanha, como Studer relata, levou ao colapso do partido comunista não governante mais poderoso “como um castelo de cartas”, deixando as coisas severamente mais difíceis.

Dezessete dos viajantes de Studer foram finalmente assassinados pelos nazistas, enquanto outros foram vítimas de forças anticomunistas na China, Japão e Espanha. No entanto, a maioria de seus protagonistas que tiveram um fim violento o fizeram no curso dos expurgos que Stalin desencadeou contra quadros do comunismo internacional. Studer descreve em detalhes de pesadelo a amplitude social e o terror psíquico do “ataque generalizado de Stalin ao meio cosmopolita do Comintern”. O próprio Stalin é uma presença curiosamente marginal ao longo do livro, até seu surgimento em seus capítulos finais como um ceifador que abriu “um caminho devastador nas fileiras de funcionários do Comintern”.

Detalhando a nauseante queda livre em direção ao que Studer chamou anteriormente de “o final ‘shakespeariano’ do movimento mundial”, ela narra os caminhos que vários de seus protagonistas seguiram em seu caminho para a oposição aberta ao stalinismo e sua política internacional ziguezagueante (muitas vezes tendo denunciado anteriormente camaradas próximos que se tornaram “oposicionistas” antes deles). Tal desafio garantiu sua expulsão da família Comintern. No contexto de concatenar derrotas internacionais e a consolidação da ditadura absolutista de Stalin na URSS, qualquer forma de pluralismo dentro do Comintern era cada vez mais considerada suspeita: “A discussão livre morreu, e em meados da década de 1930 a dissidência foi criminalizada”.

À medida que a perseguição de Stalin aos seus oponentes derrotados entre os bolcheviques aumentava após o assassinato de Sergei Kirov, a menor suspeita de tendências oposicionistas entre os Cominternianos em Moscou tornou-se “cataclísmica em suas consequências”. O Hotel Lux, outrora um refúgio para os viajantes de Studer, tornou-se uma prisão permeada por “medo e desconfiança mútua”, com oitenta e três membros da equipe do Comintern que ocupavam o prédio baleados, enquanto muitos outros tiraram suas próprias vidas.

Uma vez que o “carrossel de acusações” começou a girar, as vítimas podiam incluir não apenas antigos apoiadores de Trotsky ou Bukharin, mas também muitos stalinistas leais. Studer fornece uma visão próxima da trajetória de Heinz Neumann: a princípio um dos “meninos de olhos azuis de Stalin” na liderança do KPD, ele eventualmente criticou a linha do partido e mais tarde foi preso em Moscou e submetido a um processo aniquilador de interrogatório e “autodegradação” antes de sua execução em novembro de 1937.

O destino de Neumann captura em microcosmo a “estrada para o Calvário” trilhada por cinquenta e sete outros viajantes nomeados no relato de Studer (e inumeráveis ​​milhares de membros do Partido Comunista Soviético). A esposa de Neumann, Margarete, considerada culpada por associação com seu marido, acabou entre as centenas de comunistas alemães que foram deportados de volta para as garras de Hitler em 1940.

O Terror de Stalin provou ser o maior exercício de assassinato em massa de comunistas da história, superando as realizações de Hitler, Chiang Kai-shek, Benito Mussolini, Francisco Franco, Syngman Rhee, Suharto, Ruhollah Khomeini ou qualquer um dos ditadores militares da América Latina que se empenharam nessa prática. A grande maioria dos viajantes de Studer que sobreviveram aos anos de expurgo o fizeram simplesmente porque não estavam em Moscou na época. Como o trotskista americano Max Shachtman disse uma vez sobre o líder do CPUSA no período entre guerras, Earl Browder, que foi posteriormente expulso do partido: “Lá, mas por um acidente geográfico, está um cadáver.” Isso não quer dizer que o longo braço da polícia secreta de Stalin tenha encontrado seu limite na fronteira soviética: Studer nos lembra dos assassinatos de Andreu Nin em Barcelona e Willi Münzenberg em uma floresta francesa.

Segundo Studer, o fim do Comintern foi um fato consumado muito antes de sua dissolução formal “sem alarde” em maio de 1943, como um agrado aos aliados anglo-estadunidenses de Stalin durante a guerra. Moscou já havia abandonado à própria sorte os oficiais do Comintern baseados na Alemanha após a ascensão nazista. Em 1933, ela argumenta, “em termos da política externa de Stalin, o Comintern era uma irrelevância”.

Depois disso, “amplamente paralisada pela repressão” dentro da URSS a partir de 1935, enquanto a missão espanhola da Internacional terminou em uma derrota sangrenta, a luta antifascista do Comintern na Europa foi finalmente debilitada “de uma só vez” pelo desorientador pacto de Moscou em 1939 com “o arqui-inimigo contra quem os agentes do Comintern consideravam que haviam dedicado anos de suas vidas a lutar”. Studer descreve assim a derrota de seus viajantes como algo nascido de uma asfixia intelectual prolongada, um enfraquecimento moral e a perseguição física avassaladora, tanto quanto de uma demissão formal.

As consolações da história

Concluindo com a nota emotiva da queda da França no verão de 1940, a narrativa de Studer se despede do leitor à meia-noite do século. Depois de 1938, ela escreve, “o tempo voltado para o futuro dos comunistas chegou ao fim”. Studer pinta um quadro de derrota colossal e geracional, com poucos viajantes que sobreviveram e permaneceram ilesos aos expurgos de Stalin, aos genocídios de Hitler e ao turbilhão apocalíptico mais amplo da Segunda Guerra Mundial.

“Studer pinta um quadro de derrota colossal e geracional, com poucos viajantes que sobreviveram e permaneceram ilesos aos expurgos de Stalin, aos genocídios de Hitler.”

Alguns, como Klement Gottwald da Tchecoslováquia, Mátyás Rákosi da Hungria e Walter Ulbricht da Alemanha Oriental tornaram-se pequenos tiranos após a guerra, tendo emergido intactos o suficiente da máquina de dilacerar do Stalinismo para servir como vice-reis nos novos países clientes por toda a Europa Oriental. Outros acabaram se dividindo em um anticomunismo pessimista e pró-estadunidense: denunciando The God That Failed [O Deus Que Falhou], informando Joseph McCarthy sobre antigos camaradas ou colaborando com a CIA. Esses dois caminhos abjetos para fora da revolução mundial representaram tragédias históricas gêmeas, ambas refletindo a desmoralização de tantos que sobreviveram da revolucionária “geração de 1920”. É um fato sombrio.

No entanto, nem todos os viajantes foram levados pela experiência da derrota. Zhou Enlai, da China, e Ho Chi Minh, do Vietnã , ex-alunos do Comintern stalinista por excelência, lideraram revoluções anti-imperialistas que abalaram o mundo em seus próprios países, que inspiraram a próxima grande onda revolucionária global, as anticoloniais dos anos 1960. Palmiro Togliatti estimulou a insurreição partigiana contra o fascismo à frente do Partido Comunista da Itália, enquanto Hilde Kramer ajudou a elaborar o Serviço Nacional de Saúde da Grã-Bretanha.

Uma figura ausente do livro de Studer, Moses Kotane, um graduado da International Lenin School do Comintern, provou ser fundamental na formação da aliança entre o Congresso Nacional Africano e o Partido Comunista Sul-Africano que eventualmente derrubou o apartheid. As energias revolucionárias da maior geração do comunismo internacional nunca poderiam ser minadas inteiramente.

Com seu relato abrangente em um empreendimento coletivo, Brigitte Studer fez justiça acadêmica incomparável à experiência total das mulheres e homens revolucionários para quem a Internacional Comunista era “uma maneira de viver o mundo”. O texto dela é essencial para qualquer leitor que busca entender o que significou ser comunista em uma época em que a revolução mundial parecia genuinamente iminente.Socialistas do século XXI, de todas as tendências, reconhecerão as personalidades que encontram ao longo da narrativa de Studer em suas próprias vidas, e por um bom motivo. Em suas aspirações, buscas, vitórias, fracassos e até crimes, os revolucionários profissionais da Internacional Comunista foram nossos camaradas, e eles permanecem assim ao longo do tempo. Este livro é um tributo digno às suas vidas revolucionárias como eles realmente as viveram, e ao sonho pelo qual as viveram. Viajantes da Revolução Mundial, presente!

Sobre os autores

Owen Dowling

sexta-feira, 28 de março de 2025

Maquiavel e Marx

I-

Não existe um princípio único pelo qual possamos avaliar o bem e o mal. As diversas culturas e mrespetivas moralidades não são peças de um puzle que esperam serem coerentemente reunidas e a unidade restabelecida.

II. 

Os valores cristãos (humildade, obediência, resignação, esperança) foram sempre inconciliáveis com os atos prosseguidos pelos homens políticos, pelas estratégias militares, com o seu sucesso. Pelo contrário, aqueles que os seguiram foram esmagados ou mal sucedidos.

III.

A felicidade individual nada tem a ver com o sucesso político, social, de países e classes sociais (ou das suas vanguardas). São mesmo incompatíveis. Não se deve sequer a uma escolha (quem sofrer o dilema da escolha está condenado ao fracasso e à infelicidade permanente), mas atividades e fins diferentes, senão mesmo opostos (em certas situações recorre-se à manha, à força. ao supremo sacrifício de tirar a vida , a sua vida, para que outros vivam as suas vidas). 

IV,

A História, ou melhor : as diversas histórias de cada povo, conjugadas ou não em grandes impérios sob leis comuns, nunca perseguir ideais ; se o fez, foi mal sucedida ; e nunca perseguir os valores cristãos, nem eem nada se assemelham as políticas reais e factuais dos Estados que já existiram ou existem. O longo período da Idade Média, governada direta ou indiretamente, pela Igreja de Roma, demonstram-no. As Igrejas Reformadas (Luteranismo, Anglicanismo, etc.) rapidamente se converteram em ideologias políticas dos respetivos Estados com ambições imperialistas. Estes nunca se preocuparam com o incumprimento em relação com os ideais cristãos que juravam a todo o momento.

V,

   Deste modo o cristianismo, nos seus valores universais, no seu dogma de um homem que se deixou crucificar pelo bem comum, no que foi um completo fracasso para a vida pessoal dele, foi não só um erro monumental do ocidente, como principalmente, algo perfeitamente dispensável para os Estados nas suas lutas.

VI. Julgo que foi mais ou menos isto que Maquiavel quis dizer e que Marx renovou reformulando a descoberta por outros de que a História é a história da luta de classes. 

VII. Maquiavel e Marx não queriam o mal e o mau ; nãp elogiavam os massacres e os tiranos. Sabiam simplesmente que os seres humanos têm dentro si o bom e o mau, e os santos não servem para nada como chefes políticos. Não existem grandes diferenças entre a ausência (e o desprezo) de utopias entre os dois . O comunismo como utopia de uma paraíso na Terra não é o comunismo de Marx. Certamente que Maquiavel viveu muito tempo antes das revoluções técnicas e sociais. Contudo, o seu "O Príncipe" continua a perturbar-nos e a não ser compreendido. 

        Nozes Pires, Março 2025

terça-feira, 25 de março de 2025

Tom Lodge- a verdadeira história do Partido Comunista Sul-africano ao qual Mandela pertenceu episodicamente para s ejuntar ao ANC. Este movimento político maioritário depois da libertação foi-se aproximando do neoliberalismo e de uma "burguesia negra", O PC sul africano é uma poderosa força política.

 Bertrand.pt - Red Road To FreedomBertrand.pt - Mandela

a ascensão do nazismo

 

Não apenas veteranos de direita da Primeira Guerra Mundial, mas também homens de origens direitistas que eram jovens demais para ter participado da guerra, se juntaram aos nazistas com o objetivo de restaurar a Alemanha à sua antiga glória e destruir seus inimigos, internos e externos. (Bettmann / Getty Images)

Compreendendo a ascensão do fascismo

Tradução
Sofia Schurig

Contos populares sobre o nazismo frequentemente afirmam que Hitler chegou ao poder democraticamente. Mas, o historiador Richard J. Evans argumenta que o fascismo alemão se apoiou em milícias armadas, compostas por veteranos desiludidos inspirados pelo antissemitismo, para esmagar comunistas e socialistas.

  • historiador Richard J. Evans é autor de dezoito livros, incluindo sua trilogia em três volumes sobre o Terceiro Reich — The Coming of the Third Reich, The Third Reich in Power e The Third Reich at War — que cobrem a ascensão e queda do fascismo na Alemanha.

    Seu livro mais recente, Hitler’s People: Faces of the Third Reich, foca no círculo íntimo de Adolf Hitler e tenta entender a psicologia e as vidas dos personagens que levariam o partido nazista ao poder e a Alemanha ao desastre. Ele conversou com a Jacobin sobre as forças políticas que possibilitaram a ascensão do fascismo na Alemanha, bem como o papel do antissemitismo e do anticomunismo na visão de mundo nazista.


    AJL

    Na sua introdução, você explica por que optou por essa abordagem neste volume: “Somente examinando personalidades individuais e suas histórias podemos alcançar uma compreensão da moralidade pervertida que fez e sustentou o regime nazista e, fazendo isso, talvez aprender algumas lições para a era conturbada em que vivemos.” O que levou você a essa abordagem?

    RJE

    Entre 2003 e 2008, publiquei uma importante narrativa histórica em três volumes sobre a Alemanha Nazista. No entanto, quanto mais pensava nisso nos anos seguintes, mais percebia que não conhecia essas pessoas em profundidade. E fiquei impressionado com a quantidade de novo material — diários, cartas, biografias e autobiografias — que estava sendo publicado e preenchia as lacunas, oferecendo uma compreensão mais profunda do fenômeno do nazismo mesmo setenta e oitenta anos depois.

    Ao mesmo tempo, a ascensão de políticos autoritários, populistas e homens fortes, reais ou aspirantes, estava levantando novas questões perturbadoras sobre a democracia e o que parecia — e parece — ser a crescente ameaça à política democrática em todo o mundo.

    Então comecei a ler sobre o assunto e encontrei tanto material novo que um novo livro sobre o nazismo sob esse ângulo era justificado. Os capítulos biográficos do livro também estão ligados por um conjunto de questões comuns, sobre compromisso e suas raízes, sobre comportamento e atitudes, e talvez acima de tudo pelo fato de que essas pessoas, até mesmo Adolf Hitler, não eram monstros ou demônios, mas seres humanos como nós.

    AJL

    Fiquei impressionado — embora talvez eu não devesse ter ficado — com o grau em que o antissemitismo aparece como um dos principais fundamentos ideológicos de quase todos aqueles que se comprometeram totalmente com esse regime. Qual foi o papel que você encontrou que o antissemitismo desempenhou na coesão do movimento fascista alemão durante seus anos de ascensão e depois no poder?

    RJE

    O catalisador para a criação do nazismo foi a derrota inesperada e catastrófica da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, que uma minoria significativa na extrema direita da política alemã explicou pela teoria conspiratória paranoica que culpava os “subversivos” judeus, embora os judeus representassem menos de 1% da população alemã e fossem na maioria patrióticos.

    O antissemitismo pessoal, visceral e extremo de Hitler levou alguns de seus seguidores a adotá-lo, enquanto outros que se juntaram ao seu movimento já eram odiadores fervorosos de judeus.

    Eliminar os judeus da sociedade alemã tornou-se uma espécie de solução falsa para os profundos problemas que o país enfrentava na década de 1920 e início dos anos 30. Não era necessariamente popular — na verdade, os nazistas minimizavam isso em sua propaganda até chegarem ao poder. Mas formou uma parte central de sua prática a partir de 1933.


    AJL

    De forma relacionada, o anticomunismo foi um elemento importante do regime — embora eu ache que frequentemente recebe atenção limitada, especialmente dado o papel que desempenhou na guerra com a URSS e suas consequências. Estou curioso sobre como você vê o papel do anticomunismo e do antissocialismo democrático como um motor do nazismo nesta época histórica.

    RJE

    A Revolução Russa de 1917 trouxe Vladimir Lenin e, mais tarde, Joseph Stalin ao poder na Rússia, e por um tempo, eles tentaram exportá-la para outros países da Europa. Os nazistas acreditavam que era parte de uma conspiração mundial judaica para derrubar a civilização e a ligavam, de forma bizarra, ao capitalismo e plutocracia internacionais. (Se você contestasse que capitalistas e comunistas estavam em guerra um com o outro, os teóricos da conspiração antissemitas responderiam que isso apenas mostrava como os judeus estavam dividindo a sociedade contra si mesma!)

    Em 1933, a Revolução Bolchevique ainda era muito recente e inspirava temores generalizados nas classes médias alemãs, que sabiam que seus semelhantes na Rússia haviam sido expropriados e submetidos a um violento “Terror Vermelho”.

    Na Alemanha, enquanto os nazistas perderam cerca de dois milhões de votos na última eleição livre da República de Weimar, em novembro de 1932, os comunistas continuavam a ganhar apoio, quase exclusivamente de uma classe trabalhadora que sofria com o desastre da Depressão, que trouxe mais de 35% de desemprego. E devemos lembrar que os sociais-democratas moderados foram agrupados com os comunistas na propaganda nazista.

    Afinal, juntos, os dois partidos tinham mais apoio popular do que os nazistas nas eleições de novembro de 1932. Não é de se admirar que os nazistas concentrassem sua violência e repressão, acima de tudo, nesses dois partidos quando chegaram ao poder em 1933.

    AJL

    Costuma-se dizer que Hitler chegou ao poder por meio de eleições. No entanto, ao ler seu livro, me pareceu que as coisas eram diferentes. O que me chamou a atenção foi que a ascensão do regime coincidiu com as ações de centenas de milhares de homens armados, muitos deles veteranos desiludidos, que seriam incorporados às paramilitares nazistas. Em outras palavras, houve uma quantidade considerável de violência — incluindo legiões de homens prontos para lutar e morrer por Hitler — que preparou o caminho para sua ascensão e subsequente adoção de poderes ditatoriais. Como você vê isso?

    RJE

    É bastante errado, na minha opinião, afirmar, como muitos historiadores fazem, que, após a falha em sua tentativa de tomar o poder pela força no “Putsch da Cervejaria” em 1923, Hitler decidiu seguir o caminho legal para o poder. Juntamente com seu foco em ganhar apoio eleitoral, ele continuou a criar uma enorme violência nas ruas para intimidar seus opositores.

    Literalmente centenas de comunistas e sociais-democratas foram mortos por tropas nazistas nas campanhas eleitorais de 1932, e depois que assumiu, Hitler teve quase duzentos mil deles lançados em campos de concentração até que a polícia estatal, os tribunais e as prisões estaduais assumissem a tarefa de repressão a partir da segunda metade de 1933.

    Não apenas veteranos de direita da Primeira Guerra Mundial, mas também homens de origens direitistas que eram um pouco jovens demais para ter lutado na guerra, se juntaram aos nazistas com o objetivo, como eles viam, de restaurar a Alemanha à sua antiga glória e destruir seus inimigos, internos e externos. As biografias que apresento no livro destacam de forma enfática a centralidade da violência no projeto nazista.

    Sobre os autores

    é escritor e historiador. Ele é o autor de A Threat of the First Magnitude: FBI Counterintelligence & Infiltration From the Communist Party to the Revolutionary Union - 1962-1974 (Repeater Books, 2018).

    Richard J. Evans

    é um historiador da Alemanha moderna. Foi professor Regius de história na Universidade de Cambridge, presidente do Wolfson College, em Cambridge, e reitor do Gresham College, na cidade de Londres. Seu livro mais recente é Hitler's People: The Faces of the Third Reich.

    terça-feira, 11 de março de 2025

    SOBRE ONTOLOGIA

     

    CRÍTICA DA RAZÃO CONSENSUAL ( oitava parte)

    Postulados

    1.Sobre a Ontologia

    A interrogação fundamental foi desde sempre a seguinte: O que é a realidade? O que é que existe verdadeiramente? Existe apenas o que percepciono? Qual a relação entre linguagem e realidade objectiva? Entre esta e a crença? Duas outras formulações: “Porque é que existe alguma coisa e não o nada?”, “Qual a relação entre Ser e Pensamento?”.

    Observa-se que a existência pessoal era finita, mortal, que uma doença ou simples acidente pode afectar profundamente o pensamento e a comunicação, que todos os outros possuem em comum essa condição, que nascemos depois de muitas gerações terem desaparecido, povos e civilizações terem-se extinguido ou transformado profundamente. Constatamos que sem o trabalho humano não poderíamos jamais ter produzido os bens indispensáveis à vida.  Trabalho executado por escravos, servos, trabalhadores de alguma espécie.

    Fizemos depender a nossa existência quer do trabalho produtivo, quer dos que o administram como seus proprietários. Submetemo-nos em função do grau da nossa ignorância, medo, impotência. Mais tarde ou mais cedo rebelámo-nos, adotámos novas crenças, por via da falência de tradições e poderes, doutrinas, transformações lentas do ambiente social e natural- novas divisões sociais do trabalho, novos modos de produzir, distribuir e administrar, novas classes e estratos sociais, viagens e descobertas.

     Qual a relação entre o Ser e o Pensar? Que se entende por Ser? É tudo que não é constructos mentais. A Natureza, os corpos, as coisas materiais. Formulação que tanto admite que o Pensamento não é o Ser de modo algum. (ainda que dele participe), como o contrário: o pensamento é um efeito derivado dos corpos e da natureza. Suponha-se que o Ser é o Universo, então o Pensamento, ou parte dele (Espírito, Alma), seria, para alguns, algo completamente distinto, sobrenatural. Ora, todas as provas e indícios têm vindo a demonstrar que o Ser (natureza e sociedades) é o que é tudo e nada se verificou existir para fora. O Pensar é uma atividade corporal e social. É uma atividade, entre outras, conhecidas e desconhecidas, do universo (Matéria-Energia). Uma entre infinitas atividades. O universo é a única substância com infinitos atributos, atuais e possíveis. O universo material é o Todo, contém tudo e nada mais pode existir que não seja seu atributo. Em biliões de galáxias não existe seguramente apenas o pensamento humano. Sem este universo, nas condições em que se formou, se cria a se destrói, sem as estrelas que forneceram os ingredientes básicos da vida, sem as condições físicas que permitiram que neste pequeno planeta a vida sobrevivesse até hoje, sem a água, o carbono, o oxigénio, os nossos corpos não existiriam, sem eles não surgiria a atividade mental desta espécie que não se extinguiu por acaso, depois de muitas outras se terem extinguido. Houve um tempo em que uma pequena população inventou a agricultura e com ela a sedentarização e as cidades, as disputas territoriais e as guerras pelos excedentes, pela mão de obra, pelo comércio, inventaram-se múltiplas e sem novas submissões. Uma espécie natural suplantou-se sobre as outras espécies, de presa tornou-se predadora, de obscura e temerosa tornou-se temerária e dominadora.

    As diversas expressões do pensamento da espécie humana somente foram possíveis devido à atividade cerebral, surgida tardiamente (após biliões de anos de existência da Vida, propiciada ocasionalmente pela última das cinco extinções que devastaram quase a totalidade da vida na Terra), devido ao processo natural combinado de mutações e seleções e desenvolvida graças aos modos inventados pela espécie para transformar o ambiente natural, comunicar, agrupar-se.

    Se hoje parece-me ser um erro grosseiro afirmar-se o primado onto-gnosiológico (nalguns casos até a anterioridade) das ideias sobre a Matéria (ou Energia, Natureza), perante o quadro geral que as ciências nos oferecem, porque motivo se acreditou nisso em Filosofia (a crença conserva-se inamovível nas múltiplas formas de religiosidade, nomeadamente mais perigosas – fundamentalistas e sectárias)? Provavelmente pela ausência da Ciência, pela hegemonia despótica da religião, pela posição egocêntrica e classista do filósofo (houve um tempo longo em que desprezar a matéria significava desprezar o trabalho). O pensar humano é, naturalmente, antropocêntrico. Jugamo-nos superiores e completamente distintos dos outros animais. Outras espécies, porém, sabemo-lo hoje, possuem dispositivos cerebrais próximos dos nossos, embora rudimentares comparativamente. Os elos da longa cadeia que as liga a nós vão-se conhecendo, destronando a crença de que fomos iluminados subitamente por deuses ou alienígenas.

    O erro principal de determinadas filosofias foi o deitarem fora a Ontologia com o argumento de que transportava a doença das metafísicas. Pode-se abandonar o método metafísico de argumentação, mas não se pode abandonar os problemas ontológicos.

    No marxismo grandes pensadores, que importa conhecer, contribuíram para a elucidação de uma ontologia inspirada nos textos de Marx e Engels. Lenine e G. Lukacs, entre outros.

    Com certeza que a resposta que avancei acima às interrogações fundamentais não tem que ser a única (nem jamais o será), verdade absoluta. Ignorar a diferença é prova de fraqueza ou de arrogância. Queimar bibliotecas é uma pura abominação.

    O grande filósofo M. Heidegger não começou (a questão principal no método está no começo) pelo Todo, pela Natureza cósmica, pelo seu primado criador, mas pelos significados que atribuiu à existência humana. Nem por isso o seu irracionalismo, latente ou manifesto, deixou de ser tremendamente influente em importantes filósofos posteriores. De resto, quantas vezes não extraímos deste ou daquele pensador, de qualquer época, elementos da sua filosofia total para reconstruirmos a nossa? G. Deleuze constituiu um digno exemplo dessa prática que não é nova; ele próprio, não tendo sido marxista, é hoje um magnífico desafio para os marxismos. Aliás, o melhor exemplo encontra-se no próprio Marx que soube recolher do sistema idealista de Hegel o que entendeu correto.

    Nenhum investigador se sente obrigado a expor a sua posição ontológica quando analisa fenómenos da natureza ou da sociedade. Somos nós, seus leitores, que a podemos detectar através do seu método de análise, do acerto dos significados com os dados objetivos.

    Que corrente filosófica desprezou a ontologia e combateu, em particular, a ontologia marxista? O positivismo. Seguir-se-ia uma larga parte dos estruturalistas e, por fim, dos chamados pós-modernos. Uma tese célebre fez confinar o materialismo dialético a uma teoria do conhecimento e nada mais. O materialismo histórico foi abandonado como mero discurso metafísico. O propósito dos mentores da “pós-modernidade” vai mais longe: foi, continua a ser, eliminar definitivamente a filosofia marxista, classificada como uma das “narrativas” metafísicas da Modernidade. A Filosofia é, assim, uma luta permanente entre tendências, “linhas” ou “partidos” (Lénine). Essa luta exprime e acompanha as lutas políticas.

    O marxismo não desapareceu evidentemente. Filósofos, historiadores, sociólogos, têm produzidos obras notáveis nos últimos trinta anos. Economistas da mais inesperada origem têm encontrado em Marx inspiração. Não é Marx que não está vivo, ou redivivo, mas é a ontologia marxista que parece não ter recuperado ainda. Apesar da obra ímpar em Portugal de José Barata-Moura, e dos estudos produzidos no Brasil sobre a última obra de G. Lukács (Para uma Ontologia do ser social). No respeitante à filosofia os países da América do sul merecem-nos toda a atenção.

    A Ontologia

    Tratamos aqui da Ontologia designada tradicionalmente como Geral  e que não é a Metafísica.

    Temos dois caminhos à escolha:

    O particular ou o universal, a parte ou o todo.

    Os inconvenientes do começo pelo Todo: sujeita-se à crítica de Kant (antinomias da Razão Pura) e não se permite ignorar a crítica de Heidegger à metafísica e de quase toda a filosofia contemporânea.

    O acerto: entenda-se o Todo como totalidade de totalidades; tudo que conhecemos até hoje do nosso universo, a realidade conhecida pela astrofísica e pela física quântica; a Natureza (Matéria, Energia), a sua origem e desenvolvimento desde o big bang; a história do nosso planeta; o desenvolvimento da matéria orgânica; as extinções de diversas e sucessivas formas de vida; a história documentada do homo sapiens. Argumento: Sem essas realidades a espécie humana não existiria. Se ontologia significa “ O que é o Ser?”, a resposta mais conforme à Ciência: é este universo habitado pela nossa galáxia entre biliões delas, pelo nosso planeta entre uma multidão incalculável, por nós entre muitas espécies. Portanto, toda a matéria-energia, com todas as suas manifestações conhecidas. Um Todo em movimento, com um começo e muito provavelmente um fim. Donde surgiu e em que se transformará saberemos o bastante um dia para termos razão para acreditarmos que a Matéria é eterna e infinita.

    Os inconvenientes do argumento pelo particular: nada é em absoluto singular (Marx em O Capital não explica as relações através das biografias de determinados capitalistas); sem o geral não existe ciência; a parte é parte de algo maior; cada indivíduo é uma meada de relações, desempenha papéis numa determinada organização. O homem em geral? Pode-se começar por aí, sim, vê-lo agir, sentir e pensar, em situação; mas não basta, porque de nenhum indivíduo se pode abstrair a concreta organização social e, esta, por sua vez, da unidade e diferença com as demais formações sociais, regredindo às suas origens e respectivos processos de desenvolvimento. Por fim, não se pode omiti a natureza, que é quase todo o mundo externo (o universo), anterior e criadora, e sem a qual, os seus estímulos físicos, químicos, não funcionariam as sensações; a natureza é, para cada um de nós, primeiramente, o nosso corpo. Devia, pois, começar-se pelo corpo? E porquê o do próprio e não a totalidade? Não é mais adequado começar pelo que há de comum e universal em todos os corpos, conforme os dados das ciências? Esse rumo não nos obriga  a ascender da espécie (género humano) ao que há de comum com outras espécies até alcançarmos as determinações da Vida (o geral, a totalidade)?

    ---Mas quem usa nome como “Natureza”, é um ser dotado de linguagem (imagens, sensações, ideias). Os nomes do Ser (Natureza, Matéria-Energia, Universo, ou Vida, Sociedade) usamo-los com toda a carga de determinações fornecidas pela Ciência, pelas nossas informações e ideias próprias. Como destrinçar do mundo material a linguagem e o pensamento? Esse é um dos grandes problemas.

    A mente é parte inclusiva do corpo e, este, parte inclusiva do mundo externo. A mente reflete, por meios próprios que o corpo dispõe, o mundo externo. As emoções, sentimentos, consciência, imagens, memória, operações intelectuais, atitudes, motivações, etc., dependem das características adquiridas pela espécie humana, dos meios e processos de socialização, dos modos como cada um os assimila e organiza, das experiencias sociais e da prática pessoal e coletiva. Não existe coisa alguma no indivíduo que seja independente do corpo físico e da formação social concreta na qual ele se move. Na há nada nas ci~encias contemporâneas que contrarie estas asserções, bem pelo contrário, vamos conhecendo cada vez mais e melhor os processos, as ligações, a dialética das interações, a complexidade das mediações sujeito/objecto, consciência-cérebro-sociedade.

    Entre velhas e novas contradições, velhos e novos enigmas, a ciência prossegue o seu caminho rejeitando como mistificações, ilusões ou erros, as teses fundantes do idealismo objectivo de Platão e seus seguidores, tal como Galileu derrotou a física aristotélica. Classifica como mera curiosidade o idealismo sensista absoluto de Berkeley, o inatismo cartesiano, o empirismo radical de Hume, o apriorismo de Kant, a Consci~encia Absoluta de Hegel. Digo: as teses fundantes, e não muitos outros dos seus argumentos, a eventual utilidade dos seus métodos, as contribuições geniais de alguns para os rumos desbravados pela filosofia e pela ci~encia. Aliás, se as soluções que grandes filósofos defenderam para os percuscientes problemas da Filosofia não são mais admitidas (o mundo das ideias, de Platão, as “provas” da exist~encia de Deus criador e da imortalidade da alma, as ideias inatas, o mundo como somente aquilo que percepciono, as categorias a priori do entendimento, a selecção natural das espécies como quadro explicativo suficiente das lutas e diferenças sociais e individuais, etc.), não significa que não deixaram marcas profundas, que sejam falsas as suas filosofias. A ser assim, construir-se-ia um mundo obscurantista e perverso no qual seriam ignoradas todas as “falsidades” e venerada como verdade absoluta – sem discussão – uma única doutrina. Alguns escritores utopista quiseram-no para as suas sociedades perfeitas, pois julgava que resolviam de uma vez para sempre as as guerras e as disputas. Outros guias dos povos, menos utópicos e mais distópicos, aplicaram a receita com as consequ~encias que se conhece. A Crítica da Razão Consensual pretende denunciar a ameaça real e contemporânea de um pensamento único, imposto tanto pela coerção como –perigosamente- pela persuasão.

    ---As mediações entre sujeito/objecto.

    ----Os centramentos em que incorreram as filosofias. Os enigmas e as aparências. Marx-Engels como resolveram esses problemas. A história dos combates dos materialistas contra as mistificações (e o poder)

    ---Engels e a dialéctica da natureza. O que realmente ele disse.

    ---No estádio atual da ciência o agnosticismo não faz sentido, nem o idealismo subjectivo. Fará sentido o idealismo objectivo?

    ---Da ontologia/gnoseologia materialista dialética para a análise científica das relações sociais. A política.

    A Dialéctica da Natureza, de Engels, é constituída por um conjunto de ensaios escritos para responder a situações políticas que exigiam a sua intervenção. Imperativos políticos. Após a morte do seu grande amigo, Marx, Engels fica sozinho nesse combate de defender o movimento social-democrata alemão das tergiversações. O marxismo é hegemónico na II Internacional e no movimento, o prestígio de Marx e dele próprio é enorme, contudo o marxismo ainda não se completou como uma ideologia comunista. Circulam teorias heterogéneas, livros com forte impacto, controvérsias à volta das ideias de Marx, frequentemente ataques soezes e teorias medíocres apresentadas como a última palavra sobre o socialismo. “O Capital”, de Marx, entretanto em publicação, não supre as necessidades teóricas do Movimento, pela dificuldade de leitura. Cientistas e pseudo-cientistas divulgam apreciações erróneas ou pelo menos controversas que colidem com as convicções filosóficas de Engels. O “Anti-During”, de Engels, é uma peça fundamental nos combates ideológicos, contra a steorias políticas perigosas, o empirismo, o naturalismo, o materialismo grosseiro.

    Contra os “naturalismos” (expressão de Engels) é preciso completar o edifício da filosofia marxiana. Com quê? Com uma filosofia da natureza. Engels não procura construir uma ontologia, termo que, aliás, não utiliza. Combate o método “metafísico”, no qual engloba tudo que não é dialéctica marxiana, isto é, a dialéctica de Hegel “invertida”. A Dialéctica da natureza visa esclarecer o materialismo dialéctico, mostrar que está conforme as ciências, que ele mesmo é científico. A filosofia é rejeitada, enquanto metafísica ou desnecessária, substituída pela ciência experimental. Da filosofia sobra o que ela possui de valioso: o método dialéctico, aplicado a todas as áreas do saber, método que reflecte as propriedades objectivas do mundo físico e social. O marxismo (expressão que Engels não utiliza), isto é o materialismo histórico e dialéctico, não se circunscreve às ciências sociais, à política, abrange as ciências da natureza. Trata-se, portanto, de demonstrar que a dialéctica é também natural, isto é a natureza na sua totalidade (universo) rege-se por leis dialécticas. Engels não nega evidentemente que outras leis expliquem o movimento dos corpos. Recusa e critica o uso do termo “forças”, é mais adequado falar-se em energia. Matéria equivale a massa e energia. Engels revela um pensamento científico notável e excepcional para a época. A essência da Matéria-Energia é o movimento. Este manifesta-se de diversos modos. Em terminologia espinosanas 8que ele não usa) diremos que Tudo, o Todo, é material, é a natureza, infinita e terna, dotada de infinitos atributos, sendo o pensamento um deles.

    É de todo o interesse divulgar, esclarecer e confrontar-se com os adversários da filosofia em geral, mas neste caso importa sobretudo da filosofia marxista. A filosofia marxista rereceu muitas interpretações durante o século passado, mas, apesar de tudo, atravessou uma época em que provocava debates, pelo menos nos meios académicos europeus e a minha geração acompanhou-os e, por vezes, participou, sempre apaixonadamente (vivíamos sob uma ditadura terrorista). Neste século aparentemente nada mais se passa, excepto os temas económicos. Na verdade, se estivermos atentos, livros, artigos, congressos, têm-se realizado sobre a filosofia de Marx e Engels, mas parecem passar desapercebidos do grande público dominados pelos media. As universidades portuguesas estão muito auém nesse aspecto das espanholas ou outras. Compreende-se que as questões económicas ocupem mais espaço, alguns autores são famosos merecidamente (David Harvey, e outros).

    Ora, é no momento em que o comunismo é combatido e alguns partidos deixaram de o ser, no momento em que, contraditoriamente, a teoria de Marx sobre o capital, a sua obra-prima “O Capital”, é redescoberto por autores por vezes inesperados, é urgente passar à ofensiva. Tarefa que compete a todos, mas particularmente aos professores e outros intelectuais (historiadores, sociólogos, etc.).

    A filosofia marxista é o materialismo dialéctico. O segundo termo – dialética – faz toda a diferença com os filósofos e cientistas que são materialistas, com mais ou menos consciência disso, porém recusam o socialismo (o grande cientista norte-americano, de origem portuguesa, António Damásio é claramente materialista mas recusa o socialismo, di-lo ele próprio numa das suas últimas obras). A meu ver ser materialista não é raro entre os cientistas. Os materialismos evolucionistas ou naturalistas, neo-darwinistas, dominam claramente sobre todas as ouras formas de materialismo, nomeadamente o materialismo histórico-dialético.  E porquê alguns mostram perfilhar teses anti-capitalistas, citam Marx, adoptam algumas das suas teses, porém são anarquistas ou mesmo são pseudo-marxistas (como Zizék, Badiou, Bourdieu)?

    Um outro problema: Foi Engels contra a filosofia? Há contradição entre o que ele afirma na Dialética da Natureza e no Anti-Duhring, e no seu “L. Feuerbach e o Fim da Filosofia clássica alemã”? Reserva para a filosofia apenas a lógica, isto é a dialéctica, ficando tudo o mais a cargo das ciências “positivas”? Ou há nele elementos para uma ontologia marxista? E se a filosofia fica apenas com a lógica, para quem fica a moral-ética, a estética, o Direito, a Política? São estas áreas tarefas da ciências? São elas ciências?

    “Dialética da natureza” – Desde 1873 que Engels projectava escrever uma obra sobre a dialética da natureza (conforme correspondência com Marx), mas desde 1858 o seu interesse manifestava-se quanto a um estudo aprofundado das ciências naturais. O propósito que o orientava era de criticar o “método metafísico”, defender o me´todo dialético, criticar a dialética “mistificadora” e idealista de Hegel, defender a “dialética racional” do materialismo filosófico , “a dialética despojada de todo o misticismo converte-se em uma necessidade absoluta para as ci~encias naturais (manuscritos da Dialética da Natureza (Esboço com o título “Buchner”). Em 1873 projectava escrever, antes do Anti-Duhring, um Anti-Buchner, materialista vulgar. Depois de publicar a 1ª edição do seu Anti-Duhring, (1878) Engels trabalha n a Dialética da natureza. A morte de Marx em 1883, a imperiosa edição dos tomos segundo e terceiro de O Capital, as tarefas políticas na II Internacional, impedem que ele organize os materiais. A sua morte em 1895, impede de vez a publicação. Esquecidos os manuscritos, a obra só sai em Moscovo, 1925, a versão alemã e russa. Nova edição, amplamente corrigida, em 1927, em alemão. Demasiado tardia: a enorme projecção e prestígio de Engels desde o desaparecimento de Marx (muito maior do que do próprio Marx) viria a esmorecer desde 1914. A Dialética da natureza é, pois, uma colecção de manuscritos, alguns inacabados, versando variados assuntos das ciências naturais: Formas de movimento da matéria. Classificação das ciências; matemáticas; Mecânica e Astronomia; Física; Química; Biologia, e capítulos de grande importância  sobre Dialética. Nada do que afirma sobre temas das ciências (as marés, o calor, a electricidade, etc) perdeu interesse ou é erróneo; apresenta-nos intuições penetrantes sobre as teorias mais avançadas; defende o papel pioneiro da filosofia, nomeadamente Kant; desenvolve uma análise sobre o papel do trabalho que fez escola até hoje (“ O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”), no qual G. Lukacs se inspirou para o seu último trabalho famoso “Para uma ontologia do ser social” (1971). Embora não possamos tratar aqui de toda a produção de Engels, é mister dizer que o seu enorme génio revela-se no carácter pioneiro das suas obras: “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, para citar só esta. O Anti-Duhring é uma obra notável, com va´rias edições ainda em vida de Engels. Na Primeira Parte trata da filosofia da natureza; da moral e do direito (Liberdade, igualdade e necessidade); da dialética. Nas duas restantes trata da teoria da violência; das descobertas de Marx (Teoria do valor, capital e mais-valia, etc.); do socialismo (produção, distribuição, Estado, família, educação. A sua leitura acompanhada é uma tarefa inadiável, sobretudo para os mais novos.

    O materialismo dialético é uma filosofia ou uma ciência? “Prefácio” à 2ª edição do Anti-Duhring e no chamado “Velho Prefácio” coligido para a Dialética da Natureza.

    José Barata-Moura – Presumo que não é outro outro propósito dele ao publicar as seguintes obras: A Filosofia em O Capital, Lénine e a Filosofia, sen~so este: demonstrar que há uma filosofia marxiana, e que a filosofia de Lenine respeita-a com rigor e combatividade.

    A tendência gnosiológica, própria do neopositivismo, mas também de um determinado irracionalismo que percorre as teses cépticas de muitos pós-modernos (com as raras excepções de Perry Anderson e F. Jameson). Movimento pós-moderno que rejeita trabalhar com totalidades, valores universais, Verdade e conhecimento objectivo, as grandes doutrinas filosóficas a que chamam “Grandes narrativas” (ficções, discursos) que significa rejeitarem a ideologia, sobretudo, ou quase só, o marxismo. Rejeita postular o “fundamento” para poder rejeitar os fundamentos materiais do ser social. Rejeita, em suma, as teorias de emancipação humana, isto é, a própria possibilidade de emancipação- alternativa ao capitalismo.

    Já tivemos a hegemonia do físico-quimismo e do biologismo darwinista e eugenista entre o termo do século XIX e as primeiras décadas do século XX, que atingiu todos: nazi-fascistas, liberais, marxistas sociais-democratas. Tivemos o positivismo imperial. A fé absoluta na tecno-ciência porque aos capitalistas trazia abundantes lucros. Essa fé no Progresso.

    Foi nesse período que apreceram marxistas (?) a quererem completar” de fora, a teoria económica de Marx (com Mach), e contra o qual saíu a terreiro Lenine (;aterialismo e Empiriocriticismo), ou com Kant no plano ético…

    A Modernidade – As correntes filosóficas “pós-modernas” consideram que as “grandes narrativas” de “emancipação humana” faliram. A Modernidade terminou os seus dias. Existem diferentes correntes nesse movimento, com posições polítcas muito diferenciadas, é necessário não confundi-las; vão desde as reacionárias, às neo-anarquistas (diferenciadas pelo seu lado) e às que se conservam no largo espectro dos marxismos. Adopto a posição de que os novos fenómenos sociais e as novas características do capitalismo são evidentes e suficientemente largas e profundas para ser impossível recusar aceitar-se novos conceitos para um novo quadro geral que podemos sem dificuldade de maior classificar como “pós-modernidade”. O que me obriga a colocar alguns problemas e reservas:

    1. As ideologias não morreram. A ideologia burguesa conserva-se. O capitalismo encontra-se na sua fase mais aguda e crítica do imperialismo. Apesar de algumas alterações no conteúdo e nas formas da ideologia burguesa, a burguesia continua a existir e a prosseguir as suas finalidades fundamentais.

    2. A doutrina liberal (filosofia burguesa) que foi o eixo principal da ideologia da Modernidade desde o século XVII, é agora o neo-liberalismo.

    3. O liberalismo não foi, porém, a única filosofia e ideologia da Modernidade. Já no século XVI O livro de Tomás More, “A Utopia”, marcou uma diferença com enorme influência posterior, sobretudo nos escritores utopistas do século XVIII (Morelly, Dom Deschamps, Mably, etc.),e em Rousseau, Diderot, para citar apenas os filósofos mais influentes. Durante a Revolução Francesa opuseram-se às ideias liberais as correntes da Esquerda, tanto no interior dos jacobinos como à sua esquerda. G. Babeuf e o Movimento dos Iguais lançaram o primeiro manifesto comunista, inspirando-se em Morelly. Rousseau veio a ser nesta Revolução o principal mentor, e ele não defendera o liberalismo. O socialismo tornou-se, desde Saint-Simon, Owen, e outros doutrinadores célebres, a oposição no interior da Modernidade. Esta, portanto, não foi homogénea, mas profundamente contraditória. Todo o século XIX foi de lutas pelo cumprimento das promessas que o liberalismo pregava (nas diversas revoluções que liderou), ou, mais radicalmente, a favor de doutrinas desejavam realizar efetivamente o que o liberalismo jamais poderia querer realizar enquanto filosofias e ideologias burguesas que o eram e sempre o foram apesar das grandes diferenças que o capitalismo foi sujeito durante séculos.

    4. Desde modo desde os inícios da Modernidade que existiram, e combateram-se, diferentes versões de liberalismo (Kant não era igual a outros liberais, nem Hegel) e doutrinas completamente contrárias. A ideia reducionista de que a Modernidade foi toda igual, sem contradições, é completamente errada. As lutas de classes sempre existiu (camponeses, pequena burguesia, grande burguesia, proletários), a consolidação do capitalismo fez-se à custa de guerras e outros violentos confrontos. As lutas ideológicas foram intensas. A ideia de Progresso não foi entendida da mesma maneira. A grande burguesia que conciliou diversas ocasiões com a aristocracia ou com as monarquias absolutas e os “despotismos iluminados” beneficiou sem dúvida das doutrinas filosóficas de grandes pensadores (Maquiavel, Boécio, Hobbes, Montesquieu, etc.), porém outros outro tanto grandes não exprimiram os seus interesses, ou iam mais além. Chamo “excedente” a esse mais-além, que se encontra em Espinosa, no próprio J. Locke, Rousseau, Diderot, Kant, Hegel. Em quase todos os grandes filósofos que defendiam a propriedade privada e os direitos políticos que convergiam com as reivindicações das classes e camadas burguesas, a emancipação humana não se restringia às reivindicações imediatas da grande burguesia comercial e, em seguida, manufactureira, iam muito além dessas camadas. Marx mostrou que a classe ascendente apresenta-se como representante do género humano, dos interesses e necessidades naturais (“direitos naturais”), da natureza humana; as suas reivindicações mistificam-se como direitos universais. Na verdade, muitos desses direitos são universais. Ao tempo as instituições políticas que se reivindicavam ou se constituíram (Inglaterra, Revoluções do século XVII) foram grandes avanços civilizacionais, às vezes classificadas como meras utopias. O “excedente” é um conjunto de concepções (propostas, soluções para os grandes problemas da Justiça, da Moral, do Direito, da Ciência) em que o filósofo acredita efectivamente e que julga trazerem a Paz perpétua (Kant). Não sendo uma utopia típica (romances de viagens a ilhas governadas pela melhor das repúblicas, como eram usuais) aproximam-se delas, contêm um elã, um impulso utópico. São produtos autónomos do pensamento, porque o pensamento goza de autonomia, não é um mero reflexo mecânico da economia ou das bandeiras político-partidárias.

    A Modernidade é também a época da grande Revolução Russa de 1917 e das revoluções nacionalistas e independentistas. A Revolução Russa e a URSS inauguraram uma época nova que ainda não fechou, bem pelo contrário. A visão que temos do Modernismo é geralmente percebida como positivista, tecnocêntrica e racionalista, o modernismo universal tem sido identificado com a crença no progresso linear, nas verdades absolutas, no planejamento racional de ordens sociais ideais, e com a padronização do conhecimento e da produção. O pós-modernismo, em contraste, privilegia a heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras na redefinição do discurso cultural. A fragmentação, a indeterminação e a intensa desconfiança de todos os discursos totalizantes são o marco do pensamento pós-moderno.

    Segundo Eagleton (1987), o pós-modernismo assinala a morte das metanarrativas, cuja função terrorista secreta era fundamentar e legitimar a ilusão de uma história humana universal.  A ciência e a filosofia devem abandonar suas grandiosas reivindicações metafísicas e ver a si mesmas, mais modestamente, como um conjunto de narrativas.

    5. A idéia de Moderno teve suas bases no que Habermas chama de projeto da modernidade que surge durante o século XVIII. A idéia era usar o acúmulo de conhecimento gerado por muitas pessoas trabalhando livremente e criativamente em busca da emancipação e do enriquecimento da vida diária. O domínio científico da natureza prometia liberdade da escassez, da necessidade e da arbitrariedade das calamidades naturais.

    6. O desenvolvimento de formas racionais de organização social e de modos racionais de pensamento prometia a libertação de irracionalidades do mito, da religião, da superstição, liberação do uso arbitrário do poder... (HARVEY, 2004:23). E assim, os pensadores iluministas acolheram o turbilhão de mudanças e perceberam a transitoriedade, fugidio e o fragmentário como condição necessária por meio do qual o projeto modernizador poderia ser realizado. Abundavam doutrinas de igualdade, liberdade, fé na inteligência humana e razão universal.

    7. Entretanto, o projeto iluminista possuía como propósito a dominação da natureza e, respectivamente do que era o ser humano, o que no final só poderia levar a uma tenebrosa condição de autodominação. Deste modo, o pensamento iluminista internalizava uma imensa gama de problemas e não possuía poucas contradições incômodas.

    que se opunha à racionalização técnico-burocrática. Coerente
    com a proposta que apresenta no título do capítulo – desconstruindo a
    crítica pós-modernista – o autor afirma que “há mais continuidade do que
    diferença entre a ampla história do modernismo e o movimento denominado
    pós-moderno” (HARVEY, 2006, p. 113).
    Examinam-se, na segunda parte, os fundamentos políticoeconômicos da mudança. Nessa parte, o autor salienta a profundidade e
    a importância das transformações na economia política do capitalismo no
    final do século XX. Analisa, no fordismo, a preocupação com o consumo
    de massa, para a além da produção em massa, destacando a necessária
    atuação do Estado na projeção desse modelo de desenvolvimento. de esclarecer vínculos materiais entre processos político-econômicos e
    processos culturais. O autor aceita, inicialmente, a proposição de Frederic
    Jameson, ao associar a crise da experiência espaço-temporal à mudança
    pós-moderna, apontando para a substituição das categorias temporais
    modernas pelas espaciais. A proposta de Harvey é superar o hiato entre a
    mudança cultural e a dinâmica da economia política por meio de estruturas
    interpretativas gerais, encontrando um ponto de apoio que permita discutir
    mais profundamente a experiência cambiante do espaço na história do
    modernismo e do pós-modernismo.
    Harvey argumenta que o domínio do espaço e do tempo é
    fundamental na busca do lucro. O dinheiro pode ser usado para dominar o
    tempo (dos trabalhadores) e o espaço, assim como o domínio do espaço e
    do tempo podem se converter em dinheiro. A ideia
    de tempo progressivo e retilíneo foi sistematicamente abalada, cedendo
    espaço à ideia do tempo cíclico, dos ciclos econômicos. O sentido de
    espaço mudara em face da integração econômica, capaz de fazer uma crise
    atingir todo um continente a um só tempo. A natureza e o significado do
    dinheiro também entraram em crise pela tensão entre dinheiro de crédito
    e dinheiro em espécie, alterando o sentido de tempo (taxa de retorno dos
    investimentos). A diversificação de valores, a emergência da mentalidade
    esquizofrênica e a busca pelo poder são aspectos destacados por Harvey
    como próprios da vida pós-moderna, influenciada pelas mudanças
    ocorridas na sociedade e na economia. A criação de imagens de produtos
    e de pessoas é analisada pelo autor por ser um ponto utilizado por autores pós-modernistas para apontar a ultrapassagem da teoria marxiana.


    pós-m se esperar, então, uma “virada” para as forças culturais, seja como forma
    de explicar o que está acontecendo ou como forma concreta de realidade,
    porém o autor mostra que mudanças desse tipo não são novas, colocandoas no plano da análise materialista histórica. A crítica de Harvey ao pósmodernismo, nesse sentido, diz respeito à autonomia da vida cultural em
    relação aos aspectos econômicos.
    A crítica principal de Harvey é ao pós-modernismo como forma
    de interpretar o mundo, por (i) reduzir o conhecimento e o significado a
    um conjunto desordenado de significantes; (ii) representar a complexidade
    do mundo em proposições retóricas simplificadoras; (iii) deslizar para
    o paroquialismo em face das forças universalizantes do capitalismo,
    com risco de cair no sectarismo e inverter o respeito pelos outros
    em competição. odernistas para apontar a ultrapassagem da teoria marxiana. O autor aponta saídas para a crise pela qual passa o
    materialismo histórico no que tange: (i) ao tratamento da diferença e da
    alteridade que deveria estar onipresente em toda tentativa de apreensão


    da dialética da mudança social; (ii) à produção de imagens e de discursos,
    que é faceta importante da atividade e merece análise cuidadosa como
    parte integrante da reprodução e da transformação da ordem simbólica;
    (iii) ao reconhecimento das dimensões tempo e espaço como relevantes
    na determinação das geografias, redes de ação social, territórios e espaços
    de poder reais e metafóricos, como forças organizadoras na geopolítica
    do capitalismo, que tem que ser compreendido tanto em si mesmo como
    no âmbito da lógica global do desenvolvimento capitalista e (iv) o resgate
    do materialismo histórico-geográfico como modo de pesquisa aberto e
    dialético, pois a metateoria não é uma afirmação da verdade total, mas a
    tentativa de chegar a um acordo com as verdades históricas e geográficas
    que caracterizam o capitalismo em geral e na fase atual.
    No último capítulo, Harvey expõe as contradições do pósmodernismo e as evidências da possibilidade de sua autodestruição ou
    dissolução em algo diferente. Diante das ideias de retomada do classicismo
    e da sugestão da trilha do caminho dos modernos, Harvey encerra
    posicionando-se a favor do modernismo, no qual a visão do futuro e da
    transformação dele são mais importantes.

    (*) “Geralmente percebido como positivista, tecnocêntrico e racionalista, o modernismo universal tem sido identificado com a crença no progresso linear, nas verdades absolutas, no planejamento racional de ordens sociais ideais, e com a padronização do conhecimento e da produção. O pós-moderno, em contraste, privilegia ‘a heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras na redefinição do discurso cultural”. A fragmentação, a indeterminação e a intensa desconfiança de todos os discursos universais ou (para usar um termo favorito) ‘totalizantes’ são o marco do pensamento pós-moderno”. “O que há em comum nesses exemplos é a

     

    “(...) eles alegavam que a lógica que se oculta por trás da racionalidade iluminista é uma lógica da dominação e da opressão”. 

    (*) “E há também quem – e isso é, como veremos, o cerne do pensamento filosófico pós-modernista – insista que devemos, em nome da emancipação humana, abandonar por inteiro o projeto do Iluminismo. A posição a tomar depende de como se explica o ‘lado sombrio’ da nossa história recente e do grau até o qual o atribuímos aos defeitos da razão iluminista, e não à falta de sua correta aplicação”. P.24
    “[O LEGADO DO ILUMINISMO] Bernstein: ‘O desenvolvimento da [racionalidade proposital-instrumental] não leva à realização concreta da liberdade universal, mas à criação de uma ‘jaula de ferro’ da racionalidade burocrática da qual não há como escapar’. Se a ‘sóbria advertência de Weber soa como o epitáfio ((fúnebre)) da razão iluminista, o ataque anterior de Nietzsche às suas próprias premissas deve por certo ser considerado a sua nêmese. Era como se Nietzsche mergulhasse por inteiro no outro lado da formulação de Baudelaire para mostrar que o moderno não era senão uma energia vital, a vontade de viver e de poder, nadando num mar de desordem, anarquia, destruição, alienação individual e desespero“Como Baudelaire logo percebeu, se o fluxo e a mudança, a efemeridade e a fragmentação formavam a base material da vida moderna, então a definição de um estética modernista dependia de maneira crucial do posicionamento do artista diante desses processos”. P.29

    “O modernismo só podia falar do eterno ao congelar o tempo e todas as suas qualidades transitórias”. P.30

    “O modernismo internalizou seu próprio turbilhão de ambigüidades, de contradiçoes e de mudanças estéticas pulsantes, ao mesmo tempo que buscava afetar a estética da vida diária”. P.31

    (*) “É importante ter em mente, portanto, que o modernismo surgido antes da Primeira Guerra Mundial era mais uma reação às novas condições de produção (a máquina, a fábrica, a urbanização), de circulação (os novos sistemas de transportes e comunicações) e de consumo (a ascensão dos mercados de massa, da publicidade, da moda de massas) do que um pioneiro na produção dessas mudanças”. P.32
    “As mudanças por certo foram afetadas pela perda da fé na inelutabilidade do progresso e pelo crescente incômodo com a fixidez categórica do pensamento iluminista”. “O movimento socialista contestava cada vez mais a unidade da razão iluminista e inseriu uma dimensão de classe no modernismo. Seria a burguesia ou o movimento dos trabalhadores que daria forma e dirigiria o projeto modernista? E de que lado estavam os produtores culturais?”

    “A mudança no tom do modernismo também decorria da necessidade de enfrentar diretamente o sentido de anarquia, de desordem e de desespero que Nietzsche semeara numa época de espantosa agitação, insatisfação e instabilidade na vida política-econômica (...)”. “Essa manifestação particular do modernismo, portanto, teve de reconhecer a impossibilidade de representar o mundo numa linguagem simples. A compreensão tinha de ser construída por meio da exploração de

    múltiplas perspectivas. Em resumo, o modernismo assumiu um perspectivismo e um relativismo múltiplos como sua epistemologia, para revelar o que ainda considerava a verdadeira natureza de uma realidade subjacente unificada, mas complexa”. P.37

    “O modernismo assumiu no período entre-guerras uma forte tendência positivista(...). O positivismo lógico era tão compatível com as práticas da arquitetura modernista quanto com o avanço de todas as formas de ciência como avatares do controle técnico. Foi esse o período em que as casas e as cidades puderam ser livremente concebidas como ‘máquinas nas quais viver’”. 

    “O problema do modernismo ‘heróico’ foi, para resumir, o fato de que, uma vez abandonado o mito da máquina, qualquer mito podia alojar-se na posição central da ‘verdade eterna’ pressuposta no projeto modernista”. P.39

    “Enquanto o modernismo dos anos entre-guerras era ‘heróico’ mas acossado pelo desastre, o modernismo ‘universal’ ou ‘alto’ que conseguiu hegemonia depois de 1945 exibia uma relação muito mais confortável com os centros de poder dominantes da sociedade”. 

    “A crença no progresso linear, nas verdades absolutas e no planejamento racional de ordem sociais ideais sob condições padronizadas de conhecimento e de produção era particularmente forte. Por isso, o modernismo resultante era ‘positivista, tecnocêntrico e racionalista’, ao mesmo tempo que era imposto como a obra de uma elite de vanguarda formada

    por planejadores, artistas, arquitetos, críticos e outros guardiães do gosto refinado. A ‘modernização’ de economias européias ocorria velozmente, enquanto todo o impulso da política e do comercio internacionais era justificado como o agente de um benevolente e progressista ‘processo de modernização’ num Terceiro Mundo atrasado”. P.42

    “Seu real lado inferior estava, sugiro, em sua celebração subterrânea do poder e da racionalidade burocráticos corporativos, sob o disfarce de um retorno ao culto superficial da máquina eficiente como mito capaz de encarnar todas as aspirações humanas. Na arquitetura e no planejamento, isso significava desprezar o ornamento e a personalização (...). Significava ainda uma enorme paixão pelos espaços e perspectivas maciços, pela uniformidade e pelo poder da linha reta”. P.43

    “Embora fracassado, ao menos a partir dos seus próprios termos, o movimento de 1968 tem de ser considerado, no entanto, o arauto cultural e político da subseqüente virada para o pós-modernismo. Em algum ponto entre 1968 e 1972, portanto, vemos o pós-modernismo emergir como um movimento maduro, embora ainda incoerente, a partir da crisálida do movimento antimoderno dos anos 60”. P.44

    Capítulo 3: Pós-modernismoEngels tem por objetivo analisar o trabalho em geral, assim também como Marx fará no início do capítulo V do livro primeiro de O Capital. Neste excerto muito conhecido e utilizado, Marx está analisando o processo de trabalho em geral, o trabalho como um processo contínuo, dialético e necessário entre homem e natureza em qualquer modo societal. Segundo Marx, “Antes de tudo, o trabalho é um processo entre homem e natureza” (MARX, 1985, p.211). O interessante é que Engel teve estes “insights” sem uma ciência paleontrapológica sedimentada, pois muitas de suas percepções dos textos somente foram confirmadas depois dos anos 60 por achados fósseis, e pela criação de uma linha da paleantropologia que viu o papel do fogo, do consumo de carne e das mãos nesta transformação. Embora a postura bípede, parece que surgiu no Ardiphitecus, muitos antes do que se pensava, em relação a Lucy que já vivia em Savanas tropicais, e não em Selvas tropicais na Etiópica. A postura bípede, talvez tenha surgido por propósitos sexuais, pois facilitava trazer comida para a fêmea e para a prole, pelo macho e isto teria liberado as mãos, o que favoreceu a tecnologia. O cérebro encontrou o instrumento para transformar a natureza chegando ao seu apogeu com a sociedade tecnológica capitalista criada pela Revolução Industrial, uma fração mínima do tempo da história da evolução natural do homem. A dialética da natureza em Engels sempre foi rotulada como excessivamente positivista, por autores essenciais como Gramsci e mais autores como John Bellamy Foster (1999) privilegiam uma nova interpretação em que o marxismo precisa dialogar com as ciências naturais, para buscar um ecomarxismo ou um ecossocialismo possível, superador das práticas autoritárias, hierárquicas, burocráticas que resultaram na subjugação do homem e da natureza, em experiência do socialismo real guiadas pelo stalinismo. Os seres humanos são seres naturais, pois a espécie humana surgiu pela evolução da natureza e permanece ligado a ela, inclusive se esta ligação da sociedade-natureza é modificada pelo desenvolvimento das forças produtivas (BAGAROLO, 1996, p. 372), que jamais pode ser suprimida. Esta primazia da natureza equivale afirmar, ao menos em parte, a ação transformadora do homem, em termos ontológicos, a uma visão materialista da natureza e do ser humano (BAGAROLO, 1996). Assim, a defesa do enfoque materialismo nunca foi uma abordagem sem relevância, visto que correspondia a uma necessidade teórica, pelo fato que apontava uma luta para conquistar as mentes do trabalhador frente os desafios para sua classe. O materialismo histórico dialético oferece uma síntese social para as novas abordagens científicas das teorias dos sistemas, da complexidade, da ecologia profunda, que não entendem as relações sociais engendradas pelos humanos na constituição de forças produtivas, classes e ideologias. Tais idéias se apropriam da técnica pela razão instrumental na formação de uma estandardização comercial e cultural em tempos de globalização neoconservadora com dominação do sistema financeiro transnacional que serve à uma minoria de multimilionários que conduzem a humanidade a barbárie, a falta de água, comida, habitação, as guerras neocolonialistas centradas no superimperialismo Europeu, dos EUA, etc.

    Para Engels, o prestígio das ciências naturais, contribuía para acalentar leituras do ser humano segundo dogmas naturalistas ou muitas vezes, deterministas, excluindo a historicidade do debate. Todavia, a luta pelo materialismo possui um sentido e razão bem precisa; conscientizar os homens de que podiam ser os donos do seu próprio destino, ao menos quando tomasse sua libertação das formas de consciência alienada (BAGAROLO, 1996, p. 374).

    A partir disso, o materialismo corresponde a uma compreensão e à valorização da potencialidade de libertação humana sob o ponto de vista do progresso das ciências e das forças produtivas, que apenas o socialismo pode colocar ao oferecimento à todos. Isto significa que, o materialismo de Engels não afirma a redutibilidade do real à matéria como lado físico, como por muito tempo assinalava o mecanicismo do século XVIII e o materialismo vulgar do século XIX, senão uma opção a favor da unidade do real (homem e natureza, matéria e espírito), na qual o homem é parte e a natureza do todo e o pensamento é o dado derivado e não originário (BAGAROLO, 1996, p. 375).

    Segundo o pensamento Engelsiano, a dialética é um método do pensamento mais real para compreendermos teoricamente a natureza quanto processo e devir; ela é a “lógica da coisa mesma”. Engels procura demonstrar que esta hipótese de trabalho está fundada e se torna inseparável do surgimento da ciência moderna da natureza e de seus resultados precisos. Ou seja, que as leis da dialética podem ser investigadas tanto na esfera do pensamento como na natureza. Ou seja, para Engels

    a dialética é, acima de tudo, “ciência das relações”, o modo de pensar e as conexões do que se encontra aparentemente distante e separado, a transformação do que parece imutável, a transformação incessante das formas naturais, a emergência de novas possibilidades do curso mesmo da evolução natural e histórica, assim como o elo de unidade e diferenciação, de solidariedade e luta, que subsiste entre o homem e a natureza (BAGAROLO, 1996, p. 376).

    2 Premissas conceituais: trabalho e natureza em Marx

    Para chegar a uma definição de trabalho, é preciso procurar os elementos que definem, ao longo da trajetória humana bem como as relações estabelecidas entre o homem e o ambiente. Ora, “o trabalho só começa quando uma determinada atividade altera os materiais naturais, modificando sua forma original” (COGGIOLA, 2002, p. 182). Ou seja, pode-se definir o trabalho como o processo que realiza a mediação entre o ambiente e o homem, quando este põe em ação as forças de que seu corpo está dotado – braços, pernas, cabeça, mãos –, transformando os elementos que encontra disponíveis na natureza em produtos, suprindo assim suas necessidades, não importando “se elas se originam do estômago ou da fantasia” (MARX, 1985, p. 45).

    O trabalho assim concebido – ação deliberada sobre o meio, caracterizada e dirigida pela inteligência e pela capacidade de abstração e formulação de conceitos – nada tem a ver com as atividades que realizam outros animais, como as abelhas ou as formigas. O homem, ao atuar “sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza” (MARX, 1985, p. 49). O trabalho humano não é ação sobre o meio realizado de forma instintiva ou mecânica, mas processo complexo de aprendizagem, onde o homem não se limita a repetir ações e processos, como os outros animais, mas desenvolve técnicas e tecnologia que lhe são úteis. Ou seja, o homem se diferencia pois cria suas próprias ferramentas e sua ação não se limita a modificar os materiais que encontra disponíveis na natureza:

    No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade (MARX, 1985, p. 149-50).

    Todavia, entendemos no corpo do pensamento marxiano-engelsiano que o trabalho humano apenas media a relação homem-natureza, tornando adaptada a natureza as demandas humanas, mas a fonte de riqueza é a natureza da qual são os produtos e bens de consumo por via do trabalho (RODRIGUES, 2002). O que evidencia na abordagem, que para Marx, humanidade e natureza estão inter-relacionadas e que a maneira historicamente específica das relações de produção constitui o cerne dessa inter-relação em qualquer período. Pois o mesmo, já havia aludido nos Manuscritos de 1844, citados por Foster e Lowy tal relação:

    O homem vive da natureza, isto é, a natureza é seu corpo, e tem que manter com ela um diálogo ininterrupto se não quiser morrer. Dizer que a vida física e mental do homem está ligada à natureza significa simplesmente que a natureza está ligada a si mesma, porque o homem é parte dela (FOSTER, 1999, p. 165; LOWY, 2005, p. 21).

    Desde os primeiros tempos da humanidade houve uma divisão do trabalho, que no início se dava em função de características fisiológicas, como gênero, idade, força física, até considerando mútua cooperação entre culturas e exercendo influência nos povos contemporâneos (DURKHEIM, 2005). Nas sociedades antigas o trabalho se dava de modo coletivo, orgânico, destinado basicamente a produção de bens, visando de maneira objetiva à satisfação das necessidades primárias e o cerne limitava-se à obtenção de valores de uso (RODRIGUES, 2002, p. 12). A própria dança, o folclore, os rituais ensejavam uma base cultural de mediação do homem e da natureza, ainda não dicotomizada pelas relações produtivas engendradas na Antiguidade ou nos novos entornos sociais do capitalismo estabelecido no sistema mundo, com seu centro e sua periferia.

    Logo, é na sociedade capitalista que as mediações se tornam mais complexas, onde o valor atua como mediador das relações humanas e de acesso à natureza (RODRIGUES, 2002, p. 12). Mas, à medida que o trabalho se diversificava e se tornavam mais complexas tanto a técnica como a tecnologia, essa primeira divisão do trabalho foi sendo superada pela divisão entre o trabalho material e o trabalho intelectual. Passava a haver, quanto à função imediata do indivíduo no meio social, um trabalho realizado pela mente e um trabalho realizado pelas mãos, sendo o primeiro entendido como afastado da prática humana, um produto da consciência humana e não de um órgão. Cada indivíduo ficou limitado a esferas profissionais particulares, exclusivas, não devendo sair delas, sendo unicamente caçador, operário, professor ou administrador. Com essa divisão, o trabalho e seus produtos passaram a ser, qualitativa e quantitativamente, distribuídos de forma desigual (MARX E ENGELS, 1996, p. 44-48). Também as relações homem-natureza assumem novos postulados, em que novas perspectivas são assumidas no lucro, exigindo um uso mais acelerado dos recursos naturais extraídos pelo trabalho (RODRIGUES, 2002, p. 12).

    Conclusão

    A partir de nossas breves observações, entendemos que é necessário, no referencial das ciências sociais, restabelecer a centralidade da categoria trabalho para entender a vida humana (SILVA, 1997), retomando a compreensão do trabalho como ação que “produz a natureza humana na mesma medida em que a delimita e a diferencia da natureza puramente animal, através de uma apropriação específica do próprio mundo natural” (COGIOLA, 2002, p. 183).

    Dentro desse panorama, teríamos dois breves apontamentos: a) Na sociedade refletida por Marx e Engels, o trabalho com as mãos é ato de rebaixamento do homem, ficando condicionados a seres “inferiores”. Um outro tipo de “trabalho cerebral”, recebe importância maior, sendo muitas vezes não considerado trabalho, esquecendo-se inclusive que depende de um órgão do corpo humano, o cérebro. Do mesmo modo, esquecemos que não há trabalho puramente cerebral ou puramente manual, sendo a prática uma parte constitutiva do aprendizado. Olvidamos também que aqueles trabalhadores supostamente menos relevantes, os que trabalham com as mãos, são os que produzem as riquezas materiais que servem para suprir as necessidades humanas. Se negamos ao trabalho sua importância fundamental, negamos nossa própria história, a história do “animal racional” (no puro sentido Aristotélico) que chegou a ser o que é, a tornar real um mundo de sonhos e maravilhas, ou de até, no pessimismo revolucionário, ser incapaz de transformar suas relações sociais pelo trabalho (GORZ, 1987. p. 85); b) por fim, asseveramos que Engels, da mesma forma que Marx, deixou cristalizado em sua obra a participação do homem na natureza, de sua posição diferenciada ao comparar com as outras espécies vivas, de sua presença modificadora. Neste movimento a própria natureza humana é construída e modificada constantemente e, segundo a abordagem marxiana-engelsiana, com o surgimento do modo de produção capitalista, com o aparecimento da burguesia explorando os trabalhadores e degradando a natureza. De tal conseqüência histórica, surge a possibilidade histórica dos oprimidos construírem a transformação por completo do modo de produção existente e, com ele, a ordem social vigente ao mesmo tempo em que ressignifique a relação das sociedades com a natureza, produzindo outras relações socioambientais

    David Harvey adquiriu fama com a publicação, em 1989, de Condição pós-moderna. engendramento de uma nova sensibilidade ou do sentimento qualificado como pós-moderno) com a emergência de modalidades diferentes, mais flexíveis de acumulação do capital, isto é, ao início de um novo ciclo de “compressão do tempo-espaço na organização do capitalismo”. Isso não significa, no entanto, que ele endosse a tese do surgimento de uma sociedade pós-capitalista ou mesmo pós-industrial, ao contrário. Para Harvey, o pós-modernismo não significa apenas uma mudança no estatuto da produção cultural, sinaliza também uma modificação no próprio modo de vida com a generalização de novas práticas, experiências e formas de vida. Em sua obra anterior, Os limites do capital (1982), Harvey examinou a teoria marxista das crises econômicas. Nesse registro, compreende o pós-modernismo como uma ruptura com o modelo de desenvolvimento do capitalismo prevalecente no pós-guerra. Desde a recessão de 1973, a forma de acumulação predominante, o fordismo, foi minada pela crescente competição internacional, por baixas taxas de lucros corporativos e por um processo inflacionário em aceleração, processo esse que mergulhou a economia capitalista numa crise de superacumulação.

    A resposta da classe capitalista e dos governos dos países centrais a essa situação desdobrou-se como um novo regime de acumulação “flexível”, no qual o capital ampliava sua margem de manobra intensificando a flexibilidade dos mercados de trabalho – privilegiando contratos temporários, a incorporação de força de trabalho imigrante etc. –, dos processos de fabricação – pela via da transposição de unidades fabris para outros países ou regiões –, da produção de mercadorias – por processos just in time, por lotes de encomendas etc. –, nos mercados financeiros – desregulamentados nas transações atinentes ao câmbio, ao crédito e aos investimentos.

    Essa nova forma de acumulação fornece a base para a cultura pós-moderna, para uma sensibilidade ligada à desmaterialização do dinheiro, ao caráter efêmero das moedas, à instabilidade da “nova economia”.

    acumulação e as estratégias políticas, diplomáticas e militares que denomina “acumulação por espoliação”, renomeando o arsenal de práticas que Marx chamava de acumulação primitiva.

    A predecessora mais ilustre dessa posição foi Rosa Luxemburgo. Harvey compartilha com ela a tese de que a acumulação capitalista não prescinde de alguma espécie de ambiente externo. Discorda, no entanto, que esse “outro” seja sempre uma forma de produção pré-capitalista. O próprio capitalismo, em sua geografia e história, pode produzir esse “exterior”, como no caso do desemprego em massa que amplia o exército industrial de reserva. Tampouco concorda que a sucessão de crises que perpassa o capitalismo seja explicável pelo “subconsumo”. Para Harvey, as crises advêm da dificuldade em absorver de forma lucrativa os excedentes de capital e são, portanto, “crises de sobreacumulação”. Sua resolução acarreta tanto a desvalorização de ativos e a destruição de regiões como configura uma nova paisagem espaço-temporal para acomodar a perpétua acumulação de capital e, sua companheira inseparável, a acumulação interminável de poder.

    Essa teoria permite a Harvey explicar de forma convincente os principais fenômenos político-econômicos dos últimos 35 anos, apresentando a financeirização, a globalização e a política neoliberal como estratégias da “acumulação por espoliação”. Seu predomínio manifesta-se na vida política por meio da cisão dos movimentos antiglobalização, divididos entre a esquerda socialista – cuja ênfase na reprodução ampliada coloca como central a luta anticapitalista –, e os novos movimentos sociais que tendem a assumir formas difusas, fragmentárias e avessas ao controle do aparelho de Estado, posto que seu combate prioritário é contra a espoliação. Para explicar o pós-modernismo, Harvey recorre ainda ao arsenal teórico da “escola da regulação”, em particular, à sua famosa distinção entre “regime de acumulação” e o “modo de regulação” social e política que lhe é associado. Nesse diapasão, Harvey identifica no pós-modernismo uma ruptura com o modelo de desenvolvimento capitalista prevalecente desde 1945. A partir da recessão de 1973, a forma de acumulação predominante, o fordismo, foi minada pela crescente competição internacional e pela combinação de baixas taxas de lucros corporativos e de um processo inflacionário em aceleração. A soma desses fatores desencadeou uma crise de superacumulação.

    A resposta da classe capitalista e dos governos dos países centrais a essa situação desdobrou um novo regime de acumulação. Nesse regime, denominado “flexível” por Harvey, o capital retomou sua margem de manobra e seu controle sobre o mercado de trabalho. Sua principal estratégia foi a “precarização” das relações trabalhistas, com o estabelecimento de contratos temporários e a incorporação de força de trabalho imigrante.

    Contribuíram para tanto outros fatores como a transposição – em busca de custos reduzidos – de unidades fabris para outros países ou regiões. A produção de mercadorias também foi revolucionada por processos just in time, pela prioridade dada aos lotes de encomendas etc. A principal transformação, no entanto, ocorreu nos mercados financeiros com a desregulamentação das transações em moedas (câmbio), crédito e investimentos. Esse novo regime de acumulação forneceu o solo para a cultura pós-moderna, para uma nova sensibilidade moldada pela desmaterialização do dinheiro, pelo teor efêmero da referência monetária, pela instabilidade econômica.

    J. Estáline – O Materialismo Dialéctico e o Materialismo Histórico.

    “ O materialismo dialéctico é assim chamado, porque a sua maneira de considerar os fenómenos da natureza, o seu método de investigação e de conhecimento é dialéctico e a sua interpretação, a sua concepção dos fenómenos da natureza, a sua teoria é materialista.”  Segundo o método dialéctico “os fenómenos da natureza estão eternamente em movimento e em transformação e o desenvolvimento da natureza é o resultado do desenvolvimento das contradições da natureza, o resultado da acção recíproca das forças contrárias da natureza( “Le Materialisme Dialectique et le Materialisme Historique (edições em Línguas Estrangeiras- Moscovo, 1951)

    A natureza “como um todo único, coerente, em que os objectos, os fenómenos, estão ligados organicamente entre eles, dependem uns dos outros e condicionam-se reciprocamente.” “Ao contrário da metafísica, a dialéctica encara a natureza, não como um estado de repouso e de imobilidade, mas como um estado de movimento e transformação perpétuos”. E cita Engels : “Toda a natureza, diz Engels, das partículas mais ínfimas aos corpos maiores, do grão de areia ao Sol, do protiste (célula viva primitiva. . Estáline) ao homem, está empenhada num processo eterno de aparecimento e desaparecimento, num fluxo incessante, num movimento e numa transformação perpétuos. (Dialéctica da Natureza, F. Engels). E, mais, adiante: “A natureza, diz Engels, é a pedra de toque da dialéctica e é necessário dizer que as ciências modernas da natureza forneceram, para esta prova, materiais que são extremamente ricos e que aumentam cada vez mais; assim, provaram que a natureza, em última instância, comporta-se dialecticamente e não metafisicamente(…)”. Continua a citá-lo abundantemente. E a extrair consequências políticas!! Tanto da dialéctica aplicada aos fenómenos sociais e históricos (o que não surpreende), como ddas suas “leis” que regem a natureza, por exemplo, “a passagem das mudanças quantitativas lentas a mudanças qualitativas bruscas e rápidas” passa para as revoluções….”Por consequência, para não nos enganarmos em política, é preciso sermos revolucionários e não reformistas.”

    A política e a ideologia

    Domenico Losurdo

    O socio-centrismo, antropocentrismo e antropomorfismo, eurocentrismo (Ocidente), egocentrismo

    Ao colocar o pólo material como primado, Marx critica a “objetivação” que Hegel faz do pensamento contemplativo como o “único comportamento objetivo”. Critica a valorização do pensamento especulativo como o trabalho que impulsiona a dialética. “O materialismo de Marx, como o oposto rigoroso do idealismo de Hegel, encontra precisamente no trabalho humano o equivalente dialético do trabalho do pensamento que impulsionava a Lógica. E porque o trabalho é para Marx uma relação de produção definida por seu conteúdo material, o trabalho como relação dialética fundamental define, em toda a sua extensão, o significado materialista da dialética”.

     O ponto de partida não é a consciência, o trabalho intelectual, mas o homem em seu processo vital, em seu trabalho produtivo com a natureza. Desde este ponto de vista, o materialismo marxista nos aparece como uma ‘antropogênese’ [...]”. O trabalho, como relação dialética fundamental, opera essa “antropogênese” numa relação ativa e recíproca entre o homem e a natureza.

     Há a dialética homem e natureza na produção dos meios vitais necessários para a manutenção da vida. A natureza só adquire significatividade para o homem quando da exteriorização do homem e este só possui significatividade em uma natureza: “Um ser que não tenha sua natureza fora de si não é um ser natural, não faz parte da essência da natureza. Um ser que não tenha nenhum objeto fora de si não é um ser objetivo. Um ser que não é, por sua vez, objeto para um terceiro ser não tem nenhum ser como objeto seu, isto é, não se comporta objetivamente, seu ser não é objetivo. Um ser não objetivo é um não-ser”.

     O materialismo de Marx é um materialismo dinâmico, que relaciona homem e natureza, natureza e homem. Mesmo tendo o primado da matéria, do pólo objetivo, o seu oposto – o espírito, o homem, a subjetividade – não é colocada como mero reflexo do primeiro pólo. Pois pela práxis (que une teoria e ação, objetividade e subjetividade) dá-se a dialeticidade da relação homem-natureza, objetivo-subjetivo. Esclarecedor da perspectiva singular do materialismo de Marx e que o distingue de outros materialistas é este trecho da Teses sobre Feuerbach: “O defeito principal de todo o materialismo conhecido até hoje – inclusive o de Feuerbach – é que a realidade concreta e sensível não é aí concebida senão  sob a forma do objeto ou da representação, e não como atividade sensorial do homem, como prática humana, ou seja, não subjetivamente... Feuerbach tem em vista os objetos concretos, realmente distintos dos objetos do pensamento; entretanto, ele não considera a atividade humana em si mesma como atividade objetiva... Por conseguinte, ele não apreende a significação da atividade ‘revolucionária’, prático-crítica”. Quanto à questão teleológica, o pensamento complexo nos ajuda a evitá-la ao mostrar-nos a não-linearidade, a possibilidade de “saltos” no desenrolar histórico, que não necessariamente signifique positividade. Ainda mais, se pensarmos nas possibilidades das ações humanas que podem se voltar tanto para a positividade quanto para a negatividade. A teleologia, se não bem dosada, é sempre perigosa, pois predispõe à “mania de videntes” e pode nos levar a querer tudo compreender e a impor um futuro já dado de antemão (conseqüências que o século XX não deixou de experimentar com os regimes totalitários e a lógica do fim da história).

     Quanto á confiança exarcebada na ciência, o auxílio da complexidade nos dá a compreender e a conhecer que a ciência não é a única forma de apreensão do real. A ciência, por mais importante que seja não detêm o monopólio da apreensão do mundo, e sozinha, isolada da companhia das assim chamadas humanidades, corre o risco de errar pelos caminhos da autodestruição humana.

    Economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades profundamente e crescentemente desiguais. Com o Império norte-americano até a doutrina adversa ao Estado, do “mercado livre”, revelou-se uma mentira. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonham, disseminando a simples idéia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas. Nenhuma doutrina conseguiu um predomínio tão global desde o início do século como o neoliberalismo Este fenómeno chama-se hegemonia, ainda que, positivamente, milhões de seres humanos resistam a tais regimes. Veremos o que vai impor-se neste século que ora começa.

    ------NOZES PIRES----

    T. Vedras, 2020

     


     

     


     

     

    Viagem à Polónia

    Viagem à Polónia
    Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

    Viagem à Polónia

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    Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.