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terça-feira, 17 de junho de 2025

O petróleo, eis a questão.

 

O conflito Israel x Irã

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Por EDUARDO BRITO, KAIO AROLDO, LUCAS VALLADARES, OSCAR LUIS ROSA MORAES SANTOS e LUCAS TRENTIN RECH*

O ataque israelense ao Irã não é um evento isolado, porém mais um capítulo na disputa pelo controle do capital fóssil no Oriente Médio

Nas últimas semanas, o conflito, de amplo conhecimento e repercussão no debate público, do regime sionista de Israel – patrocinado pelo imperialismo americano com sua hegemonia do capital fóssil (MALM, 2016) – contra o Estado da Palestina ganhou novos contornos com o acirramento da tensão, inclusive, em relação a uma das maiores potências petrolíferas da região, a República Islâmica do Irã.

O objetivo da presente exposição é tratar do fenômeno político concreto, articulando a dinâmica de produção de petróleo e gás na região do Oriente Médio, sobretudo no Irã, alvo de potenciais ataques do regime sionista, com o conflito hegemônico entre Estados Unidos e China pelo controle do capital fóssil e suas implicações no mercado internacional de energia.

Histórico das relações entre Irã, Israel e Estados Unidos

No último dia 11 de junho, o Washington Post noticiou que os Estados Unidos estariam esvaziando suas embaixadas no Oriente Médio, sobretudo no Iraque, ao emitir autorização para retirada de “funcionários não-essenciais”[i] desses espaços frente ao crescente risco de uma ofensiva do regime sionista de Israel contra o Irã, após supostamente terem sido avisados de que o regime está “totalmente preparado para lançar uma operação contra o Irã”.

Mais tarde, na madrugada do dia 13 de junho em Teerã, as forças sionistas realizaram ataques a diversas bases militares no país, além de também terem atingido diversas bases nucleares do país. Ao todo foram mais de 80 mortos, incluindo diversos cientistas envolvidos no programa nuclear, o chefe do Estado-maior, além do chefe da Guarda Revolucionária iraniana.

Os ataques de Israel tiveram Teerã – cidade onde se concentram membros do alto escalão militar e político – e a cidade de Natanz – onde se concentram usinas de enriquecimento de urânio, insumo fundamental para o desenvolvimento de artefatos nucleares – que fica a pouco mais de três horas da capital, como principais alvos. Segundo a Associated Press, pelo menos mais seis cidades também foram atacadas.

Após o ocorrido, o regime israelense, na pessoa do ministro de defesa, Israel Katz, declarou estado de emergência e rapidamente fechou seu espaço aéreo. Até o momento, o Irã respondeu aos ataques enviando drones e mísseis balísticos ao território ocupado por Israel.[ii]

FIGURA 1.[iii]

Apesar de, num primeiro momento, saltar à vista uma possível ação independente por parte de Israel – sendo essa ideia fortalecida por declarações contraditórias do presidente Donald Trump, como a de que ele teria se oposto a ideia de ataque ao Irã[iv], segundo o The New York Times –, é adequado lembrar que, sem nenhuma dúvida, esta não será consumada sem o devido escrutínio do governo dos Estados Unidos, como já se haviam especulações há semanas: “Se for necessário o uso militar, nós usaremos força militar”, disse Donald Trump. “Israel obviamente estará muito envolvido nisso. Eles serão os líderes disso. Mas ninguém nos lidera, fazemos o que queremos fazer.”[v]

A fala do presidente expressa muito bem (basta olhar e ver) o papel desempenhado pelo regime de Israel no imperialismo estadunidense. Os EUA, certamente, agirão pelas garantias de seu próprio interesse; no entanto, Israel, enquanto protetorado americano, possuindo contradições distintas – porém que resultam no mesmo fenômeno – destes últimos em relação ao Irã, deverá ser o responsável direto pela ofensiva.

Essas se manifestam, pelo menos, desde que a França desenvolveu o programa nuclear israelense, se tornando uma condição de real preocupação a partir da década de 1970. O Irã viu não só sua qualidade de potência regional ser ameaçada, como também sua própria estabilidade política e soberania. Desse modo, o início do seu próprio projeto nuclear (na década de 1960) voltado para a produção de energia de interesse civil, foi causador de mal-estar no mundo ocidental no início dos anos 2000, quando já se era sabido que o programa nuclear iraniano poderia causar grande impacto na correlação de forças no Oriente Médio.

Aliado a isso, o suporte histórico do Irã à causa palestina é outro fato relevante para o acirramento dessa disputa. Desde 1990, o país mantém relações firmes com o Hamas, sendo formalizadas um ano depois, quando uma delegação do grupo político solicitou a criação de um gabinete oficial em território iraniano. Após o evento, o Irã forneceu apoio material ao grupo em diversas outras ocasiões, como no episódio de deportação em massa de líderes do grupo e da Jihad Islâmica palestina para o Líbano ou na invasão da Faixa de Gaza entre 2007 e 2008.

No primeiro, o Irã serviu como ponte para a aproximação entre o Hamas e o Hezbollah, além de promover frequentes visitas de autoridades aos líderes exilados; no segundo, o Irã forneceu, secretamente, diversos equipamentos militares fundamentais para a defesa da Palestina na região.[vi]

O Irã, portanto, figura como antagonista direto do regime sionista de Israel ao passo que é o principal responsável pela existência e a força da frente de combate mais incisiva do povo palestino e, importante lembrar, pela existência também do próprio povo palestino. Nesse contexto, o Irã é, ao mesmo tempo, um antagonista da hegemonia fóssil estadunidense, que, além de ter em Israel seu destacamento militar mais avançado no território, exerce forte influência no Golfo Pérsico através de suas diversas bases militares na costa oeste e ao longo do Oriente Médio.


FIGURA 2.[vii]

Estrutura histórica e a Revolução iraniana

O atual cenário de iminente conflagração, acentuado pela escalada de violência israelense em Gaza e pelo alinhamento do Irã à causa palestina, não pode ser analisado como um evento isolado. Pelo contrário, o que se observa é o ápice de uma trajetória histórica cujo ponto de ignição se deu após a Revolução Iraniana (1978-1979) (Espírito Santo, 2017).

Portanto, para compreender a profundidade estratégica deste confronto e o papel do Irã como uma potência energética no Oriente Médio (Bhagat, 2005), analisaremos a gênese e os motivos que transformaram a nação persa no principal antagonista da hegemonia fóssil norte-americana na região mais rica em petróleo do mundo.

A inserção do Irã em uma momentânea dinâmica de subordinação ao Ocidente foi selada em 1953. Naquele ano, o governo nacionalista do primeiro-ministro Mohammad Mossadegh foi deposto por um golpe orquestrado pela CIA (Estados Unidos) e pelo MI6 (Reino Unido). O “crime” de Mossadegh fora nacionalizar a indústria petrolífera, até então controlada pelo capital britânico, em uma tentativa de reverter a drenagem de riquezas do país.

O golpe restaurou ao poder o Xá Mohammad Reza Pahlavi, consolidando um regime cuja função no tabuleiro geopolítico era clara: atuar como um peão na estratégia de Washington, garantindo o fluxo de petróleo barato para o Ocidente e funcionando como um baluarte contra a influência da União Soviética, com quem o Irã compartilhava uma extensa fronteira estratégica (Alves, 2020).

Estruturava-se, assim, um modelo clássico de desenvolvimento dependente, no qual a economia periférica iraniana era moldada para servir aos interesses do centro imperialista (Foran, 1989). Sob essa lógica, o regime golpista do Xá promoveu um projeto de “modernização” autoritária conhecido como a “Revolução Branca” (1963), financiada pela vasta riqueza petrolífera. A iniciativa, contudo, produziu um efeito socialmente desastroso, aprofundando as crises internas (Nakhaei, 2020).

O primeiro ponto foi a concentração de renda e o aprofundamento da desigualdade. Operando sob uma lógica análoga à do “milagre econômico” (1969-1973) da ditadura militar brasileira, a promessa de “fazer o bolo crescer para depois dividir”, a riqueza do petróleo jamais foi redistribuída. Pelo contrário, alimentou uma pequena elite ocidentalizada, enquanto a vasta maioria da população, especialmente nos centros não-urbanos, permanecia marginalizada (Brandis, 2009).

Em segundo lugar, a imposição de um secularismo de Estado e de uma ocidentalização acelerada que separou setores cruciais da sociedade. O clero muçulmano xiita, majoritário no país e conhecido como ulemás, viu sua influência e suas tradições serem sistematicamente degradadas (Varol, 2016). Por fim, como em todo regime autocrático, a estabilidade era mantida pela força. Qualquer oposição política era brutalmente reprimida pela SAVAK (Organização de Inteligência e Segurança Nacional), a temida polícia secreta do regime, treinada e assessorada por agências dos EUA e de Israel.

Nesse contexto, o petróleo era percebido pela população não como um vetor de desenvolvimento nacional, mas como o elo da subordinação do país e a fonte de poder de um regime tirânico e subserviente a interesses forasteiros (Bina, 2017). A oposição, consequentemente, aglutinou-se em uma espécie de “frente ampla”, composta por liberais, nacionalistas, socialistas e, de forma mais organizada e capilarizada, o clero xiita, sob a liderança do Aiatolá Ruhollah Khomeini, que orquestrava a resistência a partir do exílio, primeiro no Iraque e, em sua fase final e mais decisiva, na França.

Desafiando teses que historicamente atribuíam poder de barganha política a setores operários clássicos, como os mineiros de carvão no país persa, a classe trabalhadora petroleira iraniana demonstrou uma agência histórica decisiva. Conforme apontado por Jafari (2019), esses operários, cientes de sua posição estratégica em uma economia totalmente articulada em torno da extração e comércio de petróleo, emergiram como a vanguarda do levante popular. Entre 1978 e 1979, uma onda de greves massivas, coordenadas nas refinarias e campos de petróleo de Abadan e da província do Cuzistão, efetivamente paralisou a produção e a exportação. O efeito sobre o regime do Xá foi duplo e devastador.

Primeiramente, no plano material, a ação coletiva induziu à asfixia econômica do Estado. Ao cortar a principal fonte de receita do país, os grevistas tornaram o regime incapaz de pagar seus funcionários e, crucialmente, seu aparelho repressivo, as forças armadas e de segurança. O pilar financeiro que sustentava a monarquia implodiu (Jafari, 2018).

O segundo impacto foi de ordem simbólica e política. Em uma inversão dialética hegeliana de poder, os trabalhadores demonstraram que o controle fático do recurso mais valioso do país não residia no palácio do monarca, mas naqueles que operavam os poços e as refinarias.

O petróleo, antes o símbolo máximo da dominação estrangeira e da tirania do Xá, foi ressignificado e transformado “de dentro”, em uma arma de sabotagem e mobilização popular, como argumentado por Timothy Mitchell (2009). Para a comunidade internacional, o sinal era inequívoco: o regime do Xá havia perdido o controle de fato sobre seu território e sua principal fonte de poder.

Contudo, a vitória da revolução catalisada por essa ação operária, abriu um vácuo de comando e controle. Foi neste momento que a “facção” mais organizada e com maior capilaridade social, o clero xiita sob a liderança de Khomeini, moveu-se para consolidar sua direção do processo. Os aliados conjunturais da “frente ampla” foram então sistematicamente neutralizados.

Liberais e nacionalistas, como os que compunham o governo provisório de Mehdi Bazargan, foram rapidamente marginalizados e expurgados do poder (Ostovar, 2009). Em seguida, as organizações de esquerda: socialistas, comunistas (como o partido Tudeh) e guerrilheiros (como os Fedayin do Povo), que haviam combatido ativamente a ditadura do Xá, foram declaradas inimigas do novo Estado e da própria fé.

A razão para essa perseguição brutal era dupla: primeiramente, sua ideologia secular e sobretudo marxista era fundamentalmente irreconciliável com o projeto de Khomeini de um Estado governado pela jurisprudência islâmica (a Velayat-e Faqih). Em segundo lugar, como grupos com experiência de combate, organização e uma base popular própria, eles representavam um polo de poder alternativo e uma ameaça militar direta à consolidação da hegemonia clerical e de sua nova guarda, a Pasdaran (Ostovar, 2009). A revolução, que começa com uma base ampla, foi deliberadamente afunilada para garantir a ascensão de uma teocracia xiita.

A interrupção da produção iraniana, seguida pela incerteza sobre a nova política do país, provocou o que ficou conhecido como o “Segundo Choque do Petróleo” em 1979. A redução na oferta fez os preços dispararem, mergulhando a economia global em uma recessão e reforçando a lição aprendida em 1973: a estabilidade do sistema energético ocidental era perigosamente dependente da estabilidade política do Oriente Médio, agora radicalmente alterada (Valladares, 2024).

A relação conturbada entre o Oriente Médio, em específico o Irã, e os países do eixo ocidental prosseguiu ao longo de toda a segunda metade do século XX, e persistiu no século XXI, conforme tratado posteriormente no tópico quarto.

Internamente, o novo lema do Irã, “Nem Ocidente, Nem Oriente, mas República Islâmica”, traduziu-se em uma política externa que rejeitava a subordinação a qualquer das superpotências da Guerra Fria (1947-1991) (Espírito Santo, 2017). O controle nacional sobre o petróleo tornou-se o pilar desta soberania. Isso sacramentou o fim da aliança estratégica com os Estados Unidos e, por consequência, com Israel, que passou da condição de parceiro discreto do Xá a ser rotulado como o “Pequeno Satã” e uma “entidade sionista ilegítima”, solidificando as hostilidades que foram os motivos da escrita deste artigo (Lewis, 2004).

Dois eventos subsequentes que valem a pena ser citados e foram relevantes. O primeiro foi a Crise dos Reféns (1979-1981), quando estudantes revolucionários, apoiados pelo novo regime, invadiram a embaixada dos EUA em Teerã e mantiveram 52 diplomatas e cidadãos americanos cativos por 444 dias. O ato foi uma resposta direta à decisão americana de acolher o Xá deposto para tratamento médico, o que foi interpretado no Irã como um prelúdio para um novo golpe orquestrado pela CIA, a exemplo de 1953 (Perosa Jr, 2013).

A crise humilhou publicamente os Estados Unidos, destruiu qualquer possibilidade de reconciliação a curto prazo e foi usada internamente por Khomeini para consolidar o poder da linha-dura clerical, eliminando os últimos vestígios de moderação do governo.

O segundo evento foi a Guerra Irã-Iraque (1980-1988). Vendo uma oportunidade no aparente caos revolucionário, o Iraque de Saddam Hussein, com massivo apoio financeiro e militar de potências ocidentais e monarquias do Golfo, que temiam a “exportação” da revolução islâmica, invadiu o Irã. O conflito brutal de oito anos consolidou a percepção iraniana de um mundo hostil e determinado a destruir seu novo regime.

Em resposta, o país foi forçado a aprimorar sua resiliência: começou a usar o petróleo como escudo, desenvolvendo canais de exportação paralelos para contornar sanções, forjando alianças com atores não alinhados ao eixo ocidental e definindo sua política energética como a espinha dorsal de sua resistência à hegemonia do capital fóssil liderada pelos EUA (Ostovar, 2009).

A revolução, portanto, não apenas derrubou um ditador, ela removeu um dos maiores agentes de petróleo do sistema de segurança energética ocidental, e o transmutou em um adversário ideológico e estratégico (McGlinchey, 2014). A consciência de que o petróleo poderia ser usado como arma, concebida nas greves de 1978, tornou-se a doutrina central de um Estado que, desde então, vê seus recursos energéticos como a principal ferramenta para garantir sua sobrevivência e projetar sua influência (Zunes, 2009).

Estavam assim consolidadas as premissas de um conflito prolongado, no qual o Irã adotou uma postura duradoura de antagonismo em relação aos Estados Unidos e a Israel, uma hostilidade que se projeta até os dias atuais.

A produção fóssil iraniana e a aproximação chinesa

Como visto acima, portanto, as disputas políticas e territoriais entre Israel e Irã não são suficientes para explicar o papel dos Estados Unidos nos conflitos; a elas soma-se a importância iraniana no mercado internacional de petróleo, cuja utilidade enquanto ferramenta de pressão global foi demonstrada ainda na Guerra do Yom Kippur (1973)[viii].

Ampliando o contexto, durante as operações para retomada de terras lideradas pela Síria e pelo Egito, os Estados Unidos garantiram a manutenção de sua principal ferramenta da hegemonia fóssil, prestando suporte militar ao regime de Israel. Como resposta, os países da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) impuseram «cortes consideráveis em sua produção de petróleo mês a mês, até a total evacuação das forças israelenses sobre todo o território árabe ocupado a partir da guerra de 1967 […]» e um embargo total de vendas sobre os Estados Unidos e outros países que apoiaram o regime israelense[ix].

Em um período de guerra fria, e iminente perigo nuclear, o petróleo era (como ainda o é) figura fundamental no contexto da reprodução da vida capitalista, enquanto capital fóssil (MALM, 2016), ou seja, como subversor da natureza e sua temporalidade, assumindo o papel de sujeito do processo produtivo, impondo seu tempo abstrato ao ritmo da reprodução do trabalho e da produção do mais-valor relativo e absoluto, portanto, agindo como um fator contrariante à queda da taxa de lucro.

Para além disso, desempenha papel fundamental, inclusive, na mobilidade de capitais, sendo, dialeticamente, agente ativo e passivo do exercício da hegemonia: ao passo que sua abundância atrai agentes imperialistas para o território onde se encontra, também é elemento fundamental para o exercício do próprio imperialismo.

Isso se manifesta, de forma concreta, no abastecimento tanto os setores de uso doméstico, como automóveis para deslocamento da força de trabalho, quanto blindados, grandes navios e caças dos porta-aviões nucleares, que dependiam diretamente do “ouro negro” (petróleo) para funcionar. Por isso, ainda que o sucesso dos embargos da OPEP na guerra sejam questionáveis — visto que Israel não mobilizou suas tropas para fora do território Árabe — o uso geopolítico do petróleo se comprovou, com a pressão exercida sobre os preços internacionais tornando a prática uma forma de contenção do Oriente Médio à hegemonia americana nas próximas décadas.

Ipso facto, o controle estadunidense sobre a região se acentuou. A inexistência de bases sobre território iraniano não implica em ausência de controle; pelo contrário, o controle passou a ser feito a partir de bases próximas ao canal de Suez e ao estreito de Ormuz, localizadas sobretudo no Kuwait, por contenção ao Iraque e problemas internos, Bahrein, Catar e nos Emirados Árabes Unidos. Através delas, o escoamento de petróleo iraniano para outras partes do mundo foi minado, numa tentativa de retardar o seu crescimento econômico.

Paralelo ao desenvolvimento da oil weapon árabe, os Estados Unidos aprenderam a utilizar a demanda por petróleo como uma ferramenta geopolítica, impondo desde 1979 uma sanção à quantidade de petróleo iraniana importada, restrita a não mais que cinquenta mil barris por dia[x]. As sanções se agravaram com o tempo, sob o pretexto de combate ao apoio do Irã ao terrorismo. Em 1984, investimentos, assistência financeira e transferência de material militar ao Irã por entidades estrangeiras foram proibidos.

Depois, em 1986, foi proibida a importação de bens e serviços iranianos. As medidas se agravaram a partir de 1995, durante o governo de Bill Clinton, com a tentativa de mobilizar os principais aliados dos Estados Unidos contra a importação de petróleo iraniano.

Contudo, a medida não teve grande sucesso, com muitos países se negando a adotar a postura severa visto que os Estados Unidos seguiam comprando petróleo do Irã e revendendo para o resto do mundo. Além disso, «sendo um bem fungível, o petróleo iraniano poderia ser trocado com outros países a fim de ser importado pelos EUA […]», reduzindo significativamente o impacto dessas novas sanções. Apesar das medidas serem anunciadas como ferramentas antiterrorismo, o desdobramento dos conflitos deixou bastante evidente que a tentativa de controle estadunidense do Golfo Pérsico era, na verdade, o principal motivador por detrás delas, visto que a região concentra cerca de dois terços do petróleo mundial e fugia do seu domínio ideológico durante a guerra fria.

As restrições impostas ao comércio internacional do Irã com o ocidente e o controle parcial dos Estados Unidos aos principais canais de comunicação fluvial entre o Irã e o mundo tornou necessário a aproximação do país a novos parceiros internacionais e a criação de estratégias alternativas para o desenvolvimento econômico e energético, entre elas, a ampliação do seu programa militar e formas alternativas de escoamento de petróleo.

Quanto à primeira alternativa, o dispêndio do Irã com o setor militar cresceu continuamente entre 1993 e 2006, mesmo estando sob sanções unilaterais dos Estados Unidos[xi]. Nesse mesmo período, o governo iraniano recusou-se a terminar os seus programas de enriquecimento de urânio, originários de um apoio conjunto dos Estados Unidos e outros países para promover a paz no oriente médio (sic) que posteriormente fora terminado e reativado a partir da década de 1990, agora com apoio da Rússia.

Como consequência, o conselho de segurança da ONU impôs sanções multilaterais ao Irã a partir de 2006, endossadas novamente pelos Estados Unidos e pela União Europeia em 2012, em ordens de frear o avanço militar e nuclear iraniana, resultando no sucessivo decréscimo dos gastos com o setor militar[xii].

O crescimento militar do Irã não é alheio às discussões do parágrafo anterior, acerca do petróleo, mas soma-se a eles; somente um grande poderio bélico instalado é capaz de garantir a soberania do país e o seu acesso aos mercados internacionais mesmo em face a severas pressões de agentes externos. Do contrário, a presença de bases estadunidenses próximas ao território iraniano seria suficiente para assegurar a sua completa subordinação aos interesses estrangeiros.

Quanto à segunda alternativa, o Irã adotou uma série de medidas ilegais para contornar as sanções e escoar a sua produção de petróleo. Estima-se que cerca de 80% do contrabando de exportação realizado no Irã se destine a produtos de petróleo, quando não a commodity em si[xiii].

O objetivo principal do contrabando é que os navios cargueiros passem despercebidos pelos principais canais de transporte fluvial que, como citados anteriormente, estão sob o campo de visão dos Estados Unidos e suas bases, dando ênfase ao estreito de Ormuz, principal rota de transporte de petróleo iraniano para a China. Nesse quesito, a própria China desempenha o papel de importante parceiro comercial do Irã, devido a interesses ideológicos, comerciais, e políticos, referentes ao domínio do golfo persa e o acesso ao petróleo.

A relação entre os dois países, entretanto, não é recente, mas vem sendo construída desde 1990. A princípio, o agravamento das sanções contra o Irã em 1995 e o sentimento antichinês que se apoderou do congresso americano fizeram com que as petrolíferas chinesas não estreitassem muito as suas relações comerciais com o Irã[xiv].

Depois, já no final da década, os países se aproximaram, tanto pela relação entre os compradores de petróleo chineses e os vendedores iranianos quanto pelos interesses dos governos, com parcerias que abrangiam desde o desenvolvimento nuclear a medidas de comércio. A importação de óleo iraniano pela China aumentou nos anos seguintes, sobretudo no período entre o final da década de 1990 até 2003.

Retorno à contemporaneidade e os mercados futuros

Uma vez realizada a contextualização histórica e política, torna-se possível analisar os conflitos atuais sob perspectivas alheias à ótica do conflito árabe-israelense — em especial a do mercado internacional de petróleo e do conflito entre Estados Unidos e China.

Inicialmente, o preço dos contratos futuros de petróleo, um dos principais instrumentos de proteção dos produtores ao risco de mercado e importante ferramenta de especulação, seguiu uma trajetória de queda ao longo dos primeiros semestres do ano, motivada pelo aumento da produção estadunidense através da política de intensiva permissividade a formas alternativas de extração, especialmente a de xistos em solo.

O nível maior de estoques americanos junto à menor demanda por petróleo deveria, em tese, se converter na redução da produção geral da OPEP, que já vinha realizando cortes há um ano com previsão estendida até junho de 2026; entretanto, como forma de punir alguns membros por inconformidade aos cortes de produção[xv] e tornar inviável a extração de petróleo via xisto, devido ao seu alto ponto de «breakeven» em relação às plataformas onboard árabes, a Arábia Saudita decidiu impor um aumento na produção de petróleo dos países da OPEP em ritmo acelerado.

Além disso, ela também percebeu que «manter cotas baixas de produção, uma estratégia feita para aumentar os preços, apenas permitiu que os Estados Unidos ganhassem participação de mercado, sobretudo nos países asiáticos»[xvi]. Os eventos do dia 13, entretanto, colocam em xeque todo o atual estratagema internacional acerca do petróleo.

Evidentemente, em caso de conflito prolongado entre o Irã e Israel e, sobretudo, caso esse conflito se estenda para todo o mundo árabe, parte do petróleo outrora escoado para os mercados internacionais pelas empresas locais será destinado à indústria da guerra. Ataques coordenados de ambos os lados acabam por colocar em perigo grandes produtoras de petróleo e estoques físicos, prejudicando ainda mais a oferta nesse cenário.

Considerando a quantidade de petróleo disponível no Golfo Persa e demais regiões do levante ao norte da África, pode-se presumir que a nova demanda por petróleo oriunda da guerra será majoritariamente suprida por fontes internas, minimizando, a princípio, o aumento da demanda global. Assim, uma vez confirmada a escala do conflito, os preços do petróleo no mundo todo tendem a subir, com largos acréscimos de valor nos futuros como forma de proteção dos produtores à incerteza futura, já demonstrados no gráfico diário dos futuros Brent a seguir.

FIGURA 3.[xvii]

Conflito hegemônico EUA x China e os rumos da geopolítica

Como já exaustivamente discutido, há, inserido na guerra entre Israel e Irã, uma clara questão de interesse da hegemonia estadunidense no conflito, tendo seu presidente tratando o ataque do regime sionista de Israel como “bem-sucedido” e declarando que havia alertado o Irã que os EUA possuem o “melhor e mais letal equipamento militar do mundo”.[xviii]

O debate que ainda não foi trazido se refere ao duplo caráter da ofensiva do imperialismo fóssil estadunidense sobre um dos últimos aparatos de resistência nativa na região, visto o amplo domínio militar estadunidense como a distribuição de suas bases no Oriente Médio na Figura 1 e sua representação diplomática na região, o regime sionista de Israel.

Para além do fenômeno descrito, é fundamental, também, ter em mente o papel da China no conflito com o estreitamento das suas relações com o Irã, expresso em acordos comerciais e financeiros com o país nos últimos anos, principalmente sob o contexto das sanções ocidentais, gerando divisas para financiamento, sobretudo, do seu programa nuclear.

Desde o início do século, a República do Irã vem sofrendo com sanções diretas à comercialização dos seus recursos energéticos. Até o início de 2018, o país havia alcançado um alto nível de produção de petróleo, produzindo quase cinco milhões de barris por dia e exportando para os países ocidentais ou alinhados ao seu programa político, mesmo com a imposição anterior de sanções partindo tanto dos Estados Unidos, em 2011, quando proibiu relações de qualquer país com o Banco Central iraniano, visando minar a geração de divisas ao atingir, também, sua comercialização de petróleo[xix]; quanto da União Europeia, quando baniu a importação e o transporte de petróleo bruto iraniano no início de 2012[xx]. Ambas as medidas já se referiam ao programa nuclear do país e a coerção para que o Irã o abandonasse.

No entanto, em 2018, após o presidente Donald Trump impor, outra vez, sanções ao Irã ao deixar o Plano de Ação Conjunto Global (PACG)[xxi], a dinâmica comercial iraniana se alterou completamente. Além de ter deixado de exportar petróleo bruto para países da União Europeia e Ásia, passou a escoar a totalidade da sua produção somente para China, Síria, EAU e Venezuela, em 2023[xxii]. Além disso, a participação chinesa nas exportações de petróleo bruto iraniano saltou de 25%, em 2017, para 90%, em 2023[xxiii].

FIGURA 4.[xxiv]

Desse modo, o Irã pode recuperar o nível de geração de divisas anterior ao fim do PACG e, inclusive, expandir sua capacidade produtiva não só de petróleo, mas também de eletricidade e gás natural. Segundo relatório da EIA (Energy Information Administration), entre 2019 e 2022, o Irã adquiriu uma série de contratos para aumentar a produção de petróleo bruto em mais de meio milhão de barris por dia, e adquiriu mais contratos em 2024, para construir seis campos de petróleo bruto ao longo da fronteira com o Iraque.

A grande questão é que a relação entre Irã e o antagonista hegemônico dos Estados Unidos não terminou na exportação de petróleo bruto. Em 2021, os dois países (China e Irã) firmaram um acordo estimado em US$ 400 bi envolvendo comercialização de petróleo para a China e, inclusive, um suposto acordo de segurança entre os dois países[xxv]. Ao longo da década, a China (e a Rússia) declararam apoio ao programa nuclear iraniano[xxvi], mais recentemente, em março desse ano.

Um dos eventos, porém, que acendeu o sinal de alerta ao capital fóssil dos EUA foi a realização de exercícios militares[xxvii] entre Irã, Rússia e China ao longo do Golfo de Omã, região sem presença efetiva de bases militares estadunidenses, porém muito próxima a sua zona de influência no Golfo Pérsico, desafiando sua hegemonia na região. O então chefe do Estado-Maior Conjunto, Mark Milley, disse que a China, a Rússia e o Irã representariam um desafio para Washington “durante muitos anos”[xxviii].

Novamente pode-se observar, partindo da superfície (guerra Israel x Irã), o inevitável conflito hegemônico pelo controle do capital fóssil sem o qual nenhum hegemon pode se constituir enquanto tal no projeto de acumulação mundial. Os ataques desferidos contra o Irã, outra vez, devem ser analisados com atenção. Não se trata de anular e prescindir da análise das contradições regionais entre as duas forças que protagonizam o conflito, mas de o apreendê-lo de forma histórica e material, em sua totalidade, considerando as diferentes nuances que envolvem, ao mesmo tempo e em diferentes níveis, o mesmo fenômeno concreto estabelecido.

Neste momento histórico delicado, com a hegemonia da acumulação estadunidense sendo desafiada depois de mais de um século, o acirramento da (re)partilha do mundo salta aos olhos, e a noção do que fazer se dissipa no ar cada vez mais rápido. Não parecem existir mais alternativas para o futuro que não a barbárie.

*Eduardo Brito é graduando em economia na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

*Kaio Aroldo é graduando em economia na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

*Lucas Valladares é doutorando em economia na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

*Oscar Luis Rosa Moraes Santos é graduando em economia na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

*Lucas Trentin Rech é professor do Departamento de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Referências


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VAROL, F. The Politics of the Ulama: Understanding the Influential Role of the Ulama in Iran. v. 13, n. 2, p. 129, 1 jul. 2016.

Notas


[i] EUA esvaziam embaixadas no Oriente Médio diante de risco de Israel atacar Irã, diz jornal | Mundo | G1

[ii] Por que Israel atacou o Irã: o que se sabe até o momento sobre o conflito entre os dois países | Mundo | G1

[iii] (5) Live updates: Israel strikes Iran’s nuclear sites | AP News

[iv] Trump se opõe a planos de Israel de atacar instalações nucleares do Irã, diz jornal | Mundo | G1

[v] Trump diz que Israel vai liderar ataque contra o Irã caso acordo nuclear não seja fechado: ‘Fazemos o que queremos fazer’ | Mundo | G1

[vi] (REZEG, Ali Abo. Understanding Iran-Hamas Relations from a Defensive Neo-Realist Approach. The Journal of Iranian Studies. v. 4, n. 2, p. 390-393, jan. 2021, Disponível em: (PDF) Understanding Iran-Hamas Relations from a Defensive Neo-Realist Approach.

[vii] Mapping US troops and military bases in the Middle East | Military News | Al Jazeera

[viii] Crise de Petróleo de 1973 | BBC NEWS

[ix] Making Use of the “Oil Weapon”: Western Industrialized Countries and Arab Petropolitics

[x] Impacts of US Trade and Financial Sanctions on Iran

[xi] Military spending and Economic Growth: The Case of Iran

[xii] Do Sanctions Constrain Military Spending of Iran?

[xiii] Illegal Trade in The Iranian Economy

[xiv] China-Iran Relations Through the Prism of Sanctions

[xv] Países da OPEP decidem aumentar a produção em junho

[xvi] Cheap Oil Will Come At a Cost for US

[xvii] Cotação dos Futuros de Petróleo Brent

[xviii] Trump diz que foi avisado previamente sobre ataques contra o Irã e alerta que próximos serão ‘ainda mais brutais’

[xix] Senado dos EUA aprova por unanimidade sanções contra banco central iraniano – Notícias – UOL Notícias

[xx] Embargo europeu – DW – 23/01/2012

[xxi] President Donald J. Trump is Ending United States Participation in an Unacceptable Iran Deal – The White House

[xxii] (Country Analysis Brief: Iran. 2024; p. 14. Disponível em: Country Analysis Brief: Iran.

[xxiii] IBID, p. 12

[xxiv] IBID, p. 8

[xxv] China assina acordo amplo e vai investir US$ 400 bilhões no Irã em troca de petróleo – Jornal O Globo

[xxvi] China e Rússia apoiam programa nuclear iraniano após Trump pressionar por acordo; Irã ‘nunca pode ter arma nuclear’, diz G7 | Mundo | G1

[xxvii] Rússia, China e Irã realizam exercícios militares conjuntos no Golfo de Omã – Brasil de Fato

[xxviii] IBID.


domingo, 15 de junho de 2025

Pistas sobre teorias revisionistas e reformistas

 

Crítica à teoria marxista: tópicos sobre uma discussão acerca da sua atualidade

 
Novembro 2016 Outubro 2017 Nº4 Mátria Digital | 133

 João Maia
132 | Mátria Digital • Nº4 • Novembro 2016 – Outubro 2017

(...)

O revisionismo 

 v>

. O revisionismo de Eduard Bernstein
No âmbito referido, embora nos debrucemos sobre autores da
atualidade, importa desde logo recuperar a crítica revisionista feita a
Marx por Eduard Bernstein. Este teórico político alemão destacou
aquilo que, a seu ver, seria o caráter redutor do pensamento marxista.
Prevenindo, desde logo, para os perigos das ciladas da dialética
hegeliana, em que se inspirava o pensamento de Marx, realçou que
esta pode, dentro do seu caráter especulativo, que se torna
incontrolável, produzir uma avaliação excessiva das perspetivas
políticas. Com facilidade se pode atribuir sinais de uma revolução
emergente no despoletar de uma crise quando, na verdade, essa crise
resulta da atuação de forças sociais e económicas que ainda poderão
demorar muitos anos até se findarem ou se transformarem de modo a
possibilitarem a emergência de novas estruturas sociais e, como tal, a
emergência de uma nova ordem social (Bernstein, 1976). Também,
segundo Bernstein, Marx não soube compreender toda a
complexidade e diferenciação que existe nas sociedades ao postular as
condições políticas e económicas preliminares à ascensão do
socialismo.
Primeiro, uma dessas condições seria a centralização
antecipada das empresas o que, na altura em que estes trabalhos
foram desenvolvidos, no séc. XIX, apenas estava parcialmente
realizada (Bernstein, 1964). Aliás, é uma realidade que não deixa de
se refletir nos dias de hoje. Apesar da globalização económica ter
criado grandes concentrações de riqueza nas empresas
multinacionais, o tecido empresarial, nomeadamente nas sociedades
ocidentais, complexificou-se e diferenciou-se permitindo o
aparecimento de muitos pequenos e médios empresários em
diferentes áreas de negócio. Mesmo em relação à possibilidade da
implementação da gestão cooperativa nas empresas produtivas,
Bernstein chega a ser muito cético no que toca à ideia da abolição da
hierarquia, nomeadamente em empresas grandes, tendo em conta a
salvaguarda da funcionalidade dessa mesma gestão (Bernstein, 1976).
Em segundo lugar, o postulado da ascensão do socialismo
também dependeria da tomada de poder pelo proletariado como força
maioritária sem qualquer riqueza social que estaria disposta a mudar
as instituições vigentes de forma irreversível. Também aqui, Bernstein
(1964), na sua obra O Socialismo Evolucionário analisou, entre
diferentes países, dados relativos à condição de assalariado em termos
de rendimento e condições de vida. Perante os dados analisados,
verificam-se discrepâncias tão significativas, quer dentro do mesmo
país quer entre países diferentes, que quebra-se a ideia de uma massa
proletária com realidades de vida e interesses semelhantes entre si. É
o próprio conceito de proletário que fica em causa colocando sérias
objeções à à ideia de haver uma massa revolucionária maioritária
disposta a tomar o poder pela via do voto popular ou mesmo pela via
do uso da violência, como muitas vezes privilegiaram Marx e Engels
nos seus textos.    (...)

Os trabalhos de Eduard Bernstein focam, entre os seus aspetos
essenciais, a importância das redes sociais bem como da
complexidade e diferenciação que estas sofreram nas sociedades
europeias. É possível estabelecer interseções e paralelismos destes
conceitos com os trabalhos de outros autores. Norbert Elias, sociólogo
alemão, já em pleno século XX, desenvolveu uma teoria do
desenvolvimento civilizacional alternativa aos trabalhos de Karl Marx.
Colocando o foco nas lutas pelo poder que se deram nas sociedades
europeias desde a idade média, este autor descreve no segundo
volume da sua obra O processo civilizacional ( ȋElias, 1990) um
processo assente em eliminatórias realizado, desde logo, nas disputas
entre senhores das terras e que levou a uma cada vez maior
concentração de poder até permitir o aparecimento do estado

moderno. Deste movimento é indissociável a ascensão dos estratos
sociais inferiores, também através de lutas emancipatórias, mas que
permitiram aumentar o grau de complexidade, de diferenciação e de
interdependências existentes nas sociedades europeias, em particular
ao nível do trabalho. Nesta lógica, surge o alargamento do espaço e da
inclusão democrática e a constituição do estado-nação moderno.
Recorrendo a conceitos da psicanálise, Elias descreve como a
complexificação e interdependência das redes sociais obrigou o ser
humano a modelar as suas pulsões reprimindo comportamentos
violentos e desenvolvendo formas de estar socialmente aceites dentro
dos padrões civilizacionais exigidos. Neste modelo, o
desenvolvimento civilizacional não surge assim como perpetuador do
domínio hegemónico de um grupo social em relação a outros. Pelo
contrário, o desenvolvimento civilizacional promove uma crescente
sujeição das camadas sociais superiores, dentro de um quadro
normativo, em paralelo com o movimento ascensional dos estratos
sociais inferiores.
Não será a obra de Elias, neste sentido, a primeira tentativa de
teorizar conceitos que já vinham descritos desde o séc. XV com o O
Príncipe de Maquiavel? Aqui a sapiência governativa que brotava do
espírito renascentista e humanista já aconselhava o soberano a saber
dividir os interesses dos seus antagonistas bem como daqueles que
governa de modo a garantir a preservação da República (Maquiavel,
2007). O equilíbrio político-social só é, pois, possível numa lógica
inter-relacional onde todos tenham algo a ganhar e algo a perder. É de
referir que o próprio Norbert Elias (1990) anteviu, nesta lógica, os
desafios com que nos deparamos hoje com a globalização económica.
O poder do grande capital, assente nos grandes grupos económico-
financeiros, ameaça de forma séria os equilíbrios a vários níveis
(económico, social, ambiental). A lógica de desenvolvimento
civilizacional descrita transfere-se assim das sociedades europeias
moderno. Deste movimento é indissociável a ascensão dos estratos
sociais inferiores, também através de lutas emancipatórias, mas que
permitiram aumentar o grau de complexidade, de diferenciação e de
interdependências existentes nas sociedades europeias, em particular
ao nível do trabalho. Nesta lógica, surge o alargamento do espaço e da
inclusão democrática e a constituição do estado-nação moderno.
Recorrendo a conceitos da psicanálise, Elias descreve como a
complexificação e interdependência das redes sociais obrigou o ser
humano a modelar as suas pulsões reprimindo comportamentos
violentos e desenvolvendo formas de estar socialmente aceites dentro
dos padrões civilizacionais exigidos. Neste modelo, o
desenvolvimento civilizacional não surge assim como perpetuador do
domínio hegemónico de um grupo social em relação a outros. Pelo
contrário, o desenvolvimento civilizacional promove uma crescente
sujeição das camadas sociais superiores, dentro de um quadro
normativo, em paralelo com o movimento ascensional dos estratos
sociais inferiores. (...)

Não será a via da razoabilidade a indicar a aposta em políticas de compromisso?


É esta última via que tem sido apontada por alguns
economistas e autores de referência. É o caso de Joseph Stiglitz, antigo
vice-presidente do Banco Mundial e antigo conselheiro económico do
presidente norte-americano Bill Clinton. Stiglitz tem-se empenhado
no estudo dos efeitos da globalização económica nas sociedades,
nomeadamente dos países em vias de desenvolvimento. O autor
reconhece que a partir do Consenso de Washington houve uma opção
muito claro para a implementação de um modelo de desenvolvimento
global assente na economia liberal da escola anglo-saxónica. Como
instituições basilares desse modelo, que têm afirmado as suas
diretrizes, as instituições de Bretton Woods têm aplicado um
pragmatismo tecnocrático, que estando longe de salvaguardar os
objetivos da liberdade e da coesão social, obedecem essencialmente
aos interesses privilegiados do grande capital e da alta finança. São
interesses que o autor descreve como capturadores do poder e das
instituições políticas. Nesta base, têm-se originado relações de grande
assimetria no comércio internacional (Stiglitz, 2007, 2002). Devido ao
poder negocial de cada um dos interlocutores, os acordos realizados
de liberalização das economias têm sido essencialmente cumpridos
pelos países em desenvolvimento enquanto os países desenvolvidos
têm mantido, até aqui, grandes entraves à entrada no seu mercado de
produtos que poderiam trazer vantagens às economias emergentes,
nomeadamente recorrendo a taxas aduaneiras e a legislação
regulamentar, que mais não faz do que servir de pretexto
protecionista. Ora as economias emergentes, uma vez desprotegidas,
têm grandes dificuldades em competir perante o avanço das grandes
empresas multinacionais. O seu tecido económico e social, já de si
frágil, acaba muitas vezes por se dilacerar dado o poderio da
competição externa. Com frequência assistimos, assim, a fenómenos
de destruturação social que geram violência e colocam em causa a
democracia. Também os impactes ambientais, neste quadro, estão
longe de ser acautelados. Muitas vezes são cometidos, na atividade
empresarial, crimes ambientais que ameaçam a biodiversidade e a
própria sustentabilidade das sociedades afetando, por exemplo, as
reservas dos recursos naturais e os pequenos negócios. Por outro lado,
a captura do poder político pelos grandes grupos económico-
financeiros também não leva à salvaguarda dos interesses dos
cidadãos dos países ricos uma vez que o fechamento destas sociedades
aos produtos dos outros países torna mais elevados os preços ao
consumidor devido à diminuição da concorrência (são precisamente
as economias mais desenvolvidas que poderiam suportar melhor a
concorrência externa).
Neste sentido, quando falamos nas liberalizações prescritas
por instituições como FM), falamos em Dzliberalizações-choquedz que
implicam a rápida privatização de empresas estatais e a abertura
abrupta dos mercados ao investimento estrangeiro, incluindo na
entrada de capitais de curto prazo especulativos. O facto deste tipo de
capitais implicar a criação de lucro que não é sustentável a médio-
longo prazo e o facto de muitas economias terem dificuldade em fazer
face à concorrência externa gera nestes países crises económico-
financeiras e problemas de endividamento. Como se isso, só por si, não
bastasse, em paralelo estes países são normalmente alvos de
programas externos de ajuda financeira do FMI e do Banco Mundial.
No entanto, as contrapartidas exigidas para receberem o dinheiro
implicam subidas das taxas de juro e cortes na despesa pública.
Evidentemente que a aplicação deste tipo de medidas mais não faz do
que gerar um ciclo recessivo vicioso do qual os países têm muita
dificuldade em sair (idem).
As soluções que Stiglitz apresenta para estas problemáticas
são tanto do âmbito institucional como programático. No âmbito
institucional defende, por um lado, um reforço dos processos
democráticos particularmente na partilha de poder das instituições
financeiras internacionais, dando maior poder na sua direção aos
países em desenvolvimento e criando outro tipo de regras que
favoreçam os interesses dos países intervencionados (Stiglitz, 2002).
Por outro lado, também defende a criação de outras instituições
internacionais (como tribunais especializados, incluindo no âmbito
ambiental e dos direitos de propriedade) para regularem e intervirem
em matéria referente à atividade económica, financeira e comercial
internacional e um novo sistema global de reservas que não origine
tantos desequilíbrios como o atual sistema (Stiglitz, 2007). No plano
programático, assume a defesa de um comércio internacional assente
na equidade, na medida em que deve haver um grau de proteção às
economias emergentes que não é exigível às economias
desenvolvidas. Os estados dos países em desenvolvimento precisam
de tempo para ganhar receitas para investirem em infraestruturas,
desenvolvimento tecnológico e em bens como a educação e a saúde,
não só para potenciar a competitividade da economia como também
para favorecer a coesão social. Para isso, este tipo de economias têm
que ser protegidas até a um ponto em que possam concorrer com
outras economias em igualdade de circunstâncias. É lícito, portanto,
os países em desenvolvimento, apostarem na criação de fortes
quadros legais de regulação da atividade concorrencial, inclusive no
setor financeiro e no controlo da atividade especulativa, como
também manterem, durante algum tempo, algum grau de
protecionismo nas suas fronteiras (idem).

O autor concorda que o caminho seguido até aqui não só não
erradica a pobreza como tem o risco real de não preservar os
rendimentos daqueles que estão no meio da escala social. No entanto, não
considera este cenário como inevitável. Stiglitz considera que a
globalização económica possibilita, a muitos países, a entrada em novos
mercados e o acesso a novas tecnologias. Para ele, trata-se, portanto, de
maximizar os benefícios deste fenómeno e minimizar os seus malefícios.
Para isso, giza, do modo anteriormente descrito, uma arquitetura
institucional global e linhas políticas de orientação que devem criar um
quadro comum de entendimento a nível internacional para que a
globalização funcione de modo a promover o desenvolvimento global
sem colocar em causa os processos democráticos e os equilíbrios
ambientais (Stiglitz, 2007, 2002).

 
4. A apologia liberal
Há outros autores que também não deixam de realçar que a
globalização económica tem virtudes e que, inclusive, já permitiu a
melhoria dos níveis e das condições de vida em vários países. Fareed
Zakaria, um dos mais proeminentes intelectuais da atualidade, em
ciência política, observa que na sociedade atual tem-se dado um
enfoque a problemas que na verdade constituem uma ameaça relativa.
No seu livro DzO mundo pós-americanodz, recorrendo aos dados de
estudos desenvolvidos por académicos norte-americanos, Zakaria
(2008) afirma que estamos a viver um período relativamente pacífico
na história da humanidade. A extensão da guerra e da violência
organizada, a nível mundial, diminuiu, desde o colapso do bloco
soviético, para níveis há muito não vistos. Citando universitários de
referência chega a referir que há quem defenda que Dzhoje em dia,
estamos provavelmente a viver o período mais pacífico de toda a

João Maia
134 | Mátria Digital Nº4 Novembro 2016 Outubro 2017
existência da nossa espéciedz (idem, p.17). Os focos de conflito, como
aqueles que são transmitidos no nosso dia-a-dia pela informação dos
meios de comunicação social, como é caso dos atentados perpetrados
pelo terrorismo islâmico, têm causado danos de menor dimensão,
incluindo do ponto vista humano, comparativamente a outros
conflitos que já ocorreram ao longo da história contemporânea. No
entanto, não estamos aqui perante mais uma perspetiva advogadora
do fim da história como referiu Fukuyama (1992), apoiando-se em
Kojève, defendendo que com o estabelecimento global da democracia
liberal a humanidade atingiria o seu fundamental anseio de
reconhecimento mútuo. Zakaria, por sua vez, reconhece que o mundo
globalizado coloca grandes desafios, nomeadamente às potências
ocidentais dominantes como os Estados Unidos da América. Na
verdade, assistimos hoje à emergência de potências como a China, a
India, a Rússia ou o Brasil que apresentam grandes níveis de
crescimento económico e devido às suas caraterísticas internas têm
um grande potencial de desenvolvimento à sua frente. Zakaria, tal
como Stiglitz que também o afirma nos seus trabalhos (Zakaria, 2008;
Stiglitz, 2007), aponta os méritos que estes países, em particular a
China e a Índia, têm tido ao apostarem em áreas como a educação e o
desenvolvimento tecnológico e ao não descuidarem outras questões
como a distribuição da riqueza. O autor, por outro lado, também
reconhece existirem problemáticas transversais a todo o mundo como
é o caso do aquecimento global, do crescimento demográfico mundial,
do controlo das bolhas especulativas e do perigo do reaparecimento
do fervor nacionalista. Nesse sentido, alinha ao lado daqueles que
exigem a necessidade das potências ocidentais, e em grande medida
os Estados Unidos da América, reconhecerem a necessidade de
arquitetar uma nova orgânica institucional a nível internacional de
modo promover uma maior partilha de responsabilidades e de decisão
política.
DzCrítica à teoria marxista: tópicos sobre uma discussão acerca da sua atualidadedz
Novembro 2016 Outubro 2017 Nº4 Mátria Digital | 135
O autor é crítico em relação às políticas e ao discurso
neoconservador que na última década marcou a política norte-
americana. Para ele, assiste-se a um fechamento da sociedade norte-
americana do ponto de vista cultural e que tem desde logo origem no
espetro político-partidário. Hoje a sociedade norte-americana revela
menor tolerância ao que vem de fora (em particular em relação ao
imigrante) apesar do fenómeno imigratório sempre ter constituído
uma força de renovação na sociedade dos Estados Unidos da América.
Nesta medida, o autor defende o prosseguimento de políticas de
inclusão social até como forma de salvaguardar a competitividade da
economia. No entanto, as ideias de Fareed Zakaria, embora não
estabeleçam a escatologia do fim dos tempos, distinguem-se de alguns
por revelarem uma clara apologia liberal. Zakaria não coloca a ênfase
nas questões de proteção e de equidade no comércio internacional.
Destaca, sim, a importância da mobilização das sociedades civis, das
redes tecnológicas e de produção de conhecimento, nas suas ligações
ao mundo empresarial, como forma dos países garantirem a vitória na
batalha da competitividade económica. Em última análise, defende
que na economia atual a riqueza é medida pelas equipas que
produzem novos bens e novos serviços e não pela acumulação de
capital. Ou seja, a economia de hoje é assente em ideias e em energia
pois o essencial já não é o capital e o trabalho. Para Zakaria, Karl Marx
foi um cientista social talentoso na medida em que soube
compreender os mecanismos de ascensão social, ou segregação social,
do individuo. Mas do ponto de vista ideológico e económico, as teorias
de Marx terão sido pobres devido à sua apologia política e à visão que
defendeu do futuro do capitalismo (Zakaria, 2008).
João Maia
136 | Mátria Digital Nº4 Novembro 2016 Outubro 2017
5 - Na linha crítica de Karl Marx
Embora as perspetivas já referidas, que podem ter algumas
abordagens diferentes entre si, mas que defendem a compatibilização
da economia liberal com a salvaguarda dos direitos individuais e dos
equilíbrios globais, possam ser interessantes para alguns autores, há,
no entanto, quem defenda a impossibilidade de as levar à prática.
Noutra linha de pensamento, há uma série de autores que mantendo-se
fiéis aos fundamentos do marxismo advogam o surgimento de outro
sistema social que não seja de base capitalista. Slavoj Zizek, filósofo
esloveno, é muito claro ao defender o comunismo como a resposta
viável às problemáticas colocadas no nosso tempo. Sendo bastante
crítico em relação ao sistema atual, Zizek destaca a impossibilidade de
universalizar o capitalismo avançado dos nossos dias. Segundo ele, a
prosperidade que tem sido alcançada para alguns assenta em processos
de segregação de uma grande massa de seres humanos e no
esgotamento dos recursos naturais. Por exemplo, as políticas
regressivas no seio da União Europeia em relação à imigração são um
exemplo de como à liberdade na circulação das mercadorias não
corresponde a liberdade na circulação das pessoas, atirando muitos
indivíduos para condições de vida sub-humanas. O autor chega mesmo
a recuperar a figura obscura do Dzhomo sacerdz, da antiga lei romana, para
exemplificar como muitos seres humanos nos dias de hoje são
desprovidos de direitos civis e têm uma função que é preservada no
propósito de alimentar um sistema que está assente num fetiche
consumista (Zizek, 2006). Nesta lógica, tal sistema nunca se poderia
compatibilizar com a assunção de direitos para todos sob pena de isso
significar o seu próprio colapso.
Aliás, o autor adianta que os sistemas económicos e os sistemas
políticos estão tão enleados entre si, nomeadamente no fomento do
fenómeno da corrupção, que torna-se inviável qualquer tentativa
reformista e/ou progressista vinda do espetro político-partidário
DzCrítica à teoria marxista: tópicos sobre uma discussão acerca da sua atualidadedz
Novembro 2016 Outubro 2017 Nº4 Mátria Digital | 137
estabelecido. Em particular, Zizek é bastante crítico em relação ao
papel desempenhado pela grande superpotência mundial, os Estados
Unidos da América, na tentativa de perpetuar o seu domínio
hegemónico. Assistimos a comportamentos, que partem das próprias
autoridades norte-americanas, em que, por exemplo, se defende e
pratica a tortura como forma de defender a segurança e a própria
democracia. Geram-se, desta forma, acoplagens, entre conceitos que à
partida estariam em campos opostos, e que podem levar a uma crise
das próprias categorias segundo as quais entendemos a realidade
(idem). O autor identifica sinais de crise e de incerteza nos nossos
tempos (a crise ecológica, os desequilíbrios económicos, a situação
social explosiva e a revolução na biogenética) que transmitem uma
ideia de fim dos tempos e que fazem urgir à mudança (Zizek, 2010).
Nessa linha, acompanhando outros pensadores marxistas
contemporâneos, Slavoj Zizek refere que a sociedade ocidental atual
vive na monotonia do consumismo capitalista e da compressão do
espaço-tempo originada pelo ambiente digitalizado e por isso anseia
pelo Dzeventodz. Tal facto, leva à passagem do fantasma lacaniano para o
Real consumando o objeto do desejo. No entanto, segundo o sentido
lacaniano do termo, atravessar o fantasma significa tornar-se cada vez
mais requisitado pelo seu fantasma. Como o sujeito se encontra
submetido ao efeito da falta simbólica que lhe revela o limite da
realidade quotidiana, neste caso é o próprio real que, para ser
sustentado, tem de ser percecionado como um espetro irreal de
pesadelo. Daí o aparecimento de fenómenos de violência ou
obscenidade extrema que têm vindo a marcar a sociedade atual, como
os atentados do 11 de setembro ou determinados movimentos
culturais (Zizek, 2010, 2006).
Neste seguimento, para Zizek dissecar o Real implica entrar na
esfera do vazio primordial de onde parte todo o ato de verdadeira
criação uma vez que não existe nenhuma verdade interior. A ideia de
vazio por si defendida, ligada à filosofia do budismo zen, onde o eu
pura e simplesmente não existe, vai ao encontro de um vazio
João Maia
138 | Mátria Digital Nº4 Novembro 2016 Outubro 2017
materialista. Logo, apela ao desprendimento dos indivíduos em
relação aos desejos pessoais e ao envolvimento numa ação coletiva
que difira radicalmente tanto do mercado como da administração
estatal e como tal leve ao comunismo. Isto implica a assunção da
política como ato com risco mesmo que não esteja associado a uma
legitimidade democrática, dando o exemplo daquilo que foi a
resistência francesa ao nazismo liderada por De Gaulle (idem).
Certamente que qualquer agenda política deste tipo poderá
sempre sofrer a crítica efetuada por Karl Popper ȋ200͹Ȍ no seu DzA
pobreza do historicismodz às doutrinas políticas que pretendem ter
uma compreensão global sobre a evolução da história. Normalmente
estas têm o objetivo de aplicar transformações em grande escala nas
sociedades quando na verdade são preferíveis as reformas parciais
pois são mais fáceis de controlar e de evitar os erros. Afinal, já nos
teremos esquecido, por exemplo, das consequências do DzGrande Salto
em Frentedz de Mao Zedong?
No entanto, recuperando a exposição de Slavoj Zizek, não terá
a dinâmica capitalista chegado a um ponto em que impossibilita, pura
e simplesmente, a reforma do sistema estando nós condenados à
criação de algo de radicalmente diferente, como paradigma
alternativo? Não terá tido Marx razão ao dizer que as metamorfoses
do capital mais não fariam do que levar ao seu inevitável colapso?
Há quem diga que sim e até com menos certezas, em relação a
Zizek, no que diz respeito àquilo que se poderá seguir. Anselm Jappe
ȋ200͸Ȍ, na sua obra DzAs aventuras da mercadoriadz recupera Marx para
afirmar que Dza crise é a metamorfose da própria mercadoria, a
disjunção da compra e da vendadz (idem, p.134). E continua afirmando
que a crise é a verdade do capitalismo devido a este Dzsó poder evoluir
através de fricções contínuas para acabar finalmente por se
desmoronar sob o peso da sua própria lógica, ou melhor, da sua não
lógicadz (idem, pp.134/135). Para Jappe, o erro de Marx terá sido, de
facto, interpretar as crises do seu tempo como crises finais. No
DzCrítica à teoria marxista: tópicos sobre uma discussão acerca da sua atualidadedz
Novembro 2016 Outubro 2017 Nº4 Mátria Digital | 139
entanto, hoje voltamos a perceber que a contradição entre o conteúdo
material e a forma valor conduz à destruição do primeiro. O
capitalismo atinge o seu próprio limite em virtude da sua maior força,
ou seja, a libertação das forças produtivas e a consequente forma do
valor abstrato. O autor identifica toda uma deterioração que o capital
global fez das interdependências entre os serviços, a produção e a
contribuição para o estado. Para o capital tudo isto representa falsos
encargos que são descartáveis. O próprio desenvolvimento
tecnológico tem contribuído para a criação de capital fictício e para o
prolongamento da vida do capitalismo através do crédito consumido
antecipadamente. Só que este dinheiro acaba por desvalorizar pois
não é tido no trabalho produtivo. Embora haja uma multiplicação
milagrosa do dinheiro que circula no mundo, a acumulação real
estagnou e o recurso ao crédito serve para estimular a acumulação
inexistente. Na verdade, o capitalismo, hoje, já não atua tanto por
exploração da humanidade, mas, sim, pela sua expulsão do sistema de
trabalho por ser supérflua. Assim, Jappe alinha no diapasão que diz
que a política não tem meios autónomos de intervenção pois tem uma
grande dependência em relação à economia. Para ele, há que discutir
desde logo as categorias impostas à priori que não são percebidas
como historicamente construídas quando, na verdade, o são. Por
exemplo, o fundamento indiscutível de que é necessário transformar
em dinheiro o trabalho é um imperativo que alimenta o sistema
fetichista (Jappe, 2006). O autor chega mesmo, nos seus textos (Jappe,
2012), a ser muito crítico em relação ao discurso atual da esquerda e
a demarcar-se de outros autores apontando que o discurso
antineoliberal embora não negue a crise atual só quer curar os seus
sintomas. O problema está na relação social que envolve todos os
membros da sociedade e não só a ação nefasta dos homens do capital
e da alta finança sublinhando que a subida ao poder do neoliberalismo
nos anos oitenta foi uma forma de prolongar a vida do capitalismo e
não um Dzgolpedz como crê uma determinada esquerda. E alerta: já não
há dinheiro para regressar ao keynesianismo como alguns querem,
João Maia
140 | Mátria Digital Nº4 Novembro 2016 Outubro 2017
isto é, dinheiro real suficiente, pois entretanto criou-se dinheiro
através da especulação. Assim, a crise das categorias que se perfila
dará lugar a formas de vida radicalmente diferentes sendo a crise atual
uma etapa importante neste processo. No entanto, para Anselm Jappe
deverá haver ainda um abatimento perpétuo nos modos de vida até
haver um movimento global de reflexão e de solidariedade. Na
verdade, perante o falhanço inevitável de todas as políticas, num
sistema que desvaloriza o dinheiro enquanto tal devido ao seu uso
fetiche, colocasse a questão: a que preço e como é que se pode sair de
um sistema baseado no valor e no trabalho abstrato, no dinheiro e na
mercadoria, no capital e no salário? É uma resposta que o próprio
autor tem dificuldades em encontrar.
Ainda assim, Jappe tem uma perspetiva cética em relação à
capacidade de sobrevivência do capitalismo para além da crise das
categorias que já começamos a viver atualmente. E aqui origina-se um
ponto de divergência em relação a outros autores. Na linha de
investigação portuguesa, Rui Cunha Martins (2013) realça o caráter
adaptável e mutável que o capitalismo tem demonstrado ao longo dos
tempos e continua, ainda hoje, a demonstrar. Quem não se recorda da
acoplagem que o capitalismo fez ao fascismo em pleno século XX e
propiciou o desencadear de uma guerra de proporções apocalíticas?
Ou hoje, a acoplagem existente, entre um sistema político de
inspiração maoista e um sistema económico-financeiro capitalista, na
China? Ou seja, o capitalismo em ordem a preservar e a propagar a sua
existência é capaz de fazer acoplagens, bem-sucedidas, a sistemas que
até foram criados com a intenção de o combater. É um padrão de
comportamento que faz lembrar a atuação de um vírus. Certamente
que o capitalismo está assumir caraterísticas para além daquelas que
foram defendidas por muitos vultos do liberalismo e do iluminismo
que fizeram a sua apologia. Mas isto é mais um elemento que
demonstra como estamos perante um sistema que não se compadece
com quaisquer tipos de idealismos ou mesmo de planificação política.
DzCrítica à teoria marxista: tópicos sobre uma discussão acerca da sua atualidadedz
Novembro 2016 Outubro 2017 Nº4 Mátria Digital | 141
Estaremos, então, perante a eminencia de um futuro fatalista até que
o próprio esgotamento dos recursos do planeta ou o comportamento
autodestrutivo da humanidade coloque termo a tudo? Não haverá
então nenhuma barreira política, social ou legal capaz de barrar o
comportamento voraz e ardil do capitalismo?
6 - Considerações finais
Em jeito de conclusão, parece-nos que merece melhor
aprofundamento e esclarecimento, em estudos a desenvolver, a ideia
de Anselm Jappe de que o ciclo especulativo atual do capitalismo já
terá passado de um ponto de não retorno em relação à possibilidade
de aplicar políticas reformistas dentro do próprio sistema. As
experiências já desenvolvidas em regimes totalitários, mais ou menos
puros de acordo com a ideologia fundadora, demonstraram que as
mudanças sociais e políticas abruptas, em larga escala, normalmente
saldam-se pelo desastre. Também não é claro que não seja preferível
optar por políticas de compromisso, pese embora o seu efeito possa
ser temporalmente reduzido (tal como aconteceu no pós-guerra),
dado as alternativas disponíveis. Não poderá a iniciativa e a
propriedade privada alguma vez compatibilizarem-se com metas
exequíveis a nível do uso dos recursos naturais e da distribuição da
riqueza? Não poderá a ciência e a tecnologia virem a funcionar como
fatores de resolução em vez de funcionarem como fatores
problemáticos?
São questões para desenvolver aproveitando os tópicos aqui
deixados.
João Maia
142 | Mátria Digital Nº4 Novembro 2016 Outubro 2017
Fontes Orais
Martins, Rui Cunha - Ditadura, democracia e mudança política: interseções entre
justiça e historiografia. IN: SEMINÁRIO DE POLÍTICAS E IDEOLOGIAS DO CURSO
DE DOUTORAMENTO EM ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS. Coimbra: Centro de
Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra, 2013.
Bibliografia
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BERNSTEIN, Éduard, Socialismo Evolucionário, Rio de Janeiro, Zahar Editores,
1964, p. 171.
ELIAS, Nobert, O processo civilizacional, vol. II, Lisboa, Publicações Dom Quixote,
1990, p. 285.
FUKUYAMA, Francis, O fim da história e o último homem, Lisboa, Gradiva, 1992,
p. 382.
GUSTAFSSON, Bo, Marxismo y revisionismo La crítica bernsteiniana del
marxismo y sus premisas histórico-ideológicas, Barcelona, Ediciones Grijalbo,
1975, p. 439.
JAPPE, Anselm, Sobre a balsa da Medusa ensaios acerca da decomposição do
capitalismo, Lisboa, Antígona, 2012, p. 137.
JAPPE, Anselm, As aventuras da mercadoria para uma nova crítica do valor,
Lisboa, Antígona, 2006, p. 283.
MAQUIAVEL, Nicolau, O Príncipe, Lisboa, Edições Sílabo, 2007, p. 170.
MARX, Karl, O Capital, livro primeiro, tomo III, Lisboa, Edições Avante, 1997, p. 1013.
POPPER, Karl - A pobreza do historicismo, Lisboa, Esfera do Caos Editores, 2007, p. 152.
Santos, Boaventura Sousa - Os processos da globalização. In: SANTOS,
Boaventura Sousa (Ed.) - Globalização: fatalidade ou utopia? Porto: Edições
Afrontamento, 2001, pp. 31-98.
Stiglitz, Joseph Eugene - Tornar eficaz a globalização. Porto: Edições ASA, 2007, p. 318.
Stiglitz, Joseph Eugene - Globalização A grande desilusão. Lisboa: Terramar, 2002, p. 413.
Zakaria, Farid - O mundo pós-americano. Lisboa: Gradiva, 2008, p. 251.
Zizek, Slavoj - Viver no fim dos tempos. Lisboa: Relógio D´Água, 2010, p. 486.
Zizek, Slavoj - Bem-vindo ao deserto do real. Lisboa: Relógio D´Água, 2006, p. 1

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Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

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Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.