Novembro 2016 – Outubro 2017 • Nº4 • Mátria Digital | 133
João Maia
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(...)
O revisionismo
v>
Os trabalhos de Eduard Bernstein focam, entre os seus aspetos
essenciais, a importância das redes sociais bem como da
complexidade e diferenciação que estas sofreram nas sociedades
europeias. É possível estabelecer interseções e paralelismos destes
conceitos com os trabalhos de outros autores. Norbert Elias, sociólogo
alemão, já em pleno século XX, desenvolveu uma teoria do
desenvolvimento civilizacional alternativa aos trabalhos de Karl Marx.
Colocando o foco nas lutas pelo poder que se deram nas sociedades
europeias desde a idade média, este autor descreve no segundo
volume da sua obra O processo civilizacional ( ȋElias, 1990) um
processo assente em eliminatórias realizado, desde logo, nas disputas
entre senhores das terras e que levou a uma cada vez maior
concentração de poder até permitir o aparecimento do estado
moderno. Deste movimento é indissociável a ascensão dos estratos
sociais inferiores, também através de lutas emancipatórias, mas que
permitiram aumentar o grau de complexidade, de diferenciação e de
interdependências existentes nas sociedades europeias, em particular
ao nível do trabalho. Nesta lógica, surge o alargamento do espaço e da
inclusão democrática e a constituição do estado-nação moderno.
Recorrendo a conceitos da psicanálise, Elias descreve como a
complexificação e interdependência das redes sociais obrigou o ser
humano a modelar as suas pulsões reprimindo comportamentos
violentos e desenvolvendo formas de estar socialmente aceites dentro
dos padrões civilizacionais exigidos. Neste modelo, o
desenvolvimento civilizacional não surge assim como perpetuador do
domínio hegemónico de um grupo social em relação a outros. Pelo
contrário, o desenvolvimento civilizacional promove uma crescente
sujeição das camadas sociais superiores, dentro de um quadro
normativo, em paralelo com o movimento ascensional dos estratos
sociais inferiores.
Não será a obra de Elias, neste sentido, a primeira tentativa de
teorizar conceitos que já vinham descritos desde o séc. XV com o O
Príncipe de Maquiavel? Aqui a sapiência governativa que brotava do
espírito renascentista e humanista já aconselhava o soberano a saber
dividir os interesses dos seus antagonistas bem como daqueles que
governa de modo a garantir a preservação da República (Maquiavel,
2007). O equilíbrio político-social só é, pois, possível numa lógica
inter-relacional onde todos tenham algo a ganhar e algo a perder. É de
referir que o próprio Norbert Elias (1990) anteviu, nesta lógica, os
desafios com que nos deparamos hoje com a globalização económica.
O poder do grande capital, assente nos grandes grupos económico-
financeiros, ameaça de forma séria os equilíbrios a vários níveis
(económico, social, ambiental). A lógica de desenvolvimento
civilizacional descrita transfere-se assim das sociedades europeias
moderno. Deste movimento é indissociável a ascensão dos estratos
sociais inferiores, também através de lutas emancipatórias, mas que
permitiram aumentar o grau de complexidade, de diferenciação e de
interdependências existentes nas sociedades europeias, em particular
ao nível do trabalho. Nesta lógica, surge o alargamento do espaço e da
inclusão democrática e a constituição do estado-nação moderno.
Recorrendo a conceitos da psicanálise, Elias descreve como a
complexificação e interdependência das redes sociais obrigou o ser
humano a modelar as suas pulsões reprimindo comportamentos
violentos e desenvolvendo formas de estar socialmente aceites dentro
dos padrões civilizacionais exigidos. Neste modelo, o
desenvolvimento civilizacional não surge assim como perpetuador do
domínio hegemónico de um grupo social em relação a outros. Pelo
contrário, o desenvolvimento civilizacional promove uma crescente
sujeição das camadas sociais superiores, dentro de um quadro
normativo, em paralelo com o movimento ascensional dos estratos
sociais inferiores. (...)
Não será a via da razoabilidade a indicar a aposta em políticas de compromisso?
É esta última via que tem sido apontada por alguns
economistas e autores de referência. É o caso de Joseph Stiglitz, antigo
vice-presidente do Banco Mundial e antigo conselheiro económico do
presidente norte-americano Bill Clinton. Stiglitz tem-se empenhado
no estudo dos efeitos da globalização económica nas sociedades,
nomeadamente dos países em vias de desenvolvimento. O autor
reconhece que a partir do Consenso de Washington houve uma opção
muito claro para a implementação de um modelo de desenvolvimento
global assente na economia liberal da escola anglo-saxónica. Como
instituições basilares desse modelo, que têm afirmado as suas
diretrizes, as instituições de Bretton Woods têm aplicado um
pragmatismo tecnocrático, que estando longe de salvaguardar os
objetivos da liberdade e da coesão social, obedecem essencialmente
aos interesses privilegiados do grande capital e da alta finança. São
interesses que o autor descreve como capturadores do poder e das
instituições políticas. Nesta base, têm-se originado relações de grande
assimetria no comércio internacional (Stiglitz, 2007, 2002). Devido ao
poder negocial de cada um dos interlocutores, os acordos realizados
de liberalização das economias têm sido essencialmente cumpridos
pelos países em desenvolvimento enquanto os países desenvolvidos
têm mantido, até aqui, grandes entraves à entrada no seu mercado de
produtos que poderiam trazer vantagens às economias emergentes,
nomeadamente recorrendo a taxas aduaneiras e a legislação
regulamentar, que mais não faz do que servir de pretexto
protecionista. Ora as economias emergentes, uma vez desprotegidas,
têm grandes dificuldades em competir perante o avanço das grandes
empresas multinacionais. O seu tecido económico e social, já de si
frágil, acaba muitas vezes por se dilacerar dado o poderio da
competição externa. Com frequência assistimos, assim, a fenómenos
de destruturação social que geram violência e colocam em causa a
democracia. Também os impactes ambientais, neste quadro, estão
longe de ser acautelados. Muitas vezes são cometidos, na atividade
empresarial, crimes ambientais que ameaçam a biodiversidade e a
própria sustentabilidade das sociedades afetando, por exemplo, as
reservas dos recursos naturais e os pequenos negócios. Por outro lado,
a captura do poder político pelos grandes grupos económico-
financeiros também não leva à salvaguarda dos interesses dos
cidadãos dos países ricos uma vez que o fechamento destas sociedades
aos produtos dos outros países torna mais elevados os preços ao
consumidor devido à diminuição da concorrência (são precisamente
as economias mais desenvolvidas que poderiam suportar melhor a
concorrência externa).
Neste sentido, quando falamos nas liberalizações prescritas
por instituições como FM), falamos em Dzliberalizações-choquedz que
implicam a rápida privatização de empresas estatais e a abertura
abrupta dos mercados ao investimento estrangeiro, incluindo na
entrada de capitais de curto prazo especulativos. O facto deste tipo de
capitais implicar a criação de lucro que não é sustentável a médio-
longo prazo e o facto de muitas economias terem dificuldade em fazer
face à concorrência externa gera nestes países crises económico-
financeiras e problemas de endividamento. Como se isso, só por si, não
bastasse, em paralelo estes países são normalmente alvos de
programas externos de ajuda financeira do FMI e do Banco Mundial.
No entanto, as contrapartidas exigidas para receberem o dinheiro
implicam subidas das taxas de juro e cortes na despesa pública.
Evidentemente que a aplicação deste tipo de medidas mais não faz do
que gerar um ciclo recessivo vicioso do qual os países têm muita
dificuldade em sair (idem).
As soluções que Stiglitz apresenta para estas problemáticas
são tanto do âmbito institucional como programático. No âmbito
institucional defende, por um lado, um reforço dos processos
democráticos particularmente na partilha de poder das instituições
financeiras internacionais, dando maior poder na sua direção aos
países em desenvolvimento e criando outro tipo de regras que
favoreçam os interesses dos países intervencionados (Stiglitz, 2002).
Por outro lado, também defende a criação de outras instituições
internacionais (como tribunais especializados, incluindo no âmbito
ambiental e dos direitos de propriedade) para regularem e intervirem
em matéria referente à atividade económica, financeira e comercial
internacional e um novo sistema global de reservas que não origine
tantos desequilíbrios como o atual sistema (Stiglitz, 2007). No plano
programático, assume a defesa de um comércio internacional assente
na equidade, na medida em que deve haver um grau de proteção às
economias emergentes que não é exigível às economias
desenvolvidas. Os estados dos países em desenvolvimento precisam
de tempo para ganhar receitas para investirem em infraestruturas,
desenvolvimento tecnológico e em bens como a educação e a saúde,
não só para potenciar a competitividade da economia como também
para favorecer a coesão social. Para isso, este tipo de economias têm
que ser protegidas até a um ponto em que possam concorrer com
outras economias em igualdade de circunstâncias. É lícito, portanto,
os países em desenvolvimento, apostarem na criação de fortes
quadros legais de regulação da atividade concorrencial, inclusive no
setor financeiro e no controlo da atividade especulativa, como
também manterem, durante algum tempo, algum grau de
protecionismo nas suas fronteiras (idem).
O autor concorda que o caminho seguido até aqui não só não
erradica a pobreza como tem o risco real de não preservar os
rendimentos daqueles que estão no meio da escala social. No entanto, não
considera este cenário como inevitável. Stiglitz considera que a
globalização económica possibilita, a muitos países, a entrada em novos
mercados e o acesso a novas tecnologias. Para ele, trata-se, portanto, de
maximizar os benefícios deste fenómeno e minimizar os seus malefícios.
Para isso, giza, do modo anteriormente descrito, uma arquitetura
institucional global e linhas políticas de orientação que devem criar um
quadro comum de entendimento a nível internacional para que a
globalização funcione de modo a promover o desenvolvimento global
sem colocar em causa os processos democráticos e os equilíbrios
ambientais (Stiglitz, 2007, 2002).
4. A apologia liberal
Há outros autores que também não deixam de realçar que a
globalização económica tem virtudes e que, inclusive, já permitiu a
melhoria dos níveis e das condições de vida em vários países. Fareed
Zakaria, um dos mais proeminentes intelectuais da atualidade, em
ciência política, observa que na sociedade atual tem-se dado um
enfoque a problemas que na verdade constituem uma ameaça relativa.
No seu livro DzO mundo pós-americanodz, recorrendo aos dados de
estudos desenvolvidos por académicos norte-americanos, Zakaria
(2008) afirma que estamos a viver um período relativamente pacífico
na história da humanidade. A extensão da guerra e da violência
organizada, a nível mundial, diminuiu, desde o colapso do bloco
soviético, para níveis há muito não vistos. Citando universitários de
referência chega a referir que há quem defenda que Dzhoje em dia,
estamos provavelmente a viver o período mais pacífico de toda a
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existência da nossa espéciedz (idem, p.17). Os focos de conflito, como
aqueles que são transmitidos no nosso dia-a-dia pela informação dos
meios de comunicação social, como é caso dos atentados perpetrados
pelo terrorismo islâmico, têm causado danos de menor dimensão,
incluindo do ponto vista humano, comparativamente a outros
conflitos que já ocorreram ao longo da história contemporânea. No
entanto, não estamos aqui perante mais uma perspetiva advogadora
do fim da história como referiu Fukuyama (1992), apoiando-se em
Kojève, defendendo que com o estabelecimento global da democracia
liberal a humanidade atingiria o seu fundamental anseio de
reconhecimento mútuo. Zakaria, por sua vez, reconhece que o mundo
globalizado coloca grandes desafios, nomeadamente às potências
ocidentais dominantes como os Estados Unidos da América. Na
verdade, assistimos hoje à emergência de potências como a China, a
India, a Rússia ou o Brasil que apresentam grandes níveis de
crescimento económico e devido às suas caraterísticas internas têm
um grande potencial de desenvolvimento à sua frente. Zakaria, tal
como Stiglitz que também o afirma nos seus trabalhos (Zakaria, 2008;
Stiglitz, 2007), aponta os méritos que estes países, em particular a
China e a Índia, têm tido ao apostarem em áreas como a educação e o
desenvolvimento tecnológico e ao não descuidarem outras questões
como a distribuição da riqueza. O autor, por outro lado, também
reconhece existirem problemáticas transversais a todo o mundo como
é o caso do aquecimento global, do crescimento demográfico mundial,
do controlo das bolhas especulativas e do perigo do reaparecimento
do fervor nacionalista. Nesse sentido, alinha ao lado daqueles que
exigem a necessidade das potências ocidentais, e em grande medida
os Estados Unidos da América, reconhecerem a necessidade de
arquitetar uma nova orgânica institucional a nível internacional de
modo promover uma maior partilha de responsabilidades e de decisão
política.
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O autor é crítico em relação às políticas e ao discurso
neoconservador que na última década marcou a política norte-
americana. Para ele, assiste-se a um fechamento da sociedade norte-
americana do ponto de vista cultural e que tem desde logo origem no
espetro político-partidário. Hoje a sociedade norte-americana revela
menor tolerância ao que vem de fora (em particular em relação ao
imigrante) apesar do fenómeno imigratório sempre ter constituído
uma força de renovação na sociedade dos Estados Unidos da América.
Nesta medida, o autor defende o prosseguimento de políticas de
inclusão social até como forma de salvaguardar a competitividade da
economia. No entanto, as ideias de Fareed Zakaria, embora não
estabeleçam a escatologia do fim dos tempos, distinguem-se de alguns
por revelarem uma clara apologia liberal. Zakaria não coloca a ênfase
nas questões de proteção e de equidade no comércio internacional.
Destaca, sim, a importância da mobilização das sociedades civis, das
redes tecnológicas e de produção de conhecimento, nas suas ligações
ao mundo empresarial, como forma dos países garantirem a vitória na
batalha da competitividade económica. Em última análise, defende
que na economia atual a riqueza é medida pelas equipas que
produzem novos bens e novos serviços e não pela acumulação de
capital. Ou seja, a economia de hoje é assente em ideias e em energia
pois o essencial já não é o capital e o trabalho. Para Zakaria, Karl Marx
foi um cientista social talentoso na medida em que soube
compreender os mecanismos de ascensão social, ou segregação social,
do individuo. Mas do ponto de vista ideológico e económico, as teorias
de Marx terão sido pobres devido à sua apologia política e à visão que
defendeu do futuro do capitalismo (Zakaria, 2008).
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5 - Na linha crítica de Karl Marx
Embora as perspetivas já referidas, que podem ter algumas
abordagens diferentes entre si, mas que defendem a compatibilização
da economia liberal com a salvaguarda dos direitos individuais e dos
equilíbrios globais, possam ser interessantes para alguns autores, há,
no entanto, quem defenda a impossibilidade de as levar à prática.
Noutra linha de pensamento, há uma série de autores que mantendo-se
fiéis aos fundamentos do marxismo advogam o surgimento de outro
sistema social que não seja de base capitalista. Slavoj Zizek, filósofo
esloveno, é muito claro ao defender o comunismo como a resposta
viável às problemáticas colocadas no nosso tempo. Sendo bastante
crítico em relação ao sistema atual, Zizek destaca a impossibilidade de
universalizar o capitalismo avançado dos nossos dias. Segundo ele, a
prosperidade que tem sido alcançada para alguns assenta em processos
de segregação de uma grande massa de seres humanos e no
esgotamento dos recursos naturais. Por exemplo, as políticas
regressivas no seio da União Europeia em relação à imigração são um
exemplo de como à liberdade na circulação das mercadorias não
corresponde a liberdade na circulação das pessoas, atirando muitos
indivíduos para condições de vida sub-humanas. O autor chega mesmo
a recuperar a figura obscura do Dzhomo sacerdz, da antiga lei romana, para
exemplificar como muitos seres humanos nos dias de hoje são
desprovidos de direitos civis e têm uma função que é preservada no
propósito de alimentar um sistema que está assente num fetiche
consumista (Zizek, 2006). Nesta lógica, tal sistema nunca se poderia
compatibilizar com a assunção de direitos para todos sob pena de isso
significar o seu próprio colapso.
Aliás, o autor adianta que os sistemas económicos e os sistemas
políticos estão tão enleados entre si, nomeadamente no fomento do
fenómeno da corrupção, que torna-se inviável qualquer tentativa
reformista e/ou progressista vinda do espetro político-partidário
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estabelecido. Em particular, Zizek é bastante crítico em relação ao
papel desempenhado pela grande superpotência mundial, os Estados
Unidos da América, na tentativa de perpetuar o seu domínio
hegemónico. Assistimos a comportamentos, que partem das próprias
autoridades norte-americanas, em que, por exemplo, se defende e
pratica a tortura como forma de defender a segurança e a própria
democracia. Geram-se, desta forma, acoplagens, entre conceitos que à
partida estariam em campos opostos, e que podem levar a uma crise
das próprias categorias segundo as quais entendemos a realidade
(idem). O autor identifica sinais de crise e de incerteza nos nossos
tempos (a crise ecológica, os desequilíbrios económicos, a situação
social explosiva e a revolução na biogenética) que transmitem uma
ideia de fim dos tempos e que fazem urgir à mudança (Zizek, 2010).
Nessa linha, acompanhando outros pensadores marxistas
contemporâneos, Slavoj Zizek refere que a sociedade ocidental atual
vive na monotonia do consumismo capitalista e da compressão do
espaço-tempo originada pelo ambiente digitalizado e por isso anseia
pelo Dzeventodz. Tal facto, leva à passagem do fantasma lacaniano para o
Real consumando o objeto do desejo. No entanto, segundo o sentido
lacaniano do termo, atravessar o fantasma significa tornar-se cada vez
mais requisitado pelo seu fantasma. Como o sujeito se encontra
submetido ao efeito da falta simbólica que lhe revela o limite da
realidade quotidiana, neste caso é o próprio real que, para ser
sustentado, tem de ser percecionado como um espetro irreal de
pesadelo. Daí o aparecimento de fenómenos de violência ou
obscenidade extrema que têm vindo a marcar a sociedade atual, como
os atentados do 11 de setembro ou determinados movimentos
culturais (Zizek, 2010, 2006).
Neste seguimento, para Zizek dissecar o Real implica entrar na
esfera do vazio primordial de onde parte todo o ato de verdadeira
criação uma vez que não existe nenhuma verdade interior. A ideia de
vazio por si defendida, ligada à filosofia do budismo zen, onde o eu
pura e simplesmente não existe, vai ao encontro de um vazio
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materialista. Logo, apela ao desprendimento dos indivíduos em
relação aos desejos pessoais e ao envolvimento numa ação coletiva
que difira radicalmente tanto do mercado como da administração
estatal e como tal leve ao comunismo. Isto implica a assunção da
política como ato com risco mesmo que não esteja associado a uma
legitimidade democrática, dando o exemplo daquilo que foi a
resistência francesa ao nazismo liderada por De Gaulle (idem).
Certamente que qualquer agenda política deste tipo poderá
sempre sofrer a crítica efetuada por Karl Popper ȋ200Ȍ no seu DzA
pobreza do historicismodz às doutrinas políticas que pretendem ter
uma compreensão global sobre a evolução da história. Normalmente
estas têm o objetivo de aplicar transformações em grande escala nas
sociedades quando na verdade são preferíveis as reformas parciais
pois são mais fáceis de controlar e de evitar os erros. Afinal, já nos
teremos esquecido, por exemplo, das consequências do DzGrande Salto
em Frentedz de Mao Zedong?
No entanto, recuperando a exposição de Slavoj Zizek, não terá
a dinâmica capitalista chegado a um ponto em que impossibilita, pura
e simplesmente, a reforma do sistema estando nós condenados à
criação de algo de radicalmente diferente, como paradigma
alternativo? Não terá tido Marx razão ao dizer que as metamorfoses
do capital mais não fariam do que levar ao seu inevitável colapso?
Há quem diga que sim e até com menos certezas, em relação a
Zizek, no que diz respeito àquilo que se poderá seguir. Anselm Jappe
ȋ200Ȍ, na sua obra DzAs aventuras da mercadoriadz recupera Marx para
afirmar que Dza crise é a metamorfose da própria mercadoria, a
disjunção da compra e da vendadz (idem, p.134). E continua afirmando
que a crise é a verdade do capitalismo devido a este Dzsó poder evoluir
através de fricções contínuas para acabar finalmente por se
desmoronar sob o peso da sua própria lógica, ou melhor, da sua não
lógicadz (idem, pp.134/135). Para Jappe, o erro de Marx terá sido, de
facto, interpretar as crises do seu tempo como crises finais. No
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entanto, hoje voltamos a perceber que a contradição entre o conteúdo
material e a forma valor conduz à destruição do primeiro. O
capitalismo atinge o seu próprio limite em virtude da sua maior força,
ou seja, a libertação das forças produtivas e a consequente forma do
valor abstrato. O autor identifica toda uma deterioração que o capital
global fez das interdependências entre os serviços, a produção e a
contribuição para o estado. Para o capital tudo isto representa falsos
encargos que são descartáveis. O próprio desenvolvimento
tecnológico tem contribuído para a criação de capital fictício e para o
prolongamento da vida do capitalismo através do crédito consumido
antecipadamente. Só que este dinheiro acaba por desvalorizar pois
não é tido no trabalho produtivo. Embora haja uma multiplicação
milagrosa do dinheiro que circula no mundo, a acumulação real
estagnou e o recurso ao crédito serve para estimular a acumulação
inexistente. Na verdade, o capitalismo, hoje, já não atua tanto por
exploração da humanidade, mas, sim, pela sua expulsão do sistema de
trabalho por ser supérflua. Assim, Jappe alinha no diapasão que diz
que a política não tem meios autónomos de intervenção pois tem uma
grande dependência em relação à economia. Para ele, há que discutir
desde logo as categorias impostas à priori que não são percebidas
como historicamente construídas quando, na verdade, o são. Por
exemplo, o fundamento indiscutível de que é necessário transformar
em dinheiro o trabalho é um imperativo que alimenta o sistema
fetichista (Jappe, 2006). O autor chega mesmo, nos seus textos (Jappe,
2012), a ser muito crítico em relação ao discurso atual da esquerda e
a demarcar-se de outros autores apontando que o discurso
antineoliberal embora não negue a crise atual só quer curar os seus
sintomas. O problema está na relação social que envolve todos os
membros da sociedade e não só a ação nefasta dos homens do capital
e da alta finança sublinhando que a subida ao poder do neoliberalismo
nos anos oitenta foi uma forma de prolongar a vida do capitalismo e
não um Dzgolpedz como crê uma determinada esquerda. E alerta: já não
há dinheiro para regressar ao keynesianismo como alguns querem,
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isto é, dinheiro real suficiente, pois entretanto criou-se dinheiro
através da especulação. Assim, a crise das categorias que se perfila
dará lugar a formas de vida radicalmente diferentes sendo a crise atual
uma etapa importante neste processo. No entanto, para Anselm Jappe
deverá haver ainda um abatimento perpétuo nos modos de vida até
haver um movimento global de reflexão e de solidariedade. Na
verdade, perante o falhanço inevitável de todas as políticas, num
sistema que desvaloriza o dinheiro enquanto tal devido ao seu uso
fetiche, colocasse a questão: a que preço e como é que se pode sair de
um sistema baseado no valor e no trabalho abstrato, no dinheiro e na
mercadoria, no capital e no salário? É uma resposta que o próprio
autor tem dificuldades em encontrar.
Ainda assim, Jappe tem uma perspetiva cética em relação à
capacidade de sobrevivência do capitalismo para além da crise das
categorias que já começamos a viver atualmente. E aqui origina-se um
ponto de divergência em relação a outros autores. Na linha de
investigação portuguesa, Rui Cunha Martins (2013) realça o caráter
adaptável e mutável que o capitalismo tem demonstrado ao longo dos
tempos e continua, ainda hoje, a demonstrar. Quem não se recorda da
acoplagem que o capitalismo fez ao fascismo em pleno século XX e
propiciou o desencadear de uma guerra de proporções apocalíticas?
Ou hoje, a acoplagem existente, entre um sistema político de
inspiração maoista e um sistema económico-financeiro capitalista, na
China? Ou seja, o capitalismo em ordem a preservar e a propagar a sua
existência é capaz de fazer acoplagens, bem-sucedidas, a sistemas que
até foram criados com a intenção de o combater. É um padrão de
comportamento que faz lembrar a atuação de um vírus. Certamente
que o capitalismo está assumir caraterísticas para além daquelas que
foram defendidas por muitos vultos do liberalismo e do iluminismo
que fizeram a sua apologia. Mas isto é mais um elemento que
demonstra como estamos perante um sistema que não se compadece
com quaisquer tipos de idealismos ou mesmo de planificação política.
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Estaremos, então, perante a eminencia de um futuro fatalista até que
o próprio esgotamento dos recursos do planeta ou o comportamento
autodestrutivo da humanidade coloque termo a tudo? Não haverá
então nenhuma barreira política, social ou legal capaz de barrar o
comportamento voraz e ardil do capitalismo?
6 - Considerações finais
Em jeito de conclusão, parece-nos que merece melhor
aprofundamento e esclarecimento, em estudos a desenvolver, a ideia
de Anselm Jappe de que o ciclo especulativo atual do capitalismo já
terá passado de um ponto de não retorno em relação à possibilidade
de aplicar políticas reformistas dentro do próprio sistema. As
experiências já desenvolvidas em regimes totalitários, mais ou menos
puros de acordo com a ideologia fundadora, demonstraram que as
mudanças sociais e políticas abruptas, em larga escala, normalmente
saldam-se pelo desastre. Também não é claro que não seja preferível
optar por políticas de compromisso, pese embora o seu efeito possa
ser temporalmente reduzido (tal como aconteceu no pós-guerra),
dado as alternativas disponíveis. Não poderá a iniciativa e a
propriedade privada alguma vez compatibilizarem-se com metas
exequíveis a nível do uso dos recursos naturais e da distribuição da
riqueza? Não poderá a ciência e a tecnologia virem a funcionar como
fatores de resolução em vez de funcionarem como fatores
problemáticos?
São questões para desenvolver aproveitando os tópicos aqui
deixados.
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Fontes Orais
Martins, Rui Cunha - Ditadura, democracia e mudança política: interseções entre
justiça e historiografia. IN: SEMINÁRIO DE POLÍTICAS E IDEOLOGIAS DO CURSO
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Zizek, Slavoj - Viver no fim dos tempos. Lisboa: Relógio D´Água, 2010, p. 486.
Zizek, Slavoj - Bem-vindo ao deserto do real. Lisboa: Relógio D´Água, 2006, p. 1
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