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segunda-feira, 14 de julho de 2025

 AS estratégias da impotência, desesperança e servidão voluntária

1. A cultura dirigida pelas classes sociais dominantes aperfeiçoou os meios de tal modo que apenas uma escassa minoria previu e preveniu no século passado. No cinema investiu tudo, com colossais lucros financeiros e ilimitada influência nas mentes dos espetadores de todo o planeta. Nas artes plásticas a CIA pagou a artistas ( loucos por dólares ou bêbados) para continuarem a produzir uma arte inócua, não social, nada subversiva. Sabemos hoje quem foram. Na literatura casos idênticos abundam na Guerra Fria e atualmente, sob a capa protetora da liberdade de expressão e de criação. As Fundações, Museus e curadorias e ONGS recebem subsídios à descarada. As Agências que elaboram e vendem as notícias, todas elas norte-americanas, britânicas e uma francesas, as mais poderosas (porque financiadas) estações de televisão de alcance planetário, fabricam noticiários como armas de propaganda e de difamação. Sabemos quais são os seus alvos prediletos. Conhecemos jornalistas que o praticam sem pudor. Nas ciências , sobretudo ciências sociais, que de científico pouco têm, expõem em revistas "acima de qualquer dúvida" teorias conservadoras, senão mesmo reacionárias e irracionalistas. Filósofos fazem disto o seu ofício. E sabemos quem são, ou foram.

2. As fábricas do medo, da inquietação, da angústia, trabalham sem descanso e não lhes falta mão de obra e capitais. Capciosamente destilam e instalam de manhã à noite. As vítimas, os alvos, "percecionam" e é isso que importa. O "parece" torna-se verdade, facto. Nem as "fontes" já valem a verdade porque elas mesmas fabricam fake news. Circula a tese catedrática de que a toda a verdade é relativa, toda ela é apenas uma questão de perspetiva. O chamado "culturalismo", aparentemente progressista, define-a : cada cultura possui a sua verdade e nada mais há a contradizer.
3. A moda do "identidarismo" ( ideologia tribalista que confunde direitos sociais conquistados com muita luta e a consolidar pois podem-se perder) tende a dissolver a existência conflitual das classes sociais, a sua natureza determinante na análise, e no combate, das desigualdades económico-sociais. A discriminação dos indivíduos de pele negra, das mulheres, ou dos homossexuais, sendo anterior ao moderno capitalismo, não é todo dele indissociável . Canta-se nos concertos ao vivo para as multidões em delírio o valor absoluto das identidades e esquece-se quantas vezes a máquina brutal do capitalismo que explora e discrimina a classe trabalhadora. O particular contra o universal. A parte contra a totalidade, a qual, dizem, é pura metafísica. Ora a verdade só se encontra no geral, no universal. Não se compreenderá jamais a discriminação e o racismo sem os considerar instrumentos de dominação de classe, lastros do capitalismo colonialista.
4. Goza-se com a Utopia. As utopias sociais que fornecem referências, horizontes, motivos para a ação coletiva, soluções possíveis, alternativas difíceis mas realistas e radicais pois são essas que resolverão os problemas de fundo que afligem os povos oprimidos e a sobrevivência da Humanidade. Em vez das utopias que querem que desprezemos (não sejas sonhador! Não sejas idealista! Isto é assim, sempre foi e assim será sempre!), produzem distopias, isto é futuros que são o prolongamento do presente, com mutantes, zombies e ataques alienígenas, que nos querem distrair da "estratégia planeada do caos e da guerra" para esmagar os insurgentes das ditaduras do Capital, , e convencer-nos que com futuros tão maus é melhor conservar este Presente. Na Guerra Fria do século passado a distopia mais eficaz e distribuída que os EUA e outras potências colonialistas fabricaram (a CIA) foram evidentemente contra o socialismo e o comunismo. Vendia-se nos filmes de Hollywood. Só não sabe isso quem é estúpido. Salvo as classes e os povos que não puderam estudar coisa nenhuma porque não os deixaram.

N. P.

 

https://www.counterpunch.org/author/dr-yasser-abu-jamei/ 

 

Dr. Yasser Abu Jamei 

 

Um menino de dez anos não fala nem come há dias. Quando a nossa psicóloga finalmente o faz falar, ele faz uma pergunta que a deixa gelada: 'Toda a gente diz que o meu amigo foi para o céu, mas eu não vi a cabeça dele. Como pode  ele ir para o céu sem a cabeça?' Este é o trabalho de saúde mental em Gaza hoje. 

 

 

Crianças palestinas nas ruas de Deir al Balah. Foto: UNICEF. 

 

Como é que se pode prestar cuidados de saúde mental a pessoas que estão a ser aniquiladas? É uma pergunta que me fazem constantemente como psiquiatra em Gaza, e que assombra todas as interações que eu e outros médicos temos com as crianças e famílias que atendemos. A resposta, aprendi eu após 20 meses de genocídio, é mais simples e mais complexa do que se imagina. 

 

Nos  meus 20 anos como profissional de saúde mental em Gaza, pensei que entendia o trauma. Então veio outubro de 2023, e tudo o que eu sabia sobre cura, resiliência e esperança foi testado contra uma máquina de aniquilação que opera 24 horas por dia, 365 dias por ano. 

 

Saúde mental e fome forçada 

 

Hoje em dia, quando falamos de saúde mental em Gaza, a principal preocupação é a extrema apreensão dos pais com a saúde geral dos seus filhos após quase 20 meses de privação de nutrientes essenciais e agora a ausência de alimentos básicos. As famílias agora priorizam quem vai comer hoje e quem não vai. Na melhor das hipóteses, as crianças recebem uma refeição por dia, e essa refeição carece de necessidades básicas, como frutas. 

 

A farinha, o principal ingrediente das nossas refeições diárias em todo o Médio Oriente e na Palestina, está quase indisponível. O pão tornou-se uma recordação. Agora, as famílias tentam fazer pão com macarrão. Pelo menos metem alguma coisa na boca simplesmente para cortar a sensação de fome. 

 

O impacto na saúde mental dessa longa exposição a múltiplas experiências traumáticas estende-se muito além do bombardeamento contínuo e catastrófico que mantém as crianças aterrorizadas e à beira da morte a qualquer momento. Múltiplas deslocações, à medida que as famílias são forçadas a mudar-se de uma área insegura para outra, adicionam novas camadas de dificuldades. Num ambiente hostil onde 80 a 85 por cento das casas e infraestruturas estão destruídas, uma criança olha em volta e vê apenas casas destruídas, escolas destruídas e tudo ao seu redor em ruínas. Como   podem andar por aí? Como  podem pensar num dia melhor? 

 

As pessoas dizem que os nossos filhos parecem entorpecidos - eles não respondem. Durante meses, ouvimos falar de crianças que se tornam agressivas, têm problemas umas com as outras, uma forma de expressar rejeição. Estamos todos a rejeitar a realidade em que vivemos, não estamos felizes, estamos com raiva. E as crianças, que são metade da nossa população, expressam isso de maneiras muito diferentes. 

 

Há um novo sintoma a surgir entre os adultos. Eles não se sentem apenas zangados e isolados, mas, infelizmente, começaram a sentir-se culpados. Culpados porque não podem ajudar os seus filhos, não conseguem nem encontrar comida para os seus filhos. Esta é uma sensação estranha que estamos a testemunhar quase pela primeira vez. 

 

Juntamos  isso aos sintomas normais: crianças com medo a maior parte do tempo, problemas com o sono, pesadelos, enurese noturna, pais com traumas como TSPT [Transtorno de Stress Pós-Traumático], mas também depressão, ansiedade severa e dores físicas. Essas dores físicas afetam homens, mulheres, crianças, adultos – todos. Representa uma variedade de questões complexas que afetam as pessoas que foram expostas a isto durante 20 meses, mas também não pela primeira vez. Não falamos da terceira, quarta ou quinta vez, mas várias vezes desde 2008, e até antes, porque sempre vivemos sob bloqueio, sob ocupação. As nossas vidas nunca foram pacíficas e acordamos de um desastre apenas para cair noutro. 

 

Cuidados em circunstâncias impossíveis 

 

Uma coisa que vemos frequentemente nas pessoas durante emergências e atrocidades é a necessidade de manter um sentido de ação –  de que estão a fazer alguma coisa. É por isso que agora se vê homens e mulheres constantemente ativos: as mulheres fazem o que podem para cozinhar algo para os seus filhos, os homens tentam encontrar qualquer fonte de alimento aqui e ali. E ao nível da comunidade, homens e meninos correm em direção a cada nova área bombardeada para desenterrar os feridos e carregar as vítimas para o hospital a pé ou em qualquer carroça ou carro. Não é uma questão individual – toda a população da Faixa de Gaza experimenta isso coletivamente. É por isso que quase todos os membros da família têm uma tarefa, que mascara um pouco o impacto psicológico na população e, ao mesmo tempo, dá às crianças papéis que não deveriam ter. Crianças de seis ou sete anos não devem carregar sacos de água e caminhar dois ou três quilómetros para fornecer água potável às famílias ou recarregar telefones celulares. 

Esse sentimento de ação alivia o impacto psicológico. Isto é fundamental quando conhecemos pessoas da comunidade – atualmente temos cerca de 30 funcionários a visitar abrigos e tendas, conversando com homens, mulheres e crianças, ajudando-os a expressar-se, a discutir os seus sentimentos e receber aconselhamento e ajuda para gerir o stress. 

Quando há sintomas urgentes, encaminhamos as pessoas para os nossos centros comunitários. Nestes casos, primeiro pedimos às pessoas que olhem à sua volta e pensem em como se  podem ajudar a si mesmas e ajudar as pessoas ao seu redor. De certa forma, isto cria algum sentimento de ação que ajuda as pessoas a seguir em frente e pensar de forma positiva, se houver alguma hipótese de pensamento positivo sobre o que elas podem fazer. 

As nossas equipas levam brinquedos e artigos de papelaria quando possível, e isso faz toda a diferença. Quando as crianças de repente descobrem que podem expressar-se por meio de desenhos e brincadeiras, falando sobre os problemas que enfrentam, elas começam a agir - mostrando ou discutindo os seus medos quando desenham casas destruídas, pessoas feridas. Às vezes desenham sangue, outras vezes tanques. Eles desenham o que sentem, e isso faz uma grande diferença. Mas, é claro, que é extremamente difícil ajudar as pessoas enquanto os ataques continuam. Idealmente, as intervenções psicológicas começam quando o desastre termina ou quando as pessoas chegam a um local seguro, onde os profissionais de saúde mental podem funcionar como outros profissionais de saúde ou trabalhadores de emergência. Esta não é a situação em Gaza. 

 

Poder de Expressão e Cura 

 

Enfatizamos que é sempre importante quando se está a passar por stress encontrar alguém com quem conversar – essa é a simples verdade. As pessoas devem conversar com amigos, familiares, colegas e discutir as coisas. As pessoas podem abrir os seus corações se puderem falar. Por exemplo, se eu tive um sonho terrível ontem que me lembrou de uma casa destruída diante dos meus olhos, converso com alguém da família ou um vizinho numa barraca próxima, e eles compartilham a mesma experiência. Então, há uma sensação de um processo de cura coletiva. 

 

Mas quando se trata de crianças, elas têm maneiras diferentes de se expressar. Elas ainda não estão maduras o suficiente para se expressar como nós, adultos. Por exemplo, às vezes não sabem dizer "estamos com medo, estamos apavorados", mas em vez disso a criança pula de um lugar para outro, tremendo ou incapaz de ficar parada, ficando muito irritada. As meninas ficam muito tímidas e isoladas. As crianças tornam-se mais agressivas – outro exemplo de como o trauma se expressa. 

 

Aqui está uma história de uma colega. Ela visitou um acampamento e as pessoas disseram-lhe: "Vá para aquela tenda, há uma senhora cujo filho não falou nos últimos três ou quatro dias". Ela foi até àquela família e a mãe disse-lhe: "Sim, bem, não é só ele não ter falado nos últimos três ou quatro dias, mas também não comeu nada". Essa história aconteceu há cerca de dois ou três meses, quando a comida estava disponível - e quando dizemos que havia comida disponível, isso significa que as pessoas tinham algo para comer, não que tivessem comida de verdade. 

 

A nossa colega foi e sentou-se ao lado da criança, que tinha dez ou onze anos. Tinha lápis de cera e papéis para desenhar. A colega colocou-os no chão e disse à criança: "Eu sou um profissional de saúde, estou aqui para ouvir-te. Ouvi dizer que tu não falas há algum tempo, mas estou aqui para ouvir. O que te vier à cabeça, fala apenas comigo." 

A criança não fez nada, não disse nada. Ela esperou, então disse-lhe novamente: "Estou aqui para ti." Depois de alguns minutos, a criança disse: "Eu vi crianças com quem estava a brincar, e eles foram mortos diante dos meus olhos." 

 

Ele começou a chorar. Um pouco mais tarde, ela disse-lhe "eles foram para o céu" – algo que dizemos às crianças para acalmá-las. Isto é o que todos dizem: eles estão no céu, num lugar melhor. 

A criança respondeu: "Toda a gente me diz isso, mas eu não vi a cabeça do meu amigo com quem estava a brincar. Apenas o seu corpo estava lá. Como podia ele ir para o céu sem a cabeça?" 

 

Ela respondeu: "É assunto de Deus. Ele é todo-poderoso e pode fazer o que é necessário, e é claro que ele pode reunir a cabeça com o corpo dessa criança. Começou a confortar a criança, dizendo: "Eu também ouvi dizer que tu não comeste nada. Posso trazer-te um pouco de comida? Aqui estão alguns lápis de cera, e esta bolsa é sua. Tem brinquedos e lápis de cera. Podes desenhar o que quiseres." 

 

A mãe trouxe comida – um pedaço de pão com algo – e a criança começou a comer. Ela começou não apenas a falar, mas a brincar com os  lápis cera e a comer. 

 

Quando a psicóloga partilhou essa história no nosso centro comunitário, ela ficou extremamente feliz porque conseguiu fazer uma criança falar e comer. Contou como a mãe estava feliz por o filho estar a comer. Acompanharam a criança dois dias depois e ela estava melhor, e continuaram a prestar os cuidados de que precisava. 

 

Às vezes, essas pequenas coisas que se dão são muito importantes. Às vezes não se percebe o quão importantes elas são até ver a mudança significativa que eles criam. Com uma criança assim, se ela não tivesse expressado o que pensava sobre como uma criança não poderia estar no céu sem a  cabeça, isso teria permanecido um trauma para sempre. 

 

Conhecemos o trauma. Uma vez exposto ao trauma, o trauma permanece na nossa psique. Não se pode apagá-lo, mas a questão é: podemos continuar com a nossa vida? Podemos processá-lo de alguma forma? Podemos superá-lo e seguir em frente, ou continuará a prejudicar-nos, a impactar a nossa forma de pensar, a nossa capacidade de concentração, de aprender coisas novas, de continuar com a nossa vida? 

 

Hoje discutimos o trauma transgeracional baseado em provas. É por isso que tememos que o que está a acontecer afete o povo de Gaza não apenas durante anos, mas durante décadas. 

 

Foto: https://veja.abril.com.br/mundo/quatro-em-cada-cinco-criancas-em-gaza-sofrem-de-depressao/#google_vignette 

 

A escala impressionante de perda 

 

Agora os números: o Ministério da Saúde de Gaza cita mais de 60 000 pessoas mortas e mais de 112 000 feridas, embora uma investigação publicada no The Lancet tenha sugerido que o número de mortos foi 40% maior do que isso, levando em consideração os desaparecidos e os que estão debaixo dos escombros. Normalmente, e não apenas desta vez, mas de ataques anteriores, pelo menos um terço dos feridos ou mortos são crianças. 

Falamos de 39 000 crianças que perderam um dos progenitores. Entre eles, 17 000 perderam um deles. O número de crianças desacompanhadas que são o único membro sobrevivente da família ultrapassa os mil. As crianças que perderam um braço ou uma perna – crianças com amputações – são mais de 800. 

 

Estas estatísticas são impressionantes. Eles dizem respeito a uma sociedade onde antes de outubro de 2023 metade da população vivia abaixo da taxa de pobreza por causa da longa ocupação de Israel e subsequente bloqueio. 

 

Imaginemos que essas crianças não tinham educação, nem escolas durante um ano e meio, exceto as improvisações milagrosas dos professores de Gaza contra todas as probabilidades. Eles não desfrutaram de nenhuma vida diária normal durante esses 20 meses. Eles vivem em tendas, andam por lugares destruídos, são psicologicamente impactados e não veem sinais positivos para um futuro melhor. Não só isso - os bombardeamentos continuam quase todas as noites. 

 

A Faixa de Gaza tem cerca de 40 quilómetros de comprimento e 8 a 12 quilómetros de largura. Quando o bombardeamento acontece num lugar, todos ouvem. Esta é a exposição contínua a eventos traumáticos sem uma pausa que permitiria a cura, enquanto se vive em condições terríveis sem ter alimentação adequada - que permite que alguém se levante e ande ou corra como as crianças, para ter um bem-estar físico saudável. Nem têm o apoio do sistema de saúde que agora sofre agudamente e em constante modo de crise. 

 

Perdas pessoais 

 

Em 2014, a nossa família foi atingida por uma tragédia. Foi ao pôr do sol quando o prédio foi bombardeado, durante o Ramadão. Foi na altura em que as pessoas se sentavam para quebrar o jejum - por volta das 18:00, após um longo dia de jejum de 13 ou 14 horas. Estávamos a ouvir o Adhan, a chamada para a oração do pôr do sol, no mesmo momento em que as pessoas começam a comer. 

Ouvimos duas grandes explosões simultaneamente e sabíamos onde ocorreu o bombardeamento. Mais tarde, ouvimos a notícia e percebemos que o prédio com três andares tinha sido destruído com 28 pessoas mortas, incluindo três mulheres grávidas e 19 crianças. 

 

Passámos a noite inteira tentando encontrar os corpos das pessoas. Mesmo quando fomos à mesquita no dia seguinte para rezar a oração fúnebre, havia um grande saco de corpos que não foram identificados ou não puderam ser separados - como acontecia com todas as outras pessoas, partes de corpos foram colocadas juntas e depositadas numa sepultura. 

 

É algo que ninguém jamais pode esquecer. Algo com o qual temos de conviver. Fui abençoado por ter muitos colegas do GCMHP ao meu redor, muitos colegas da comunidade internacional a telefonarem-me e, claro, membros da família e parentes. Foi um dos casos mais relatados por causa do alto número de pessoas mortas naquele único ataque. 

 

Então, em 2023-24, muitos ataques mataram centenas de pessoas. Noutro Ramadão, em 18 de março, e quando o cessar-fogo foi quebrado por Israel eles começaram a atacar novamente. Eram 2h30. Foi cerca de uma hora antes do amanhecer, quando as pessoas estavam prestes a acordar para se preparar para o Suhur, a última refeição antes do nascer do sol, quando as pessoas param de comer. As mães estavam a preparar a comida que tinham, quando de repente os sons altos do bombardeamento - incontáveis caças a jato atingiram Gaza naquele momento, sobre aquela pequena área geográfica simultaneamente, aterrorizando todos. Relatórios dizem que mais de 400 pessoas foram mortas durante o ataque, algumas enquanto dormiam. 

 

Como qualquer outra família, alguns dos membros da minha família também foram mortos desde outubro de 2023 – em menor número, circunstâncias diferentes, mas somos como qualquer outra família na Faixa de Gaza. Entre os mortos, desaparecidos sob os escombros, estão membros de cada família ou família alargada. 

 

Em abril do ano passado, dois dos meus primos do lado da minha mãe decidiram voltar para a sua casa para ir buscar algumas coisas e trazer algumas roupas. As pessoas não tinham nada quando fugiram das suas casas, e houve momentos em que pensaram que poderiam voltar e trazer alguma coisa. Essas duas crianças – uma tinha 17 anos, a outra 16, que eram primas – decidiram voltar para casa apenas para trazer algumas coisas. Um estava particularmente interessado no seu computador. 

 

Entraram em casa, que ainda estava de pé em East Khan Younis, perto de uma área chamada Abasan. Parece que eles entraram em casa, recolheram tudo o que precisavam para os seus pais e irmãos, cada um com uma mochila cheia, e depois voltaram para Rafah para a área da barraca. Um drone matou os dois. Os pais não puderam despedir-se. As pessoas que estavam numa escola próxima pegaram nos corpos e enterraram-nos. 

 

Algumas semanas depois, ocorreu outro evento trágico envolvendo pessoas da minha família alargada que foram mortas - outras duas crianças pequenas, dois irmãos, um tinha 12 anos, outro tinha 15. O seu único erro foi querer um melhor acesso à Internet. Estavam num prédio com acesso à Internet. O prédio foi destruído, bombardeado e os seus corpos ficaram nos escombros durante horas. Quando foram retirados, fomos ao hospital para preparar o enterro. 

 

Eu vi um dos pais das duas crianças cujos corpos estavam na escola, e ele disse: "Doutor, eu não sei o que dizer, mas pelo menos eles viram os corpos dos seus filhos." Pelo menos Ahmed (o pai dos dois irmãos mortos) podia ver os corpos dos seus dois filhos e despedir-se deles, mas o meu irmão e eu não pudemos despedir-nos dos nossos filhos. 

 

O trauma manifesta-se de várias maneiras, e a maneira como as pessoas são expostas ao trauma é diferente, mas o impacto é sempre insuportável e temos de conviver com essas histórias. Temos de sobreviver, e é por isso que todos os que vivem agora na Faixa de Gaza ou que conseguiram deixar a Faixa de Gaza - são sobreviventes. 

 

Falamos de uma sobrevivente que passou 20 meses a correr de uma tenda para outra. Falamos de uma sobrevivente que durante 20 meses só teve hipótese de tomar banho cinco ou seis vezes – e para as mulheres isso é extremamente vergonhoso. Falamos de uma criança que não teve a possibilidade de comer nenhum tipo de fruta durante 20 meses. Falamos de uma criança que nunca viu iogurte na sua vida. 

 

Gerindo a raiva 

 

As pessoas estão incrivelmente zangadas. Também estou com muita raiva, mas ao longo dos anos aprendi a controlá-la porque é necessário, de uma forma ou de outra - a missão dos profissionais de saúde mental é ajudar os outros. A minha outra missão é liderar uma organização que tenha a visão de uma organização líder no campo da saúde mental e dos direitos humanos na Palestina. 

 

Para continuar assim, precisamos de apoiar os nossos colegas, apoiar-nos a nós mesmos, saber o que fazer, o que dizer, como reagir. É um trabalho muito difícil, num contexto muito desafiador, mas aprende-se a fazer isso. Aprende-se porque não há outra maneira. Precisamos de ajudar a comunidade, ajudar as pessoas a ultrapassar realidades difíceis – eu não diria enfrentar porque está para além disso – mas pelo menos fazer algo que permita que as pessoas continuem com as suas vidas, previnam e minimizem o impacto psicológico o máximo possível. Tentamos trabalhar na resiliência, se alguma resiliência permanecer. Para isso, é precisa controlarmo-nos. É assim que as coisas são. 

 

Saúde Mental e Direitos Humanos 

 

Como é que alguém pode estar psicologicamente bem quando está oprimido, quando não exerce ou usufrui dos seus direitos básicos, quando o seu direito à saúde está ausente, quando o seu direito à educação está ausente, quando o seu direito à segurança está ausente, quando o seu direito à paz está ausente, quando os seus direitos sociais não são respeitados, quando se experimenta violações diárias dos seus direitos básicos, quando o seu direito à vida é ameaçado diariamente. Como é que se pode sobreviver a isso? 

 

Não se pode viver uma vida saudável ou levar uma vida saudável quando se está sob opressão. Vemos isso em vítimas de violência de género, violência doméstica, em pessoas que vivem sob opressão. Mas na Palestina é único falarmos sobre algo que está a acontecer há décadas. Somos uma nação que não tem permissão para ter o seu próprio Estado. Somos pessoas que vivem no século XXI sob uma ocupação que destrói a vida quotidiana das pessoas, às vezes lentamente e, nos últimos tempos, muitas vezes num piscar de olhos. 

 

Essas violações contínuas dos direitos afetam a forma como as pessoas vivem, como pensam. Como profissionais de saúde mental, lidamos com as implicações dessas violações. Algumas violações são claras – elas são visíveis como acontece agora quando as pessoas são mortas ou ouvem bombardeamentos. Às vezes, eles são subtis. 

 

Por exemplo, olhemos para a Cisjordânia. Existem centenas de postos de controle a dividir 

a Cisjordânia em áreas segregadas. As pessoas que trabalham numa cidade, às vezes levam horas para chegar à sua aldeia ou cidade pequena. Há incertezas sobre tudo. Às vezes, as escolas na Cisjordânia fecham por causa da violência de novos colonos ou militares, ou encerramento de estradas, ou encerramento de cidades. 

 

Por exemplo, quando as pessoas vão colher as suas azeitonas, isso agora é uma provação anual para elas. Em todo o mundo, os agricultores, quando é hora de colher a sua produção agrícola, é um momento alegre – todos estão felizes. Mas não na Palestina. As pessoas têm medo de serem assediadas pelos colonos, que as suas árvores sejam queimadas até à raiz pelos colonos. 

 

Como se pode sobreviver psicologicamente a estas condições de vida? 

 

O conceito de resiliência 

 

Resiliência foi algo bom sobre o qual falei há vinte anos, do qual me orgulhava – apesar de todas as dificuldades, apesar dos encerramentos, apesar do bloqueio, apesar da segunda Intifada. Apesar de crescerem em condições tão adversas, os palestinianos continuam com as suas vidas. Temos o maior número de pessoas educadas, o menor analfabetismo do Médio Oriente, o maior número de mestres e doutores em relação à população. Essas conquistas são contra todas as probabilidades, e a explicação para isso foi "resiliência" – os jovens são resilientes. 

 

Mais tarde, comecei a questionar o que isso significa. Resiliência significa que, apesar de todos as pressões, as pessoas não desenvolvem transtornos mentais. Elas continuam a sobreviver psicologicamente. Bem, estamos a sobreviver psicologicamente, mas estamos a enfrentar tantas dificuldades, eventos e momentos tão difíceis que isso não pode continuar. Esta resiliência não poderá continuar para sempre. Não pode encobrir a realidade ou  fazer-nos ignorar o facto de que merecemos levar uma vida humana normal como qualquer outro ser humano. Temos direito a momentos de alegria, a dias de paz e a levar uma vida normal. 

 

Os palestinianos são pessoas muito produtivas. Merecemos viver como qualquer pessoa normal, prosperar e ver nossos filhos brincarem, ver nossos filhos divertirem-se e seguirmos em frente com as nossas vidas. A palavra resiliência é como um lembrete de quantos dias difíceis já passámos. 

 

Esperança na escuridão 

 

A história que a minha colega psicóloga nos contou sobre a sua visita à tenda – e temos muitas dessas histórias – são fontes de esperança. A mãe daquela criança quando viu o seu filho falar novamente e comer novamente é outra história de esperança. A história de 2 milhões de pessoas que ainda sobrevivem na Faixa de Gaza, apesar de todos os horrores, é uma história de esperança. 

 

A esperança está presente em todos os lugares. Quando tivemos o cessar-fogo de dois meses, havia muitos grupos de crianças cujas famílias começaram a organizar algumas aulas em tendas. Essa é uma fonte de esperança. 

 

Quando se vê pessoas que dizem "ok, perdemos a nossa casa, mas vamos ficar perto dela e isso é  uma fonte de esperança. Quando se vê pessoas sentadas no telhado do seu espaço destruído dizendo: "Aqui estamos presentes", esse é outro tipo de esperança. 

 

Quando se vê quanta solidariedade existe na comunidade internacional, essa é outra fonte de esperança. Quando se vê pessoas a tentar ligar para saber como estamos, isso é uma espécie de esperança. 

 

Quando se vê uma criança que perdeu toda a sua família, mas mora com outra família e pensa: "Ok, eu sou o sobrevivente", e continua com a sua vida, isso é uma espécie de esperança. Apenas não ser quebrado é uma espécie de esperança. 

 

É isso que tentamos fazer quando encontramos o nosso pessoal na comunidade – nós ajudamo-los a identificar coisas boas à sua volta, apesar das crueldades e desafios, e isso torna-se uma fonte de esperança. A nossa principal fonte de esperança é o quão milagroso o nosso povo é, e que ele está à frente dessa máquina de matar massiva, e continua a tentar sobreviver. 

 

Um equívoco 

 

Temos visto que sempre que ocorre um bombardeamento, Gaza está no centro das atenções, as pessoas entendem o que está a acontecer. Quando os bombardeamentos param, as pessoas pensam que isso acaba com as duras condições de vida e que continuam a viver em paz. Isso não é a realidade. 

 

Entre 2014 e 2023 – esses nove anos – o bloqueio à Faixa de Gaza com restrições de movimentos esteve sempre presente. Drones voavam nos céus constantemente, lembrando as pessoas de desastres. Pelo menos cinco operações de grande escala ocorreram entre 2014 e 2023, lembrando a todos o que significava desastre. Milhares de pessoas com doenças graves não puderam obter assistência médica fora da Faixa de Gaza por causa das restrições de circulação. 

 

Esta vida sob tais violações dos direitos humanos não é vista pela comunidade internacional. As pessoas pensam que a vida continua, como uma área de desastre onde, uma vez que a guerra termina, a recuperação acontece e as pessoas continuam com as suas vidas. Infelizmente, esse nunca será o caso com a Faixa de Gaza. 

 

Em um mês, dois meses, três meses, uma semana – outro cessar-fogo será alcançado. É por isso que eu rezo, é isso que eu espero. Mas isso não significa que nossa vida melhorará imediatamente. As ameaças imediatas vão parar, os sons de bombardeamentos vão parar, mas nossos filhos continuarão a viver  com os escombros durante anos. Nos próximos anos, não seremos capazes de reconstruir todas as escolas e casas que foram destruídas. Ao longo desses anos, teremos gatilhos que continuarão a lembrar-nos das condições traumáticas, das deslocações e dos ataques, das pessoas que perdemos – os nossos entes queridos, colegas, amigos, familiares que foram mortos durante os ataques. 

 

A comunidade internacional deve agir 

 

Em todos os lugares onde a guerra ocorre, existem regras e regulamentos que devem ser seguidos por lei. Por exemplo, o direito à saúde, evacuação de pessoas feridas ou mortas, segurança hospitalar, segurança para profissionais de saúde, permitindo a entrada de alimentos, permitindo a entrada de água. Essas coisas básicas – permitir coisas necessárias para mulheres e crianças, itens de higiene – essas coisas muito básicas nunca são respeitadas e nunca foram respeitadas durante estes 20 meses. 

 

As regras são universais e o povo palestiniano não é uma exceção. Não é aceitável que os líderes da comunidade internacional estejam apenas a observar e a falar. Eles não fazem nada além de anúncios ou declarações ou enviar relatórios e não tomam nenhuma atitude séria. 

 

Isso está para além da compreensão. Eles precisam de ser proativos; eles precisam de tomar medidas no terreno. A comida é um direito muito básico. A medicação salva vidas. 

 

Como eles falham com isso, então para que precisamos deles? Qual é a necessidade da comunidade internacional, dos trabalhadores das ONG se eles não conseguem há dois meses levar farinha ou leite para a Faixa de Gaza? Qual é a utilidade da sua presença? 

 

A comunidade internacional tem o poder de agir, mas deve ter a vontade de usá-lo. 

 

A comunidade internacional aperfeiçoou a arte de assistir e fazer declarações. Mas as crianças não  comem declarações. As famílias não podem abrigar-se debaixo de relatórios. Se não podem garantir que a farinha e o leite cheguem às crianças de Gaza, então qual é exatamente o seu propósito? Os profissionais de saúde mental entendem isso: a cura requer ação, não apenas palavras. A saúde mental do mundo também depende disso. 

 

Então, como se pode prestar cuidados de saúde mental durante o genocídio? Faz-se isso recusando-se a aceitar que qualquer pessoa mereça viver dessa maneira. Faz isso-se ajudando uma criança a falar novamente, sentando-se com o sentimento de culpa de um dos progenitores, encontrando esperança no simples ato de sobrevivência em si. Mas, principalmente, você faz isso exigindo que o mundo se lembre de que os palestinos não são resilientes por escolha – somos resilientes porque não temos outra opção. E isso tem de mudar. 

 

Quando isto acabar – e vai acabar – as crianças de Gaza carregarão esses traumas durante gerações. Mas eles não serão os únicos marcados por este momento. A história perguntará o que é que cada um fez quando soube. A saúde mental, ao que parece, não se trata apenas de curar traumas - trata-se de preveni-los. A questão não é apenas como prestamos cuidados durante o genocídio. É por isso que o mundo permite que o genocídio continue. 

 

O Dr. Yasser Abu Jamei é o Diretor Geral do Programa de Saúde Mental da Comunidade de Gaza 

 

Fonte: Living Through the Unimaginable: a Testament from Gaza - CounterPunch.org , publicado e acedido em 11.06.2025 

 

Tradução de TAM 

 



domingo, 13 de julho de 2025

Serve para desfazer a acusação de "putinista" aos que opõem ao imperialismo

 

Em entrevista à televisão pública russa, Vladimir Putin acusa a Nato de ter avançado para leste sem atender à oposição de Moscovo

Contradições entre Ocidente e Rússia são geopolíticas, não ideológicas, diz Putin© Getty Images

As contradições entre o Ocidente e a Rússia são geopolíticas, não ideológicas, defendeu hoje o Presidente russo, Vladimir Putin.

O líder russo observou que as tensões não terminaram com a desintegração da União Soviética, já que os inimigos procuram tirar vantagem geopolítica da Federação Russa.

"Muitos acreditam, e eu também acreditava, embora possa parecer estranho, que as principais contradições eram de natureza ideológica", afirmou em entrevista à televisão pública russa.

No entanto, o Presidente argumentou que, após a desintegração da União Soviética, "a atitude de desprezo pelo Estado e pelos interesses estratégicos da Rússia continuou".

"Isso está ligado ao desejo óbvio de obter certas vantagens geopolíticas. Na verdade, quando assumi a presidência, também não entendi imediatamente", disse.

Putin lembrou que, apesar de todas as tentativas de transmitir as opiniões da Rússia ao Ocidente, este permaneceu indiferente aos seus interesses e preocupações.

"Ficou claro para mim que a ideologia pode ter tido certa importância, mas todas essas contradições se baseiam em interesses geopolíticos. Isso é o principal, o fundamental", acrescentou.

O Presidente russo criticou repetidamente o Ocidente por prometer que a NATO não avançaria "um centímetro a mais" para o leste, após o que vários países, incluindo vários do campo socialista e da antiga União Soviética, aderiram à NATO, apesar dos protestos de Moscovo.

    in jornal EXPRESSO- 13-07-2025 

quinta-feira, 10 de julho de 2025

 A superioridade militar

A guerra russo-ucraniana é a maior e mais destrutiva na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Suas consequências se estenderam muito além das fronteiras da Rússia e da Ucrânia: transformou alianças e parcerias. Levou ao surgimento de tecnologias inovadoras e novos conceitos de guerra, forçando as grandes potências a repensar seus investimentos e alocação de recursos.

As dimensões informacional e psicológica são armas essenciais. Diante da evolução da situação na Ucrânia, formuladores de políticas nos Estados Unidos e seus aliados estão desenvolvendo novas estratégias de resposta. Recentemente, a "mídia"ocidental multiplicou publicações refletindo novas avaliações de especialistas sobre como alcançar uma vitória estratégica sobre seus adversários, particularmente Rússia e China. O conceito de "conflitos futuros" baseia-se em um novo tipo de guerra híbrida, que se desdobra em três áreas: as dimensões informacional e psicológica, o ciberespaço e a economia.
Uma técnica para desmoralizar e perturbar as pessoas. A ênfase é colocada no uso de tecnologias de inteligência artificial e sistemas não tripulados, que desempenham um papel fundamental no apoio. É nessas áreas, segundo especialistas, que os Estados Unidos e a OTAN devem alcançar uma superioridade decisiva sobre seus rivais para eliminar o risco de perder sua supremacia. Essa guerra híbrida não pode produzir resultados rápidos, pois o sucesso exige a destruição do potencial económico dos países rivais, a tomada de iniciativa na definição de seu espaço de informação e a desmoralização da liderança e da população.

Uma guerra desse tipo é uma luta longa e exaustiva que exige a máxima concentração de recursos, escrevem analistas do American Rand Center. Os ocidentais estão preparando as populações de seus países com antecedência para custos socioeconómicos tangíveis sob o lema de "guerra contra países não democráticos". A política de militarizar a Ucrânia e transformá-la em um instrumento controlado de confronto político com a Rússia levou o Ocidente a um beco sem saída.
O jornal britânico The Times comenta que uma grande tendência global está emergindo: a redistribuição do ónus das despesas financeiras e dos custos políticos dos Estados Unidos para os países europeus. O espaço da informação tornou-se um campo de batalha: Rússia e Ucrânia usam ativamente ataques cibernéticos, desinformação e comunicações estratégicas para influenciar seus próprios públicos e outros. O ataque cibernético à rede de satélites Viasat, que afetou não apenas a Ucrânia, mas também a infraestrutura de outros países europeus, é um exemplo claro.

Uma publicação do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais dos EUA afirma explicitamente que "quem vencer a batalha da informação vencerá a batalha como um todo". Em outras palavras, em vez de recorrer à força militar, devemos lutar pela superioridade intelectual. Devemos "lutar pela informação". No entanto, as perspectivas de uma nova estratégia são improváveis, pois não levam em consideração a experiência histórica ou as realidades objetivas.
Após a eclosão do conflito armado russo-ucraniano em 2022, o Ocidente impôs sanções massivas à Rússia, visando três setores principais: o sistema financeiro, a importação de bens e serviços e a exportação de petróleo e gás — as principais fontes de receita do orçamento russo. Essas medidas incluíram a desconexão dos bancos russos dos sistemas financeiros internacionais, o congelamento de reservas, a restrição das exportações e a imposição de um teto para o preço do petróleo russo.

Apesar das graves consequências, as sanções não conseguiram pôr fim à guerra e não foram tão destrutivas quanto o esperado. A pressão exercida sobre a Rússia fracassou. Sua economia conseguiu se adaptar às condições de uma guerra moderna de alta intensidade no menor tempo possível. Isso permitiu que Moscou se opusesse com sucesso ao Ocidente na Ucrânia. A Rússia conseguiu colocar sua economia em pé de guerra sem sofrer danos significativos. Mesmo graças a uma militarização parcial (limitada) de sua economia, a Rússia alcançou superioridade em termos de volume de produção militar e sua adaptação às demandas da guerra moderna.

Oleksandr Syrsky, Comandante-em-Chefe do Exército Ucraniano, vem confirmando cada vez mais abertamente a superioridade crucial da Rússia sobre a Ucrânia no campo dos drones, tanto quantitativa quanto técnica e taticamente, especialmente em termos de alcance destrutivo. Ao mesmo tempo, desde o início do conflito, graças ao apoio ativo de seus parceiros ocidentais e turcos no setor de drones, o domínio garantido das Forças Armadas ucranianas era evidente.

Apesar dos bilhões de dólares injetados pelo Ocidente nas Forças Armadas Ucranianas, a Rússia levou menos de dois anos para mudar radicalmente a situação nessa área. O debate mediático sobre a transição para uma estratégia de "guerra de nova geração" nada mais é do que uma imagem mediática lisonjeira. O hype mediático em torno de uma derrota estratégica infligida à Rússia na Ucrânia provou ser igualmente enganoso. Essa farsa, segundo estimativas do Instituto Kiel para a Economia Mundial, custou aos contribuintes mais de € 250 bilhões (mil milhões)

Pedro González López 

  https://www.observateur-continental.fr/?module=articles&action=view&id=7055

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Perry Anderson

 

Outro regime no Ocidente é possível? Crítica a Perry Anderson 

Perry Anderson no evento “Fronteiras do Pensamento”, em Porto Alegre (2013), via Wikimedia Commons

Por Ronaldo Tadeu de Souza

Em importante artigo publicado na London Review of Books (vol. 47, 03 de abril de 2025), intitulado “Regime Change in the West?” [Mudança de regime no Ocidente?], o historiador e ensaísta Perry Anderson, membro do comitê editorial da prestigiada revista inglesa de esquerda New Left Review, propõe uma análise sobre quais as condições do Ocidente erigir uma nova ordem econômica, política e social em alternativa ao neoliberalismo. Combinando abordagem de longa duração com história intelectual e averiguação da conjuntura, Anderson sugere que diante do quadro indisputável da atual predominância das forças da direita ultraliberal, o campo alargado de esquerda tem de não mais enfrentar o conjunto das ideias e práticas hayekianas na perspectiva de apresentar uma teorização coerente e desenvolvida, bem como ações políticas que suplantem definitivamente o regime internacional de livre mercado que vigora desde 1980. Em seu entendimento, a melhor atuação para a esquerda é não aguardar até que “ideias políticas e econômicas comparáveis aos paradigmas keynesiano ou hayekiano” se formem para propor opções a uma alteração considerável ao “modo de produção existente”. “Não necessariamente” isso ocorrerá — nem se pode aguardá-lo — no nosso momento imediato de enfrentamento ao regime neoliberal. O que então Perry Anderson prenuncia? E quais são seus argumentos? 

Partindo de uma narrativa com enquadramento histórico durável, Anderson elabora os momentos no século XX em que o Ocidente se viu diante de mais de uma solução para os problemas econômicos e políticos que surgiam. A circunstância histórica de maior relevo foi a crise de 1929. Durante a “grande depressão”, não só havia “governos conservadores […] nos Estados Unidos, França e Suécia” como “havia também, sociais-democratas na Alemanha e na Inglaterra”. Além disso, a sabedoria contida em A teoria geral do emprego, dos juros e da moeda, de Keynes, “ainda que não tenha tido impacto até 1936”, já circulava em ambientes acadêmicos, intelectuais e governos. Após a Segunda Guerra Mundial, entretanto, as ideias keynesianas auxiliaram na consolidação de instrumentos heterodoxos de combate a crise. “Padrão ouro, medidas monetárias anticíclicas, políticas de intervenção fiscal e sistemas oficiais do Estado do Bem-Estar Social”, responderam aos anseios do mundo Ocidental com a derrota do nazismo.  

Contudo, “após 25 anos de sucesso, houve uma degeneração do regime” defendido por Lord Keynes; “a estagflação” propiciou as condições para reformar o sistema econômico a partir dos anos 1980. A definição de Anderson do que ficou conhecido por neoliberalismo é sem dúvida a mais consistente que a esquerda possui. Apoiado nos neoclássicos austríacos (Hayek e Mises), o regime econômico e político vigente há quase 50 anos, que objetiva a recuperação das taxas de lucro dos 30 anos gloriosos, se caracteriza por: 1) “aumento da riqueza” das elites mundiais, o que quer dizer um sistemático empobrecimento (desemprego, diminuição de salários e perda de direitos sociais) dos trabalhadores a nível mundial; 2) oligarquização para que isso fosse realizado, ou seja, os componentes de soberania popular das democracias ocidentais foram consideravelmente restringidos; e 3) liberalização absoluta da economia, as transações no livre mercado tiveram que ser “tão desreguladas quanto possíveis”. A este “núcleo de princípios” e práticas, Margareth Thatcher anunciava não haver adversário; o acrônimo feminino TINA [There Is No Alternative] passava então a vigorar no Ocidente.  

No balanço que oferece, Anderson ainda sustenta que a ausência de “qualquer movimento político significativo” que reivindicasse a transformação radical do capitalismo financeirizado refletia o desaparecimento das duas variantes históricas do socialismo. A variante revolucionária, mesmo que somente na aparência, diz ele, colapsou com a “desintegração da União Soviética em si”; e a variante reformista “dos partidos social-democratas extinguiu qualquer traço de resistência aos imperativos do capital”. 

Em 2008 o reinado de mais de um quarto de século da TINA parecia ter chegado ao fim. Não foi o que ocorreu para Anderson. A ordem política e econômica internacional surgida em 1980 na esteira dos impasses do welfare-State foi recuperada sob a administração Obama e a Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional): “bancos e companhias de seguro fraudulentas, corporações de automóveis falidas receberam infusões de fundos públicos nunca disponíveis para cuidados de saúde descentes, escolas, pensões e transporte”. A disciplina orçamentária, defendida com paixão por Hayek, era ignorada — “estímulos fiscais massivos” agora compunham a agenda neoliberal.  

Na sequência, sem estabelecer distinções de conteúdo relevantes, o que era de se esperar de um historiador de esquerda, marxista, Perry Anderson analisa as duas revoltas populistas contra as modalidades de resgate ao sistema financeiro que se seguiram a 2008 (já expostas acima). “Se nós olharmos para as revoltas populistas contra o neoliberalismo, elas rigorosamente se dividem, como todos sabem, em movimentos de direita e de esquerda”. Em consonância com o teor do artigo, ele identifica que nenhum dos populismos conseguiu até agora um programa consistente em escala que consiga enfrentar as ideias hayekianas. Tanto na dimensão teórica como na esfera prática, a direita e a esquerda populistas são balizadas “por aquilo que são contra, mais do que pelo que estão” apresentando enquanto propostas. O estilo do artigo é sóbrio analiticamente, com exposições equilibradas acerca do panorama político mundial. Contudo, isso custou a Anderson ler o populismo de direita (Trump, Bolsonaro, Boris Johson, Giorgia Meloni) em equivalência ao de esquerda (Syriza, Movimento 5 Estrelas, Podemos, França Insubmissa) diante dos desafios impostos pelo tempo atual. Não é algo de menor importância, e não porque se trata de defender ingenuamente a esquerda. Ocorre que ao proceder dessa maneira resta o entendimento de que o populismo de direita é uma opção política antineoliberal para os de baixo, o que definitivamente não é, sendo ainda pouco provável que se torne em qualquer momento do futuro. Anderson, aqui, sem perder a seriedade realista no trato da situação histórica, política e econômica de média duração, poderia marcar diferenças substantivas (teóricas, estratégicas, táticas, de composição e interação social) entre as objeções populistas à TINA — mas lamentavelmente não o fez. Preferiu comentar as respostas formais da direita e da esquerda aos três problemas originados pelas orientações thatcheristas de 1980, que são: a desigualdade, a oligarquia e a mobilidade de fronteira. Por outras palavras, os princípios (os dois primeiros, sobretudo) que constituem a essência do neoliberalismo.

Assim, “existem três objetivos centrais nas insurgências populistas. Tais insurgências são divididas sobre o peso que cada [populismo] atribui em seu ataque” à desigualdade, ao sistema político oligarquizado e as formas de mobilidade interconectadas, essa surgida na última década.  

Avaliando apenas os moldes da atuação da direita e da esquerda, sem dar a devida atenção aos conteúdos, Anderson afirma que uma e outra respondem com relativa similaridade à desigualdade estrutural e à restrição da soberania popular, mas não ao problema da mobilidade de fronteira — “populismos de direita e de esquerda podem, em diferentes maneiras, atacar mais ou menos os dois primeiros com vigor igualmente desinibido, mas somente a direita pode censurar o terceiro com maior veemência e xenofobia na direção dos imigrantes”. As forças conservadoras, portanto, têm vantagem sobre a esquerda ao manejar as reações racistas contra a imigração, em particular frente ao “setor mais vulnerável da população”.

No entanto, mesmo com a diferença diante do problema da imigração, teórica e politicamente, os adversários “do neoliberalismo estão ainda” em sua maior parte “dançando no escuro”. Categórico, Anderson constrói um conjunto de questões que não são respondidas nem pela direita populista, e menos ainda pela esquerda populista:

“Como a desigualdade deve ser enfrentada — não apenas consertada — de forma séria, sem imediatamente provocar uma greve de capital? Quais medidas podem ser previstas para enfrentar o inimigo, golpe por golpe, naquele terreno contestado e se sair vitorioso? Que tipo de reconstrução, agora inevitavelmente radical, da democracia liberal realmente existente seria necessária para pôr fim às oligarquias que ela mesmo gerou? Como o Estado profundo, organizado em todos os países ocidentais para a guerra imperial — clandestina ou aberta — deve ser desmantelado? Que reconversão da economia para combater as mudanças climáticas, sem empobrecer sociedades já pobres em outros continentes, é imaginada?”

A situação histórica de enfrentamento ao programa econômico forjado pelo autor de O caminho da servidão é decepcionante para Anderson. “Medicare para todos nos EUA, rendas garantidas para cidadãos na Itália, bancos públicos de investimento na Grã-Bretanha, impostos Tobin na França e coisas do tipo” — nenhuma dessas propostas mostra-se à altura de erigir uma alternativa abrangente de mudança da ordem imposta pelo capital nos últimos 40 anos. Para a esquerda, a análise de Anderson é mais cáustica e intransigente: a contração intelectual, o recuo político e a esterilidade de ideias fizeram com que o pensamento crítico original fosse lançado para “as margens das correntes [políticas] dominantes”. 

Nesse cenário, qual o regime econômico e político que poderia substituir o neoliberalismo? Ora, não sendo factível na conjuntura qualquer teoria e prática coerentes que busquem a mudança no modo de produção existente, Anderson sugere refletir sobre duas possibilidades além das áreas dominantes do capitalismo desenvolvido que se formaram ao longo da história no Ocidente, mas que se soergueram no interior do regime do capital. “Fora das zonas centrais do capitalismo, pelo menos duas alterações de grande importância ocorreram sem que nenhuma doutrina sistemática as imaginasse ou a propusesse antecipadamente”. Surpreendentemente, as transformações da era Vargas no Brasil — a substituição de importações que nasceu com o bloqueio, dada a recessão mundial nos anos 1930, das exportações de café — e as reformas presididas por Deng Xiaoping na China — um espetacular crescimento econômico sustentado — aparecem como exequíveis. Anderson admite que “são exóticos demais para ter qualquer relação com o coração do capitalismo avançado”, e acrescento, também para o capitalismo contemporâneo das zonas não-centrais, como o brasileiro e latino-americano.  

No prefácio de Espectro: da direita à esquerda no mundo das ideias (Boitempo, 2012), Anderson propunha que a esquerda assumisse sua derrota histórica, pois essa seria uma das formas de se reconstruir sem ilusões. E em “Renovações” (o editorial que escreveu no relançamento de sua revista, em 2000) aconselhava a esquerda a seguir Marx, observando e avaliando as contradições do sistema capitalista mundial; daí poderiam emergir crises que, eventualmente, abririam brechas para que os descontentes com o regime neoliberal se rebelassem. Foram dois de seus acertos de interpretação nas últimas décadas.  

Agora, Anderson parece indicar, de certa maneira, soluções provisórias “no terreno” da ordem econômica em vigência, mas que consigam impactar a confiança do regime internacional de acumulação presente, na medida em que não vê no horizonte a esperança de uma teoria e de uma prática de esquerda coesa, extensa e radical o suficiente para enfrentar a TINA e o programa elaborado pela mente mais brilhante do mainstream, Friedrich von Hayek: “Se a descrença de que alguma alternativa seja possível desaparecer no Ocidente, a probabilidade é que algo comparável [ao varguismo e à estratégia de Deng Xiaoping] seja a ocasião [e o motivador] disso”.

Quando escreveu sobre John Rawls, ao recusar seu pensamento normativo, Perry Anderson sustentava que na passagem de Uma teoria da justiça para o Liberalismo político houve uma amputação dos aspectos mais contundentes da crítica do filósofo político de Harvard às instituições sociais injustas; definitivamente, a esquerda contemporânea, que há anos busca sua reconstrução, não necessita que o principal herdeiro da tradição do marxismo e do socialismo clássicos, um dos lendários editores da New Left Review ao lado de Stuart Hall, ofereça por agora também uma amputação do conjunto de sua obra intelectual. Esperamos que seja apenas uma fratura em condições de se calcificar novamente, e que ele possa anunciar, como fez no ensaio “Ideias e ação política na mudança histórica”, que “ideias que não consigam chocar o mundo não serão capazes de o sacudir” e transformar. E modelos como o desenvolvimentismo de Vargas e a restauração sustentada chinesa de Deng Xiaoping não parecem serem essas ideias: a esquerda pode e deve mais do que isso.

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Ronaldo Tadeu de Souza é pós-doutor pelo Departamento de Ciência Política da USP, pesquisador do Cedec, membro do Comite Editorial do Dicionário Marxista das Américas e do Conselho Editorial da Práxis Literária


Espectro: da direita à esquerda no mundo das ideias, de Perry Anderson
O prestigiado historiador britânico explora as ideias políticas e sociais contemporâneas, apresentando uma análise abrangente que percorre da direita à esquerda no espectro ideológico. Examina grandes pensadores, destacando a diversidade de temas desde a Guerra Fria até os desafios atuais.

Contragolpes, organizado por Emir Sader e Frei Betto
Coletânea de artigos da renomada revista teórica de esquerda, New Left Review, abordando temas atuais como Iraque, China, favelas e crises africanas. Com análises de destacados pensadores marxistas, oferece uma visão penetrante e renovadora para entender os desafios do século XXI.


Considerações sobre o marxismo ocidental/ Nas trilhas do materialismo histórico, de Perry Anderson
Análise consagrada da evolução do marxismo no Ocidente, destacando como intelectuais moldaram sua relação com a política e a sociedade, trazendo à tona temas culturais e filosóficos. Exame minucioso de uma vertente complexa do pensamento marxista.

A política externa norte-americana e seus teóricos, de Perry Anderson
Reconstrução dos principais acontecimentos e inflexões da política externa dos EUA desde o fim da Segunda Guerra até os dias atuais, destacando a contínua hegemonia norte-americana no cenário mundial. O autor examina o debate contemporâneo e as estratégias futuras do poder norte-americano.

Brasil à parte: 1964 a 2019, de Perry Anderson
Um panorama da história política e econômica recente do Brasil, desde o Plano Real até o governo de Bolsonaro. Os ensaios revelam a percepção do autor sobre os desafios e mudanças no país, abordando os bastidores do poder e debates intelectuais.

       in Boitempo blogue 

Viagem à Polónia

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Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

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Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.