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quinta-feira, 7 de agosto de 2025

CLAUDIN : Um dos maiores intelectuais socialistas

 

Marx e Engels no calor da revolução

Imagem: Wikimedia Commons.

Por José Paulo Netto

Fernando Claudín (Zaragoza, 1913 – Madri, 1990) foi daqueles típicos revolucionários da mais antiga e nobre estirpe socialista. Estudante de arquitetura, ingressou aos vinte anos nas Juventudes Comunistas da Espanha e abandonou a universidade para combater na guerra civil, destacando-se na Junta de Defesa de Madri. Com a derrota republicana, foi compelido ao exílio em diversos países.

Na direção do Parti do Comunista da Espanha, divergindo do Comitê Central, em 1964 foi dele expulso, juntamente com seu amigo, o escritor Jorge Semprún; depois viveu em Paris, como editor, até seu regresso à Espanha, após a morte de Francisco Franco (lembre-se: Caudillo de España por la gracia de Dios…). E permaneceu ativo no Partido Socialista Operário Espanhol até seus últimos dias.

Foi um revolucionário dos velhos tempos: à sua disciplinada militância político-partidária, conjugou uma firme autonomia intelectual e um registro de informações históricas e teóricas significativas que lhe possibilitaram escrever o já clássico A crise do movimento comunista (1970). Mas paradigmático mesmo, como exemplo de fecunda pesquisa, é este livro que agora a Boitempo disponibiliza aos leitores da língua portuguesa, o qual, publicado tardiamente no Brasil, de sua primeira edição (1975) aos dias correntes, resistiu ao passar do tempo e permanece referência documental inarredável.

Marx, Engels e a revolução de 1848 é um ensaio pioneiro no exame marxista — não doutrinário, mas rigoroso e objetivo — dos diversos processos revolucionários que sacudiram a ordem europeia parida pela chamada Santa Aliança e consagrada no Congresso de Viena (1815). Em sua pesquisa, Claudín desvela a diversidade e a complexidade da primavera dos povos, no mesmo passo que resgata criticamente as análises que, no calor da hora, foram elaboradas por Marx e Engels.

Claudín faz mais, todavia: ele problematiza os fundamentos das concepções marx-engelsianas desse período revolucionário e as coteja com seu desenvolvimento em textos de Marx e Engels produzidos posteriormente. De fato, este ensaio notável põe em questão temas (Estado, partido, classes, nação) que atormentaram os marxistas ao longo do século XX e ainda interpelam historiadores e cientistas sociais do século XXI.

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José Paulo Netto nasceu em 1947, em Minas Gerais. Professor Emérito da UFRJ e comunista, é amplamente considerado uma figura central na recepção de György Lukács no Brasil, coordenando a “Biblioteca Lukács“, da Boitempo. É autor, entre outros, de Karl Marx: uma biografia (Boitempo, 2020) e Lukács, uma introdução (Boitempo, 2023), além de organizador de Da erótica (Boitempo, 2022), antologia de poemas de Bocage, História e consciência de classe, cem anos depois (Boitempo, 2023) e do guia de introdução ao marxismo Curso Livre Marx-Engels: a criação destruidora (Boitempo, Carta Maior, 2015).




Marx, Engels e a revolução de 1848, de Fernando Claudín
Neste livro, o revolucionário e teórico espanhol Fernando Claudín traça um minucioso retrato da trajetória de Karl Marx e Friedrich Engels durante esse conturbado período revolucionário — desde a véspera da publicação do Manifesto Comunista, passando pela intensa troca de correspondências entre a dupla, sua articulação com outras forças políticas, até suas contribuições ao periódico A Nova Gazeta Renana, do qual Marx foi editor-chefe. O resultado é uma análise rigorosa de documentos e testemunhos, mostrando como essa conjuntura revolucionária (e as lições tiradas da derrota do campo progressista e socialista) influenciaram o desenvolvimento do pensamento de Marx e do horizonte militante comunista.

Considerado um dos maiores marxistas e intelectuais espanhóis do século XX, Claudín deixou um legado marcante tanto no campo das ideias quanto na prática política. A obra ganha agora tradução para o português, realizada por José Paulo Netto, que destaca: “Este ensaio é pioneiro ao examinar, sob uma perspectiva marxista — não doutrinária, mas rigorosa e objetiva — os processos revolucionários que abalaram a ordem europeia estabelecida pela Santa Aliança e consolidada no Congresso de Viena (1815). Em sua pesquisa, Claudín revela a diversidade e a complexidade da ‘Primavera dos Povos’, ao mesmo tempo que recupera criticamente as análises produzidas por Marx e Engels no calor dos acontecimentos.”

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

A noção alargada de "trabalho produtivo" e "improdutivo" ; em suma : de assalariado e explorado. A classe operária (as classes asslariadas que vendem a sua força de trablhao ao capitalista que se apropria do valor) alarga-se por conseguinte, e não diminui.

 

A reprodução do labor industrial-incógnito

in blog A TERRA  É REDONDA 

Por RONALD ROCHA*

Negar o proletariado é jogar areia nos olhos da história. Seu fim é proclamado justamente quando mais se multiplica – agora invisibilizado por aplicativos, terceirizações e falsa autonomia. A burguesia celebra sua suposta morte porque teme sua vida: mesmo disperso, ele carrega em si, como potência, o germe da negação do capital

Existe o consenso de que, no Brasil, o movimento sindical e o combate ao capital enfrentam hoje obstáculos duradouros. De fato, na vigente correlação de forças, o mundo laboral se depara com relevantes alterações nas relações trabalhistas, que são comumente conhecidas como “reestruturação produtiva”, e com políticas ultraliberais, que lhe procuram suprimir os direitos e conquistas históricos. Entre os aspectos visíveis do grave problema destaca-se a baixa mobilização das várias categorias econômico-profissionais e das massas trabalhadoras em geral.

O debate sobre a situação e o futuro que, respectivamente, cerca o proletariado e o aguarda é sugerido pelas condições objetivas que o condicionam e também por suas dimensões valorativas, inclusive as políticas. O discurso hegemônico há quase meio século – dos 1970 em diante, quando a burguesia começou a responder à Fase B ou Depressiva da IV Onda Longa, no padrão Kondratieff[1] – perpetra em sua lógica um ataque sistemático ao ser social que, desde a Comuna de Paris, mantem a formação econômico-social burguesa debaixo da constante arguição.

Explica-se, pois, a constância e a ênfase dos ideólogos conservadores, ao repetirem a falácia de que o trabalho seria uma categoria já vencida ou em vias de ultrapassagem. Referem-se ao suposto processo ruinoso do produtor social direto. Propagam um enunciado corolário: a “deslocação” do eixo laboral para os chamados “serviços”, em prejuízo das indústrias. Eis como celebram o fim do ser capaz de se contrapor ao capitalismo e promover o projeto revolucionário que, por seu turno, é “convertido” em conto pitoresco de fadas: utopia ou mera querência moral.

Tal festejo é avesso ao propósito comunista. Ao fim do “trabalho humano abstrato” na célebre “associação de indivíduos livres”. Ao locus em que pode fenecer “o direito da desigualdade”,[2] inclusive as disciplinas jurídicas que o prescrevem. Ao “humanismo real”,[3] que reivindica um planeta sem a exploração de indivíduos sobre outros, sem as correntes atividades alienadas responsáveis por dissolverem o “caráter útil dos produtos”, sem “as diferentes formas de trabalho concreto”[4], sem a “objetividade impalpável”, mas imperativa, dos “valores-mercadoria”.[5]

Para o discurso conservante, o fim da indústria como práxis e ser “concreto” se daria sob o metabolismo do capital. Os repetidores da velha novidade se referem a uma extinção peremptória e inexorável do labor. Como querem soterrar o incômodo real, miram sua negação totalizante no “criador de valores de uso”, no “trabalho útil, […] indispensável à existência do homem – quaisquer que sejam as formas de sociedade” –, na óbvia “necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza, e, pois, manter a vida humana”.[6]

O logro empirista

Os pregoeiros da indústria “em coma” ignoram que o trabalho concreto[7] se distingue da sua feição abstrata.[8] Na concepção burguesa de metamorfose produtiva, o fim retórico daquele vira uma senha para tentar prover a eternização desse. Tem a pretensão de conseguir, “sem” o sujeito que o desafia, seu cobiçado avatar: virar uma “coisa”, pulverizando a imanência proletária como “possibilidade positiva de emancipação”.[9] Mas, na verdade, o capital é sempre uma relação social. O seu conteúdo inclui, portanto, necessariamente, o trabalho objetivado.[10]

Ora, jamais existirá capitalismo sem trabalho abstrato, e vice-versa, polos de um mesmo “ser social” – Gesellschaftlichen Seins.[11] A única maneira de superar um é abolir também outro, isto é, desagregar como totalidade a contradição fundamental.[12] Mesmo falso e pueril, porém, o tema de um capital sem trabalho industrial interfere na desagregação da ideologia operária sensível e na disputa contra-hegemônica. Como exemplo, a prevalência da equação desconstituiria o direito do trabalho, que seria de imediato convertido em disciplina sem fato cristalizador.

A “falência” do proletariado – como esvaecimento socioempírico e, consequentemente, como conceito – é uma proposição insustentável. Primeiro, porque supõe a fragmentação integral da indústria, eliminando as mediações realmente existentes na terceirização, nos serviços, na precarização, no “empreendedorismo” e na partição microfabril. Ou seja, detecta certos processos, mas faz ilações abusivas. Coriat, Clarke, Annunziato e Harvey, além de julgarem impossível uma “generalização” da “especialização flexível”, já frisaram o seu “caráter epidérmico”.[13]

Ademais, o capricho do luto é apenas uma vulgata, deveras infrutífera para formular conhecimento científico sobre o trabalho, de vez que o enxerga sob a forma exclusivamente fordista. O vício reside na inépcia em universalizar o ser investigado, bem como em perceber os seus elementos singulares, a sua variedade interna e a sua permanência na época histórica de conjunto. Logo, concebe limitadamente o conceito sobre o moderno mundo assalariado, sendo imprestável para preservar o seu conteúdo e para traduzir as suas múltiplas expressões particulares.

Revela-se, portanto, falsa, pois confunde a essência com as suas maneiras de consubstanciação. Assingelando a noção em cascata, identifica os proletários a certas especificidades que no passado pontificaram e que ainda remanescem como algo em declínio. Desenha uma indumentária para cada ocasião, mas desdenha quem a veste. O dogma se descola da realidade, motivo capaz de levar os seus defensores a concluírem que o trabalho vai “acabando”. Nem mesmo se lembram de que adotaram, por sua própria conta, o árido e vazio reducionismo categorial.

Adversamente, o proletariado é a classe historicamente definida, cujos membros possuem somente sua força de trabalho e a têm que vender à burguesia em troca de um salário, para manter sua própria vida e reproduzir as condições de sua existência – das banais às elaboradas, inclusive os meios técnicos necessários à transformação material e também à sua realização espiritual -, criando mais-valia ou, por meio de suas funções improdutivas, mas úteis, possibilitando assim ao capital, multilateralmente, assenhorar-se dos sobrelabores socialmente gerados.

Se o trabalho é produtivo ou improdutivo, se é manual ou intelectual, se gera bens materiais ou espirituais, se produz precipuamente mercadorias ou valores de uso para consumo privado e público, são questões outras – sem dúvida, importantes –, que dizem respeito não à singularidade do conceito, mas somente às suas funções concretas, logo, à zona ocupada pelo trabalho abstrato na manutenção e reprodução do capital, bem como nas relações produtivas burguesas. Destarte, são relevantes por assinalarem os contornos das camadas interiores ao labor assalariado.

O trabalho no metabolismo do capital

Karl Marx discorre sobre o conteúdo preciso que alicerça e sugere o conceito. “As determinações ulteriores do trabalho produtivo derivam dos traços que caracterizam o processo capitalista de produção. Em primeiro lugar, o possuidor da força de trabalho se defronta com o capital ou com o capitalista como vendedor daquela – para exprimir, como vimos, intencionalmente –, como vendedor direto de trabalho vivo, não de uma mercadoria. É trabalhador assalariado. Essa é a primeira premissa”. Trata-se de objetos, não de simples formalidades jurídicas.

O autor prossegue na investigação: “Em segundo lugar, a sua força de trabalho e o seu trabalho incorporam-se diretamente como fatores vivos no processo de produção do capital; convertem-se em um de seus componentes, e precisamente no componente variável que não só […] conserva e […] reproduz os valores de capital adiantados, mas que […] aumenta-os, e […] transforma-os em valores que se valorizam a si mesmos, em capital”. E conclui: “Esse trabalho se objetiva diretamente, no curso do processo de produção, como grandeza de valor fluido”.[14]

Resta sublinhar que a produtividade se define pela determinação histórico-social do trabalho, assinalando a sua função no processo de autovalorização capitalista, não pelo “conteúdo” concreto, pela “utilidade particular ou pelo valor de uso peculiar no qual se manifesta.” Deduz-se, pois, que “um trabalho de idêntico conteúdo pode ser […] produtivo e improdutivo”,[15] de acordo com as circunstâncias. Importa bem menos que o ente seja manual ou intelectual, crie bens materiais ou espirituais, gere valores para consumos duráveis ou simultâneos às suas feituras.

Por conseguinte, pode-se contratar uma pessoa por empreitada ou salário – para cozinhar, faxinar, pajear, reparar, construir, advogar, lecionar, medicar e assim por diante – sem virar capitalista. “O operário também compra serviços com dinheiro, o que constitui uma maneira de gastar dinheiro, mas não de transformá-lo em capital”.[16] Entretanto, aquelas mesmas funções podem ser realizadas por empresas, ocorrendo, nesse caso, típicos trabalhos produtivos industriais, ainda que sejam oficial e superficialmente classificados como serviços “desindustrializados”.

Assim, acontece não a “substituição” das indústrias “minguantes” por serviços hipertrofiados, acompanhados pela “contração” e “desaparição” tendencial dos modernos e diretos criadores de valor, mas sim a diversificação e a multiplicação das empresas – produtivas ou não. Como conjunto, as unidades são cada vez mais articuladas e integradas, hoje, ao movimento superior do capital monopolista-financeiro, intrinsecamente relacionado à proletarização ampla e geral do labor, ainda que tal cinesia possa transcorrer com feitios atípicos e ziguezagueantes.

Tal processo, muito ao contrário de recente, constitui apenas uma forma genérica de se desenvolver a “produção e reprodução das relações especificamente capitalistas”.[17] Obviamente, nos poros da produção, distribuição e circulação burguesas, continua regenerando-se o trabalho independente nos vários matizes, inclusive associadamente a novas tecnologias. Todavia, no labor em geral predomina, de modo inequívoco, a condição proletária. O Manifesto do Partido Comunista o registrou com estilo elegante, fina ironia e notável acuidade, há quase 180 anos.

“A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas como veneráveis e dignas de piedoso respeito. O médico, o jurisconsulto, o sacerdote, o poeta, o cientista, todos foram convertidos em seus servidores assalariados”.[18] Dez anos após, Marx demonstrou porque os indivíduos, “que até então haviam sido precisamente objeto de uma veneração supersticiosa e se encontravam” rodeados “por uma espécie de auréola”, viram-se obrigados a profanar sua velha tradição[19] e a mergulhar na mundanidade. Mais tarde, aprofunda esse assunto.

A expansão contemporânea do proletariado

Como se pode inferir, ocorre que “a produção dos produtos como mercadorias e […] a forma de trabalho como […] assalariado, se absolutizam. Uma série de funções e atividades […] consideradas como fins em si mesmas, que se exerciam gratuitamente ou se pagavam indiretamente – como os profissionais […], médicos, advogados […] etc., […] para obter […] os seus honorários -, […] se transformam […] em trabalhos assalariados, por diferentes que possam ser o seu conteúdo e pagamento; […] caem […] sob as leis que regulam o preço do trabalho […]”.[20]

Resta, pois, elaborada com notável precisão e flexibilidade, a categoria de proletariado, recorrendo-se às relações capitalistas e às dinâmicas próprias do labor nas suas condições concretas, que acolhem as novas técnicas e formas, já manifestadas ou possíveis no futuro. Inexistem, portanto, quaisquer razões que justifiquem a surpresa negacionista em face da indústria e dos produtores diretos. Espantosa é a ignorância, ou preconceito, sobre a realidade atual e os acúmulos teóricos do movimento socialista. Essa diligência revisionista caminha por quatro vias.

A primeira se pauta pelos tradicionais “ramos de atividade”. Reconhece a construção civil, mas abjura seu cunho “de transformação”. Silencia quanto a ramos que geram valor. Insere o transporte nas “comunicações”. Descarta o trabalho produtivo subsidiário em comércios e restaurantes. Ignora que o capital se territorializou e que a grande produção rural se industrializou, inadmitindo investimentos agropecuários como empresas.[21] Isola os setores “primário” e “terciário” do “secundário”, vaporizando assim a percepção acerca do labor vivo e da mais-valia.

A outra rota ultrapassa o equívoco taxonômico, mas diz que a indústria se restringe ao fabrico de mercadoria física durável. Logo, empurra os demais afazeres criadores para o rol improdutivo e dessabe que a diminuição local do labor implica emprego em outra ponta. Esquece que os estabelecimentos prestadores de serviços, quando privados, valorizam o capital, como na medicina e no ensino: nessa vertente, o bem, ao contrário daquele oferecido pela coisa pública ou por autônomos, é comercializado pela empresa controladora, que se apropriou do processo.

Há também a trilha da chamada “pejotização”, que nada mais é do que uma burla para fugir da CLT, livrando as empregadoras de suas responsabilidades e sonegando ao trabalho seus direitos legais, ambos mantidos mediante as lutas sindicais e a correlação de forças na sociedade política. Exemplos: vale-transporte, vale-refeição, 13º salário, férias e FGTS. A parte contratada por artifícios jurídicos mantém sua condição proletária, mesmo que mascarada por regras intencionalmente fluidas, referentes à carga horária, ao turno, ao ponto e a pagamentos.

Por fim, “o capital produtivo […] acrescenta valor aos produtos […] pela transferência de valor dos meios de transporte e pelo valor […] criado pelo trabalho”[22], na “uberização” e no labor por aplicativo. A prescrição e o mando por softwares baseados em novas forças produtivas conforme o ambiente social revigoram expedientes antigos: a “subsunção formal do trabalho”[23] deixa instrumentos na mão do produtor e lembrança da condição anterior, mas na labuta semiproletária em que o “salário por peça”[24] remunera também o translado em cada mudança espacial.

Assim, o mundo laboral cresce. As pessoas ocupadas superam 100,2 milhões, com 51% de assalariados só nos ramos privados[25] – pouquíssimos são da cúpula gerencial. Entre 25,5 milhões de arrolados “por conta própria”[26], uma parte já se integrou formalmente ao capital. Somando-se os servidores – domésticos[27] e públicos[28], com 17 milhões –, e os empregados informais, cujo pertencimento está condicionado por relações objetivas, o proletariado, considerando-se as diversas camadas, é não só classe dirigente na transição socialista, mas principal força motriz.

*Ronald Rocha é sociólogo, membro do Instituto Sérgio Miranda e editor do portal Vereda Popular. Autor, entre outros livros, de Anatomia de um credo (o capital financeiro e o progressismo da produção).

Publicado originalmente, na revista Puraki, editada pelo Observatório Sindical Brasileiro Clodesmidt Riani, sob o título “A reprodução do labor industrial-incógnito: serviços, pejotização e aplicativos”.

Notas


[1] KONDRATIEFF, Nikolai Dimitrievich. Las ondas largas de la conyuntura. In: KONDRATIEFF, Nikolai Dimitrievich; GARVY, George. “Las Ondas Largas de la Economia”. Madri, Revista de Occidente, 1946, p. 12.

[2] MARX, Karl. Crítica del Programa de Gotha. In: MARX, Karl; e ENGELS, Friedrich. “Obras Escogidas en tres tomos”. Moscú, Editorial Progreso, 1980, T. III, p. 5.

[3] MARX, Karl; e ENGELS, Friedrich. A sagrada família. Lisboa, Ed. Presença, s/d, p. 7.

[4] MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968-1974, L. 1, V. I, p. 44.

[5] Idem, ibidem. L. 1, V. I, p. 45.

[6] Idem, Ibidem. L. 1, V. I, p. 50.

[7] Idem, Ibidem. L. 1, V. I, p. 44.

[8] Idem, Ibidem. L. 1, V. I, p. 45.

[9] Idem. Contribuição à Crítica do Direito de Hegel. In: MARX, Karl. “Manuscritos Econômicos-Filosóficos”. Lisboa, Edições 70, p. 92.

[10] Idem. Elementos Fundamentales para la crítica de la economía política (borrador) 1857-1858. México, Siglo Veintiuno Editores S.A., V. 1, pp. 475 e 476.

[11] Idem. Contribución a la critica de la Economia Política. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. “Obras…”, cit., T. I, p. 519.

[12] MARX, Karl. O Capital, cit., L. 1, V. II, p. 885.

[13] ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as Metamorfoses e a Centralidade do Mundo do Trabalho. São Paulo / Campinas, Cortez Ed. / Ed. da Unicamp, 1995, p. 18.

[14] MARX, Karl. Capítulo VI (inédito) de “O Capital”, Livro I. São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1978, p. 72.

[15] Idem. Ibidem, p. 75.

[16] Idem. Ibidem, p. 79.

[17] Idem. Ibidem, p. 90.

[18] MARX, Karl; e ENGELS, Friedrich. Manifiesto del Partido Comunista. In: MARX, Karl; e ENGELS, Friedrich. “Obras …”, cit., T. I, p. 113.

[19] Idem. Teorias de la plusvalia. Madrid, Alberto Corazon Editor, 1974, T. 1, p. 151.

[20] Idem. Capítulo VI (inédito)…, cit., p. 73.. Mais tarde, Marx substitui “trabalho” por “força de trabalho”, como elucidou Engels na Introdução a Lohnarbeit und Kapital (Trabalho Assalariado e Capital), MEW, vol. 6, pp. 593-599; cf. OE, 1982, t. I, pp. 142-150 (nota do Autor).

[21] IBGE. Anuário Estatístico do Brasil. Rio de Janeiro, IBGE, 1980, p. 126. Idem. Anuário Estatístico do Brasil. Rio de Janeiro, IBGE, 1996, p. (2)88.

[22] MARX, Karl. O Capital, cit., L. 2, V. III, pp. 152 e 153.

[23] Idem. Capítulo VI (inédito)…, cit., p. 51.

[24] Idem. O Capital, cit., L. 1, Capítulo XIX.

[25] IBGE. PNAD Contínua. Rio de Janeiro, IBGE, 30/11/2023. De 2023 a 2024 inexistem mudanças estatísticas significativas: IBGE. PNAD Contínua. Rio de Janeiro, IBGE, 17/5/2024.

[26] Idem, ibidem.

[27] DIEESE. Trabalho Doméstico. Dieese, 2022.  DIEESE. As dificuldades das trabalhadoras domésticas no mercado de trabalho e na chefia da família. Dieese, São Paulo, 30/4/2024.

[28] IPEA. Atlas do Estado Brasileiro. Plataforma do IPEA, 2023. IPEA. Atlas do Estado Brasileiro. https://ipea.gov.br.

Um novo conteúdo para o conceito de "exploração absoluta" : a mercantilização dos dados e dos perfis

 PELO SOCIALISMO

Carlos L. 

O que estamos a produzir quando selecionamos as nossas identidades de perfil e navegamos na web não é capital? Não é algo produzido a partir da combinação de ação humana (ou trabalho) e máquinas (neste caso, telefones ou computadores)? Não é este capital variável e fixo que está a  ser colocado a trabalhar para a acumulação de capital – numa das formas mais essenciais que assume hoje? 

 

 

 

À medida que a revolução tecnológica (e especialmente os recentes desenvolvimentos em inteligência artificial) avança, as discussões em torno do seu potencial distópico são abundantes. No entanto, há um deserto de análises sobre a forma como esses desenvolvimentos influenciaram a exploração capitalista, especificamente as indústrias de venda de dados, que movimentam centenas de milhares de milhões de dólares. Neste breve ensaio, apresentarei os conceitos de exploração absoluta e tripla para explicar os milhares de milhões de lucros obtidos na venda de dados produzidos pelos usuários da internet, e de que modo essa nova forma de exploração justifica a compreensão da exploração capitalista contemporânea numa tríade de formas (tripla exploração). Além disso, explorarei como esses desenvolvimentos afetam a formação da identidade na nossa era de perfilia*. 

Há alguns anos, a Harvard Business Review observou que "a recolha e venda de dados de pessoas é um negócio estimado de de US$ 200 mil milhões, e todos os sinais apontam para um crescimento contínuo do setor de corretagem de dados". O que está exatamente a ser vendido? Dados. Mas de onde vêm eles? 

São os dados que produzimos no nosso tempo livre que são vendidos – gerando lucros massivos para as empresas de recolha de dados. O que mais se pode chamar senão a intensificação da "taxa de exploração" (como o marxismo se lhe refere) ao máximo absoluto? O que estamos a produzir quando selecionamos as nossas identidades de perfil e navegamos na web não é capital? Não é algo produzido a partir da combinação de ação humana (ou trabalho) e máquinas (neste caso, telefones ou computadores)? Não é este capital variável e fixo que está a  ser colocado a trabalhar para a acumulação de capital – numa das formas mais essenciais que assume hoje? Qual é a taxa de exploração quando o denominador é zero? Indefinida? Vale a pena falar dessa exploração em termos de taxas? Não é esta exploração absoluta (ou pura ) , onde aqueles que criam a mais-valia convertida em lucro (ou seja, os dados) nem sequer são pagos por isso? Não é o oposto? Não são os produtores de dados que têm que pagar pela produção dos dados, comprando acesso à internet, a tecnologia, diversos paywalls para sites, etc.? O trabalho que produziu os dados pode ser considerado uma mercadoria se nunca foi comprado (pelo menos não ao produtor, nem antes que o que ele produziu já tivesse sido vendido)? E se nunca foi comprado, em que termos podemos melhor descrever a sua venda  pelo capitalista que recolhe dados? 

Isto intensifica o caráter da mais-valia que aparece magicamente como uma "criação do nada" para o capitalista - um fenómeno que Marx já tinha explicado em O Capital Vol. I. Recordemos a resposta de Marx: "O que Lucrécio diz é evidente por si: 'nil posse creari de nihilo', do nada, nada pode ser criado. A criação de valor é a transformação da força de trabalho em trabalho. A própria força de trabalho é energia transferida para um organismo humano por meio de matéria nutritiva." Os mais de 200 mil milhões  de lucros das empresas de recolha de dados não são criados do nada, estão, em vez disso, enraizados na exploração absoluta dos produtores de dados. Esta é uma sociedade de pessoas exploradas [1] (ou seja, criadores de mais-valia não remunerados) que, pela primeira vez na história, são explorados através do seu consumo de lazer. O caráter velado da exploração é ainda mais profundo do que o trabalho assalariado regular. O trabalhador assalariado sabe que está a trabalhar e, com base nisso, pode eventualmente compreender a sua exploração. O produtor de dados, por outro lado, acha que está a  descansar, desfrutando de um  bom scroll nos seus telefones. 

Eles nem sabem que estão a produzir, muito menos que estão a pagar para serem explorados .    

 

Tripla Exploração 

A exploração hoje, portanto, existe numa forma de tríade – tripla exploração : 

1) Continuamos a ser explorados no momento habitual da produção. Esta é a tradicional “ exploração primária ”, explicada cientificamente por Marx no volume I de O Capital (e concretizada nos volumes II e III). 

2) Com a generalização da dívida exaustiva que pesa sobre os trabalhadores, incapazes de pagar as suas necessidades básicas, a dívida, como aquilo a que Marx chamou " exploração secundária ", torna-se a norma. Tal como ele escreve em O Capital, Vol. III, essa exploração secundária "ocorre paralelamente à exploração primária que ocorre no próprio processo de produção".   

3) Por fim, temos (para seguir Marx) a exploração terciária: aquilo a que chamei exploração absoluta que ocorre através da venda de dados produzidos por pessoas que nem sabem que estão a produzir mais-valia. 

Trata-se de uma quantidade sem precedentes de formas de exploração capitalista. É o parasitismo burguês a atingir um estágio sem precedentes, concomitante com a agonia do sistema. 

Outro componente distópico – a dimensão perfílica 

Vivemos numa era de perfis. Quem somos, a nossa identidade, está profundamente enraizada na curadoria dos nossos perfis para pares em geral, aqueles "usuários" que validam o nosso conteúdo por meio de vários meios interativos (gostos, partilhas, retuítes, etc.). As nossas postagens futuras são influenciadas pela reação de postagens anteriores. Aquelas que tendem a fazer bem são repetidas, aquelas que não fazem, não são (frequentemente, estas são excluídas imediatamente). A interdependência dialética do individual e do social ganha uma nova forma na era da perfilia. Por meio desses "ciclos de feedback de validação social" ( assim denominados pelo presidente do Facebook, Sean Parker), ajustamos o nosso conteúdo à receção do par em geral. A nossa identidade é construída com base em como somos "vistos sendo vistos". A observação de segunda ordem torna-se a norma; todo o julgamento está sujeito a algum grau de mediação de como a coisa julgada é vista pelo par em geral. Estas são algumas das ideias centrais do livro de Hans Georg Moeller e Paul D'Ambrosio, " Você e o Seu Perfil: Identidade Após a Autenticidade" . Embora tenha alguns pontos cegos (que espero esclarecer no meu trabalho ), é sem dúvida um texto essencial para a compreensão do modo dominante da tecnologia de identidade em nossos dias.   

Não são, então, as nossas identidades que estão a ser vendidas por empresas de recolha de dados para empresas que podem vender-nos os seus produtos? Nessa recolha massiva de dados dos nossos perfis e atividades online, essas empresas passaram a conhecer-nos melhor do que os nossos amigos e familiares mais íntimos. Pois, por mais mais coisas que partilhemos com os nossos amigos elas nunca terão a capacidade de previsão do  nosso comportamento futuro como as empresas de recolha de dados. Como elas se tornaram essenciais para a vida capitalista moderna, elas têm acesso ao nosso eu mais profundo. O seu conhecimento sobre "nós" é incomparável. Hoje, não somos apenas trabalhadores triplamente explorados, mas totalmente alienados de qualquer semelhança de privacidade e intimidade humana básica nas nossas identidades. Os capitalistas que recolhem dados conquistaram e venderam a dimensão privada do eu . 

Essas empresas têm o poder de nos observar nos nossos momentos de descanso, um poder nunca alcançado na história da sociedade de classes.  Nenhum déspota de qualquer classe dominante na história jamais penetrou na vida dos explorados e oprimidos com tanta profundidade. À medida que se tornaram essenciais para a vida capitalista moderna, essas empresas passaram a ter acesso ao poder de nos vigiar nos nossos momentos de lazer, um poder incomparável na história da sociedade de classes. Ao contrário de antigamente, o  Estado da segurança (a que alguns chamam Estado profundo) já não precisa de se aproximar do nosso telemóvel (o dispositivo pelo qual agora controlamos as nossas identidades) para nos escutar. O  Estado da segurança nem precisa de entrar na nossa casa para instalar câmaras e espiar-nos, como demonstrado por vários estudos : a inteligência artificial avançada é capaz de "transformar routers em câmaras que veem através das paredes". 

Os romances distópicos do século passado não são comparáveis com a realidade do capitalismo do século XXI . 

A barbárie chegou. Só o socialismo pode nos tirar dela. 

 

Notas 

[1] Como todas as classes produzem esses dados, é como se a sociedade em geral (todos) sofresse essa exploração por parte dos capitalistas vendedores de dados.   

*Nota da edição portuguesa: 

Os termos “perfilia” e perfilicidade são  neologismos – derivados da palavra “perfil” - cunhados pelo filósofo Byung-Chul Han para descrever uma forma contemporânea de construção de identidade baseada na apresentação de perfis públicos, especialmente nas redes sociais. 

Essa palavra tenta captar a ideia de que, na era digital, a autenticidade é substituída por uma identidade moldada para ser exibida e validada por um público — ou seja, vivemos para sermos vistos. É um conceito fascinante que se contrapõe à “sinceridade” (identidade moldada por um círculo íntimo) e à “autenticidade” (identidade moldada por um ideal interno).(IA e Microsoft Translator - Traduzir de Inglês para Português (Brasil) 

 

Fonte: https://carlosgarrido.substack.com/p/absolute-and-triple-exploitation 

Tradução de TAM 

sábado, 2 de agosto de 2025

 

Não, o liberalismo não enterrou o marxismo

Tradução
Marcos Martim

À medida que o pensamento liberal evoluiu para lidar com as falhas do capitalismo, alguns analistas argumentam que ele alcançou o marxismo, tornando-o irrelevante. Vivek Chibber argumenta que o liberalismo pode diagnosticar as injustiças do capitalismo, mas é o marxismo que nos fornece as ferramentas para superá-las.

UMA ENTREVISTA DE

Nick French

Durante grande parte de sua história, o movimento socialista baseou-se no marxismo como seu referencial orientador. Nas últimas décadas, no entanto, a teoria marxista perdeu influência no mundo intelectual. Na filosofia política anglófona, por exemplo, uma corrente marxista outrora vibrante deu lugar a teorias liberais de vários tipos. Diante desses desenvolvimentos, vale a pena perguntar: o marxismo ainda oferece o recurso essencial que oferecia aos socialistas no século XX?

Nick French da Jacobin conversou com Vivek Chibber para discutir essa questão e outras, incluindo a relação entre a filosofia política liberal e o marxismo; o status do materialismo histórico como teoria; e os usos e as limitações da filosofia moral para os socialistas. Para Chibber, enquanto a filosofia liberal pode diagnosticar as injustiças do capitalismo, ela não oferece um caminho significativo para enfrentá-las. O marxismo, por outro lado, não apenas critica o capitalismo, mas também fornece um quadro estratégico para a mudança estrutural, tornando-se uma força inestimável e duradoura para enfrentar as profundas desigualdades do mundo moderno.


NF

Em uma intervenção recente, o filósofo político Joseph Heath argumentou que a filosofia liberal se desenvolveu a ponto de tornar o marxismo redundante ou irrelevante. .

O argumento de Heath aponta que muitos dos mais perspicazes filósofos marxistas no início do século passado, coletivamente conhecidos como os “marxistas analíticos”, incorporaram seu trabalho em uma ala da filosofia política liberal, particularmente representada por John Rawls.

Heath aponta especificamente para a trajetória intelectual de G.A. Cohen, que passou de defender uma interpretação da teoria do materialismo histórico de Karl Marx para rejeitar essa teoria e expressar simpatia por princípios fundamentais do igualitarismo liberal, em grande parte alinhado com Rawls.

Acho que o argumento de Heath levanta algumas questões substantivas interessantes para os socialistas hoje sobre a relação entre as críticas liberais ao capitalismo e as críticas marxistas. O que você acha dessa ideia de que a filosofia liberal se desenvolveu a ponto de ter substituído o projeto marxista?

VC

Esta é mais uma história sobre como a filosofia liberal amadureceu do que sobre como o marxismo perdeu sua relevância. Um pilar muito importante do liberalismo é que, quando você pergunta às pessoas o que elas acham que é o liberalismo, elas associam-no à igualdade política — com a ideia de que as pessoas devem ter direitos iguais e devem ser iguais perante a lei. Em outras palavras, associam o liberalismo aos atributos formais da democracia.

Os marxistas, claro, valorizam a democracia. Mas eles também argumentam que a democracia política sem igualdade econômica mina a democracia e a torna algo falso. A razão é que as desigualdades econômicas típicas do capitalismo tornam muito difícil para a igualdade política ter substância real. As pessoas que têm muito dinheiro e muita riqueza usam o poder que isso lhes confere no âmbito econômico para também dominar o âmbito político. Elas usam seu poder econômico para sobrepujar a igualdade política que o liberalismo promete.

Esta foi a crítica marxista à filosofia liberal e ao liberalismo. O que aconteceu foi que, no final do século XX, um pequeno número de filósofos oriundos da tradição liberal essencialmente chegou à mesma conclusão de Marx nesse aspecto; John Rawls foi o mais influente deles. Como diz Rawls, se os direitos vão ter valor igual — se vão ser igualmente valiosos para todos — isso requer erradicar as desigualdades econômicas típicas do capitalismo.

Em outras palavras, Rawls chegou às mesmas conclusões que Marx. Ele não foi o primeiro. Sempre houve uma vertente do liberalismo filosófico que esteve em grande tensão com o liberalismo político realmente existente. O que aconteceu no final do século XX foi que a vertente dominante do liberalismo filosófico era igualitária.

Como podemos entender isso? Eu diria que isso é o liberalismo finalmente alcançando o socialismo marxista. Se isso for verdade, então não é tanto que o marxismo esteja se tornando redundante quanto o fato de as duas tradições filosóficas estarem convergindo mais ou menos em uma só. Você poderia dizer, em certo sentido, que o liberalismo se tornou redundante.

Isso pode soar hiperbólico, mas o fato é que há um sentido real em que o marxismo não pode ser deslocado pelo liberalismo, mesmo se suas filosofias morais convergirem. Enquanto Rawls e outros filósofos liberais têm muito a dizer sobre o que está errado com o capitalismo e com promessas vazias de democracia formal, eles têm muito pouco a dizer sobre uma orientação estratégica que possa nos permitir corrigir esses defeitos.

Eles têm uma visão robusta de como seria uma sociedade justa e humana, mas não têm uma teoria real de duas outras coisas essenciais: Primeiro, como uma ordem social injusta é sustentada e reproduzida ao longo do tempo? Isto é, como é reproduzido o capitalismo ao longo do tempo? Como é mantido o poder? Isso é estudado pela economia política. Segundo, dada essa constelação de poder, como podemos reunir uma coalizão social que possa lutar por e conquistar o design institucional recomendado como um design social justo e humano? Essa é a teoria do conflito social e da mudança.

É aqui onde o marxismo tem algo a dizer que a filosofia política liberal simplesmente não tem, porque o marxismo é uma teoria político-econômica muito robusta. Se for esse o caso, você pode aceitar a visão de Heath de que a filosofia política liberal e a teoria moral marxista estão quase no mesmo plano. Você pode aceitar cada ponto feito por Rawls sobre justiça, mas isso ainda deixa ao marxismo toda uma gama de pontos fortes e contribuições que o liberalismo não faz, pelo menos não aquela tradição filosófica sobre a qual ele está falando.

O marxismo é, em sua essência, não uma filosofia moral, mas uma teoria da política e uma economia política. Enquanto o liberalismo falhar em produzir isso, ele nunca poderá suplantar ou tornar redundante o marxismo.

Armadilhas do materialismo histórico

NF

Mas não é exatamente esse o ponto em que tantos ex-marxistas abandonaram o barco? A economia política e a teoria da mudança social eram componentes do materialismo histórico. E muitas pessoas, você entre elas, argumentaram que o materialismo histórico tradicional não pode realmente ser defendido.

Se isso estiver correto, não voltamos ao problema de que o marxismo não tem realmente uma teoria da mudança, e que tudo o que temos é uma filosofia moral? Foi isso que G.A. Cohen acabou pensando, e é por isso que Heath argumenta que o liberalismo é a única opção viável agora.

VC

Não acho que isso esteja correto. A questão se resume a duas perguntas. Primeiro, o materialismo histórico precisa ser entendido de forma restrita e determinista-tecnológica como os marxistas tradicionais defendiam, e que muitos, incluindo eu mesmo, criticaram como sendo indefensável?

Segundo, é essa a versão que as organizações marxistas clássicas realmente seguiram e se inspiraram quando promoveram as enormes mudanças e transformações que vimos no século XX, tornando a tradição socialista tão valiosa?

Comecemos pela primeira pergunta, que é se a versão restrita e determinista-tecnológica do materialismo histórico é a única interpretação válida. O que essa teoria diz é que a história avança em trilhas muito bem definidas, e que os sistemas sociais surgem e desaparecem conforme são ou não adequados para o desenvolvimento tecnológico e das forças produtivas da sociedade.

Em certo ponto, se as instituições sociais existentes estão impedindo as forças produtivas da sociedade, o impulso para sustentar e aumentar essas forças é tão forte que o sistema social existente é desmantelado. E surge um novo sistema social consistente com esse impulso avassalador de manter a tecnologia avançando.

Foi assim que Cohen entendeu o materialismo histórico. Essa é uma visão muito determinista. Nessa perspectiva, quando uma ordem social entra em crise, está praticamente garantido que uma nova a substituirá, e essa nova será mais adequada ao desenvolvimento tecnológico.

Cohen acaba dizendo duas coisas sobre essa visão. Primeiro, ele diz que essa não é uma teoria que podemos realmente sustentar. Segundo, ele diz: graças a Deus está errada, porque faz mais mal do que bem. A teoria, se tomada literalmente, encoraja a complacência política por causa de seu determinismo. Ela incentiva a visão de que — veja só, a crise está aqui! E está praticamente garantido que o socialismo vai vencer, porque esse é o próximo modo de produção.

Isso significa que você realmente não precisa trabalhar para entender a situação política atual, que é do que se trata a política. Você não precisa fazer “a análise concreta da situação concreta”, na frase de Vladimir Lenin. Você sabe que, na pior das hipóteses, pode atrasar a transição e, na melhor das hipóteses, acelerá-la. Mas a transição em si está mais ou menos garantida.

Cohen diz: essa é uma teoria política terrível, então é bom podermos descartá-la. Mas uma vez que dizemos que está errada, o que resta? Sem a teoria materialista, ele pensa, o que resta é um projeto de defesa moral. Cohen diz que os socialistas devem focar em persuadir as pessoas da desejabilidade moral do socialismo.

NF

Certo. Mas então como você evita a conclusão de Cohen?

VC

A questão é: a versão tradicional da teoria é a única plausível? Há uma certa ambiguidade nos textos de Marx sobre esse ponto.

Mesmo que não houvesse ambiguidade — mesmo que ele realmente quisesse apresentar a teoria que Cohen diz que ele apresentou — a questão mais importante é: existe uma versão menos exigente da teoria que seja plausível, que seja consistente com o espírito do que Marx está tentando dizer, mas que não tenha as falhas da leitura determinista?

Em minha opinião, é bastante claro que é possível desenvolver uma versão menos exigente e menos restrita da teoria. Esta versão não tem as implicações deterministas da antiga e, portanto, não corre o risco de gerar complacência ou preguiça por parte dos marxistas. Mas ela possui os elementos positivos da teoria mais antiga, que são simples.

Primeiro, se uma ordem social está entrando em crise, sua resolução será possibilitada por fatores internos dessa ordem social. Assim, se o capitalismo está entrando em crise, a resolução em direção ao socialismo é possibilitada pelas dinâmicas do próprio capitalismo. Isso significa que você não precisa ser um utópico, no sentido pejorativo de Marx, para ser socialista. Segundo, as forças sociais necessárias para promover essa nova ordem social são viáveis e podem ser mantidas com base nos interesses materiais das pessoas.

Esta teoria é um tipo de materialismo em dois sentidos. Primeiro, ela não cai no utopismo. É materialista no sentido de ser realista. Segundo, ela diz que as pessoas estão dispostas a lutar por seus interesses materiais; elas têm os interesses que a criação de uma nova ordem social exige.

Essa versão da teoria, eu acho, é uma interpretação legítima para Marx. E é uma teoria sustentável por si só. Isso significa, então, que podemos rejeitar a versão determinista-tecnológica do materialismo histórico mas ainda manter a essência da teoria que é defensável como um guia para ação estratégica.

Mas deixe-me voltar à segunda questão que eu disse ser chave. Na primeira parte do século XX, o socialismo como movimento foi incrivelmente bem-sucedido porque promoveu algumas mudanças muito profundas — não apenas a Revolução Russa mas também todos os avanços social-democratas. Ambos os movimentos se basearam na teoria marxista. Ambos levaram o materialismo histórico tradicional muito a sério. Então a questão é: essas pessoas, ao levarem essa teoria a sério, caíram vítimas do determinismo e da complacência que Cohen teme?

A resposta é absolutamente não. Se eles tivessem acreditado na versão de Cohen da teoria e tivessem realmente tirado as mesmas conclusões que ele tirou, você não teria visto os debates intermináveis sobre detalhes minuciosos, sobre o momento, sobre a conjuntura, que os primeiros socialistas tiveram.

Há duas possibilidades: ou eles eram esquizofrênicos e aderiam a uma teoria que ignoravam completamente em toda a sua prática; ou a maneira como entendiam o materialismo histórico estava na verdade mais próxima da versão modificada e mais sustentável que estou apresentando — mesmo que prestassem serviço verbal em seus documentos à teoria mais determinista. Se você observar como eles falam e debatem entre si quando apelam ao marxismo, estão apelando à versão menos determinista, mas ainda materialista.

Isso significa que Cohen está errado em dois aspectos. Ele está errado ao afirmar que a única versão sustentável do materialismo é aquela que ele defende. E está errado ao afirmar que o materialismo histórico, uma vez adotado, gera complacência.

Interesses materiais vs. defesa moral

NF

Então, o que realmente guiou os primeiros socialistas foi um entendimento do materialismo histórico que diz que o capitalismo cria as condições para uma nova ordem social, e a maneira de estabelecer essa nova ordem é organizando forças sociais — em particular, a classe trabalhadora — em torno de seus interesses materiais.


VC

Certo. Mas acontece que Cohen também rejeita esse argumento, levando-o de volta à defesa moral. Ele acredita que há uma diferença profunda entre o capitalismo do início do século XX e o capitalismo do século XXI. A diferença é que, no início do século XX, podia-se contar com a classe trabalhadora como agente de mudança social e, no século XXI, não.

Isso também merece exame, porque aqui o argumento de Cohen é igualmente bastante fraco. Ele diz que há quatro razões pelas quais os trabalhadores não podem mais ser contados como podiam no início do século XX. Os marxistas presumiam que, primeiro, os trabalhadores são a maioria da sociedade sob o capitalismo; segundo, que produzem a riqueza da sociedade; terceiro, que são o grupo explorado; e quarto, que são as pessoas mais necessitadas na sociedade.

Cohen diz que não se pode mais dar essas quatro características como certas. Ele não aprofunda muito isso — exceto pelo quarto ponto, de que os trabalhadores são as pessoas mais necessitadas. Mas vamos examinar todos os quatro pontos.

É verdade que os trabalhadores são a maioria da sociedade? Sim. Todo relato cuidadoso da estrutura de classes americana e europeia mostra que o que chamamos de “trabalhadores da linha de produção”, no setor de serviços, trabalhadores braçais ou aqueles em outras partes da economia, ainda representam a maioria. Não é uma grande maioria, mas ainda é uma maioria.

Os trabalhadores são explorados hoje? No sentido marxista, sim. É tão verdade agora quanto era no início do século XX que os trabalhadores criam um excedente. E é verdade que esse excedente é o que representa a maior parte da riqueza na sociedade? Isso é obviamente verdade.

E quanto ao quarto fator? É aqui que Cohen realmente faz sua afirmação. Ele diz que eles não são mais o grupo mais necessitado na sociedade. Outros grupos são mais necessitados. Ele se refere a pessoas como idosos, desempregados etc.

Sua avaliação desse quarto fator está correta? Ele está certo ao dizer que os trabalhadores não são mais o grupo mais necessitado na sociedade? Não vejo como ele pode dizer isso. É verdade que eles não estão indigentes — mas isso não é o que importa. O que importa é que eles são prejudicados mais do que qualquer outro grupo importante e têm muito a ganhar com o socialismo. Certamente isso não é menos verdade hoje do que era em 1920?

Sendo esse o caso, pode-se afirmar todos os quatro fatos sobre a classe trabalhadora, mesmo hoje. Os trabalhadores são a maioria; são explorados; essa exploração é a criadora de riqueza; e os trabalhadores são mais necessitados do que qualquer outro grupo importante na sociedade moderna, o que significa que têm tanto interesse em avançar para uma transformação do capitalismo e serem anticapitalistas hoje quanto tinham antes.

NF

Mas não existem diferenças reais entre o capitalismo de hoje e o de cem ou cento e cinquenta anos atrás? Cohen não está se apegando a algo que muitos de nós na esquerda consideramos importante? Você está dizendo que as diferenças são apenas cosméticas?

VC

Não acho que as diferenças sejam cosméticas; acredito que há diferenças profundas. No entanto, não há muita diferença nas motivações dos trabalhadores e no interesse por uma ordem social melhor. .

A diferença está mais nas capacidades deles de realizá-la.

Ainda não entendemos isso completamente, mas havia algo no capitalismo do início do século XX que tornava a organização e a criação de grandes organizações militantes muito mais fáceis do que hoje. Acho que essa é a maior diferença entre aquele capitalismo e o atual. É isso que a esquerda hoje precisa compreender. Precisamos entender como unir os trabalhadores em torno de seus interesses, que são tão relevantes hoje para uma nova ordem social quanto eram no início do século XX.

O mistério que nos separa daquela esquerda é que ela tinha um modelo e uma estratégia viável de como as organizações deveriam ser, como mobilizá-las, como ativá-las. A esquerda atual ainda não descobriu isso.

Cohen interpreta mal o desafio. Ele pensa que o desafio é que os trabalhadores não têm a motivação que tinham naquela época. Eu diria que o desafio é mais que eles não têm a capacidade ou o poder organizacional que tinham antes.

Isso se deve a uma combinação de fatores: uma mudança na ecologia das empresas industriais; uma mudança na quantidade da classe trabalhadora na indústria e na manufatura em comparação com os serviços; uma mudança na paisagem urbana e na conexão entre trabalho e moradia; e, finalmente, o desmantelamento dramático das associações cívicas da classe trabalhadora que os ajudavam a forjar suas identidades coletivas como trabalhadores.

É alguma combinação dessas coisas. Precisamos de um programa de pesquisa bem elaborado para tentar entender isso.

NF

O cerne do que você está dizendo é que é possível resgatar uma versão do materialismo histórico que possa servir como guia estratégico para a prática política, mesmo nas condições muito diferentes do capitalismo atual em comparação com o de cem anos atrás. Não precisamos recorrer à defesa moral como nossa nova estratégia organizacional, como Cohen pensa.

VC

Sim, mas os problemas da visão da defesa moral são ainda mais profundos.

A maneira como você colocou foi: uma versão do materialismo histórico é recuperável, então não precisamos depender da defesa moral. Eu sugeriria que isso levanta a questão de forma fundamental, porque não está claro para mim como a defesa moral poderia ser uma base para uma transformação política do tipo sobre o qual estamos falando. Em outras palavras, mesmo se quiséssemos depender dela, não poderíamos.

Uma luta pelo socialismo ou mesmo pela social-democracia exige que as pessoas assumam riscos enormes e façam sacrifícios enormes, porque terão de enfrentar a classe capitalista. Não vejo nenhuma maneira pela qual a defesa moral possa ser o mecanismo para levar a maioria das pessoas a tal projeto político. Você precisa ser capaz de mostrar às pessoas que elas têm um interesse real no resultado — um interesse material, não apenas um chamado moral — e também mostrar-lhes que é realista, que não é apenas uma espécie de missão suicida.

É notável para mim que os defensores dessa visão — Cohen é um deles, mas há outros — nunca tentam confrontar sistematicamente essa questão. Na verdade, há duas questões, dependendo de quem é o alvo da sua defesa moral.

Uma questão é: se é um chamado moral geral, por que os setores mais poderosos da sociedade e seus servidores na mídia, nas universidades e na política seriam convencidos pela sua defesa moral quando têm um interesse direto em manter a ordem social? A outra é: se você não vai até eles, por que os trabalhadores pobres viriam até você por um chamado moral, a menos que você possa deixar claro para eles o que têm a ganhar com isso?

Para mim, é mais realista dizer que se um quadro materialista para a política não for mais sustentável, o socialismo não é sustentável como movimento. Prefiro ser honesto e admitir isso do que viver com esse sonho irrealizável de que a defesa moral nos levará lá. Em um sentido muito real, foi contra isso que Marx e [Friedrich] Engels argumentaram durante suas vidas: esses vários tipos de utopismo que diziam: se você apenas pedir às pessoas para serem boas, pode chegar ao socialismo.

Portanto, se Cohen estiver certo ao afirmar que uma versão materialista da política não é mais sustentável, a conclusão dele simplesmente não faz sentido. A conclusão que deveríamos tirar é que políticas do tipo ao qual nos comprometemos agora são impossíveis. Essas conversas morais são fantasias com as quais os intelectuais se entretêm; eu não sei como elas têm qualquer impacto no mundo.

Equilibrando realismo e moralidade

NF

Então, qual é o lugar da investigação moral? Muitos socialistas concordariam com muito do que você está dizendo aqui. Mas eles poderiam acrescentar que isso apenas mostra que a filosofia moral é, na melhor das hipóteses, uma perda de tempo e, na pior, perigosa — que ela encoraja ilusões ideológicas ou ideias úteis à burguesia ou à manutenção do capitalismo, sobre justiça, direitos, e assim por diante. O que você pensa dessa posição? Há alguma razão para os socialistas se interessarem pela filosofia moral? O que, se é que algo, ela pode nos oferecer?

VC

Os socialistas absolutamente precisam levar a filosofia moral a sério, por duas razões.

Uma razão é óbvia quando se pensa nisso, mas algumas pessoas não a consideram seriamente: não queremos apenas algo diferente do capitalismo; queremos algo melhor do que o capitalismo, e por “melhor” queremos dizer mais desejável.

Se o socialismo é mais desejável, em que bases ele é mais desejável? E se alguém chegasse e dissesse: eu tenho uma solução para as ineficiências do capitalismo, mas você terá que abrir mão de todos os seus direitos civis e políticos. A maioria dos socialistas rejeitaria isso. Mas rejeitamos por razões morais, então precisamos ser capazes de articular quais são essas razões.

A segunda razão talvez seja menos óbvia, mas decorre da primeira. Existem dois critérios pelos quais os socialistas devem avaliar as instituições que estão tentando construir. Um é prático: essas instituições são realistas e sustentáveis? O outro é moral: as novas instituições podem ser realistas e sustentáveis, mas são desejáveis?

Sustentável e desejável são duas coisas muito diferentes. Aquilo que é sustentável pode não ser desejável, e aquilo que é desejável pode não ser realista. Os socialistas valorizam muito a questão do realismo e entendemos agora, após cem anos de experimentos, que há versões do socialismo que podem não ser sustentáveis — e uma dessas versões, acredito eu, é o planejamento central. Então percebemos que talvez tenhamos que nos contentar com algo menos do que isso.

No entanto, aquelas instituições que juntas compõem algo menor terão elementos retirados do capitalismo. Você pode ter um mercado de trabalho. Pode ter certos mercados financeiros. Pode ter certos tipos de mercados de produtos.

Agora você se depara com a questão: se vamos ter um mercado de trabalho, por exemplo, toda versão dele é moralmente condenável? Ou há versões ou aspectos dele que são aceitáveis, com os quais nós, como socialistas, podemos conviver?

E quanto às hierarquias? Não podemos eliminar todas as hierarquias. Com as hierarquias, temos um menu de opções. Quais são as que achamos consistentes com nossos objetivos e, portanto, desejáveis? E quais devemos tentar evitar e dissolver?

Todas essas são questões morais. Sempre que você tem um menu de opções, como nós temos, você selecionará desse menu não apenas com base em critérios práticos — haverá intensos debates morais também.

Se você não souber os fundamentos sobre os quais rejeita as instituições capitalistas, não saberá quais são os fundamentos sobre os quais está escolhendo aceitar ou rejeitar suas alternativas.

Sem uma base normativa bem elaborada, os socialistas não têm base para fazer essas escolhas. Se você não tiver essa base, quando não tiver moralidade, tudo o que resta é poder. E o que decidirá esses debates é quem tem as armas e quem tem mais recursos. Isso é absolutamente algo que você quer evitar na esquerda.

Portanto, embora Cohen esteja errado ao pensar que tudo o que resta para os socialistas é a defesa moral, seu projeto maior de tentar dar uma base mais firme para os socialistas sobre por que eles devem aceitar ou rejeitar certas instituições sociais foi absolutamente crucial. Cabe a nós tentar aprofundar isso tanto quanto pudermos. E nisso teremos parceiros muito capazes entre os liberais igualitários porque eles chegaram a muitas das mesmas visões que os socialistas já tinham, mesmo que tenham demorado um pouco mais.

é professor de sociologia na New York University. Seu livro mais recente, ‘Postcolonial Theory and the Specter of Capital’ [“Teoria Pós-colonial e o Espectro do Capital”] acaba de ser publicado pela editora Verso.

é um candidato a PhD em filosofia na Universidade de Califórnia – Berkeley e membro dos Socialistas Democráticos da América na Costa Leste.

   in JACOBINA blog 

As Ilusões Liberais e Como a OTAN Jogou a Ucrânia na Rota do Perigo

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

As suas teses sobre o socialismo atualmente possível, afastando da tradição marxista a utopia da revolução russa, do planeamento centralizado, do coletivismo forçado, do partido único, e da rejeição qualquer forma d emercado, são tema do antigo e renovado debate. O partido comunista grego e a corrente do movimento comunista internacinonal que aquele lidera não as apreciarão de certeza absoluta.

 

Organizadora trabalhista Mother Jones reunindo trabalhadores em Montgomery, WV em agosto de 1912. West Virginia & Regional History Center.

Nosso caminho para o poder

Tradução
Coletivo Vila Vudu

O século XX deixou muitas lições para os socialistas. O que devemos aprender com elas?

Cem anos depois da Revolução Russa, estamos num momento especial, diferente de tudo o que tivemos em décadas. Com o neoliberalismo e os partidos social-democratas tradicionais caídos em desgraça, finalmente estão surgindo novas oportunidades para a Esquerda radical.

Cada crise encontra algum tipo de resolução, e esta que atravessamos também encontrará; onde vamos parar depende em grande medida de como a Esquerda responderá a ela. Se jogarmos corretamente as cartas que temos, a abertura pode ser a ocasião para iniciar um novo ciclo de organização – revitalizando partidos de Esquerda onde for possível e iniciando novos partidos, se os já existentes se provarem imunes a qualquer tipo de reforma.

Porém, em vez de apenas olharmos em frente, esta é também uma ocasião para observarmos as lições do passado. A Revolução Russa continua sendo o experimento mais ambicioso em políticas socialistas, e seus sucessos e fracassos precisam ser parte de qualquer discussão sobre como revitalizar a esquerda. Mas não apenas a experiência russa: Temos que situar a experiência bolchevique na história mais ampla da política socialista no século XX – ao lado de exemplos do Chile, da Alemanha e da Suécia, entre outros.

A Revolução Russa deixou duas grandes heranças – uma herança organizacional e uma herança institucional. Por herança organizacional, entendo o que se pode aprender dali sobre a construção de veículos para a ação coletiva no capitalismo – sindicatos, partidos e agremiações de modo geral. Por herança institucional, entendo as estruturas básicas que formarão uma sociedade pós-capitalista – o sistema político, a organização econômica, a estrutura dos direitos. A dimensão organizacional tem a ver com como se constrói o poder dentro do capitalismo; a institucional tem a ver com o que se construirá depois do capitalismo.

Herança Organizacional

Estrutura

A Esquerda apresenta dois tipos de atitude quando se trata da organização de partidos leninistas. Para uma Esquerda, o modelo é um desastre ou, no mínimo, uma experiência negativa. A acusação aí é que o leninismo sempre e em todos os cantos terminou em puro autoritarismo. Outra parte da Esquerda responde que “OK, é verdade, mas você está confundindo Stalinismo e Leninismo.” Em outras palavras,é com o advento de Stálin que se fecha o debate.

Os defensores do partido leninista têm razão quando dizem que, em sua história inicial, o partido era notavelmente aberto e dinâmico; mas, ao mesmo tempo, o fato é que a experiência global desde os anos 30 do século passado tendeu muito mais na direção de sua forma mais tardia e antidemocrática. Assim, se o partido de Lênin era muito democrático, o mesmo não se pode dizer do partido leninista. E não podemos pôr toda a culpa em Stálin, Zinoviev ou seja lá quem for o seu vilão favorito. Um modelo de partido com estruturas democráticas mais firmes e resistentes deveria ter gerado experiências mais diversas, não uma história uniforme de ossificação.

Assim sendo, é fácil concluir, como fazem tantos progressistas hoje, que a Esquerda ‘do futuro’ teria de rejeitar o modelo do partido leninista. O problema com esse modo de pensar é que nenhum outro modelo sequer chegou perto de ser politicamente tão eficaz. Todas as alternativas surgidas na Esquerda desde a década de 1960 — os partidos de múltiplas ‘tendências’ [como o PT ou o PSOL], os horizontalistas, os anarquistas e seus grupos de afinidades, o ‘movimento de movimentos’, etc. – conseguiram mobilizar por algum tempo, mas tiveram pouco sucesso na sustentação dos movimentos, e menos ainda em avanços materiais reais. De fato, o modelo baseado em quadros foi tão bem-sucedido que todos os grandes partidos capazes de grandes mobilizações no século 20 copiaram esse modelo em algum nível, inclusive na Direita.

Considerando esse histórico, é difícil imaginar qualquer via para que a Esquerda se organize como força real sem alguma variante da estrutura concebida pelos primeiros socialistas — um partido de massas baseado em quadros, com liderança centralizada e coerência interna. Talvez não tenha de ser assim. Talvez nós consigamos conceber formas organizacionais mais abertas, mais difusas, mas que, simultaneamente, consigam fazer as coisas acontecerem. Porém, dada a nossa experiência, não temos qualquer fundamento real a partir do qual rejeitar o nosso modelo mais bem-sucedido.

O que precisamos fazer é olhar diretamente para os primeiros anos do partido – antes de 1918, quando todos concordam que o partido era muito aberto e democrático — e estudá-lo atentamente. Precisamos de uma compreensão aguda sobre como aqueles bolcheviques mantinham o dinamismo que fez daquele partido a organização mais bem-sucedida de seu tempo — na qual criticar a liderança era considerado um direito de todos, uma parte constitutiva básica do que significava ser membro do partido. Havia lá mecanismos institucionais que criavam a cultura de debate e transparência, e que não fossem só eleições e comunicados? Ou, no fim das contas, esse ambiente simplesmente dependia de uma liderança comprometida com esses valores?

Se havia mecanismos institucionais operando que garantiam a democracia, então seria o caso de copiá-los, colocá-los para funcionar; entretanto, se era uma questão relacionada com uma cultura interna contingente, isso significa que as práticas democráticas têm de depender de uma espécie de compromisso moral — o que será mais difícil de replicar, porque líderes, em geral, tendem a querer conter a democracia, não ampliá-la. Mas por isso é tão importante estudar a lição e a prática reais, para compreender de onde vinha aquela democracia.

Base

A segunda questão organizacional é a da relação entre o partido e sua base. Aqui a Revolução Russa tem o que nos ensinar. Na historiografia da Guerra Fria, os bolcheviques são apresentados como se tivessem chegado ao poder mediante algo bem semelhante a um golpe. A ideia é que eles não teriam realmente uma base de massas, que seriam um pequeno grupo de ideólogos comprometidos até o fanatismo, que impuseram uma ditadura. No entanto, historiadores recentes têm mostrado, em detalhes dramáticos, que a principal razão pela qual os bolcheviques conseguiram conquistar e manter-se no poder era que, dentre todos os partidos na Rússia, os bolcheviques eram os que tinham os laços mais profundos, mais fortes e mais firmes com a classe trabalhadora nos grandes centros industriais do país. Foi por isso que, em cada mudança no humor político da classe trabalhadora – particularmente em Petrogrado, mas também em Moscou – nos meses que levaram à captura do poder, sempre eram os bolcheviques que mais rapidamente captavam  as mudanças, compreendiam a situação real em campo e, portanto, eram capazes de gerar e oferecer os slogans, as frases, as palavras de ordem e os programas que capturavam e davam voz à consciência popular.

Os bolcheviques não estavam sozinhos nesse panorama. Era uma verdade assumida por todos os partidos socialistas nos anos entre as duas guerras mundiais que o fundamento da estratégia partidária precisava estar ancorada na vida diária da sua respectiva base. E não só no Ocidente. Essa noção era uma condição sine qua non do socialismo em todo o mundo. E isso funcionava. A grande era do crescimento de todas as Esquerdas – do início do século 20 até o início da década dos 1950s – aconteceu porque os grandes partidos estavam entre os trabalhadores pobres, eram dos trabalhadores pobres e funcionavam para os trabalhadores pobres.

A estratégia foi bem-sucedida por várias razões.

Primeiro, e mais importante, permitiu que aquelas organizações gerassem programas que representavam os verdadeiros interesses da própria base de cada organização, porque os partidos estavam em comunicação constante com eles – dado que lutavam ao lado da respectiva base diariamente, nos locais de trabalho e nas vizinhanças.

Segundo, essa estratégia dava enorme legitimidade, no nível das massas, aos quadros do partido – mais uma vez, porque eles estavam lá com as massas, na alegria e na tristeza. Essa legitimidade era a condição essencial para promover a luta política, porque quando o quadro orientava a própria base para que empreendesse qualquer tipo de ação, ele podia contar com a confiança e o apoio necessário para que a ação fosse bem executada.

Terceiro, essa conexão profunda e orgânica também dava suporte a uma cultura interna vibrante – de democracia, de cobrança e prestação de explicações democráticas transparentes. Um partido imerso na vida e na luta diária da classe trabalhadora podia não apenas dar sustentação a uma cultura de democracia, como também podia beneficiar-se dela. Afinal, uma cultura democrática era uma das pré-condições essenciais para ganhar e manter a confiança e o apoio da classe. Ter uma grande base, é claro, nunca garantiu nenhum sucesso – mas não tê-la sempre foi garantia de fracasso e de marginalização.

Certamente, isso é o que mais diferenciava os primeiros partidos socialistas e os grupos de Esquerda que existem atualmente no Ocidente. A Esquerda socialista mantém uma conexão muito tênue com as comunidades de trabalhadores, se é que ainda há qualquer contato. Praticamente em todo o mundo a Esquerda socialista está estruturalmente separada dos trabalhadores e opera na maioria das vezes como pequenos grupos em contextos de classe média – universidades, ONGs, grupos de estudo, etc. Essa realidade tem várias consequências importantes. Para começar, diferente da esquerda trabalhista tradicional, essa esquerda não pode realmente organizar e liderar lutas da classe trabalhadora, porque está fisicamente separada daquela classe. O núcleo do engajamento político dessa esquerda distanciada da massa trabalhadora é de apoio, e de reação – aparecer para ajudar num piquete, disseminar as palavras de ordem, tentar arregimentar simpatias. Mas isso significa que essa esquerda é integralmente dependente de outros agentes para a organização, porque não está em posição para iniciar a luta, ela mesma.

Além disso, seu confinamento àqueles ambientes significa que, para manter seus compromissos com o socialismo, a esquerda hoje precisa socializar seus membros para que se simpatizem com os interesses e a opressão de outra classe. Tudo isso é muito diferente dos tradicionais partidos de esquerda, que estavam em ambientes da classe trabalhadora e, portanto, podiam recrutar seus militantes dentro da própria classe e, assim, treinar seus membros para lutar por seus próprios interesses materiais. Para aqueles primeiros grupos, a luta era uma necessidade, porque lutavam pela sobrevivência e pelo bem-estar para si mesmos e para os seus próximos.

Hoje, os grupos têm em grande medida de imaginar quais seriam esses interesses, já que não têm como aprender sobre eles por engajamento direto. Na maioria das vezes, fazem isso lendo sobre eventos passados e, a partir deles, tentando encontrar paralelos na cena atual. Mas assim fica muito difícil desenvolver alguma estratégia. É quase impossível inovar, porque a maior parte dos membros não têm experiência direta das mudanças nos locais de trabalho, nem estão em posição de tentar novas iniciativas. Isso leva naturalmente a uma espécie de dogmatismo, porque a única coisa que sabem com certeza é o que funcionou no passado.

O resultado de longo prazo de estarem isoladas dos trabalhadores é que essas organizações se tornam o paraíso para uma política de estilo de vida para estudantes e profissionais com compromissos morais. Elas oferecem aos membros meios para que se sintam como se estivessem muito envolvidos na mudança, mas o envolvimento é altamente individualista e permanece em grande parte confinado a atos de solidariedade simbólica. Dado que a organização real está tipicamente fora de questão, a energia tende a ser dirigida para dentro, na direção da cultura e das características do próprio grupo. Quem chega nos EUA vindo de países que têm tradições políticas mais radicais jamais deixa de perceber o quanto os debates dentro da Esquerda estadunidense são estridentes e moralistas, mas, sobretudo, o quanto são apolíticos. Tendem a discutir linguagem, identidade individual, linguagem corporal, hábitos de consumo e coisas do tipo. É uma consequência natural de uma “esquerda” que de fato não passa de pequenos grupos constituídos de pessoas em ambientes de classe média, que não possuem uma maneira orgânica de serem treinados em política de classe. Tem sido assim há tanto tempo, que até mesmo a ideia de basear a política na classe trabalhadora é vista como exótica ou dispensável.


Se a Esquerda almeja chegar a algum lugar, se pretende recapturar o papel que já teve como o motor da justiça social, terá de se re-plantar dentro das comunidades dos trabalhadores. Até o momento, ninguém mostrou qualquer prova de que as mudanças das quais precisamos e na escala necessária – colocar as pessoas acima dos lucros, salvar o meio-ambiente, erradicar as opressões sociais –, possam ser alcançadas sem enfrentar o capital. E como fazer isso sem mobilizar a capacidade da única força social capaz de pôr de joelhos o capital – a classe cujo trabalho gera os seus lucros?

Não é só o caso russo mas toda a tradição do socialismo, se estendendo por mais de um século e meio, o que demonstra essa verdade básica. Uma esquerda isolada dos trabalhadores é um espetáculo, não uma força política.

Estratégia

Sobre a questão da Estratégia, a Revolução de Outubro talvez seja menos instrutiva. A tomada do poder pelos bolcheviques não foi um Golpe de Estado, mas, de fato, ela incorporou uma derrubada repentina e violenta de um regime, num contexto de falência do Estado e de desintegração das forças militares. Podemos descrevê-la como uma Estratégia de rompimento com o capitalismo através de uma ruptura.

Hoje não há dúvidas de que as décadas do início do século 20 até a Guerra Civil Espanhola podem ser descritas como um período revolucionário. Foram tempos em que a possibilidade de ruptura podia ser contemplada seriamente, e em que era possível construir uma estratégia em torno dela. Muitos socialistas defendiam uma abordagem mais gradualista, mas os revolucionários que os criticavam não estavam vivendo num mundo de fantasias.

Para muitos partidos a via russa, como tal, era um caminho viável. Mas a partir dos anos 1950s, estreitaram-se as aberturas para esse tipo de Estratégia; hoje parece uma alucinação completa pensar sobre o socialismo através dessas lentes. Essa é uma verdade indubitável nos países capitalistas avançados, mas também é verdade para grande parte do Sul Global. Hoje o Estado possui uma legitimidade infinitamente maior entre a população do que tinham os Estados europeus há um século. Além disso, o poder coercitivo e de vigilância do Estado, e a coesão interna da classe dominante dá à ordem social uma estabilidade que está ordens de magnitude acima daquela que havia em 1917. Isso significa que, embora se possa admitir e talvez até esperar que surjam condições revolucionárias nas quais a ruptura do Estado seja realmente pensável, não podemos construir uma Estratégia política em torno dessa expectativa – não podemos tomá-la como a perspectiva estratégica fundamental da Esquerda. Hoje, a estabilidade política do Estado é uma realidade que a Esquerda tem de reconhecer. O que hoje está em crise é o modelo neoliberal de capitalismo, não o próprio capitalismo.

Nesse caso, as lições que podemos extrair da experiência russa – como um modelo de transição para o socialismo – são limitadas. Nossa perspectiva estratégica precisa minimizar a centralidade de uma ruptura revolucionária e navegar por uma abordagem mais gradualista. Para o futuro previsível, a estratégia da Esquerda tem de operar com vistas a construir um movimento para pressionar o Estado, acumular poder dentro dele, mudar a estrutura institucional do capitalismo e erodir o poder estrutural do capital – ao invés de investir diretamente contra ele. Isso implica numa combinação de política eleitoral e de mobilização das massas.

Você constrói um partido baseado nos trabalhadores, fortalece a capacidade de organização da classe, enfrenta os chefes no ambiente de trabalho, cria anéis de força na sociedade civil, e usa esse poder social para fazer avançar reformas políticas através da participação na política eleitoral. As reformas devem ter o duplo efeito de tornar mais fácil a organização futura, e também de conter o poder do capital de minar as reformas mais à frente. Há vários nomes para uma estratégia desse tipo – reformas não-reformistas, reformas revolucionárias. Porém, seja lá como a gente a chame, essa estratégia implica uma abordagem mais gradual que aquelas possíveis para os bolcheviques.

No entanto, isso significa que temos de estudar cuidadosamente as experiências de partidos e países que não chegaram ao socialismo, mas que mesmo assim alcançaram verdadeiros ganhos políticos e de organização. Temos de estudar a social-democracia, principalmente suas variantes mais ambiciosas. Antes de mais nada, precisamos compreender como eles combinavam as dimensões eleitoral e não-eleitoral numa perspectiva estratégica abrangente. Isso também implica em estudar a legislação daqueles países, os modelos econômicos que eles implementaram, como usavam o Estado, como lidaram com o poder estrutural do capital e com a sua hostilidade contra os avanços dos trabalhadores. As conquistas obtidas pelas social-democracias mais avançadas, como os países nórdicos, são realmente extraordinárias – e a sua difamação ritual pelas esquerdas sob acusações de mero “reformismo” é um equívoco. Essas conquistas foram o resultado de muita luta e enfrentaram uma oposição de unhas e dentes pelas elites dominantes.

A razão mais importante para estudarmos a história da social-democracia, contudo, é para compreendermos as suas limitações. Por isso não se deve descartar a social-democracia como “apenas” reformista. Se não compreendermos porque elas falharam, apenas repetiremos aquele fracasso. É importante considerar que, aconteça o que acontecer depois, se pessoas como Jeremy Corbyn ou Bernie Sanders chegarem ao poder nos próximos anos, a agenda política deles será talhada, em grande medida, no modelo estabelecido pela social-democracia.

Isso é ótimo em muitos sentidos, mas a social-democracia era uma força que já estava exaurida lá pelos anos 1980s; aqueles partidos degeneraram num ethos gerencial; a sua agenda de reformas foi congelada e, na sequência, revertida; e eles se provaram  amplamente desinteressados em revitalizar seu próprio legado. Que esse fenômeno tenha sido tão amplamente disseminado indica que não pode ter sido o efeito de erros e traições individuais: Havia algo de estrutural por trás desse processo. Isso significa, por sua vez, que a Esquerda precisa compreender as raízes estruturais desse fracasso para que tenha pelo menos alguma chance na luta para evitar o mesmo destino. Daí que, enquanto temos de compreender de que modo veio à luz algo tão ambicioso como o plano Meidner na Suécia, no final dos anos 1970s, também temos de compreender porque ele foi derrotado e porque o Partido Social-democrata tornou-se cada vez mais conservador nos anos seguintes.

Institucional

Não vou me alongar sobre o ponto óbvio de que a lição institucional a se extrair de Outubro é, em muitos sentidos, negativa – devemos rejeitar por completo o modelo político gerado pelos bolcheviques, de uma ditadura de partido único e a revogação de liberdades básicas.

Foi um erro calamitoso desqualificar os direitos liberais como direitos “burgueses”, como fizeram muitos marxistas no início do século XX, implicando que aqueles direitos seriam de algum modo ilusórios ou fraudulentos. Essa manobra retórica tornou muito mais fácil a extinção desses direitos por Stálin e, antes dele, pelo próprio Lenin. Os direitos liberais foram o resultado de lutas e conquistas pelos movimentos da classe trabalhadora, não por capitalistas liberais. Qualquer esquerda digna de seu nome precisa proteger e aprofundar esses direitos, não descartá-los no lixo.

Mais desafiadora é a questão do planejamento econômico. Temos de começar com a observação de que a expectativa de uma economia sob planejamento centralizado simplesmente substituindo o mercado não tem fundamento empírico. Nós podemos desejar que o planejamento funcione, mas não temos evidências empíricas de que ele pode funcionar. Todas as tentativas de colocá-lo em operação por mais do que por curtos períodos fracassaram. A experiência russa é o exemplo mais elaborado disso. E esse fracasso tem de ser encarado e explicado, não pode ser simplesmente contornado. Não basta dizer, como dizem muitos marxistas, que aquela experiência “não era socialismo de verdade, então não conta”. Talvez não fosse mesmo socialismo – e talvez algum socialismo de verdade, com democracia de verdade, com conselhos de trabalhadores de verdade e com computadores de verdade fará com que o planejamento econômico funcione; mas o ônus da prova cabe integralmente a quem diz que ele vai funcionar. Não se pode vencer essa discussão com um gesto de pouco caso e recusando a experiência do século passado.

Em outras palavras, temos de considerar seriamente a possibilidade de que o planejamento como Marx vislumbrava talvez não seja uma possibilidade real. Qualquer discussão terá de seguir com um exame minucioso da experiência soviética, para tentar verificar se o fracasso estava relacionado com o modo específico como o planejamento foi instituído, ou se talvez a lição seja que uma economia industrial moderna simplesmente não pode ser dirigida com planejamento. É de fato muito surpreendente a pouca atenção que a Esquerda contemporânea dá a essa questão – comparada, por exemplo, à energia consumida desconstruindo filmes de Bollywood.

Em todo caso, dado o histórico duvidoso do planejamento central, temos de considerar seriamente a ideia de que uma economia pós-capitalista talvez tenha de tomar a forma de algum tipo de socialismo de mercado. Há muitos modelos desse tipo de economia na esquerda e todos possuem características diferentes. Seja lá qual for a estrutura institucional de um socialismo de mercado, o que importa é que os princípios subjacentes em sua concepção sejam fiéis a aquilo que os socialistas buscam – colocar as pessoas acima dos lucros. Para elaborar um pouco mais, seja lá qual for o modelo que acabe se estabelecendo, ele será diferente do capitalismo no sentido de que:

  • O mercado será contido, de modo a não ser o árbitro sobre o bem-estar das pessoas;
  • Os tomadores de decisões econômicas terão de prestar contas democraticamente;
  • Não se admitirá que desigualdades de riqueza se traduzam em desigualdades de poder político.

É claro, haverá outros princípios que darão forma ao desenho das instituições. Mas é difícil imaginar qualquer modelo aceitável de socialismo – de mercado ou planificado – que não considere os princípios listados acima. Uma economia que desconsidere qualquer desses princípios provavelmente não poderá ser qualificada como socialista – não, pelo menos, no sentido em que as Esquerdas sempre compreenderam o conceito.

Expor com clareza o que queremos obter com um tipo de economia nos permite compreender o que está em jogo. O planejamento não é desejável como um fim em si mesmo: ele sempre foi abraçado como um meio para alcançar um fim, e o objetivo básico que os socialistas almejam é uma ordem humana e social justa. Talvez acabemos descobrindo que o planejamento total não seria apenas irrealista, mas também desnecessário – talvez no fim das contas se verifique que os objetivos fundamentais aos quais os socialistas aspiram de fato sejam alcançáveis através de um socialismo de mercado. Talvez possa até mesmo ser o caso de que o planejamento central crie tensões com algumas das dimensões da justiça social.

Um dos piores legados da era da Segunda Internacional foi a identificação entre socialismo e planejamento central. Essa equação não deve ser repetida nunca mais. Modelos econômicos não são fins em si mesmos; são instrumentos para alcançarmos o que estamos realmente buscando – uma sociedade na qual as pessoas consigam se ver umas às outras como fins, não como meios.

O Que Se Vê Adiante

Sabemos, pelos esforços dos socialistas do último século, que o caminho até uma ordem mais igualitária passa por um confronto com o capital, que não é possível contorná-lo. Os únicos partidos que já obtiveram qualquer sucesso real nessa empreitada foram partidos de massa baseados em quadros e que tinham raízes profundas nas classes trabalhadoras. Nesse momento, o maior desafio diante da Esquerda é cortar o cordão umbilical que a liga aos campi das universidades e às ONGs, e voltar a mergulhar no ambiente dos trabalhadores. Qualquer esquerda viável hoje também precisa abraçar a política eleitoral como o segundo braço de uma estratégia de pinça, na qual a força nas bases populares é combinada com a ala parlamentar, uma alimentando a outra. No momento atual, em países como os EUA ou o Reino Unido, parece estar havendo uma abertura mais depressa para a dimensão parlamentar do que para a dimensão das bases populares – a Esquerda deveria entrar de cabeça, capitalizar os benefícios dessa inserção e, então, usá-los para construir a base. Ao mesmo tempo, precisamos aprofundar a discussão sobre o que queremos obter com a nossa luta.

Está claro que um socialismo viável será uma ordem pluralista, multipartidária, com uma redução significativa do mercado. O quanto poderemos fazê-lo recuar depende em grande medida de questões práticas sobre o que é possível fazer e o que não é. Mas exatamente porque a estratégia de ruptura está fora de questão, precisamos começar pela estrada da social-democracia – e depois, dela para o socialismo democrático. Temos bastante experiência sobre como chegar na primeira parte do percurso, mas sabemos bem menos sobre como chegar na segunda.

é professor de sociologia na New York University. Seu livro mais recente, ‘Postcolonial Theory and the Specter of Capital’ [“Teoria Pós-colonial e o Espectro do Capital”] acaba de ser publicado pela editora Verso.

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