Como um rio sedento de água
Assim corre meu pensamento.
É tão calada a minha mágoa,
Sem um grito, sem um lamento.
Caminho a direito, vertical,
As palavras lanço-as ao vento.
Não é na morte, mas na vida,
Que pensa o meu pensamento.
Saíste um dia da água
Direita a mim em passo lento,
Soubesse eu quanta mágoa
Viria a saber meu pensamento!
Como um rio sedento de água
Assim corre para o mar meu pensamento.
Se tudo soubesse não vivia
A vida seria apenas mágoa e vento.
Se a Razão me guiasse somente
Sem razão seria o mar.
Sem razão seria o vento.
Como um rio farto de água
Sem desejo meu pensamento.
Que venha a mágoa,
Que parta quem um dia chegou,
Que tudo que é leve,
O leve o vento.
Que sem outra razão seja a vida
Que a razão do sentimento.
Como um rio que corre para o mar
Que de muitas vidas se faça
A razão do meu pensamento.
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quarta-feira, 29 de abril de 2009
terça-feira, 28 de abril de 2009
CANTO
Canto os teus pés de andorinha
lavando na fonte a tua formusura.
Gráceis são as asas dos teus desejos
de púrpura as madrugadas
nas tuas mãos se aconchegam os aflitos.
Tão tristes, meus olhos, tão tristes,
nos labirintos das palavras.
Faz-se a noite sorrateira e já é dia
acende-se o céu nos teus olhos
com que olhas sorrindo.
É sempre primavera no bosque
onde farejo os teus perfumes.
Confuso entre o verde e o azul
tacteio como um cego as fendas,
as ondulações da terra,
é nessa humidade que eu cresço
pinheiro manso,
é nessas tremuras que eu desfaleço
que eu cavo sem descanso.
lavando na fonte a tua formusura.
Gráceis são as asas dos teus desejos
de púrpura as madrugadas
nas tuas mãos se aconchegam os aflitos.
Tão tristes, meus olhos, tão tristes,
nos labirintos das palavras.
Faz-se a noite sorrateira e já é dia
acende-se o céu nos teus olhos
com que olhas sorrindo.
É sempre primavera no bosque
onde farejo os teus perfumes.
Confuso entre o verde e o azul
tacteio como um cego as fendas,
as ondulações da terra,
é nessa humidade que eu cresço
pinheiro manso,
é nessas tremuras que eu desfaleço
que eu cavo sem descanso.
domingo, 26 de abril de 2009
ENSAIO SOBRE AS CORES
Azul
Da minha janela vejo o azul.
O resto pertence à cidade.
Entras. Trazes o céu pela mão.
Lá fora, os abutres afiam o bico.
Vermelho
Não evoco o sangue mas a romã.
Uma melancia fendida a meio.
Maçã, cereja, morango.
A tua boca canta como a cascata na escarpa.
Castanho
Castanho escuro com tons de oiro.
Castanhas na lareira. Melancolia.
Vem meu amor, de palavras despida.
Antes delas sinto-te.
Violeta
Acaricio o corpo da terra. O tacto.
Na infância as minhas mãos eram ávidas.
Como recuperar tanta avidez?
No teu olhar desassombrado,
perfila-se uma sombra.
Amarelo
No verão reverdeço
quando o trigo amadurece.
Sedentos rebanhos
perseguem uma fonte.
Nas nossas bocas. Tanto sol.
Negro
A mão sobre o teu púbis
desenha a abóboda de uma catedral.
Santificado seja o teu nome.
A Deus -nada- nada dou.
Roxo
Falo-te de minha mãe, lua martirizada.
Dela herdei esta dor indefinida,
como quem sente que a vida
é uma criança que a morte interrompeu.
Contigo brinco de novo.
Laranja
Flor de laranjeira
na memória colhida.
Ó terra prometida!
Desejo-te mais do que te espero.
A minha ilha afundada
recolhe toda a inocência.
Lilás
Certo dia, era criança, sentado
na margem do rio Côa,
tive a visão do que seria,
um mundo pasmado em paz eterna.
Que outro eu seria?
Oiro
Teus longos cabelos ao sol,
soprando ligeira a maresia,
vertiam oiro nos meus dedos.
Nesse tarde ninguém se afogou.
O mar, uma criança parecia.
Verde
Verde,
o vale, a aldeia no sopé da montanha.
Sobre nenúfares caminha o Pensamento.
Energia e matéria, nada mais
foi preciso para um universo nascer
e outro morrer.
Prata
Os teus pés dançam sobre as águas
sem que, no entanto, a leveza seja o teu destino.
Também as ondas são, às vezes, tão mansas que disfarçam
a força com que batem no outro lado do mundo.
Todas as cores
O bater das asas dos teus pés levantam-me da terra dura e árida onde teimam em medrar pensamentos inúteis, ressentimentos, ciúmes, feridas de Narciso, espadas de Tântalo, rochedos de Sísifo, grilhões de Prometeu, boceta de Pandora, diabos, espectros, fantasmas...Fico leve, ligeiro, fugaz; porém, preciso, instantâneo, intempestivo, nómada, cavalo alado, toiro investindo contra Ariadna, sensitivo, presente, ao mesmo tempo trémulo e determinado, indiferente à passagem implacável do tempo. Tu és, nesse instante em que o Mito se actualiza, em que o Acontecimento realiza a Diferença Pura, o passado e o futuro, ou o Presente que congela o Passado e abre caminho à flecha do tempo.
Da minha janela vejo o azul.
O resto pertence à cidade.
Entras. Trazes o céu pela mão.
Lá fora, os abutres afiam o bico.
Vermelho
Não evoco o sangue mas a romã.
Uma melancia fendida a meio.
Maçã, cereja, morango.
A tua boca canta como a cascata na escarpa.
Castanho
Castanho escuro com tons de oiro.
Castanhas na lareira. Melancolia.
Vem meu amor, de palavras despida.
Antes delas sinto-te.
Violeta
Acaricio o corpo da terra. O tacto.
Na infância as minhas mãos eram ávidas.
Como recuperar tanta avidez?
No teu olhar desassombrado,
perfila-se uma sombra.
Amarelo
No verão reverdeço
quando o trigo amadurece.
Sedentos rebanhos
perseguem uma fonte.
Nas nossas bocas. Tanto sol.
Negro
A mão sobre o teu púbis
desenha a abóboda de uma catedral.
Santificado seja o teu nome.
A Deus -nada- nada dou.
Roxo
Falo-te de minha mãe, lua martirizada.
Dela herdei esta dor indefinida,
como quem sente que a vida
é uma criança que a morte interrompeu.
Contigo brinco de novo.
Laranja
Flor de laranjeira
na memória colhida.
Ó terra prometida!
Desejo-te mais do que te espero.
A minha ilha afundada
recolhe toda a inocência.
Lilás
Certo dia, era criança, sentado
na margem do rio Côa,
tive a visão do que seria,
um mundo pasmado em paz eterna.
Que outro eu seria?
Oiro
Teus longos cabelos ao sol,
soprando ligeira a maresia,
vertiam oiro nos meus dedos.
Nesse tarde ninguém se afogou.
O mar, uma criança parecia.
Verde
Verde,
o vale, a aldeia no sopé da montanha.
Sobre nenúfares caminha o Pensamento.
Energia e matéria, nada mais
foi preciso para um universo nascer
e outro morrer.
Prata
Os teus pés dançam sobre as águas
sem que, no entanto, a leveza seja o teu destino.
Também as ondas são, às vezes, tão mansas que disfarçam
a força com que batem no outro lado do mundo.
Todas as cores
O bater das asas dos teus pés levantam-me da terra dura e árida onde teimam em medrar pensamentos inúteis, ressentimentos, ciúmes, feridas de Narciso, espadas de Tântalo, rochedos de Sísifo, grilhões de Prometeu, boceta de Pandora, diabos, espectros, fantasmas...Fico leve, ligeiro, fugaz; porém, preciso, instantâneo, intempestivo, nómada, cavalo alado, toiro investindo contra Ariadna, sensitivo, presente, ao mesmo tempo trémulo e determinado, indiferente à passagem implacável do tempo. Tu és, nesse instante em que o Mito se actualiza, em que o Acontecimento realiza a Diferença Pura, o passado e o futuro, ou o Presente que congela o Passado e abre caminho à flecha do tempo.
sexta-feira, 24 de abril de 2009
PENSAMENTOS AVULSOS
I.
Ocupamos as vidinhas com ódios, ressentimentos, invejas, ciúmes, cada um centrado no seu egozinho a vigiar de perto os egozinhos dos demais. Se observássemos o universo tal qual é, destituído de valores, alcançaríamos a serena felicidade da sabedoria. Não o conseguindo, atinjamos aquele género de conhecimento que mais disso se aproxime.
II.
Vamos repetindo aos outros que o Amor maiúsculo é a forma (platónica) da mais pura e duradoira felicidade. Na prática, vamos navegando nas paixões, ou, a medo, vamos acostando ao cais da segurança das rotinas e dos compromissos. Na verdade, a lição platónica é esta: amar o conhecimento verdadeiro é o amor mais seguro, sereno e duradoiro. Com esse não nos iludimos. Acaso Espinosa, Darwin, Marx ou Einstein se iludiram?
III.
Não nascemos para odiar, mas para amar. Para amar o quê e como? Eis a investigação filosófica pessoal por excelência.
IV.
O que nos faz sofrer não é o amor, mas a paixão. O ser humano é uma criatura apaixonadiça, por isso sofre e faz sofrer. A causa não está na carne, mas na mente. A reforma da mente é a vocação filosófica pessoal mais urgente.
V.
A reforma social mais urgente é a erradicação de sistemas que exploram o corpo e a mente de um homem por outro homem. Fora isso, continuaremos humanos, demasiado humanos, isto é, não alcançaremos nunca a verdadeira humanidade.
Ocupamos as vidinhas com ódios, ressentimentos, invejas, ciúmes, cada um centrado no seu egozinho a vigiar de perto os egozinhos dos demais. Se observássemos o universo tal qual é, destituído de valores, alcançaríamos a serena felicidade da sabedoria. Não o conseguindo, atinjamos aquele género de conhecimento que mais disso se aproxime.
II.
Vamos repetindo aos outros que o Amor maiúsculo é a forma (platónica) da mais pura e duradoira felicidade. Na prática, vamos navegando nas paixões, ou, a medo, vamos acostando ao cais da segurança das rotinas e dos compromissos. Na verdade, a lição platónica é esta: amar o conhecimento verdadeiro é o amor mais seguro, sereno e duradoiro. Com esse não nos iludimos. Acaso Espinosa, Darwin, Marx ou Einstein se iludiram?
III.
Não nascemos para odiar, mas para amar. Para amar o quê e como? Eis a investigação filosófica pessoal por excelência.
IV.
O que nos faz sofrer não é o amor, mas a paixão. O ser humano é uma criatura apaixonadiça, por isso sofre e faz sofrer. A causa não está na carne, mas na mente. A reforma da mente é a vocação filosófica pessoal mais urgente.
V.
A reforma social mais urgente é a erradicação de sistemas que exploram o corpo e a mente de um homem por outro homem. Fora isso, continuaremos humanos, demasiado humanos, isto é, não alcançaremos nunca a verdadeira humanidade.
segunda-feira, 20 de abril de 2009
Notas de rodapé
I.
As sociedades de controlo não se pre-ocupam com vocações, mas com ocupações que possam controlar.
II.
A vocação, literalmente, é uma voz que nos apela a. Ser professor, hoje, é um voz externa que nos ordena a.
III.
O professor somente readquire estatuto e identidade quando mais ninguém souber fazer o que ele faz tão bem como ele faz.
IV.
Poderá o professor ter alcançado um Self, que nem por isso possui hoje uma identidade social precisa.
V.
A perda, a confusão, a difusão, das identidades pessoais e sociais é um dos traços mais marcantes deste tempo, que é todo ele de mudança, mas não de progresso. Do adolescente ao adulto todos procuram uma identidade.
VI.
O desempregado perdeu a identidade, o empregado possui uma identidade precária.
VII.
Tudo é precário, nada é seguro. A instabilidade, a precariedade, rimam com a nossa Idade. Não crescemos em humanidade: involuimos.
VIII.
As crianças e os jovens de agora não se diferenciam das gerações anteriores nos seus traços psicológicos próprios da sua constituição e formação. A diferença está em que os antigos não faziam o que queriam, enquanto estes não fazem o que deviam.
IX.
Diminuir e aviltar a condição social do trabalho dos professores é permitir que prospere a arrogância da estupidez. Que o ignorante não sinta vergonha da sua ignorância. E os poderosos reproduzam o seu poder.
X.
Quanto mais se embrutece e embaratece a força-de-trabalho das massas, mais libertas se tornam as elites face ao poder das massas.
As sociedades de controlo não se pre-ocupam com vocações, mas com ocupações que possam controlar.
II.
A vocação, literalmente, é uma voz que nos apela a. Ser professor, hoje, é um voz externa que nos ordena a.
III.
O professor somente readquire estatuto e identidade quando mais ninguém souber fazer o que ele faz tão bem como ele faz.
IV.
Poderá o professor ter alcançado um Self, que nem por isso possui hoje uma identidade social precisa.
V.
A perda, a confusão, a difusão, das identidades pessoais e sociais é um dos traços mais marcantes deste tempo, que é todo ele de mudança, mas não de progresso. Do adolescente ao adulto todos procuram uma identidade.
VI.
O desempregado perdeu a identidade, o empregado possui uma identidade precária.
VII.
Tudo é precário, nada é seguro. A instabilidade, a precariedade, rimam com a nossa Idade. Não crescemos em humanidade: involuimos.
VIII.
As crianças e os jovens de agora não se diferenciam das gerações anteriores nos seus traços psicológicos próprios da sua constituição e formação. A diferença está em que os antigos não faziam o que queriam, enquanto estes não fazem o que deviam.
IX.
Diminuir e aviltar a condição social do trabalho dos professores é permitir que prospere a arrogância da estupidez. Que o ignorante não sinta vergonha da sua ignorância. E os poderosos reproduzam o seu poder.
X.
Quanto mais se embrutece e embaratece a força-de-trabalho das massas, mais libertas se tornam as elites face ao poder das massas.
sexta-feira, 17 de abril de 2009
UM DIA COMO OS OUTROS
Despertei bem disposto. Repousado, sem ramelas nos olhos, sem aquela secura na garganta que, às vezes, me incomoda madrugada dentro. Contudo, a boa disposição durou apenas aquele instante fugidio e efémero em que julgamos que o sonho que sonhávamos é a realidade. Sonhara que a nossa casa não era esta, a verdadeira, mas uma outra, entre o mar e a terra, de cujo alpendre de madeira pintada de branco eu via o oceano e escutava o marulhar das ondas esfregando-se carinhosamente nas areias que se enxaguavam ao sol da manhã, e, nas traseiras, do lado da ampla cozinha, estendia-se um vale verdejante, salpicado de papoilas e margaridas. Quando a minha mulher se ergueu a resmungar e a queixar-se daqueles períodos mensais que elas herdam e dos quais estou a salvo, embora as consequências caiam em cima de mim normalmente com estrondo, quando insultou o chinelo que não estava à mão, ou seja, ao pé, quando as crianças irromperam pelo quarto dentro à bulha disputando o telemóvel de que ambas se serviam em dias alternados, quando o cão emitiu com um latido furioso a urgência de defecar na rua, quando o dever doloroso de lutar contra o tempo implacável me obrigou a antever alucinadamente uma turma de pequenos tiranos a aguardarem-me com sono e desconforto daí a menos de uma hora, saí da cama aos tropeções. Vesti o que tinha à mão, degluti a chávena de café com o estômago a recusar tudo que fosse sólido, ajudei a dispor as mochilas das crianças com as mesmas coisas de todos os dias mas que, apesar disso, nunca preparavam com antecedência, deitei água na fervura do mau humor da mulher, levei o cão à rua, esperei com a impaciência do condenado que ele defecasse onde e quando lhe aprouvesse, apanhei o presente, pisei o dejecto fresco do horroroso mastim que a senhora sua dona havia largado enquanto ela bocejava tranquilamente, empurrei o meu medíocre cachorro pelas escadas acima como quem empurra o desterro, confirmei se a torneira do gás ficava fechada, apaguei as luzes acesas, verifiquei que as crianças já estavam prontas com aquele rigor e destreza que só a mulher consegue ter mesmo nos períodos difíceis, preparei a minha mala com as manuais das aulas deste dia, acto que nunca pratico na noite anterior, e todos descemos com aquele aprumo e silêncio que vemos numa manada de bisontes em fuga. O citroen não pegou à primeira. Respirei fundo, a mulher disse qualquer coisa que não ouvi mas que era desagradável, as crianças arranharam-se lá atrás uma à outra, pegou à terceira, suspirei, fiz um esforço para repor nas retinas a casa com o mar em frente e um pomar de laranjeiras, e parti para o meu destino. Larguei as crianças na creche e na escola, a mulher no emprego, fiquei entupido na avenida com o trânsito, desemboquei na sala de aula, aquietei meia dúzia de hiperactivos, redigi e ditei o sumário, interroguei a turma sobre o teste a que se submeterão oito dias depois, recebi respostas sem clareza e sem conteúdo, tentei que um monossílabo se convertesse numa simples frase, expliquei pela nonagésima vez o significado e a função das falácias, e, enquanto respondiam por escrito a uma ficha de autoavaliação, soltei-me, evadi-me daquele ruído de fundo, bati as asas para longe da realidade dura e crua, mergulhei nas águas cálidas daquele mar que escutei no sonho, auscultei a saúde das laranjas no laranjal, descalcei-me e corri com a liberdade dos meus sete anos de idade sobre o lençol húmido das papoilas e margaridas.
domingo, 12 de abril de 2009
OS DOIS IRMÃOS
O reino estava de luto. Morrera o rei. Deixou dois filhos. Cabia ao primogénito a coroa, porém era ao mais novo que o pai dedicava toda a sua afeição. Aconselhou mesmo o Parlamento que a escolha recaísse sobre esse. Os parlamentares decidiram-se pelo outro, por maioria absoluta de votos, atendendo à razão ponderosa da legitimidade do primonato e às suas qualidades de guerreiro. De facto, o reino, sendo pequeno e encostado a um reino maior e poderoso, era alvo permanente da cobiça, havendo até uma facção interna que preferia a junção dos dois, em nome da segurança. Por conseguinte, a facção dominante, e não a anterior, votou naquele que mais confiança incutia. De facto, os dois irmãos eram completamente diferentes: o mais velho, um temperamental, aguerrido e destemido, ambicionando glórias, autoritário, devotado apenas às armas e às cerimónias pomposas em que ele próprio pudesse brilhar no esplendor do poder; o mais novo, uma criatura toda ela sensibilidade, doçura no trato, tolerante, animadverso a batalhas e heroísmos, meditativo e sonhador. O novo rei era casado, o segundo nem em tal coisa pensava. A primeira dama era uma mulher extraordinariamente bela, os embaixadores de todos os países que vieram cumprimentar o novo soberano regressaram aos seus reinos perdidos de concupiscência, desejosos de ocuparem o pequeno reino e a cama da mulher. O que ninguém sabia, o segredo mais bem guardado, era este: a rainha estava loucamente apaixonada pelo cunhado, sempre o preferira a ele, porém nunca recebera qualquer sinal de interesse.
Mesmo antes das longas cerimónias da coroação haverem terminado, já o irmão e cunhado desaparecera. A rainha, o próprio rei, ordenaram que o procurassem em todos os cantos e recantos do palácio, jardim real, ruas, praças, prédios e casebres da cidade. Muitos se aprestaram a fornecer informações sobre o seu paradeiro, mas nenhuma delas conduziu ao desaparecido. Muito mais tarde, a rainha, que não desistia, soube, apenas soube, que o cunhado deambulava pelas aldeias mais pobres do reino, habitava-as um momento e logo partia, deixando atrás de si um pedaço mais da lenda que o convertia num homem santo, que semeava sonhos nos pequeninos e esperanças nos mais idosos, isto é, ao mesmo tempo que brincava como uma criança, falava aos mais velhos na irremediável fugacidade de todas coisas, que este mundo rolava no espaço imperturbável às paixões inúteis dos homens. Sabendo isto, a cunhada mais o amava, dilacerada contudo pelo dilema de amar no marido a sua fogosidade viril, o seu corpo atlético, a autoridade que dele irradiava como uma força natural, o governante audaz que repelia à espada os vizinhos inimigos, e amar no cunhado a sua docilidade , delicadeza de corpo e alma, a poesia que irradiava dos seus belos castanhos.
Os anos passaram, como passam os invernos e as primaveras, e um certo dia uma comitiva chorosa transportou para o palácio o cadáver do rei, tombado na última batalha. A viúva chorou sinceramente e durante um ano encerrou-se em pesado luto. Por fim, ardendo de saudade pelo cunhado, atormentada pela solidão, ordenou que o fossem buscar para ocupar o trono a seu lado, ainda que à força fosse. Muito mundo tiveram de percorrer até que o encontraram sentado sob uma frondosa figueira-da-índia. Disseram-lhe ao que vinham. Souberam apimentar a conversa tecendo francos elogios à superlativa beleza da viúva. Recusou. Proferiu um curto sermão do qual apenas conseguiram resumir, perante a rainha viúva, o seguinte aforismo: «Torna-te no que és. Vive de tal modo que, quando retornares, queiras repetir a vida que escolheste!».
Reza a história que o reino foi governado muitos e bons anos por uma mulher que soube conjugar o verbo «governar» com o verbo «perdoar». A autoridade do marido de um lado, a doçura do cunhado do outro.
Mesmo antes das longas cerimónias da coroação haverem terminado, já o irmão e cunhado desaparecera. A rainha, o próprio rei, ordenaram que o procurassem em todos os cantos e recantos do palácio, jardim real, ruas, praças, prédios e casebres da cidade. Muitos se aprestaram a fornecer informações sobre o seu paradeiro, mas nenhuma delas conduziu ao desaparecido. Muito mais tarde, a rainha, que não desistia, soube, apenas soube, que o cunhado deambulava pelas aldeias mais pobres do reino, habitava-as um momento e logo partia, deixando atrás de si um pedaço mais da lenda que o convertia num homem santo, que semeava sonhos nos pequeninos e esperanças nos mais idosos, isto é, ao mesmo tempo que brincava como uma criança, falava aos mais velhos na irremediável fugacidade de todas coisas, que este mundo rolava no espaço imperturbável às paixões inúteis dos homens. Sabendo isto, a cunhada mais o amava, dilacerada contudo pelo dilema de amar no marido a sua fogosidade viril, o seu corpo atlético, a autoridade que dele irradiava como uma força natural, o governante audaz que repelia à espada os vizinhos inimigos, e amar no cunhado a sua docilidade , delicadeza de corpo e alma, a poesia que irradiava dos seus belos castanhos.
Os anos passaram, como passam os invernos e as primaveras, e um certo dia uma comitiva chorosa transportou para o palácio o cadáver do rei, tombado na última batalha. A viúva chorou sinceramente e durante um ano encerrou-se em pesado luto. Por fim, ardendo de saudade pelo cunhado, atormentada pela solidão, ordenou que o fossem buscar para ocupar o trono a seu lado, ainda que à força fosse. Muito mundo tiveram de percorrer até que o encontraram sentado sob uma frondosa figueira-da-índia. Disseram-lhe ao que vinham. Souberam apimentar a conversa tecendo francos elogios à superlativa beleza da viúva. Recusou. Proferiu um curto sermão do qual apenas conseguiram resumir, perante a rainha viúva, o seguinte aforismo: «Torna-te no que és. Vive de tal modo que, quando retornares, queiras repetir a vida que escolheste!».
Reza a história que o reino foi governado muitos e bons anos por uma mulher que soube conjugar o verbo «governar» com o verbo «perdoar». A autoridade do marido de um lado, a doçura do cunhado do outro.
sexta-feira, 10 de abril de 2009
quarta-feira, 8 de abril de 2009
10 Princípios para se tornar um crápula
1º - Lamber os sapatos a todos que algum poder tenham.
2º - Começar por pedir dinheiro emprestado e jogar na bolsa.
3º - Tirar um curso de advocacia apenas para enganar e extorquir dinheiro aos constituintes.
4º - Em alternativa, um curso de economia para entender e aplicar os mecanismos da roubalheira.
5º - Aceitar luvas e outros subornos e ser hábil a exigi-los.
6º - Nunca oferecer um almoço de graça: favores pagam-se com favores.
7º - Introduzir-se numa empresa do que quer que seja, não olhando a meios para subir a gestor, administrador e accionista, com o olho posto em ordenados principescos e dividendos.
8º - Participar no esbulho da mais-valia criada pelos trabalhadores, flexibilizando os contratos individuais, congelando os salários, aumentando a jornada de trabalho, despedindo, encerrando a empresa recorrendo ao lay-off.
9º - Declarar publicamente que o Estado deve racionalizar as despesas com os serviços públicos, ao mesmo tempo que exige dele que intervenha para salvar o mercado livre; que lhe pague sobretudo, para se salvar da crise.
10º - Ser muito hábil na defesa da democracia contra os inimigos desta, isto é os inimigos dele, propondo ou apoiando todas as medidas que ponham os seus inimigos na ordem; ou seja, a ordem democrática.
2º - Começar por pedir dinheiro emprestado e jogar na bolsa.
3º - Tirar um curso de advocacia apenas para enganar e extorquir dinheiro aos constituintes.
4º - Em alternativa, um curso de economia para entender e aplicar os mecanismos da roubalheira.
5º - Aceitar luvas e outros subornos e ser hábil a exigi-los.
6º - Nunca oferecer um almoço de graça: favores pagam-se com favores.
7º - Introduzir-se numa empresa do que quer que seja, não olhando a meios para subir a gestor, administrador e accionista, com o olho posto em ordenados principescos e dividendos.
8º - Participar no esbulho da mais-valia criada pelos trabalhadores, flexibilizando os contratos individuais, congelando os salários, aumentando a jornada de trabalho, despedindo, encerrando a empresa recorrendo ao lay-off.
9º - Declarar publicamente que o Estado deve racionalizar as despesas com os serviços públicos, ao mesmo tempo que exige dele que intervenha para salvar o mercado livre; que lhe pague sobretudo, para se salvar da crise.
10º - Ser muito hábil na defesa da democracia contra os inimigos desta, isto é os inimigos dele, propondo ou apoiando todas as medidas que ponham os seus inimigos na ordem; ou seja, a ordem democrática.
Princípios para se tornar um homem bem sucedido na política
1º - Apresentar-se sempre vestido e penteado à la mode. Nos partidos onde se cultiva a modéstia, vestir-se como os outros.
2º - Frequentar ginásios selectos. Noutros casos, frequentar uma colectividade popular ou uma associação qualquer.
3º - Aderir preferencialmente a um dos dois partidos iguais que se alternam no governo. Se for jovem inscrever-se numa juventude partidária.
4º - Estar de corpo presente em todas as cerimónias e outros actos públicos e esforçar-se por ficar bem visível.
5º - Propor-se e aceitar todas as tarefas que os chefes, superiores ou colectivos, lhe encomendem.
6º - Mostrar-se sempre voluntarioso, decidido, fiel e agradecido.
7º - Tecer louvores ao partido e elogios aos chefes ou dirigentes máximos ou medianos.
8º - Reafirmar sempre a propósito que os objectivos do partido, do povo ou do país, estão acima dos interesses individuais.
9º - Exibir um semblante carregado de seriedade nos actos públicos e nas reuniões partidárias.
10º - Repetir amiúde palavras-chave: seriedade, ética e sentido de responsabilidade.
1º - Apresentar-se sempre vestido e penteado à la mode. Nos partidos onde se cultiva a modéstia, vestir-se como os outros.
2º - Frequentar ginásios selectos. Noutros casos, frequentar uma colectividade popular ou uma associação qualquer.
3º - Aderir preferencialmente a um dos dois partidos iguais que se alternam no governo. Se for jovem inscrever-se numa juventude partidária.
4º - Estar de corpo presente em todas as cerimónias e outros actos públicos e esforçar-se por ficar bem visível.
5º - Propor-se e aceitar todas as tarefas que os chefes, superiores ou colectivos, lhe encomendem.
6º - Mostrar-se sempre voluntarioso, decidido, fiel e agradecido.
7º - Tecer louvores ao partido e elogios aos chefes ou dirigentes máximos ou medianos.
8º - Reafirmar sempre a propósito que os objectivos do partido, do povo ou do país, estão acima dos interesses individuais.
9º - Exibir um semblante carregado de seriedade nos actos públicos e nas reuniões partidárias.
10º - Repetir amiúde palavras-chave: seriedade, ética e sentido de responsabilidade.
segunda-feira, 6 de abril de 2009
EU VI
Eu vi crianças deitadas em modestos caixões. Eram pequeninas como eu era então. Condiscípulas da mesma escola estilo «Estado Novo», no topo da colina, a igrejinha ao pé, para lá chegar calcorreávamos quilómetros, servíamo-nos da linha de caminho-de-ferro como orientação. Sentavam-se ao fundo, ou à frente, de salas geladas, em secretárias duras como pedra, os tinteiros nos tampos, um humilde cadernito em cima, os pezinhos frios, a cabeça a tombar com o sono, o frio, a fome. Eu via-as depois em féretros de pinho. Morriam com o sarampo, pneumonia, meningite, de qualquer coisa. Ia vê-las com os demais companheiros, e ficava absorto, sem compreender. O que era a morte? não sabia.
Não recordo o funeral do meu irmãozinho, de quatro anos, nem das brincadeiras comuns que ambos certamente fazíamos. Guardo uma imagem vaga da minha mãe chorando silenciosamente. Guardo, porém, um sentimento agudo de injustiça, o sem-sentido de perda irreparável, da justiça não a compreendia ainda.
Vi, três anos depois da tragédia, o meu pai saindo porta fora, com lágrimas nos olhos, disseram-me mais tarde que estava preso muito longe, num forte com muros altos, castigado não soube porquê, e novamente senti uma profunda revolta, que foi a raiz, e a chama com que incendiei as minhas ideias.
Vi uma mulher, parecia jovem sob os farrapos, tombada numa rua da grande cidade, debaixo de um fardo de tábuas demasiado pesado para ela. Há quantas horas trabalhava nisso? que comera? Vi que ninguém a levantou, lhe deu a mão. Eu dei. E mais os vinte escudos que eram toda a minha fortuna. Faltavam poucos anos para o dia 25 de Abril de 1974.
Eu vi em África, no interior da mata, um grupo de homens brancos a tentar violar uns miúdos negros, fosse a gozar, fosse a sério, porque riam, gargalhavam, brutais, feios e porcos. E meteu-se em mim uma vontade de lhes bater, espancar, desfazer. Tirei o cinto mas não me atrevi. Era um miúdo. A chama que incendiava as minhas ideias ficou mais acesa.
Eu vi, passando na estrada, centenas, talvez milhares, de operários pedalando frágeis bicicletas a caminho das fábricas, pedalando, pedalando, pela aurora, pelo crepúsculo, com casacos mal talhados, de sarja pobre, sob a chuva, sob os ventos, com uma malga de caldo no estômago, talvez um bagaço. Ficou mais forte a minha chama. O que quer que fosse a justiça era assunto que me perseguia.
Eu vi como muitos fugiam e os coelhos eram mais bravos. Eu vi como a cobardia é coisa comum e a vergonha raramente a acompanha.
Eu vi como um companheiro, um estudante como eu, de origem social ainda mais modesta, companheiro do bilhar, se tornou delator, como chusmas de colegas de turma furaram uma greve na universidade, como um estudante engraxa um mestre, como a traição se insinua como um réptil numa relação, como um homem ou mulher têm um preço, não apenas quando trabalham, mas para que roubem, enganem, trepem mais uma tarimba, conquistem mais uns galões.
Eu vi um povo quase todo adormecido, estupidificado, silencioso, rude, maldoso, acobardado. Contudo, vi a valentia de camponeses do Alentejo e de operários fabris. E a minha chama ficou a arder.
E vi-te. Um pedaço de céu a andar dançando abrindo as águas, uma onda suave e branda, um sopro de brisa numa manhã de Abril, um riso dando música a uma tarde suavíssima de Setembro. Meu amor.
quinta-feira, 2 de abril de 2009
A CABEÇA
O corpo lá estava, mas a cabeça não. Tenho trinta anos de trabalho na judiciária e nunca assisti a um caso assim. Onde pararia a cabeça do morto? Fora assassinado, decapitado? Se sim, porquê e por quem?
No gabinete da polícia organizei-me para a perseguição. Levei três dias a tentar reunir elementos, sem sucesso algum, sobre a identidade do cadáver; apenas o consegui quando, na Central, recebemos uma queixa sobre o desaparecimento de um indivíduo que fez acender alguma luz no meu espírito desorientado. Queixas dessas eram quase diárias, difícil distinguir o supérfluo do acessório. O cadáver havia sido encontrado num beco, sem qualquer identificação. Somente alguém que nos desse o sinal do seu desaparecimento da sua casa ou do seu trabalho, nos poderia ajudar. Foi tal e qual o que acabou por acontecer. Uma voz feminina participara à polícia de segurança pública o desaparecimento, que lhe parecia misterioso e suspeito, de um indivíduo do qual tracei o perfil: raça caucasiana, sexagenário, professor catedrático da Universidade de Coimbra. A voz feminina apresentou-se-nos imediatamente quando a chamámos. Era uma bonita mulher, longe ainda da meia idade, que, abrindo-se em lágrimas, mostrou-se convicta de que o desaparecido não se escapuliria de casa tanto tempo por vontade própria, pois nem zangados estavam, bem pelo contrário. Fora, de certeza, assassinado, assaltado e assassinado, embora admitisse a hipótese, por insistência minha, de haver caído morto, de morte natural, em qualquer rua esconsa nesses labirintos da cidade dos estudantes. A mulher falava para o gravador, à minha frente, os alvos joelhos nus bem apertados, as mãos finas arrepiando a saia, umas belíssimas mamas a espetarem-se na camiseta, e a sua vasta cabeleira e uns belos olhos azuis provocaram-me um assomo de erecção. Envergonhei-me comigo mesmo: ora essa, a mulher a banhar-se em lágrimas, nervosíssima e eu…Adiante. O desaparecido segundo ela, e a seguir confirmado por nós, era pessoa bem considerada nos meios letrados, dono de uma bonita cabeça, que irradiava inteligência e sabedoria, e cidadão acima de qualquer suspeita. Ora bolas, onde andaria a cabeça? Por este andar ainda eu perdia a minha, sem que se perdesse grande coisa, de tanto matutar.
Dois dias e duas noites em branco não dei tréguas à missão , que se tornou compulsiva, de descobrir a sapiente cabeça. Detive quatro indivíduos cujas cabeças pareciam corresponder à fotografia que a mulher nos entregara. Larguei-os com uma desculpa atabalhoada, ao fim de meia hora: um, era serralheiro mecânico; o outro, caixeiro-viajante; o terceiro, inválido a viver de uma pensão; o quarto, o mais parecido de todos eles, era assumidamente gay, gesticulando com uns modos tão exageradamente femininos que nos fez rir, se bem que não seja um comportamento próprio a uma autoridade.
Onde pararia a dita cabeça? Em que corpo estaria assentada, passeando-se, falando, comendo…?
Entretanto, e isto já eu deveria ter referido mais acima, verificara-se um milagre, se é que eu, autoridade de um Estado laico, poderia recorrer a tais expressões, mas, em boa verdade, não tenho outra para tamanho fenómeno: o morto não estava morto afinal, três horas depois de se encontrar morto e bem morto, erguera-se sozinho da mesa onde o médico legista o observava e quase matando este de susto procurou a porta às apalpadelas, esbarrou diversas vozes com paredes e pessoas e saiu para a rua com a ajuda de uma enfermeira de rosto duro a quem nada parecia surpreender. Soube-se que apanhou um táxi e se encafuou em casa. Telefonei imediatamente para a namorada, companheira ou lá o que fosse, que desatou aos gritos ao telefone num misto de alegria e de estupefacção. E algum medo, diria eu.
Durante três dias, creio já ter dito, incluindo o fim-de-semana, procurei um corpo com a cabeça do indivíduo sem cabeça. Não li um jornal, não olhei para a televisão uma única vez, agarrado ao trabalho como um amante se agarra…à amante. Apesar disso, visitei o homem, para estudar e reunir todos os pormenores. A mulher abriu-me a porta e vi no rosto dela uma estranha serenidade. Encontrei-o sentado no sofá, de pernas cruzadas, roupão e chinelos. Mostrou-se, em contraste com a mulher, completamente furioso com a sua cabeça, passando várias vezes a mão direita sobre o plano absolutamente liso do pescoço onde, antes, lhe assentara uma cabeça invulgar. Não falava evidentemente: gesticulava e a mulher traduzia, escrevinhava incontinentemente num grosso bloco de apontamentos que a mulher decifrava. Denunciou nomes de numerosos indivíduos do seu meio que por inveja seriam capazes de lhe arrancar a cabeça. Porém, na verdade, a mulher já averiguara que todos conservavam as suas, isto é, deles. Dizendo melhor ainda: conservavam-se estúpidos, arrogantes, invejosos. Quem lhe roubaria a cabeça senão por inveja? Receber assim de bandeja, já pronta, uma cabeça que levara dezenas de anos a construir-se, a moldar-se, a encher-se de saber, a derramar luz sobre a cegueira dos outros, a esquartejar as asneiras alheias, a estultícia, as falácias, os sofismas? «Não temos saído de casa, não fazemos nada que ele não possa ver nem ouvir, alheámo-nos de tudo, é tanto o medo e a vergonha, esperamos apenas que o senhor resolva o enigma, confiamos tanto em si…», confessou a mulher. Não me atrevi sequer a dar-lhe conselhos, a ele, professor catedrático supra-sábio, a aquietar-se, a habituar-se a conviver com a falta, a brecha, a ruptura, o deslize, o espectro, em suma, de uma cabeça amada que o abandonara miseravelmente, metendo-se noutro corpo, enfiando-se na cama com ele, dando-lhe de comer e de beber…A bonita namorada como que percebeu os meus pensamentos: «Ele não fala, é certo, é horrível para ele, tão comunicativo, um grande conferencista, dezenas de estudantes nos seus seminários, agora refugia-se em casa, não ouve os telefonemas, nem lê na internet…aqui, em casa, utiliza muito bem os sentidos que lhe restam e a motricidade, tem um sentido muito apurado do tacto…». Aqui a beleza estacou e ruborizou-se. Não sou uma luminária mas sou suficientemente malandro para descortinar as fantasias que o sábio executaria sobre o estupendo corpo daquela mulher. Enfim, escapes para a sua falta. Se eu fosse sábio, diria «castração» ou «ferida narcísica», mas não sou.
Hoje, dia cinco de Maio, quando me dirigia para o meu gabinete na judiciária, o meu director esperava-me com uma cigarrilha na mão. «Oiça lá, ó Esteves, onde é que tem andado? Ao fim de tantos e tão bons anos de serviço a prender meliantes e o culpado à sua frente e não o topa??». Agarrei-me à porta envidraçada, um tremor percorreu-me o corpo até aos pés. «Não percebo o que me está a dizer!». «Pois não, como é que havia de perceber se não abriu um jornal nem viu um único telejornal?? A sua cabeça, desculpe lá, a cabeça que procura está aqui e ali escarrapachada, milhões de seres comuns já a viram, já a amam ou odeiam, e ninguém se acusa!». E atirou-me o Correio da Manhã para cima literalmente.
O que vi deixou-me estarrecido, mudo com os olhos arregalados como um mocho. A cabeça ocupava um quarto da primeira página. O cabeçalho intitulava-se: «O Primeiro-Ministro, com o seu novo look, inaugurou o TGV». Em baixo, relatava-se pormenorizadamente que o Primeiro-Ministro, abandonara o refúgio e o anonimato em que se recolhera três dias e três noites, para meditar, provavelmente recorrendo a técnicas do extremo-oriente, e apresentava-se ao povo, agora e subitamente, com uma nova cabeça, espectacular, emoldurada de uma bela e farta cabeleira branca, uma testa elevada que ressumava inteligência, um olhar penetrante que deixava os adversários completamente desarmados, as palavras escorriam como pérolas, cintilantes, embutidas em argumentos definitivos, sem falácias nem sofismas, frases inteiras em grego e latim, sentenças imortais de Aristóteles e de Séneca, citações oportuníssimas de Hegel (no mais perfeito alemão), de Nietzsche, Marcuse, Deleuze…O povo miúdo não entendia patavina, mas abria a boca de profunda e sincera admiração. Os seus correligionários encolhiam-se, vergados ao peso da grandeza, da autoridade sublime, das mordomias que ele, o chefe, doava em latim moderno.
Quando contei ao professor sem cabeça onde se encontrava, afinal, a cabeça dele, o homem caiu para o lado com uma síncope. Realmente, não era caso para menos: como é que eu, modesto funcionário, teria alguma vez poder para acusar tão grandiosa figura do roubo da sua cabeça? Dele, ou de outro?
No gabinete da polícia organizei-me para a perseguição. Levei três dias a tentar reunir elementos, sem sucesso algum, sobre a identidade do cadáver; apenas o consegui quando, na Central, recebemos uma queixa sobre o desaparecimento de um indivíduo que fez acender alguma luz no meu espírito desorientado. Queixas dessas eram quase diárias, difícil distinguir o supérfluo do acessório. O cadáver havia sido encontrado num beco, sem qualquer identificação. Somente alguém que nos desse o sinal do seu desaparecimento da sua casa ou do seu trabalho, nos poderia ajudar. Foi tal e qual o que acabou por acontecer. Uma voz feminina participara à polícia de segurança pública o desaparecimento, que lhe parecia misterioso e suspeito, de um indivíduo do qual tracei o perfil: raça caucasiana, sexagenário, professor catedrático da Universidade de Coimbra. A voz feminina apresentou-se-nos imediatamente quando a chamámos. Era uma bonita mulher, longe ainda da meia idade, que, abrindo-se em lágrimas, mostrou-se convicta de que o desaparecido não se escapuliria de casa tanto tempo por vontade própria, pois nem zangados estavam, bem pelo contrário. Fora, de certeza, assassinado, assaltado e assassinado, embora admitisse a hipótese, por insistência minha, de haver caído morto, de morte natural, em qualquer rua esconsa nesses labirintos da cidade dos estudantes. A mulher falava para o gravador, à minha frente, os alvos joelhos nus bem apertados, as mãos finas arrepiando a saia, umas belíssimas mamas a espetarem-se na camiseta, e a sua vasta cabeleira e uns belos olhos azuis provocaram-me um assomo de erecção. Envergonhei-me comigo mesmo: ora essa, a mulher a banhar-se em lágrimas, nervosíssima e eu…Adiante. O desaparecido segundo ela, e a seguir confirmado por nós, era pessoa bem considerada nos meios letrados, dono de uma bonita cabeça, que irradiava inteligência e sabedoria, e cidadão acima de qualquer suspeita. Ora bolas, onde andaria a cabeça? Por este andar ainda eu perdia a minha, sem que se perdesse grande coisa, de tanto matutar.
Dois dias e duas noites em branco não dei tréguas à missão , que se tornou compulsiva, de descobrir a sapiente cabeça. Detive quatro indivíduos cujas cabeças pareciam corresponder à fotografia que a mulher nos entregara. Larguei-os com uma desculpa atabalhoada, ao fim de meia hora: um, era serralheiro mecânico; o outro, caixeiro-viajante; o terceiro, inválido a viver de uma pensão; o quarto, o mais parecido de todos eles, era assumidamente gay, gesticulando com uns modos tão exageradamente femininos que nos fez rir, se bem que não seja um comportamento próprio a uma autoridade.
Onde pararia a dita cabeça? Em que corpo estaria assentada, passeando-se, falando, comendo…?
Entretanto, e isto já eu deveria ter referido mais acima, verificara-se um milagre, se é que eu, autoridade de um Estado laico, poderia recorrer a tais expressões, mas, em boa verdade, não tenho outra para tamanho fenómeno: o morto não estava morto afinal, três horas depois de se encontrar morto e bem morto, erguera-se sozinho da mesa onde o médico legista o observava e quase matando este de susto procurou a porta às apalpadelas, esbarrou diversas vozes com paredes e pessoas e saiu para a rua com a ajuda de uma enfermeira de rosto duro a quem nada parecia surpreender. Soube-se que apanhou um táxi e se encafuou em casa. Telefonei imediatamente para a namorada, companheira ou lá o que fosse, que desatou aos gritos ao telefone num misto de alegria e de estupefacção. E algum medo, diria eu.
Durante três dias, creio já ter dito, incluindo o fim-de-semana, procurei um corpo com a cabeça do indivíduo sem cabeça. Não li um jornal, não olhei para a televisão uma única vez, agarrado ao trabalho como um amante se agarra…à amante. Apesar disso, visitei o homem, para estudar e reunir todos os pormenores. A mulher abriu-me a porta e vi no rosto dela uma estranha serenidade. Encontrei-o sentado no sofá, de pernas cruzadas, roupão e chinelos. Mostrou-se, em contraste com a mulher, completamente furioso com a sua cabeça, passando várias vezes a mão direita sobre o plano absolutamente liso do pescoço onde, antes, lhe assentara uma cabeça invulgar. Não falava evidentemente: gesticulava e a mulher traduzia, escrevinhava incontinentemente num grosso bloco de apontamentos que a mulher decifrava. Denunciou nomes de numerosos indivíduos do seu meio que por inveja seriam capazes de lhe arrancar a cabeça. Porém, na verdade, a mulher já averiguara que todos conservavam as suas, isto é, deles. Dizendo melhor ainda: conservavam-se estúpidos, arrogantes, invejosos. Quem lhe roubaria a cabeça senão por inveja? Receber assim de bandeja, já pronta, uma cabeça que levara dezenas de anos a construir-se, a moldar-se, a encher-se de saber, a derramar luz sobre a cegueira dos outros, a esquartejar as asneiras alheias, a estultícia, as falácias, os sofismas? «Não temos saído de casa, não fazemos nada que ele não possa ver nem ouvir, alheámo-nos de tudo, é tanto o medo e a vergonha, esperamos apenas que o senhor resolva o enigma, confiamos tanto em si…», confessou a mulher. Não me atrevi sequer a dar-lhe conselhos, a ele, professor catedrático supra-sábio, a aquietar-se, a habituar-se a conviver com a falta, a brecha, a ruptura, o deslize, o espectro, em suma, de uma cabeça amada que o abandonara miseravelmente, metendo-se noutro corpo, enfiando-se na cama com ele, dando-lhe de comer e de beber…A bonita namorada como que percebeu os meus pensamentos: «Ele não fala, é certo, é horrível para ele, tão comunicativo, um grande conferencista, dezenas de estudantes nos seus seminários, agora refugia-se em casa, não ouve os telefonemas, nem lê na internet…aqui, em casa, utiliza muito bem os sentidos que lhe restam e a motricidade, tem um sentido muito apurado do tacto…». Aqui a beleza estacou e ruborizou-se. Não sou uma luminária mas sou suficientemente malandro para descortinar as fantasias que o sábio executaria sobre o estupendo corpo daquela mulher. Enfim, escapes para a sua falta. Se eu fosse sábio, diria «castração» ou «ferida narcísica», mas não sou.
Hoje, dia cinco de Maio, quando me dirigia para o meu gabinete na judiciária, o meu director esperava-me com uma cigarrilha na mão. «Oiça lá, ó Esteves, onde é que tem andado? Ao fim de tantos e tão bons anos de serviço a prender meliantes e o culpado à sua frente e não o topa??». Agarrei-me à porta envidraçada, um tremor percorreu-me o corpo até aos pés. «Não percebo o que me está a dizer!». «Pois não, como é que havia de perceber se não abriu um jornal nem viu um único telejornal?? A sua cabeça, desculpe lá, a cabeça que procura está aqui e ali escarrapachada, milhões de seres comuns já a viram, já a amam ou odeiam, e ninguém se acusa!». E atirou-me o Correio da Manhã para cima literalmente.
O que vi deixou-me estarrecido, mudo com os olhos arregalados como um mocho. A cabeça ocupava um quarto da primeira página. O cabeçalho intitulava-se: «O Primeiro-Ministro, com o seu novo look, inaugurou o TGV». Em baixo, relatava-se pormenorizadamente que o Primeiro-Ministro, abandonara o refúgio e o anonimato em que se recolhera três dias e três noites, para meditar, provavelmente recorrendo a técnicas do extremo-oriente, e apresentava-se ao povo, agora e subitamente, com uma nova cabeça, espectacular, emoldurada de uma bela e farta cabeleira branca, uma testa elevada que ressumava inteligência, um olhar penetrante que deixava os adversários completamente desarmados, as palavras escorriam como pérolas, cintilantes, embutidas em argumentos definitivos, sem falácias nem sofismas, frases inteiras em grego e latim, sentenças imortais de Aristóteles e de Séneca, citações oportuníssimas de Hegel (no mais perfeito alemão), de Nietzsche, Marcuse, Deleuze…O povo miúdo não entendia patavina, mas abria a boca de profunda e sincera admiração. Os seus correligionários encolhiam-se, vergados ao peso da grandeza, da autoridade sublime, das mordomias que ele, o chefe, doava em latim moderno.
Quando contei ao professor sem cabeça onde se encontrava, afinal, a cabeça dele, o homem caiu para o lado com uma síncope. Realmente, não era caso para menos: como é que eu, modesto funcionário, teria alguma vez poder para acusar tão grandiosa figura do roubo da sua cabeça? Dele, ou de outro?
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