Noam Chomsky
04.Mar.12 ::
“As notáveis vida e obra de Howard Zinn resumem-se melhor nas suas próprias palavras. Ele explicava que a sua preocupação fundamental eram “as inúmeras pequenas acções de pessoas desconhecidas” que estão na origem de “grandes momentos” que a história regista.”
Cambridge, Mass. - Não é fácil para mim escrever sobre Howard Zinn, o activista e grande historiador dos E.U.A.. Foi um amigo muito próximo ao longo de 45 anos. As nossas famílias eram também muito chegadas. A sua esposa Roz, que morreu de cancro pouco tempo antes, era uma pessoa maravilhosa e uma grande amiga. É também triste dar conta de que toda uma geração parece estar a desaparecer, incluindo vários velhos amigos: Edward Said, Eqbal Ahmed e outros que não eram apenas perspicazes e produtivos eruditos, mas também militantes dedicados e corajosos, sempre disponíveis quando eram necessários, o que era uma constante. Uma combinação que é essencial quando se espera uma sobrevivência decente.
As notáveis vida e obra de Howard resumem-se melhor nas suas próprias palavras. Ele explicava que a sua preocupação fundamental eram “as inúmeras pequenas acções de pessoas desconhecidas” que estão na origem de “grandes momentos” que integram o registo histórico, um registo que será profundamente enganoso e carecerá de poder se separado destas raízes quando passa através dos filtros da doutrina e do dogma. A sua vida sempre esteve intimamente entrelaçada com os seus inúmeros escritos, discursos e entrevistas. Entregava-se desinteressadamente a outorgar poder às pessoas desconhecidas que provocaram grandes momentos. Isto era verdade quando era operário industrial e activista, e desde os dias, há 50 anos, em que era professor no Spelman College em Atlanta, Geórgia, uma faculdade negra que em grande parte estava aberta para a pequena elite branca.
Quando ensinava em Spelman, Howard apoiou os estudantes que estavam na vanguarda do movimento pelos direitos civis nos primeiros e mais perigosos dias, muitos dos quais chegaram a ser conhecidos anos mais tarde (Alice Walker, Julian Bond e outros) e que o amavam e veneravam, como acontecia com qualquer pessoa que o conhecesse bem. E, como sempre, não se limitou a apoiá-los, o que já era bastante raro, mas também se envolveu directamente com eles nas campanhas mais arriscadas, que não eram fáceis de empreender naquela época, antes que houvesse algum movimento popular organizado e perante a hostilidade do governo durante vários anos. Finalmente, o apoio popular inflamou-se, em grande parte graças às acções corajosas de jovens que se sentavam aos balcões onde se serviam os alimentos, dirigiam autocarros da liberdade, organizavam manifestações, enfrentavam o racismo amargo e a brutalidade, e às vezes a morte. **
Nos inícios da década de 1960 estava a tomar forma um movimento de massas com Martin Luther King num papel de liderança, e o governo teve de responder. Como recompensa pela sua coragem e honestidade, Howard foi imediatamente expulso da faculdade onde ensinava. Alguns anos mais tarde, escreveu regularmente no Comité de Coordenação dos Estudantes não Violentos, SNCC (sigla em Inglês), a principal organização daquelas ” “pessoas desconhecidas” ” cujas “inúmeras pequenas acções” desempenharam um papel tão importante na criação da corrente de opinião que permitiu a Martin Luther King ganhar uma influência significativa (como tenho certeza que ele teria sido o primeiro a dizer) e levar o país a cumprir com as emendas constitucionais de um século antes, que teoricamente concediam direitos civis básicos aos ex-escravos; pelo menos fazê-lo parcialmente, porque é desnecessário enfatizar que ainda há muito a fazer.
Uma influência civilizadora
A nível pessoal passei a conhecer bem Howard quando fomos juntos a uma manifestação pelos direitos civis em Jackson, Mississippi (acho eu) em 1964, a qual, mesmo numa data já tão tardia, foi cena de confronto público violento, brutalidade policial e indiferença, ou inclusive de cooperação com as forças de segurança por parte das autoridades federais, às vezes de um modo um pouco chocante.
Depois de ser expulso do college em Atlanta onde ensinava Howard veio para Boston e passou o resto de sua carreira académica na Universidade de Boston, onde foi, tenho a certeza, o membro do campus universitário mais admirado e amado, e também alvo de acerbo antagonismo e crueldade mesquinha por parte da administração. No entanto nos últimos anos, após a sua reforma, grangeou a honra e o respeito públicos, que sempre tinham sido esmagadores entre os estudantes, funcionários da universidade, grande parte do corpo docente e da comunidade em geral. Enquanto aí esteve, Howard escreveu os livros que lhe deram uma bem merecida fama. O seu livro “Logic of Withdrawal, ” de 1967, foi o primeiro a expressar, clara e firmemente, o que muitos apenas começavam a perceber: que os E.U.A. não tinham qualquer direito a pedir um acordo negociado no Vietname, acordo que teria deixado Washington com o poder e controlo substancial do país que havia invadido e, em seguida, em grande parte destruído.
Em vez disso os EUA tiveram que fazer o que todo o agressor deveria fazer, retirar e permitir que a população, em certa medida, pudesse reconstruir a partir das ruínas e, se possível, proceder com um mínimo de honestidade ao pagamento de reparações maciças pelos crimes que tinham cometido os exércitos invasores, neste caso vastos crimes. O livro teve uma enorme influência entre o público, ainda que os meios cultos de hoje dificilmente possam compreender a sua mensagem, o que mostra o trabalho tão necessário que temos adiante de nós.
É muito significativo que entre o público do tempo de final da guerra 70% considerasse a guerra “fundamentalmente errada e imoral” e não “um erro”, o que constitui um índice notável, considerando o facto de que esse pensamento apenas podia insinuar-se no meio da opinião dominante. Os escritos de Howard (e, como sempre, a sua destacada presença nos protestos e na resistência directa) foram um factor fundamental na educação de grande parte do país.
Nesses mesmos anos Howard tornou-se também um dos principais apoiantes do movimento de resistência que se estava a desenvolver. Estava entre os primeiros signatários da Apelo para Resistir à Autoridade Ilegítima (Call to Resist Illegitimate Authority) e estava muito próximo das actividades da organização Resistir, de que foi praticamente um dos organizadores. Participou também nas acções que tiveram um impacto significativo para promover o protesto contra a guerra. Howard estava sempre lá, onde era preciso (palestras, participação em desobediência civil, apoio a pessoas resistentes, prestar testemunhos em julgamentos).
“A história desde baixo”
Ainda mais influente no longo prazo do que os escritos e acções de Howard contra a guerra foi a sua obra-prima imortal, ” “ A outra história dos Estados Unidos”, ” um livro que literalmente mudou a consciência de uma geração. Nele desenvolveu com cuidado, lucidez e de forma exaustiva a sua mensagem sobre o papel crucial das pessoas que permanecem desconhecidos na prossecução da luta incessante pela paz e justiça, e sobre as vítimas do sistema de poder que cria a sua própria versão da história e tenta impô-la. Posteriormente, as suas “Vozes” da História do Povo, agora uma aclamada produção teatral e de televisão, levaram a muitas pessoas as palavras reais daqueles esquecidos ou ignorados que desempenharam um papel tão valioso na criação de um mundo melhor.
O feito único de Howard, sacando as acções e as vozes de pessoas desconhecidas das profundezas para onde tinham sido confinadas, gerou uma enorme pesquisa histórica que segue um caminho semelhante, centrada em períodos críticos da história americana, e se volta também para outros países, o que é muito bem-vindo. Não é algo totalmente novo (anteriormente houve pesquisa académica sobre temas eruditos), mas nada comparáveis à evocação, ampla e incisiva, que Howard faz da “história vista de baixo”, que compensa as omissões críticas em como tem sido interpretada e transmitida a história dos EUA.
O dedicado activismo de Howard prosseguiu literalmente sem parar até o fim, mesmo nos seus últimos anos, quando sofreu uma doença grave e uma perda pessoal (embora mal se soubesse, quando alguém se encontrava com ele ou era visto conversando incansavelmente com o público em todo o país). Onde havia uma luta pela paz e pela justiça, lá estava Howard, na frente, inesgotável com o seu entusiasmo e inspirador na sua integridade, compromisso, eloquência e decência pura. É difícil estimar quantas e até que ponto foram influenciadas vidas de jovens pelas suas realizações, tanto no seu trabalho como na sua vida.
Há lugares onde a vida e a obra de Howard tiveram uma ressonância especial. Um deles, que deveria ser muito melhor conhecido, é a Turquia. Não conheço outro país em que escritores proeminentes, artistas, jornalistas, académicos e outros intelectuais tenham reunido um registo tão impressionante de coragem e integridade para condenar crimes de Estado e de ir mais além para empreender a desobediência civil para acabar com a opressão e a violência, enfrentando uma forte repressão e por vezes sofrendo-a, para retomar imediatamente a sua tarefa.
É um registo honroso, único que eu saiba, um registo do qual o país deveria estar orgulhoso. E que deve ser um modelo para os outros, assim como a vida e a obra de Howard Zinn é um modelo inesquecível, que certamente deixa uma marca permanente na forma de entender a história e como se deveria viver uma vida decente e honrada.
* States , traduzido para o castelhano por Toni Strubel, História do Povo dos Estados Unidos, Hondarribia, Hiru, 2005, revista e corrigida pelo autor.
**Howard Zinn fala destes anos e essas lutas no seu livro” “Ninguém é neutro num comboio em movimento” “, Hondarribia, Hiru, 2001
“Noam Chomsky é professor emérito do Departamento de Linguística e Filosofia do MIT. Já escreveu vários livros políticos de grande sucesso, incluindo ”9-11: estava lá uma alternativa?” (Seven Stories Press), uma versão actualizada deste clássico, que só foi lançado esta semana com um novo ensaio (do qual este artigo foi adaptado) para comemorar o décimo aniversário dos ataques de 11 de Setembro.
Uma versão deste artigo foi publicada originalmente em TomDispatch.com. ”
Fonte: http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2012/01/201212382259755885.html
Traduzido do Inglês para Rebelión por Beatriz Morales Bastos
Tradução do espanhol: Guilherme Coelho
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