Para a História do Socialismo
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Tradução do inglês por Anabela Magalhães, revisão e edição por CN, 08.03.2012
(original inglês em: http://www.monthlyreview.org/598einstein.php)
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Porquê o Socialismo?1
Albert Einstein
Será aconselhável para quem não é especialista em assuntos económicos e
sociais exprimir opiniões a propósito do socialismo? Eu creio que sim, por várias
razões.
Consideremos primeiro a questão do ponto de vista do conhecimento científico.
Pode parecer que não há diferenças metodológicas fundamentais entre a
astronomia e a economia: em ambos os campos os cientistas procuram descobrir
leis com aceitação geral para um grupo circunscrito de fenómenos de modo a tornar
a interligação destes fenómenos tão claramente compreensível quanto possível.
Mas, na realidade, estas diferenças metodológicas existem. A descoberta de leis
gerais no campo da economia é complicada pela circunstância de que os fenómenos
económicos observados são com frequência influenciados por muitos outros
factores, que são muito difíceis de avaliar separadamente. Além disso, a experiência
acumulada desde o início do chamado período civilizado da história da humanidade
– como é bem conhecido – tem sido largamente influenciada e limitada por causas
que não são, de modo nenhum, exclusivamente económicas por natureza. Por
exemplo, a maior parte dos principais Estados ficou a dever a sua existência à
conquista. Os povos conquistadores estabeleceram-se, legal e economicamente,
como a classe privilegiada do país conquistado. Ficaram com o monopólio da
propriedade da terra e nomearam um clero entre as suas próprias fileiras. Os
sacerdotes, que controlavam a educação, tornaram a divisão de classes da sociedade
numa instituição permanente e criaram um sistema de valores pelos quais, desde
então, o povo se tem guiado, em grande medida inconscientemente, no seu
comportamento social.
Mas a tradição histórica, digamos, faz parte do passado; em parte alguma se
superou verdadeiramente a fase do desenvolvimento humano, que Thorstein
Veblen2 chamou de «predatória». Os factos económicos observáveis pertencem a
essa fase e mesmo as leis que podemos determinar a partir deles não são aplicáveis
1 Artigo escrito por Albert Einstein especialmente para o primeiro número da revista norteamericana
Monthly Review, Nova Iorque, Maio de 1949. (Texto traduzido e publicado pelo
site resistir.info, em 4.07.2002: resistir.info/mreview/porque_o_socialismo.html. (N. Ed.)
2 Veblen, Thorstein Bunde (1857-1929), economista e sociólogo norte-americano,
segundo o qual as instituições da economia são influenciadas por dois instintos de base, o
instinto artesão e o instinto predador. Pelo primeiro, o homem enriquece-se pelo seu
trabalho, enquanto pelo segundo procura desapossar os outros dos seus bens e dos
resultados do seu trabalho. (N. Ed.).
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a outras fases. Uma vez que o verdadeiro objectivo do socialismo é precisamente
superar e ir além da fase predatória do desenvolvimento humano, a ciência
económica no seu estado actual pouca luz pode lançar sobre a sociedade socialista
do futuro.
Em segundo lugar, o socialismo orienta-se por um objectivo ético-social. A
ciência, contudo, não pode criar objectivo e, muito menos, incuti-los nos seres
humanos; quando muito, a ciência pode fornecer os meios para atingir
determinados objectivos. Mas os próprios objectivos são concebidos por
personalidades com ideais éticos elevados e – se estes ideais não forem nadosmortos,
mas vitais e vigorosos – são adoptados e levados avante por aqueles muitos
seres humanos que, semi-inconscientemente, determinam a evolução lenta da
sociedade.
Por estas razões devemos precaver-nos para não sobrestimarmos a ciência e os
métodos científicos quando se trata de problemas humanos; e não devemos
presumir que os peritos são os únicos que têm o direito a expressarem-se sobre
questões que afectam a organização da sociedade.
Inúmeras vozes têm afirmado desde há algum tempo que a sociedade humana
atravessa uma crise, que a sua estabilidade foi gravemente abalada. É característico
deste tipo de situação que os indivíduos se sintam indiferentes ou mesmo hostis em
relação ao grupo, pequeno ou grande, a que pertencem. Para ilustrar o meu
pensamento, permitam-me que refira aqui uma experiência pessoal. Falei
recentemente com um homem inteligente e cordial sobre a ameaça de outra guerra,
que, na minha opinião, colocaria em sério risco a existência da humanidade, e
observei que só uma organização supra-nacional ofereceria protecção contra esse
perigo. Imediatamente o meu visitante, muito calma e friamente, disse-me:
«Porque se opõe tão profundamente ao desaparecimento da raça humana?»
Estou certo de que há um século ninguém teria feito tão ligeiramente uma
afirmação deste tipo. É uma afirmação de um homem que se esforçou em vão para
atingir um equilíbrio interior e que perdeu mais ou menos a esperança de o
conseguir. É a expressão de uma solidão e um isolamento penosos de que tanta
gente sofre hoje em dia. Qual é a causa? Haverá uma saída?
É fácil levantar estas questões, mas é difícil responder-lhes com algum grau de
segurança. No entanto, devo tentar o melhor que posso, embora esteja consciente
do facto de que os nossos sentimentos e esforços são muitas vezes contraditórios e
obscuros e que não podem ser expressos em fórmulas fáceis e simples.
O homem é simultaneamente um ser solitário e um ser social. Enquanto ser
solitário, tenta proteger a sua própria existência e dos que lhe são próximos,
satisfazer os seus desejos pessoais, e desenvolver as suas capacidades inatas.
Enquanto ser social procura ganhar o reconhecimento e afeição dos seus
semelhantes, partilhar os seus prazeres, confortá-los nas suas tristezas e melhorar
as suas condições de vida. É apenas a existência destes esforços diversos e
frequentemente conflituosos que explica o carácter especial do ser humano, e a sua
combinação específica determina em que medida um indivíduo pode alcançar um
equilíbrio interior e contribuir para o bem-estar da sociedade. É perfeitamente
possível que a força relativa destes dois impulsos seja, em grande parte,
determinada por hereditariedade. Mas a personalidade que finalmente emerge é
largamente formada pelo ambiente em que o indivíduo se encontra por acaso
durante o seu desenvolvimento, pela estrutura da sociedade em que cresce, pela
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tradição dessa sociedade, e pela apreciação que faz de determinados tipos de
comportamento. O conceito abstracto de «sociedade» significa para o ser humano
individual as soma total das suas relações directas e indirectas com os seus
contemporâneos e com todas as pessoas de gerações anteriores. O indivíduo é capaz
de pensar, sentir, lutar e trabalhar sozinho, mas depende tanto da sociedade – na
sua existência física, intelectual e emocional – que é impossível pensar nele, ou
compreendê-lo, fora do quadro da sociedade. É a «sociedade» que lhe fornece
comida, roupa, casa, instrumentos de trabalho, a linguagem, formas de pensamento
e a maior parte do conteúdo do pensamento; a sua vida foi tornada possível pelo
labor e realizações de muitos milhões de indivíduos no passado e no presente, que
se escondem sob a pequena palavra «sociedade».
É evidente, por conseguinte, que a dependência do indivíduo em relação à
sociedade é um facto natural que não pode ser abolido – tal como no caso das
formigas e das abelhas. No entanto, enquanto todo o processo de vida das formigas
e abelhas é estabelecido, nos mais ínfimos pormenores, por instintos hereditários
rígidos, o padrão social e o relacionamento dos seres humanos são muito variáveis e
susceptíveis de mudança. A memória, a capacidade de fazer novas combinações, o
dom da comunicação oral tornaram possíveis desenvolvimentos entre os seres
humanos que não são ditados por necessidades biológicas. Estes desenvolvimentos
manifestam-se nas tradições, instituições e organizações; na literatura; nas obras
científicas e de engenharia; nas obras de arte. Isto explica, num certo sentido, como
pode o homem influenciar a sua vida através da sua própria conduta e como, neste
processo, o pensamento e a vontade conscientes podem desempenhar um papel.
Através da hereditariedade, o homem adquire à nascença uma constituição
biológica que devemos considerar fixa ou inalterável, incluindo os desejos naturais
que são característicos da espécie humana. Além disso, durante a sua vida, adquire
uma constituição cultural que adopta da sociedade através da comunicação e
através de muitos outros tipos de influências. É esta constituição cultural que, no
decurso do tempo, está sujeita à mudança e que determina, em larga medida, a
relação entre o indivíduo e a sociedade. A antropologia moderna ensina-nos,
através da investigação comparativa das chamadas culturas primitivas, que o
comportamento social dos seres humanos pode apresentar grandes diferenças, em
função dos padrões culturais dominantes e dos tipos de organização que
predominam na sociedade. É nisto que podem assentar as suas esperanças aqueles
que se esforçam para melhorar a sorte do homem: os seres humanos não estão
condenados, por causa da sua constituição biológica, a aniquilarem-se uns aos
outros ou à mercê de um destino cruel auto-infligido.
Se nos interrogarmos sobre como deveria mudar a estrutura da sociedade e a
atitude cultural do homem para tornar a vida humana tão satisfatória quanto
possível, devemos estar permanentemente conscientes do facto de que há
determinadas condições que não podemos alterar. Como atrás mencionámos, a
natureza biológica do homem, para todos os fins práticos, não está sujeita à
mudança. Além disso, os desenvolvimentos tecnológicos e demográficos dos
últimos séculos criaram condições que se manterão. Em populações com uma
densidade relativamente elevada, que dispõem de bens indispensáveis à sua
existência, é absolutamente necessário haver uma divisão extrema do trabalho e um
aparelho produtivo altamente centralizado. O tempo em que os indivíduos ou
grupos relativamente pequenos podiam ser completamente auto-suficientes – que
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visto à distância parece tão idílico – pertence definitivamente ao passado. Não é
grande exagero dizer-se que a humanidade constitui já hoje uma comunidade
planetária de produção e consumo.
Chego agora ao ponto em que posso indicar sucintamente o que para mim
constitui a essência da crise do nosso tempo. Trata-se da relação do indivíduo com a
sociedade. O indivíduo tornou-se mais consciente que nunca da sua dependência
relativamente à sociedade. Mas não sente esta dependência como um bem positivo,
como um laço orgânico, como uma força protectora, mas antes como uma ameaça
aos seus direitos naturais, ou ainda à sua existência económica. Além disso, a sua
posição na sociedade é tal que os impulsos egoístas do seu ser estão constantemente
a ser acentuados, enquanto os seus impulsos sociais, que são por natureza mais
fracos, se deterioram progressivamente. Todos os seres humanos, seja qual for a
sua posição na sociedade, sofrem este processo de deterioração. Inconscientemente
prisioneiros do seu próprio egoísmo, sentem-se inseguros, sós, e privados do gozo
cândido, simples e não sofisticado da vida. O homem só pode encontrar sentido na
vida, curta e perigosa como é, através da sua devoção à sociedade.
A anarquia económica da sociedade capitalista, tal como existe actualmente, é,
na minha opinião, a verdadeira origem do mal. Vemos diante de nós uma enorme
comunidade de produtores cujos membros procuraram incessantemente despojar
cada qual dos frutos do seu trabalho colectivo – não pela força, mas, em geral, em
total conformidade com as regras legalmente estabelecidas. A este respeito, é
importante compreender que os meios de produção – ou seja, toda a capacidade
produtiva necessária para produzir bens de consumo, bem como novos bens de
capital – podem ser legalmente, e na sua maior parte são, propriedade privada de
indivíduos.
Para simplificar, no debate que se segue, chamarei «operários» a todos aqueles
que não partilham a posse dos meios de produção – embora isto não corresponda
exactamente à utilização habitual do termo. O detentor dos meios de produção está
em posição de comprar a força de trabalho do operário. Ao utilizar os meios de
produção, o operário produz novos bens que se tornam propriedade do capitalista.
O ponto essencial deste processo é a relação entre o que o trabalhador produz e o
que lhe é pago, ambos medidos em termos de valor real. Na medida em que o
contrato de trabalho é «livre», o que o trabalhador recebe é determinado não pelo
valor real dos bens que produz, mas pelas suas necessidades mínimas e pela
quantidade de força de trabalho de que o capitalista necessita em relação ao
número de operários que procuram emprego. É importante compreender que,
mesmo em teoria, o salário do operário não é determinado pelo valor do seu
produto.
O capital privado tende a concentrar-se em poucas mãos, em parte por causa da
concorrência entre os capitalistas e em parte porque o desenvolvimento tecnológico
e a crescente divisão do trabalho encorajam a formação de unidades de produção
maiores à custa de outras mais pequenas. O resultado destes desenvolvimentos é
uma oligarquia de capital privado cujo enorme poder não pode ser eficazmente
controlado mesmo por uma sociedade que tem uma organização política
democrática. Isto é verdade, uma vez que os membros dos órgãos legislativos são
escolhidos pelos partidos políticos, largamente financiados ou influenciados por
outras vias pelos capitalistas privados que, para todos os efeitos práticos, separam o
eleitorado da legislatura. A consequência é que os representantes do povo não
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protegem suficientemente os interesses das camadas desfavorecidas da população.
Além disso, nas condições existentes, os capitalistas privados controlam
inevitavelmente, directa ou indirectamente, as principais fontes de informação
(imprensa, rádio, educação). É assim extremamente difícil para o cidadão, e na
maior parte dos casos completamente impossível, chegar a conclusões objectivas e
fazer uso inteligente dos seus direitos políticos.
A situação que prevalece numa economia baseada na propriedade privada do
capital caracteriza-se por dois princípios centrais: primeiro, os meios de produção
(capital) são privados e os detentores utilizam-nos da forma que lhes convém;
segundo, o contrato de trabalho é livre. É claro que neste sentido não existe uma
sociedade capitalista pura. Deve-se notar, em particular, que, através de longas e
duras lutas políticas, os trabalhadores conseguiram obter para certas categorias
deles formas melhoradas de «contrato de trabalho livre». Mas, vista no seu
conjunto, a economia actual não difere muito do capitalismo «puro».
A produção realiza-se tendo em vista o lucro e não o uso. Não há nenhuma
garantia de que todos aqueles que tenham capacidade e queiram trabalhar possam
encontrar emprego; existe quase sempre um «exército de desempregados». O
operário receia constantemente perder o seu emprego. E dado que os
desempregados e os operários mal pagos consomem pouco, a produção de bens de
consumo é restringida, e a consequência são grandes privações. O progresso
tecnológico resulta frequentemente em mais desemprego em vez de um
aligeiramento da carga de trabalho para todos. O objectivo do lucro, em conjunto
com a concorrência entre capitalistas, é responsável por uma instabilidade na
acumulação e utilização do capital que conduz a depressões cada vez mais graves. A
concorrência sem limites conduz a um enorme desperdício do trabalho e ao
estropiamento da consciência social dos indivíduos que mencionei atrás.
Considero este estropiamento dos indivíduos como o pior mal do capitalismo.
Todo o nosso sistema educativo sofre deste mal. Uma atitude exageradamente
competitiva é incutida no aluno, que é educado para venerar o poder aquisitivo
como preparação para a sua futura carreira.
Estou convencido que só há uma forma de eliminar estes sérios males,
nomeadamente através do estabelecimento de uma economia socialista,
acompanhada por um sistema educativo orientado para objectivos sociais. Nesta
economia, os meios de produção são detidos pela própria sociedade e são utilizados
de forma planificada. Uma economia planificada, que ajuste a produção às
necessidades da comunidade, distribuiria o trabalho a ser feito entre aqueles que
podem trabalhar e garantiria o sustento a todos os homens, mulheres e crianças. A
educação do indivíduo, além de promover as suas próprias capacidades inatas,
procuraria desenvolver nele um sentido de responsabilidade pelo seu semelhante
em vez da glorificação do poder e do sucesso na nossa actual sociedade.
No entanto, é necessário lembrar que uma economia planificada não é ainda o
socialismo. Uma economia planificada pode ser acompanhada por uma completa
sujeição do indivíduo. A realização do socialismo exige a resolução de alguns
problemas políticos e sociais extremamente difíceis: como é possível, com uma
centralização em grande escala do poder económico e político, evitar que a
burocracia se torne omnipotente e arrogante? Como se pode proteger os direitos do
indivíduo e assegurar um contrapeso democrático ao poder da burocracia?
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A clareza sobre os objectivos e problemas do socialismo é da maior importância
na nossa época de transição. Visto que, nas actuais circunstâncias, a discussão livre
e sem entraves destes problemas constitui um tabu poderoso, considero a fundação
desta revista como um serviço público importante.