Translate

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Neo-liberalismo

O estado capitalista em tempos de globalização
António Avelãs Nunes*


1. – Sob a inspiração do neoliberalismo, uma onda privatizadora varreu a Europa e o mundo, desencadeada, fundamentalmente, por razões ideológicas. Privatizou-se tudo, incluindo setores ligados à produção e à distribuição de bens e serviços essenciais à vida das pessoas (até a água!). Estas mudanças vieram levantar novas questões, obrigando a reequacionar o papel do estado capitalista nas condições entretanto criadas. Os mais moderados (ou realistas) logo se aperceberam de que as privatizações arrastavam consigo a necessidade de salvaguardar determinados interesses públicos, impondo um conjunto de obrigações de serviço público às empresas privadas que forneçam „serviços públicos‟ (a garantia da sua qualidade, universalidade, segurança, continuidade e acessibilidade ao conjunto da população, com base num „preço razoável‟). Assim começou a ganhar corpo a noção de “economia de mercado regulada” (ou “economia social de mercado”), sobre a qual se construiu o conceito de estado regulador: em nome das virtudes da concorrência e do primado da concorrência, „liberta-se‟ o estado das suas competências e das suas responsabilidades enquanto estado económico e esvazia-se o conteúdo do estado social, o estado responsável pela prestação de serviços públicos. 2. – Este o quadro em que surgiu, a partir dos anos 80 do século XX, o novo figurino do estado capitalista, o estado regulador. A defesa da concorrência é entregue a agências (ou autoridades) de defesa da concorrência; a regulação setorial dos vários mercados regulados é confiada a agências reguladoras. No âmbito da CEE/UE, a entrega das funções referidas a entidades reguladoras independentes decorre, em grande medida, do quadro legal comunitário e da atuação da Comissão Europeia. Os Tratados não proibem a presença de empresas públicas nos vários setores de atividade económica. Mas as empresas públicas são obrigadas a atuar de acordo com a lógica das empresas privadas e ficam sujeitas à sacrossanta concorrência livre e não falseada. Isto significa que, mesmo na área dos serviços públicos, não pode haver setores reservados às empresas públicas.


1 Retoma-se a problemática abordada, com maior desenvolvimento, num livro editado pelas Edições Avante! em 2010: As Voltas que o Mundo Dá – Reflexões a Propósito das Aventuras e Desventuras do Estado Social, posteriormente editado, com algumas alterações, em 2011, no Rio de Janeiro, pela Editora Lumen Juris.

2

Imposta pelas instituições comunitárias, a liberalização do mercado dos serviços públicos traduziu-se claramente, segundo a lógica do mercado e da concorrência, na desregulação desses setores. A pressão resultante das necessidades decorrentes do mercado interno único acabou por conduzir à privatização das empresas públicas produtoras e distribuidoras de serviços públicos, servindo a regulação de capa protetora deste recuo histórico.

Os defensores do estado regulador esforçam-se por dar a entender que ele não abandonou inteiramente a sua veste de estado intervencionista, invocando que o seu propósito é exatamente o de condicionar ou balizar a atuação dos agentes económicos, em nome da necessidade de salvaguardar o interesse público.

Afirmando que não é conveniente deixar o mercado entregue a si próprio, proclamam a necessidade de o estado definir o estatuto jurídico do mercado e sustentam que esta responsabilidade pública de regular (ou responsabilidade pública de garantia) é, ainda, uma forma de intervenção do estado na economia, designada, por isso mesmo, economia de mercado regulada.

A regulação do mercado representaria, assim, o modo de o estado assegurar a realização do interesse público e o respeito da ordem pública económica, apresentando-se o direito da regulação como a “disciplina jurídica do mercado e da economia, como o novo direito público da economia”. (Pedro Gonçalves)

3. – Não posso acompanhar esta operação redentora do estado regulador, este empenho em continuar a apresentá-lo como estado económico, com o objetivo de nos fazer crer que, graças a este estado regulador, os serviços públicos continuam na esfera da responsabilidade pública.

Filho das políticas que têm vindo a anular a responsabilidade do estado no terreno da economia e a esvaziar a sua capacidade de intervenção como operador nos setores estratégicos e na área dos serviços públicos, o estado regulador foi „inventado‟ justamente para encobrir as políticas que visam impedir o estado de assumir a sua tradicional responsabilidade no que toca à prestação de serviços públicos à margem do mercado. Não pode ser o contrário delas.

Por isso defendo que este estado regulador se apresenta, fundamentalmente, como estado liberal, visando, em última instância, assegurar o funcionamento de uma economia de mercado, sem epítetos, em que todos os setores de atividade ficam sujeitos às regras „sagradas‟ da concorrência e em que – afastada a intervenção do estado – o mercado regule tudo, incluindo a vida das pessoas.

3

A este propósito, importa esclarecer que a ideologia liberal dominante impôs desde muito cedo a ideia de que esta função de regulação, embora justificada pela necessidade de salvaguarda do interesse público, deveria ser prosseguida, não pelo estado enquanto tal, mas por agências (ou entidades, ou autoridades) reguladoras independentes.

Estas são uma invenção norte-americana (fortemente ativada no quadro do New Deal) e que chegou à Europa há pouco mais de trinta anos, através do Reino Unido. Com uma diferença. Nos EUA, desde finais do século XIX que a regulação interveio como uma forma de ampliar a intervenção do estado na economia. Ao invés, a sua presença na cena europeia significa um retrocesso relativamente à importância do papel do estado enquanto estado económico, em especial no que se refere à produção e prestação de serviços públicos.

A solução de substituir o estado por estas agências significa que o estado (o estado democrático), considerado incapaz de administrar o setor público da economia (incluindo a prestação de serviços públicos, com longa, profunda e positiva tradição na Europa), é também considerado incapaz de exercer bem esta função reguladora, que – dir-se-ia – não poderia deixar de constituir o „conteúdo mínimo‟ do „estado mínimo‟. Esta é uma solução que respeita o dogma liberal da separação entre o estado e a economia: o estado deve manter-se afastado da economia, porque a economia é a esfera privativa dos privados e o estado é uma pura instância política.

O que se pretende é subtrair à esfera da política (i.é, à competência dos órgãos políticos democraticamente legitimados) a ação destas entidades ditas independentes, alegando-se que só assim se consegue a sua neutralidade.

Segundo alguns, esta neutralidade exigiria mesmo que o estado abrisse mão da titularidade ou da participação no capital de qualquer empresa. Só assim – invocam os mais radicais – o estado pode ser, como regulador, um árbitro neutral, estatuto incompatível com uma situação em que o estado seja simultaneamente regulador e regulado. Tal raciocínio „esquece‟, por conveniência, que este foi um dos argumentos invocados, em momento anterior, para justificar que não fosse o estado, enquanto tal, a exercer a função reguladora, devendo esta ser confiada a agências independentes do estado.

4. – Esta ideia de subtrair a administração à ação da política é justificada com o „argumento‟ de que as funções das entidades reguladoras são funções meramente técnicas e não-políticas.

É por demais evidente que as autoridades reguladoras independentes vêm chamando a si parcelas importantes da soberania, sendo por demais evidente que essas agências exercem funções políticas e tomam decisões políticas, que afetam a vida, o bem-estar e os interesses de milhões de pessoas.

4

Mas os defensores do estado regulador insistem na nota de que as agências reguladoras independentes são organismos técnicos, politicamente neutros, acima do estado, pondo em relevo que “o seu ethos radica na neutralidade da actuação sobre o mercado através da promoção da eficiência”. (Susana TAVARES DA SILVA) Todo este esforço visa justificar o facto de elas não prestarem contas perante nenhuma entidade legitimada democraticamente nem perante o povo soberano. E só pode entender-se pela consciência que todos temos – mesmo os defensores do estado regulador – de que a prestação de contas é a pedra de toque da democracia. Sem ela, temos a morte da política. E temos uma ameaça à democracia, tal como a entendemos.

Por isso contesto a legitimidade deste poder tecnocrático e defendo que as suas funções deveriam ser confiadas a entidades legitimadas democraticamente e politicamente responsáveis. A política não pode ser substituída pelo mercado, nem o estado democrático pode ser substituído por um qualquer estado oligárquico-tecnocrático, em nome da velha ideia liberal de que a democracia se esgota na liberdade individual e de que a liberdade só é garantida pelo mercado e só se realiza no mercado.

Aqui radica, na minha ótica, a verdadeira questão colocada pelo estado regulador. Ele traz consigo a substituição do estado democrático por um estado tecnocrático, que se pretende fazer passar por um estado neutro (acima das classes), „governado‟ por pessoas competentes, que não pensam em outra coisa que não seja o interesse público.

Só que tal „estado‟ tem um pecado original: não é um estado democrático e é mais permeável à influência dos grandes interesses privados do que o estado democrático, pela simples mas decisiva razão de que as entidades em que assenta esse tal estado tecnocrático não prestam contas a ninguém nem respondem politicamente pela sua ação.

(excerto. Ver texto completo in O Diário on-line)
*Professor de economia da U. de Coimbra

Sem comentários:

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.