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domingo, 12 de outubro de 2014

Condição pós-moderna

FÁBULAS
As fábulas com animais perderam o lugar na galeria dos géneros de crítica dos costumes. Exceto para as crianças. Nesta pós-modernidade o pensamento é demasiado cético e niilista. O Rei Leão que governa com sensata majestade? Só para crianças. A verdade é que o leão come tudo que seja carne em movimento, ainda que apenas o faça para saciar a fome; satisfeito, abandona as carcaças para os chacais, hienas, abutres. Não tem amigos nem aliados. Entre ele e os necrófagos não se estabelece relação alguma. Entre os chacais e as hienas, competição feroz. Fingir um diálogo entre predador e presa, entre o lobo e o cordeiro, somente com muita boa vontade nos fariam entrar nesse jogo. A criança sabe que é um jogo, um faz-de-conta, mas acredita, ou finge que acredita. Para nós, o lobo é apenas um pobre-diabo marginal que procuramos vislumbrar com binóculos.
Faz algum sentido supor que os leões são grandes acionistas que especulam e açambarcam milhões, administradores que arquitetam artimanhas formidáveis para se safarem de impostos, gestores superlativamente astutos mas que de vez em quando a aldrabice falha e levam um reino à falência? Não faz. Os leões perseguem as manadas com espantosa paciência e limitam as vítimas ao número estritamente necessário. Não assaltam os rendimentos modestíssimos das populações dos herbívoros, não conspiram em fóruns mundiais, não chamam para o almoço ministros e generais. Os verdadeiros leões vagueiam a sua soberana indiferença e de finanças nada sabem.
Faz algum sentido supor que chacais decapitem criaturas inocentes para a televisão, exterminem irmãos apenas porque os separa uma frase, uma vírgula, num pergaminho velho de séculos? Não faz. Por conseguinte, não são chacais. São criaturas humanas, o que é bem pior. Municiados e financiados por outros seres humanos envolvidos em engenharias geoestratégicas. Os animais ao lado deles são tristes foragidos à procura da selva perdida.
Faz algum sentido imaginar um corvo com um queijo no bico a deixar-se ludibriar pela lábia de uma raposa? Não faz. As modestas raposas não dispõem de uma infinitésima fração da lábia de um grande escritório de advogados e as galinhas são de aviário.
Faz algum sentido efabular uma assembleia de ratitos a discutir a forma de se livrarem de um gato: “Coloca-se uma sineta no pescoço do dito, assim damos logo conta da aproximação do malandrim. – Pois seja – diz o rato velho- e quem vai lá pôr-lhe a sineta ao pescoço?” Os ratitos não realizam assembleias, nem recorrem a eleições primárias, na esperança de amedrontarem um felino voraz. São-lhes inoculadas em laboratórios assépticos as mais mortíferas pandemias. São cobaias.
Faz algum sentido acreditar que as formiguinhas são como os homens que trabalham obedientemente a vida toda para reaverem na velhice o que descontaram, enquanto a cigarra, dançarina e fadista, não se cuidou? Não faz. As formiguinhas e as cigarras não sabem porque o fazem, enquanto os humanos deviam saber o que fazem quando depositam o voto nas urnas. Não vale a pena no inverno arrependerem-se do gesto consumado.
Faz algum sentido imaginar que o cão e o lobo sejam amigos como naquela fábula em que o cão, bem nutrido, de pelo luzidio, convida o lobo hospedar-se na casa do dono, mas o lobo, vendo-lhe a coleira no pescoço, recusa com estas palavras imortais: “Amigo, prefiro mil vezes a liberdade à tua coleira!”. Não faz.
Ou fará?
NOZES PIRES


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