Gianni Vattimo (foto) estudou filosofia na
Universidade de Turim e depois na
de Heidelberg. Discípulo de
Hans-Georg Gadamer, seguiu a corrente hermenêutica. Influenciado também por
Martin Heidegger, que lhe ofereceu a “rejeição à concepção objetiva estrutural e estável do Ser”. Desde muito jovem,
Vattimo foi professor de Estética na
Universidade de Turim. Em 1961 publicou “
O conceito de produção em Aristóteles”. Foi professor universitário em Los Angeles e Nova York. É
Doutor Honoris Causa pela
Universidade de Palermo e pela
Universidade de La Plata.
Filósofo
do pós-modernismo e militante pelos direitos civis e de gênero, aqui, o
intelectual italiano explica a base de seu pensamento filosófico.
Discorre sobre o difícil momento do pensamento de esquerda na Europa e
demonstra seu otimismo com o desenvolvimento latino-americano. A questão
gay, os monopólios midiáticos, a globalização.
“Comunista,
pós-moderno e cristão são termos que, de alguma maneira, definem uma
perspectiva política, filosófica e existencial, não é verdade? – disse
Gianni Vattimo
-. São termos contraditórios em aparência, mas acredito que nunca mudei
nada em minha vida. Comecei como um católico-comunista, com os
católicos de esquerda que já viviam em polêmica com a hierarquia oficial
da
Igreja. Inclusive, do ponto de vista teórico, como
católico-comunista, quando fui à universidade. Estudei filosofia porque
não havia faculdade de teologia, nem de política. Nesse momento, os
interesses que tinha eram esses dois”.
“Quer dizer que há uma
continuidade de interesses teóricos que permanecem. Inclusive, o
pós-modernismo, que parece o mais novo, mas quando eu comecei a estudar
na universidade, como católico de esquerda, ia buscando um pensamento
filosófico que não fosse totalmente escravo da
Ilustração,
mas que também não fosse reacionário. Nesse momento, existia uma
atitude ilustrada que era basicamente anticristã e antirreligiosa, e uma
atitude católica que era muito atrasada. Ou seja, de um lado tinha
São Tomás,
com a metafísica clássica, e, do outro lado, tinha o comunismo
marxista. Entretanto, nesse momento, para mim o marxismo era ainda um
desenvolvimento da
Ilustração em termos de racionalismo histórico”.
“Não
concordava com esta solução, e buscava um pensamento crítico da
modernidade, que não fosse simplesmente a ideia de voltar ao passado.
Então, comecei a estudar
Aristóteles, porque era um
autor que esteve muito presente em minha juventude católica-tomista,
pois tive um diretor espiritual que era muito estudioso de São Tomás. A
leitura de Aristóteles, basicamente, não me deixou muita coisa, porque
não era uma leitura teoricamente comprometida. Então decidi estudar os
críticos da modernidade, como
Adorno e a
Escola de Frankfurt”
“Finalmente, junto com meu professor
Pareyson, que era um grande estético italiano do momento, decidi me dedicar a
Nietzsche,
que era um crítico da modernidade nada reacionário, embora depois tenha
sido politicamente interpretado como mestre dos nazistas. Então,
comecei a estudar
Nietzsche no sentido de buscar uma
crítica da modernidade, que não fosse ligada ao racionalismo ilustrado e
com dimensões políticas, obviamente. Efetivamente, marxista não havia
sido, porque sempre pensei o marxismo em termos “stalinianos”.
A entrevista é de
Verônica Engler, publicada no jornal
Página/12, 10-12-2012. A tradução é do
Cepat.
Eis a entrevista.E como agora se denomina comunista?Porque
não existe mais o comunismo real. Se o comunismo real morreu, que viva o
comunismo ideal! Defino o comunismo ideal com os termos de
Lênin:
eletrificação mais sovietes, ou seja, desenvolvimento econômico
produtivo controlado por conselhos populares, por organismos
democráticos. Atualmente, insisto sobre o termo comunismo porque me
parece que a democracia em toda Europa, no Ocidente, está se
dissolvendo, porque as pessoas não possuem mais ideais alternativos de
sociedade. Não se pode morrer pelo livre mercado, não é um ideal
político pelo qual se sacrifica. As pessoas não vão mais votar porque
não acreditam que algo pode ser mudado. Por isso, é necessário
revivificar um ideal de sociedade alternativa.
O único ideal de
sociedade alternativa que temos é o de uma sociedade onde não há
opressão econômica, mas há desenvolvimento e controle popular sobre o
que acontece. Obviamente, com
Stalin houve muitos problemas. Porém, o próprio
Stalin não
acreditava que fosse um louco sanguinário, construiu um comunismo de
guerra, que era pressionado por todos os poderes em volta, sobretudo,
existia uma Alemanha onde se desenvolvia o
nazismo.
Stalin teve
o sonho industrialista compartilhado com o mundo capitalista, e para
competir com o mundo capitalista teve que desenvolver um industrialismo
forçado.
No começo da libertação, a Rússia era um país agrícola,
pastoral, feudal, que nos anos 1950 tornou-se capaz de competir com os
Estados Unidos na conquista do espaço. Não tenho vergonha de me
denominar comunista por conta disto, porque não posso aceitar toda a
propaganda ocidental. Por isso me denomino comunista, o
cristão-comunista, o anarco-comunista, porque obviamente não penso na
possibilidade de uma revolução comunista mundial hoje, sobretudo, porque
os outros são muito fortes. Porém, acredito que se trata de divulgar um
ideal de sociedade alternativa. Então, parece-me que é importante
trabalhar sem a ilusão de transformar o sistema de um só golpe, mas
tentando reduzir o dano, por exemplo, obstaculizando o desenvolvimento
industrial em áreas que implique a destruição do meio ambiente. Limitar o
prejuízo, este é meu programa político.
Como é o comunismo hermenêutico, “fraco”, que você propõe? Por que seria a nossa única salvação?É
um comunismo pensado no sentido de que não imagina realizar um ideal
positivo de estrutura. Chama-se comunismo hermenêutico basicamente sobre
a ideia de que não é possível dirigir a sociedade, ou a existência, com
proposições científicas, mas que tudo dever ser submetido a uma
interpretação. A ciência sobre a qual, atualmente, a Europa se funda é
apenas a interpretação de um setor que interpreta o mundo com seus
interesses, porque, como dizia
Nietzsche, não há fatos,
mas apenas interpretações interessadas. A interpretação é feita a
partir dos próprios interesses, a partir da própria classe.
Este
é o ponto fundamental para não se adotar uma atitude resignada diante
daquilo que acontece, como se fosse a verdade. Não é a verdade, é a
interpretação que o mundo capitalista oferece para resguardar seus
próprios interesses e privilégios. Por isso, o comunismo se chama
hermenêutico, não é um comunismo científico, como os marxistas um pouco
positivistas, do final do século XIX, haviam pensado. É um comunismo
interpretativo, que não se apresenta como uma solução científica, mas se
apresenta como uma solução em parte. Interpretação implica olhar o
mundo com um projeto de transformação, e nosso projeto de transformação é
o comunista: eletrificação mais sovietes.
Por que você fala da globalização no final da metafísica?O final da metafísica é um termo de
Heidegger.
Ele pensava que a metafísica veio em direção à objetivação de tudo,
inclusive do homem, que se torna apenas força de trabalho, que era o
projeto da racionalização industrial, de inícios do século XX, contra o
qual
Heidegger tomava posição. A globalização me parece que é aquilo que
Heidegger tinha
previsto como resultado da unificação tecnocientífica do mundo, que
impede a liberdade, que acredita que tudo tem que ser regulamentado por
posições racionais, científicas, verdadeiras, excluindo tudo o que é
interesse ou conflito.
O problema da globalização não é que tudo
se integra, mas o fato dela contar com uma unificação do poder. Então, a
metafísica, no sentido de
Heidegger, é uma ideia de
uma racionalidade objetiva, que pode ser conhecida cientificamente e
dominar científica e tecnologicamente. A globalização é o final, o ponto
de chegada da metafísica. Por razões econômicas, a tendência é em
direção a uma integração cada vez mais completa e total, que destrói
toda alternativa, porque uma alternativa causa desordem.
Heidegger tem
uma frase que diz: “A verdadeira emergência é a falta de emergência”,
quando não acontece nada. A globalização é a unificação do mundo sob
imperativos econômicos pretensamente científicos e neutros, sendo que
não os são.
De que maneira você recupera a ética cristã antiga, divorciada historicamente das ideias que a hierarquia eclesiástica optou?A ética cristã sempre foi condicionada pelo fato de que a
Igreja católica,
as igrejas, tem sido estruturas de poder. Eu não sei se existe ética
cristã, existe uma fé cristã. Ou seja, significa confiar numa entidade
superior, da qual não sabemos nada, mas que precisamos admiti-la, pois
caso contrário não podemos explicar nossa liberdade. Meu cristianismo
depende do fato de que não posso imaginar uma liberdade do humano, a não
ser como uma liberdade transcendente.
Eu o chamo de
Deus, mas não sei se é o
Deus da
metafísica grega, se é o Deus cristão. E como não posso falar deste
Deus em termos racionais, pois, se assim fosse, teria que inclui-lo numa
cadeia de racionalidade, posso falar deste
Deus somente
em termos mitológicos, contudo, as mitologias são muitas. Então,
basicamente aceito mitologias e não afirmo a superioridade de uma sobre
as outras. Não prefiro a mitologia cristã porque se for comparada é
superior. Eu a aceito tentando realizar o melhor que me aparece nela,
que é o amor ao próximo. Penso que meu cristianismo é a fé numa
mitologia originária, que me permite pensar-me como ser livre, mas não
dentro de princípios de uma ética natural, que seriam fundados
racionalmente. A ética compartilhada é uma questão de costume, de
tradição, de negociação. Não há nenhuma lei absolutamente natural, nem
sequer a do homicídio, porque com o problema da
eutanásia,
da sobrevivência artificial, caso alguém me peça que o ajude a morrer,
pois não tolera mais, tento explicar-lhe que me parece que é melhor
viver, mas caso queira morrer, que morra, e se precisar de ajuda por
estar paralisado, eu o ajudo.
Posso argumentar que é melhor viver
num mundo de caridade, do que num mundo de violência, mas não sei se é
uma coisa racional absoluta, não tenho como demonstrar que preciso amar o
próximo. Creio nisso apenas porque recebi uma herança que condiciona
minha existência, e parece ser a melhor possibilidade para mim, mas não
para todo o mundo.
A ética cristã tem essa ideia de respeitar uma lei natural.Pessoalmente,
eu sou homossexual. Por isso, sou carente de caridade? Serei carente de
caridade se obrigar alguém a fazer algo que não gosta. Tento respeitar
as leis, como as do trânsito, porque não quero provocar acidentes.
Entretanto, não acredito que haja algo naturalíssimo, que seja um dever
natural ser heterossexual. O Papa acredita que sempre pode ordenar
imperativos em nome de uma natureza humana. Por que precisa impor a
ética cristã, inclusive para outros que não são cristãos? Por exemplo,
quando alguém quer se divorciar, quem disse que a família é por natureza
indissolúvel, onde está escrito?
Jesus nunca disse isto.
Quando
é possível comandar isto em nome da natureza, a Igreja se sente
legitimada para também se impor sobre os não crentes. Toda esta ideia de
uma ética natural me parece absolutamente absurda. Eu sou partidário de
uma ética respeitosa dos costumes. Para mim o problema do cristianismo é
apenas da questão da fé, um pouco como pensavam os protestantes, só a
fé salva. Esta tradição cristã, ocidental, da qual faço parte, inclui
muitíssimas alternativas pelas quais eu posso escolher. Parece-me que
este problema da ética é sempre um problema de poder. Se existem
princípios absolutos, eles podem ser impostos, mas eu não quero impô-los
a ninguém, apenas acredito que preciso respeitar o outro, e espero que o
outro me respeite.
Você disse que o problema gay é essencialmente socioeconômico. Por que para você parece que isto seja assim?Minha
experiência imediata é que eu sou um gay pobre na Itália, tenho
problemas porque podem me despedir do trabalho. Na Itália, conheço
muitos ricos que são casados (com mulheres), criam uma grande família, e
depois compram uma casa em Marrocos, onde tem seus amantes (homens).
Por que eles podem se permitir a isto e eu não? Porque é um problema de
dinheiro, socioeconômico.
Contudo, não acontece o mesmo no caso dos heterossexuais?Obviamente,
mas o problema gay é um problema socioeconômico, pois conta com os
problemas de famílias, de heranças. (N. R. Na Itália não existe o
casamento entre pessoas do mesmo sexo). Não é um problema natural, é um
problema em sociedades como a nossa, em que a herança da família vai
para os filhos. Por exemplo, hoje existem casais homossexuais que contam
com uma riqueza em comum, mas que, como não são reconhecidos, quando um
dos dois morre, vem a família natural e fica com tudo, e o outro
integrante do casal fica sem nada.
Em sociedades onde não
existem estas leis de herança, isso tudo não acontece. Por um lado
percebe-se que, em nosso mundo, os gays ricos vivem melhor, porque podem
se permitir uma multiplicidade de formas de vida. Eu, como sou um
pequeno burguês, posso ter apenas uma casa, e em apenas uma casa tenho
que viver ou com um homem, ou com uma mulher. Caso possa ter três casas,
posso viver numa com uma mulher, em outra com um homem, e na outra com
um cavalo, por exemplo. Obviamente, eu não acredito nem sequer no
casamento homossexual.
No entanto, a meu ver, as pessoas possuem o direito de viver com os
mesmos direitos dos outros, quando são homossexuais. Há uma série de
direitos civis que são negados para os homossexuais, pelo menos na
Itália, até agora.
Você diz que a proliferação dos meios
de comunicação serviria para fomentar espíritos mais livres, já que as
pessoas não estariam submetidas a uma única voz emissora. Em que medida
ter cento e vinte canais de televisão melhora a capacidade das pessoas
para discernirem?É melhor contar com mais vozes
emissoras. É importante que não pertençam ao mesmo dono. A multiplicação
dos meios de comunicação parece ser positiva para nos libertar do
monopólio dos mesmos. Não é possível imaginar um desenvolvimento
puramente tecnológico, o desenvolvimento tem que ser político, ou seja, é
preciso limitar a propriedade ou regulamentar a concorrência neste
terreno, exatamente aquilo que os donos dos meios de comunicação não
querem. A lei pública é a que coloca limites para que não matem uns aos
outros. Não obstante, a lei pública tem que ir além do liberalismo
total. Em muitos sentidos, a multiplicação pura e simples das
tecnologias comunicativas precisa contar com uma regra política. E a
regra política é colocar limites, e não simplesmente que façam tudo o
que queiram.
Na Europa, os setores progressistas já não contam com um projeto de transformação?Sim,
mas são setores bem pequenos. Na Europa, o que cada vez mais se difunde
são esquerdas mais próximas do centro, que se resignam a fazer
pequeninas reformas. Por exemplo,
Hollande venceu
as eleições na França, mas não acredito que esteja fazendo uma política
muito progressista, porque é condicionado pelo espectro das regras
financeiras internacionais. Fazem e dizem as mesmas coisas, embora
alguns sejam de direita e outros acreditam ser de centro-esquerda.
A
questão agora é que há um pretenso progressismo, que parece ser a única
maneira para as esquerdas ou para a centro-esquerdas europeias vencer
as eleições. É como dizer, “se você pretende entrar no governo de um
país, precisa se tornar amigo dos banqueiros, inclusive, os de esquerda
precisam ser amigos dos banqueiros”, mas na medida em que são amigos dos
banqueiros, perdem todo o esquerdismo. Isto é o que aconteceu com o
Partido Comunista Italiano,
que se transformou. E como esquerdista digo que a única política
possível para uma esquerda é fazer um bom programa de oposição. Eu me
sinto comprometido religiosamente a ser revolucionário, sem imaginar que
vou tomar o poder, eu posso somente tentar limitar o estrago, colocar
limites.
Como outros intelectuais europeus, você enxerga com grande simpatia as mudanças que estão ocorrendo na América Latina. Quais são as questões que parecem ser as mais interessantes para você?Eu
sou um dos grandes chavistas europeus. Basicamente, a única novidade
que vejo na política mundial, como eu a conheço, como a vivi nas últimas
décadas, acontece na América Latina, pois outros grandes países em
desenvolvimento, como China e Índia, neste momento, simplesmente imitam o
sistema capitalista. Na América Latina houve a mudança de alguns
regimes sociais, obviamente começando com Cuba, do grande
Fidel, do qual eu sou um admirador total, absoluto. Em seguida, continuou com
Chávez, com
Lula, com
Evo Morales. E acredito que
Cristina também é uma parte desta transformação da América Latina.
Concebo
a América Latina com todas estas novidades, como a possível força
política mundial que pode evitar o triunfo total do imperialismo
norte-americano, mundial, globalizado. Por exemplo,
Lula foi ao Irã para conversar com
Ahmadinejad,
algo que um norte-americano nunca tinha feito, ou seja, não importa se
imediatamente a Europa se transforma, mas o equilíbrio mundial precisa
de um polo anti-imperialista que hoje é, sobretudo, América Latina.
Parece-me que é importante uma América Latina cada vez mais forte e
democrática, que se oponha à globalização capitalista total. A
possibilidade para que a Europa não seja simplesmente uma colônia
norte-americana, é a de que haja uma América Latina forte.