Humboldt e o descobrimento da natureza
Pouco
conhecido hoje fora dos meios académicos, Alexander Humboldt foi um dos
últimos grandes humanistas com uma cultura integrada, aberto a
múltiplos ramos do pensamento científico. Eminentes naturalistas
identificam no sábio prussiano um precursor do darwinismo. Foi amigo de
Goethe, Schiller, Jefferson e Bolívar.
Foi
em Berlim Leste, na RDA, que, ao passar frente à Universidade que tem o
seu nome, tomei consciência em 1978 da minha ignorância sobre Humboldt.
Mas somente muitos anos depois, quando residia em Cuba, li pela
primeira vez um livro seu. Humboldt era muito popular entre os
intelectuais da Ilha. Fidel admirava-o, citava-o com frequência, e
fizera traduzir muitos dos seus livros.
Quase esquecido hoje fora dos meios académicos, Humboldt foi um dos
últimos humanistas de cultura integrada, aberta a todos ramos do
conhecimento científico. Eminentes naturalistas identificam nele um
percursor do darwinismo.
Segundo
The Economist, os atuais ecologistas «devem tudo» a
Humboldt. E na opinião da The New York Review of Books, «as suas
teorias nunca estiveram tão vivas».
INFÂNCIA, ADOLESCENCIA E JUVENTUDE
Alexander Von Humboldt (1769-1859) nasceu numa família abastada da
aristocracia prussiana. Não teve uma infância feliz. O pai faleceu
quando tinha cinco anos e a mãe, uma senhora muito religiosa e de
mentalidade convencional, não revelou muito afeto pelos filhos.
Alexander e o irmão Wilhelm tiveram uma educação privilegiada com os
melhores professores. Mas não tinham diálogo com a mãe. Os dois irmaos,
ligados por uma amizade profunda, eram muito diferentes. Wilhelm,
estudioso, adorava a História e a mitologia e cedo manifestou um grande
interesse pela linguística.
Alexander preferia o campo a Berlim. Durante as férias no castelo de
Tegel, propriedade familiar, dava longas caminhadas. Os animais, as
plantas, o céu, as rochas, as montanhas e os rios, a Natureza em geral,
exerciam sobre ele fascínio.
Ao contrário do irmão, era um solitário e os seus poucos amigos não o compreendiam.
Formou-se, sem brilho especial, em engenharia. Do seu primeiro
emprego como inspetor de minas, apreciou sobretudo a oportunidade de
viajar muito pelo país.
Mas o seu interesse não era profissional: dirigia-se sobretudo aos
cenários, aos fenómenos da Natureza e aos homens. Os mineiros eram
sobrexplorados,o que o indignava. O iluminismo era satanizado na
monarquia prussiana de «direito divino».
Datam dessa época as suas experiências com a chamada eletricidade
animal. Sem ler Feuerbach e Marx foi desde a juventude um materialista
convicto.
Aos 21 anos, com um amigo, Georg Forster, que acompanhara Cook numa
das suas viagens, visitou durante quatro meses a Inglaterra, a Holanda e
a França.
Essa perambulação europeia contribuiu para reforçar a sua aversão
pela atmosfera obscurantista da Prússia. Amava a liberdade, era um
liberal.
Ao visitar o irmão, já casado e com filhos, em Iena onde então
residia, teve a oportunidade de conhecer dois gigantes da literatura:
Goethe e Schiller. Desenvolveu uma solida amizade com ambos. Ele e
Goethe descobriram uma paixão comum pela botânica, pelas transformações
climáticas, pelo regime de ventos, pela capacidade das árvores para
enriquecer a atmosfera com humidade.
Juntos lamentaram a forma como o homem perturbava o equilíbrio harmonioso da Natureza, a sua tendência a destruir o ambiente.
Sem disso tomar consciência, o jovem Humboldt foi o pai do movimento ambientalista.
AMÉRICA LATINA: AVENTURA E CIÊNCIA
Em junho de 1799, acompanhado do médico e botânico francês Aimé
Bonpland, embarcou na Corunha para a Venezuela. O rei de Espanha, Carlos
IV, autorizara-o a visitar as suas colonias da América, privilegio
raríssimas vezes concedido a um estrangeiro.
Humboldt era um jovem naturalista de 22 anos, admirado por Goethe, mas desconhecido na Europa.
Ao regressar cinco anos depois foi recebido em Paris e na Alemanha como figura proeminente da comunidade científica.
Ele próprio teve dificuldade em compreender a sua vertiginosa
elevação aos píncaros da fama. A sua obra monumental somente seria
publicada no regresso ao longo de mais de cinco décadas.
Mas textos seus, enviados de países que percorrera, haviam sido
amplamente divulgados na Europa e nos Estados Unidos suscitando surpresa
e admiração.
Humboldt rompera como naturalistas fronteiras tradicionais da ciência.
Ao desembarcar em Cumaná no oriente venezuelano, teve a sensação de
que chegar a outro planeta. Tudo era diferente e não imaginado: as
plantas, as árvores, o clima, o mar, os rios, as montanhas, as
planícies. Tudo o encantou, exceto o sistema colonial e a escravatura.
Desceu o Orenoco, atravessou a estepe dos LLanos, conheceu a
amazónia equatoriana, escalou o Chimborazo, o gigante andino que na
época, erradamente, era tido como a montanha mais alta do mundo.
Conviveu com tribos de índios e impressionou-o o conhecimento que
tinha das árvores floresta de todos os animais da selva. Reagiu aos
estereótipos europeus sobre a barbárie dos selvagens.
Nos Andes esboçou aquilo a que chamou
Naturgemalde, palavra que pode designar um quadro da natureza que aponta para totalidade.
«A Natureza - afirmou - é uma totalidade viva, não um agregado
morto». E desenhou o Naturgemalde, representando em corte transversal
como uma rede em que tudo estava ligado. As plantas distribuíam-se
segundo a latitude desde os líquenes da linha das neves aos carvalhos e
já na base as palmeiras tropicais.
O
Naturgemalde condensava< num estranho quadro de 90 por 60 cm a síntese das teses revolucionárias de Humboldt sobre a integração da Natureza.
Depois de visitar o Peru e estudar ruinas da civilização incaica
embarcou no Equador para o México onde permaneceu um ano. Na época a
arqueologia ainda não realizara as escavações que iluminaram a história
de Tenochtitlan e da sua destruição por Cortez. Mas o que viu foi
suficiente para Humboldt sentir deslumbramento pela cultura dos antigos
mexicanos. A sua aversão pela colonização espanhola aumentou
Apos uma breve passagem por Cuba viajou para os Estados Unidos.
Mantinha há muito correspondência com Jefferson que o admirava muito.
A empatia entre ambos foi imediata. Humboldt era um falador
excepcional.Emitia por minuto o dobro de palavras de uma pessoa normal,
Mas Jefferson escutava-o embevecido. Convidou-o para a Casa Branca onde o
sábio prussiano conviveu com intelectuais e políticos, incluindo o
futuro presidente Madison.
Teve uma despedida triunfal quando embarcou para França em junho de 1804.
A OBRA FOI ESCRITA EM PARIS E BERLIM
Uma biografia de um nível excecional reavivou no mundo da cultura,
nos últimos anos, o interesse pelo genial cientista: A Invenção da
Natureza- As aventuras de Alexander Von Humboldt, o herói esquecido da
ciência.*
A autora, Andrea Wulf, dedicou anos a esse trabalho, definido pelo Finantial Times como «uma fascinante história das ideias»
.
Humbolt fixou residência em Paris. A Academia das Ciências e o
Jardin des Plantes eram para ele indispensáveis para as suas pesquisas.
Achava Berlim uma cidade provinciana, insipida sem uma universidade.
Mas o rei da Prússia, Frederico Guilherme III seu grande admirador,
atribui-lhe uma generosa pensão. Tinha gasto grande parte da fortuna
pessoal nas viagens e na preparação da sua obra.
Paris aparecia-lhe como o polo da cultura europeia que deslocava as
fronteiras do pensamento científico. Ali desenvolveu amizades com
cientistas famosos como Gay Lussac, Cuvier, Lamarck.
Teve grandes amigos, mas nunca se interessou por mulheres.
Ao iniciar a escrita de Viagem às Regiões Equatoriais do Novo
Continente não imaginava que essa obra teria 34 volumes e lhe exigiria
muitos anos de um trabalho exaustivo. O primeiro tomo teve por título
Ensaio sobre Geografia das Plantas. Nele defendia uma compreensão
revolucionária da natureza incompatível com a de Lineu, o celebre
botânico sueco. Goethe ao ler o livro afirmou numa conferência que
Humboldt iluminara a ciencia com «uma brilhante chama».
Quando Napoleão esmagou a Prússia reduzindo-a a potência de segunda
classe, o rei forçou Humboldt a mudar-se para Berlim. Ai escreveu
Perspectivas da Natureza, traduzido em onze línguas.
Era uma obra simultaneamente científica e literária, acessível a
múltiplas classes sociais. Descrevia a Natureza, lembra Andrea Wulf,
«como rede de vida com plantas e animais dependentes uns dos outros”,
sublinhando as ligações internas das forças naturais.
«Comparava os desertos da África com os LLanos da Venezuela e as
charnecas do Norte da Europa, paisagens muito afastadas umas das outras,
mas agora combinadas num retrato único da Natureza»
Goethe, fascinado, escreveu uma carta ao amigo expressando o seu
entusiasmo. Chateaubriand afirmou achar aquela escrita tão
extraordinária que «se acredita estar a deslizar nas ondas com ele, a
perdermo-nos com ele nas profundezas dos bosques».
De volta a Paris com autorização do rei (escreveu parte da sua obra
em francês) retomou a correspondência com Jefferson e Bolivar. O
libertador das colónias espanholas admirava o sábio prussiano. Orgulhava
se da influência que exercera na sua luta. Via nele «o descobridor do
Novo Mundo».7
Charles Darwin visitou-o em Paris. Era então um jovem naturalista
quase desconhecido. Nao escondia aos amigos que fora A Narrativa Pessoal
que o decidira a embarcar no Beagle para a viagem que lhe permitiu
escrever A Origem das Espécies, o livro que o imortalizaria.
Numa das suas idas a Londres tentou mais uma vez obter autorização da
Companhia da India Oriental para visitar o subcontinente. O ministro
Canning e o próprio rei de Inglaterra intercederam por ele. A sua
aspiração era escalar os Himalaias, Mas a Companhia, que então tinha um
poder absoluto na India, não atendeu o seu pedido. Conhecia os textos
anti-colonialistas de Humboldt.
No seu regresso definitivo a Berlim, obteve junto do czar Nicolau I da Rússia autorização para visitar a Sibéria.
Foi a sua última grande aventura. Desceu até a Cordilheira do Altai
entre o Cazaquistão, a Rússia, a Mongólia e China. Percorreu 16 000
quilómetros em seis meses. Tinha 60 anos, mas aguentou bem m os gelos
siberianos e os calores abrasadores das estepes russas. No regresso, foi
recebido em Petersburgo, na Academia Imperial das Ciências como um
herói.
Puskin dele disse ao escutá-lo: «Cativantes discursos jorravam da sua boca».
A viagem permitiu-lhe confirmar a sua teoria sobre conexões que ligavam todos os fenómenos e forças da Natureza.
O COSMO, SINTESE DO SEU PENSAMENTO
Humboldt tinha mais de 65 nos quando concebeu a ideia de um livro
que, escreve Andrea Wulf, representasse numa «única obra todo o mundo
material».
Foi, inesperadamente, o mais famoso dos seus livros: Cosmo, Um Esboço da Descrição Física do Universo.
O primeiro tomo foi publicado na Alemanha em 1845,seis anos depois de iniciado.
Humboldt transporta os leitores - comenta Wulf - numa viagem desde o espaço exterior até á Terra».
O segundo tomo foi publicado dois anos mais tarde em 1847-Nele conduz o
leitor-esclarece a biógrafa - «numa viagem do espirito pela história
humana desde antigas civilizações até aos tempos modernos».
Em 1850/51 publicou o terceiro tomo. Na introdução informou que seria o
ultimo e nele tentava superar deficiências dos anteriores.
Mas afinal escreveu mais dois tomos. O quarto, em 1857, incidia sobre o geomagnetismo, os vulcões e os terramotos.
Humboldt, muito debilitado apos uma apoplexia, continuou a escrever
com a paixão de um jovem. Segundo Andrea Wulf, recebia aproximadamente 4
000 cartas por ano e respondia ainda a mais de 2000.
Desde a morte do irmão sua tendência para a solidão acentuou-se. Wilhelm
e ele eram muito diferentes. O irmão era também um sábio, mas também um
diplomata. Foi embaixador na Itália, na Inglaterra e na Áustria e
fundador da Universidade de Berlim, quando ministro da Educação. Desde
meninos uma amizade indestrutível os uniu.
Escreveu o quinto tomo já muito doente. Enviou o manuscrito ao editor semanas antes de morrer e foi publicado postumamente.
Quando faleceu, a 6 de maio de 1959, tinha 89 anos.
Em toda a Europa, na América e na Ásia foram escritas milhares de páginas sobre o cientista e o homem.
Para o reio Guilherme IV da Prússia, Alexander Von Humboldt foi «o maior homem desde o Dilúvio».
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*Andrea Wulf, A Invenção da Natureza-As Aventuras de Alexander Von
Humboldt, o herói esquecido da ciência, 544 páginas, Circulo de
Leitores, Lisboa
in O Diário.info