Reflexão sobre histórias polémicas do PCUS, da Revolução de Outubro e da URSS
Este
artigo foi escrito para ser incluído num livro póstumo que estou a
preparar. Alterei essa decisão porque a minha companheira me persuadiu
de que a sua publicação imediata, nestes dias em que a Humanidade
(incluindo Portugal) está atolada na crise estrutural do monstruoso
sistema do capital condenado a desaparecer pode ser útil.
Li
em l961, na Guiné Conakri, a tradução francesa da História do Partido
Comunista (bolchevique) da URSS, revista e aprovada em 1938 pelo Comité
Central do PCUS. Em Portugal, por iniciativa do camarada Carlos Costa, a
referida História foi publicada em 2010 com o subtítulo Breve Curso e
um prefácio, muito elogioso, de Leandro Martins, então chefe da redação
do «Avante!». A iniciativa gerou polémica no PCP.
OLHARES INCOMPATÍVEIS SOBRE A HISTÓRIA
Tenho na minha biblioteca de Gaia a citada História do Partido
Comunista (bolchevique), diferentes edições da História da União
Soviética, editadas em espanhol pela Editorial Progresso de Moscovo, e a
tradução portuguesa da História da Grande Revolução Socialista de
Outubro da mesma editora, editada en l977.
A História do PCUS publicada em 1938 e aprovada pelo Comité Central
do Partido foi traduzida em 67 línguas e dela foram vendidos mais de 42
milhões de exemplares. Mas, após o XX Congresso, foi retirada das
livrarias e bibliotecas soviéticas.
Não foi sem uma sensação de mal-estar que decidi expressar a minha
opinião sobre essa obra, a da Revolução de Outubro e uma das Histórias
da Rússia e da URSS, a elaborada pelos historiadores A. Fadeiev,
Bridsov, Chermensky, Golikov e A. Sakharov, membros da Academia das
Ciências da União Soviética. Foi editada em espanhol, também pela
Progresso, em 1960.
Porquê o mal-estar?
Por estar consciente da extrema dificuldade de estabelecer
fronteiras entre o positivo e o negativo, entre a evocação da História e
a deturpação da História que, por vezes no mesmo capítulo, ora
coincidem ora se fundem ou cruzam em confusão labiríntica.
Na História do Partido Comunista (bolchevique) os primeiros três
capítulos são dedicados ao combate pela criação de um partido operário
revolucionário (o futuro Partido Operário Social Democrata da Rússia -
POSDR, inicialmente marxista), à luta dos bolcheviques contra os
mencheviques e à primeira revolução russa (1904/1907). A narrativa é
interessante, com destaque para o papel decisivo que Lenin desempenhou
nessa fase histórica.
Os capítulos 4, 5 e 6 incidem sobre o período que vai da reação
stolypiana à Revolução de Fevereiro de 17 que derrubou a autocracia
czarista. Uma informação muito rica e inédita para os leitores do
Ocidente valoriza essas páginas que iluminam a ascensão e o
fortalecimento contínuo do Partido bolchevique e a importância da obra
teórica de Lenin como ideólogo. As Teses leninistas de Abril, que
implicaram uma viragem decisiva na linha do Partido, merecem atenção
especial. Ao exigir «todo o Poder aos Sovietes», Lenin sepultou a ideia
da longa duração da revolução democrático-burguesa, mobilizando o
Partido e os trabalhadores contra o Governo Provisório da Rússia,
esboçando a estratégia da revolução proletária rumo ao socialismo.
No capítulo 7 os autores da História do Partido evocam os acontecimentos
que precederam a Revolução de Outubro e a preparação desta, com muitas
citações de Lenin que facilitam a compreensão das lutas travadas contra o
Governo de Kerenski e no próprio Soviete de Petrogrado.
Mas a linguagem do livro, a partir do 4º capítulo, dedicado à reação
stolypiana no período que precedeu o início da guerra de 1914/18, muda
muito e distancia-se do rigor, da serenidade e isenção exigíveis a
historiadores responsáveis, como são académicos soviéticos de prestígio
mundial como Evgueni Tarlé.
Para caracterizar o oportunismo dos mencheviques, dos economicistas,
dos empiriocriticistas e denunciar e criticar os erros de Kamenev,
Zinoviev, Rikov, Preobrazhensky, Trotsky e demonstrar a sua
incompatibilidade com o leninismo, os autores da História do Partido
Comunista (bolchevique) da URSS recorrem a uma adjetivação agressiva e
insultuosa e deturpam grosseiramente a História.
Repetidamente, Stalin começa a aparecer em muitas páginas, sendo-lhe
atribuídas decisões e iniciativas importantes numa época em que era
ainda um dirigente pouco destacado do Partido, embora próximo de Lenin.
Não é verdade que Trotsky tenha aderido ao Partido para o minar por dentro, com o objetivo de o destruir.
Kamenev e Zinoviev assumiram nas vésperas da insurreição de Outubro
posições que levaram Lenin a qualificá-los de traidores, mas a atitude
de Trotsky, que era presidente do Soviete de Petrogrado, não suscitou
então qualquer crítica de Lenin.
Relativamente às negociações de Brest Litovsk os autores da História
do Partido Comunista deturpam também os acontecimentos. Lenin censurou
Trotsky, que era o chefe da delegação soviética, por não ter cumprido as
instruções para assinar a paz com os alemães, mas nunca chamou
traidores a ele e a Bukharin, que assumira uma posição ultraesquerdista,
nem a Radek e Piatakov. Afirmam os referidos historiadores que eles
formavam um grupo anti bolchevique que travou «no seio do partido uma
luta furiosa contra Lenin». É falso que planeavam «prender V.I. Lenin,
J.V. Stalin e I.M. Sverdlov, assassiná-los e formar um novo governo de
bukharinistas, trotskistas e sociais revolucionários de esquerda».
É falso que Trotsky, tendo «como lugar tenentes na luta Kamenev,
Zinoviev e Bukharin, tentava «criar ma URSS uma organização politica da
nova burguesia, partido da restauração capitalista».
A prova de que não tinham agido como conspiradores e traidores foi a
nomeação posterior de todos eles para tarefas da maior
responsabilidade, precisamente por indicação de Lenin. Trotsky foi
Comissário da Defesa durante o período mais dramático da guerra civil e
da intervenção militar das potências da Entente, dos EUA e do Japão;
Zinoviev assumiu a presidência da III Internacional com a aprovação de
Lenin; Bukharin foi chefe da redação do Pravda de l924 a 1929, com o
aval de Stalin.
No capítulo 9 a deturpação da História prossegue.
Ainda em vida de Lenin, Trotsky, durante o debate sobre os
Sindicatos e a função da NEP assumiu posições que foram duramente
criticadas por Lenin, mas continuou no Politburo com a aprovação deste.
Nas páginas dedicadas ao XIII Congresso do Partido, a breve
referência à Carta que Lenin, já inválido, lhe dirigiu a 24 de dezembro
de 1922, meses antes de sofrer o último e devastador derrame cerebral,
omite o conteúdo e significado desse documento fundamental.
Os autores da História afirmam que «Nos acordos tomados pelo XIII
Congresso foram levadas em conta todas as indicações feitas por Lenin
nos seus últimos artigos e cartas».
Trata-se de uma indesculpável inverdade.
A Carta de Lenin e a adenda do dia 4 de Janeiro de 1923 foram lidas a
muitos delegados mas não publicadas. Somente foram publicamente
divulgadas na URSS em 1956.
Porquê?
Nessa Carta Lenin transmitia ao Congresso a sua opinião sobre os
mais destacados membros do Comité Central, cuja ampliação ele propunha.
A CARTA DE LENIN AO XIII CONGRESSO
Pela sua importância transcrevo a seguir excertos da extensa carta
de Lenin ao XIII Congresso na qual chamava a atenção para o grave perigo
que ameaçava o Partido se não fossem introduzidas alterações na sua
estrutura de direção:
«O camarada Stalin, tendo chegado a secretário-geral, tem concentrado
nas suas mãos um enorme poder, e não estou seguro de que o utilizará
sempre com suficiente prudência. Por outro lado, o camarada Trotsky,
como já demonstrou a sua luta contra o CC devido ao problema do
Comissariado do Povo para as Vias de Comunicação, não se destacou apenas
pela sua grande capacidade. Como pessoa, embora seja o homem mais
dotado do atual CC, tem demasiada confiança em si mesmo e é
excessivamente atraído pelas facetas puramente administrativas das
coisas».
Esboçava depois em poucas linhas os perfis de Kamenev, Zinoviev,
Piatakov, e Tomsky que eram então, com Bukharin, Trotsky, Stalin e ele,
membros do Politburo. A Bukharin apontava as fragilidades, mas
elogiava-o também muito.
Sobre Stalin advertia nessa adenda: “É demasiado brutal e esse
defeito, perfeitamente tolerável nas relações entre nós, comunistas, não
o é nas funções de secretário-geral. Proponho portanto aos camaradas
que estudem uma forma de o transferir e nomear para esse lugar uma outra
pessoa que somente tenha em todas as coisas uma única vantagem, a de
ser mais tolerante, mais leal, mais educado, e mais atento para com os
camaradas, de temperamento menos caprichoso, etc. Essas características
podem parecer apenas pormenores, mas pelo que disse antes das relações
entre Stalin e Trotsky, não são ínfimos pormenores mas pormenores que
podem assumir uma importância decisiva».
Contrariando especulações frequentes em historiadores do Ocidente, a
hipótese de Trotsky ser nomeado secretário-geral é absurda. A velha
guarda do Partido nunca o aceitaria.
Há leves discrepâncias entre as traduções em inglês, francês,
português e espanhol da Carta de Lenin ao Congresso e da adenda
posterior. Mas são irrelevantes.
A EPOPEIA DA RECONSTRUÇÃO DA RUSSIA E DA INDUSTRIALIZAÇÃO
O capítulo 10 é o melhor do livro.
A Rússia saíra arruinada da guerra mundial, da civil e da agressão
das potências da Entente. Dezenas de cidades e centenas de aldeias
tinham sido destruídas. A produção na agricultura e na indústria caíra
para níveis muito inferiores aos de 1913. Durante a catastrófica seca
de1921/22 milhões de pessoas morreram de fome.
O governo soviético enfrentou tremendos desafios.
As fábricas existentes eram obsoletas.
Transcrevo da História do Partido:
«Era necessário construir toda uma serie de setores industriais
desconhecidos na Rússia czarista; construir novas fábricas de máquinas e
ferramentas, de automóveis, de produtos químicos e metalúrgicos;
organizar uma produção própria de motores e de materiais para a
instalação de centrais elétricas; aumentar a extração de metais e
carvão, pois assim o exigia a causa do triunfo do socialismo na URSS.
Era necessário criar uma nova indústria de guerra, construir novas
fábricas de artilharia, de munições, de aviões, de tanques e de
metralhadoras, porque assim o exigiam os interesses de defesa da URSS
nas condições do cerco imperialista.
Era necessário construir fábricas de tratores, fábricas de máquinas
agrícolas modernas para abastecer a agricultura, para dar a milhões de
pequenos camponeses individuais a possibilidade de passarem à grande
produção kolcosiana, porque assim o exigiam os interesses do triunfo do
socialismo no campo».
Essas tarefas gigantescas exigiam milhares de milhões de rublos. Ora os cofres do Tesouro estavam vazios.
Como o Poder soviético havia anulado todas as dívidas a países
capitalistas contraídas pela autocracia czarista, o crédito estrangeiro
era uma impossibilidade absoluta.
Os excedentes da agricultura eram a única fonte a que o Poder
soviético podia recorrer. Mas para os obter era indispensável que a
agricultura estivesse em condições de os produzir.
Um duplo desafio se colocava: empreender a coletivização das terras e
modernizar em tempo mínimo a agricultura, dotando os kolkhoses e os
sovkhoses (quintas do Estado) de meios técnicos adequados.
O Poder Soviético, contra as previsões de Paris, Londres e
Washington, que consideravam impossível a sua sobrevivência, ganhou essa
batalha épica.
Ela coincidiu com intensas lutas internas no Partido (Trotsky foi
expulso em 1927 e deportado para o Cazaquistão, Kamenev e Zinoviev
também foram expulsos, embora tenham sido posteriormente readmitidos) e
exigiu a destruição dos kulaks que tinham enriquecido enormemente
durante a NEP.
Não há precedentes na História da Humanidade para transformações tão profundas e rápidas como as que então ocorreram na URSS.
En l926/27 foram investidos na indústria mil milhões de rublos, três
anos depois 5 mil milhões. Nesse breve período foram construídas a
Central Elétrica do Dnieper, o caminho-de-ferro que ligou o Turquestão à
Sibéria, a gigantesca fábrica de tratores de Stalinegrado, a fábrica de
automóveis AMO.
Em 1928 a superfície dos kolkhoses era de 1 390 000 hectares; em 1929
ultrapassava 4 262 080 hectares e em 1930 15 milhões de hectares.
No triénio l930/33 a indústria cresceu o dobro.
Esses êxitos foram porem manchados por graves desvios dos princípios e valores leninistas.
Na coletivização das terras não foram apenas os kulaks o alvo da
repressão. Ela atingiu também e brutalmente, milhões de pequenos
camponeses que resistiram à integração nos kolkhoses.
Stalin criticou os «excessos esquerdistas» de quadros do Partido num
artigo em que denunciou os «graves erros daqueles que se tinham
desviado da linha do Partido» através de medidas de coação
administrativa».
São obviamente fantasistas as estatísticas forjadas no Ocidente
segundo as quais dezenas de milhões de camponeses russos e ucranianos
foram mortos no processo de coletivização.
Mas é inegável que cabem a Stalin grandes responsabilidades por crimes cometidos nesse período.
A História do Partido Comunista (bolchevique) é omissa a esse respeito.
As ideias de Lenin sobre a coletivização eram incompatíveis com a
política de Stalin para a agricultura e com os métodos a que recorreu
num contexto de exacerbada luta dentro do Comité Central.
Mas, a minha discordância frontal da estratégia do secretário-geral
do PCUS, já investido do enorme poder que Lenin temia e denunciou, não
me impede de reconhecer que ele foi um revolucionário excecionalmente
dotado que realizou em menos de uma década uma obra colossal.
Distancio-me totalmente dos elogios insistentes e ditirâmbicos a
Stalin, mas registo que, terminado com êxito antes do prazo o I Plano
Quinquenal, a Rússia se transformara de país agrário atrasado, com
estruturas medievais, num grande país industrial. Um país em que quase
75% da população adulta era analfabeta tornou-se um país instruído e
culto com uma rede impressionante de escolas superiores, secundárias e
básicas em que eram ensinadas as línguas de dezenas de nacionalidades
que conviviam no espaço soviético do Báltico e do Mar Negro ao Pacífico;
o primeiro país do mundo em que o Estado garantia a saúde a educação
gratuita a todos os cidadãos.
CONCLUSÕES
No capítulo das Conclusões os autores da História do Partido
(bolchevique) tentam apresentar o regime soviético no final dos anos 30
como a concretização do leninismo. Stalin seria o seu intérprete fiel.
O andamento da História demonstrou a falsidade dessa aspiração.
Já na época, o culto da personalidade de Stalin era incompatível com o projeto de Lenin.
Somente em 1956 no XX Congresso do PCUS foi levantado o tema.
Khrushchov, que nunca havia dirigido a mais leve critica ao
secretário-geral, esboçou dele um perfil medonho. Posteriormente
soube-se que o famoso Relatório ao Congresso estava semeado de
informações falsas. Mas o culto da personalidade de Stalin, por ele
estimulado, foi uma realidade.
A chamada desestalinização não pode esconder que a chegada ao poder de
Khrushchov assinalou o início da política revisionista que conduziu à
destruição da URSS.
Quem enterrou o Socialismo na União Soviética foi Gorbatchov, mas quem abriu a cova foi Khrushchov.
SOBRE A HISTÓRIA DA GRANDE REVOLUÇÃO SOCIALISTA DE OUTUBRO
A versão portuguesa, publicada em 1977 pela Progresso foi preparada
por um grupo de académicos, mas a editora soviética não cita os seus
nomes.
Pelo estilo, pela linguagem e pelas fontes consultadas (que ocupam 71
páginas no índice) é uma obra muito diferente da História do Partido
Comunista (bolchevique) de 1938.
As primeiras referências a divergências na fração bolchevique do
POSDR aparecem somente nas páginas 152 e 163. Os autores sublinham que
Trotsky, Kamenev e Zinoviev não acreditavam na «vitória da revolução
socialista na Rússia», Os dois últimos denunciaram mesmo num artigo a
preparação da insurreição do 7 de novembro (25 de Outubro no calendário
Juliano, ainda vigente) o que levou Lenin a acusá-los de «traidores».
A III Parte da História em apreço é dedicada à Edificação do Estado Soviético e a Transformações Revolucionárias no País.
Nas 200 páginas que ocupa são frequentes as críticas a Kamenev e Zinoviev e escassas as referencias a Stalin e Trotsky.
As críticas a Trotsky surgem a propósito das posições contraditórias
que assumiu como chefe da delegação soviética nas negociações de paz de
Brest Litovsk com os alemães e os austríacos.
Mas a linguagem dessas críticas não é agressiva. Os autores escrevem
que «Tal como os comunistas “de esquerda” (então liderados por
Bukharin), Trotsky não acreditava na possibilidade de conservar o Poder
Soviético sem o apoio das revoluções nos países da Europa ocidental.
Lenin tinha dado instruções para assinar o tratado de paz se os alemães
apresentassem um ultimato».
E Trotsky, como chefe da delegação, ignorou as indicações de Lenin,
refugiando-se na fórmula absurda «nem paz nem guerra!» Mas quando os
alemães retomaram a ofensiva a 18 de Fevereiro, Trotsky, na reunião de
emergência do Comité Central, votou com Lenin pela assinatura imediata
do tratado imposto pelos alemães, o que se fez a 3 de Março.
Os autores não referem sequer a expulsão de Trotsky do Partido em 1927 e a sua deportação para a Ásia Central.
Esse grupo de historiadores são obviamente seguidores disciplinados
da linha revisionista adotada pelo PCUS após o XX Congresso. E refletem
na sua História um tipo de sectarismo tão condenável como o dos
redatores da História do Partido Comunista (bolchevique).
A escassez de referências a Trotsky não se justifica.
Se é falso que ele tenha sido o cérebro de um plano tenebroso que
visaria desmembrar a URSS, entregando o Extremo Oriente aos japoneses e a
Ucrânia a Hitler, é indesmentível que o fundador da IV Internacional
conspirou permanentemente no exílio contra a União Soviética.
UMA HISTÓRIA DA URSS TAMBÉM POLÉMICA
A História da URSS preparada pelos cinco membros da Academia das
Ciências citados no início deste artigo é também uma obra polémica na
qual a deturpação dos acontecimentos históricos reflete o espirito do
revisionismo khrushchoviano.
É um manual pouco ambicioso destinado à juventude. O título é aliás
incorreto porque os autores tentam condensar em quatrocentas e poucas
páginas a história dos povos que desde o paleolítico se instalaram ao
longo dos séculos no espaço da futura União Soviética.
O Capítulo I, de Bridsov e A. Sakharov, é dedicado às comunidades primitivas e ao período da escravidão.
No Capítulo II, de Sakharov, o tema é o feudalismo e abrange a
fundação do Estado Russo, as invasões mongóis, a desintegração da Horda
de Ouro, e finda com o desenvolvimento na Rússia das relações
capitalistas.
A perspetival marxista não é facilmente identificável nessas páginas
que contêm informações muito interessantes, ausentes nos trabalhos de
historiadores ocidentais sobre esses períodos. O nome de Stalin aparece
pela primeira vez na página 141, incluído numa lista de bolcheviques que
lutavam contra os mencheviques. Kamenev é citado na página 202 como
líder dos «oportunistas de direita». Bukharin e Preobrazhensky na página
206 como «capituladores».
Trotsky é criticado (pág. 212) por «ter violado as instruções do CC
do Partido e do governo soviético, negando-se a assinar as condições de
paz».
O Stalin é atribuído, com Vorochilov, o êxito da vitória sobre Krasnov (pág. 231) em Tsaristsin (futura Stalinegrado).
O trotskismo volta a ser citado criticamente na pág. 258. Bukharin e
Rykov são qualificados de «grupo anti partido de oportunistas» (pág.
261)
Nas páginas dedicadas à coletivização da agricultura a violação dos
princípios do Partido é atribuída a funcionários e aos sovietes locais e
valorizada como importante a crítica de Stalin a esses desvios. Mas não
há referências aos crimes cometidos e à deportarão maciça de
camponeses.
O Historiador não alude sequer aos processos dos anos 30 que
findaram com os fuzilamentos de Kamenev, Zinoviev, Rakovsky, Bukharin,
Preobrazhensky e outros velhos bolcheviques.
As primeiras referências ao culto da personalidade de Stalin
aparecem na página 281. O autor do capítulo afirma que «a idolatria a
Stalin infligiu graves danos ao Partido Comunista e à sociedade
soviética» e sublinha que os êxitos obtidos pelo Partido e as massas
populares foram injustamente atribuídos a Stalin.
No capítulo dedicado à II Guerra Mundial salienta-se que Stalin
«assumiu a direção militar, económica e politica dom país, concentrando
nas suas mãos a plenitude do Poder do Estado» (pág. 287).
No Capítulo IV, o académico F. Golikov dedica largo espaço (página
312 e seguintes) ao XX Congresso, informando que nele foi discutido o
relatório do primeiro secretário, Khrushchov, sublinhando que «a questão
de superar o culto da personalidade de Stalin e as suas consequências»
mereceu especial atenção.
«O Congresso – escreve Golikov - revelou audaz e sinceramente as
faltas e as deficiências no trabalho, resultantes da idolatria a Stalin,
sobretudo nos últimos anos da sua vida e atividade. Alheio ao espirito
do marxismo-leninismo e à natureza do regime socialista da sociedade, a
androlatria travou o desenvolvimento da democracia soviética e impediu o
avanço da União Soviética para o comunismo.
Mas, ao criticar os «aspetos erróneos da atividade de Stalin» a nova
direção do Partido afirma que «como fiel marxista-leninista e firme
revolucionário Stalin ocupará o seu devido lugar na História».
Na sessão plenária do CC de junho de 1957 salienta-se que «foi
derrotado e desmascarado o grupo anti partido integrado por Malenkov,
Kaganovitch, Molotov, Bulganin e Shepilov».
Seguem-se páginas apologéticas dos extraordinários êxitos que o PCUS
sob a direção de Khrushchov estaria alcançando e que permitiriam à URSS
«ocupar nos próximos 15 anos o primeiro lugar no mundo tanto quanto ao
volume global da produção como à produção per capita. No país será
criada a base material e técnica do comunismo».
Para mal da humanidade, essa previsão otimista foi desmentida pela História.
Pelo estilo e linguagem, no Ensaio em apreço transparece com clareza
a mentalidade revisionista que empurrou a URSS para a sua desagregação e
a reimplantação na Rússia do capitalismo.
É um trabalho que não contribuiu para o prestígio da historiografia soviética.
Transcorridas décadas, é minha convicção firme que a História do
Partido Comunista (bolchevique) de 1938, a História da Grande Revolução
de Outubro e as diferentes Histórias da URSS editadas nos anos 70
deturparam todas, com objetivos opostos, a História real de
acontecimentos que deixaram marcas inapagáveis no caminhar da
humanidade.
É útil recordar que a grande maioria dos historiadores ocidentais,
epígonos do capitalismo, longe de contribuírem para iluminar a história
real da União Soviética, a deturpam com perversidade para demonizar o
marxismo e Lenin.
Em vésperas das comemorações do centenário da Revolução de Outubro,
sinto a necessidade de afirmar que, não obstante as graves deformações
que desnaturaram o projeto de Lenin, o desaparecimento da URSS
configurou uma tragédia para a humanidade. A vitória da Revolução
Socialista foi o maior acontecimento da História e a sua herança
confirma que foi a experiência mais justa e ambiciosa de libertação do
homem da sua exploração milenária.
*História do Partido Comunista (bolchevique) da URSS, Edição de Para a
História do Socialismo, Portugal, Agosto de 2010, 527 páginas
** História da Grande Revolução Socialista de Outubro, Edições Progresso, Moscovo, 1977, 676 páginas
*** Historia de la URSS (Ensayo), publicada em 1960 pelas Edições Progresso, de Moscovo, 422 páginas
Serpa e Vila Nova de Gaia, Setembro e Outubro de 2016