A espuma das palavras

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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

As ligações de Trump com o passado e a ressurreição da esquerda

James Petras    24.Feb.17    Colaboradores
Um dos aspectos mais significativos do momento actual é a evidência da agudização de fracturas internas nas principais potências imperialistas, nomeadamente nos EUA e na UE. Num quadro em que emergem novos perigos, emergem e tomam a iniciativa também forças sãs, populares e democráticas. A classe dominante gerou um mundo desumano e insuportável, cujos principais dirigentes são figuras repelentes. A luta de classes intensifica-se.
Introdução
O presidente Trump está profundamente entranhado na estrutura do estado profundo do imperialismo americano. Apesar de ocasionais referências à não intervenção em guerras além-mar, Trump tem seguido as pegadas dos seus antecessores.
Enquanto neoconservadores e liberais têm levantado um alarido acerca dos laços de Trump com a Rússia, as suas “heresias” relativamente à NATO e as suas aberturas para a paz no Médio Oriente, ele tem na prática descartado o seu imperialismo “humanitário de mercado” e tem-se empenhado nas mesmas políticas belicosas da sua rival presidencial do Partido Democrata, Hillary Clinton.
Uma vez que lhe falta a ardilosa “demagogia” do ex-presidente Obama e não recobre as suas acções com apelos baratos a políticas “de identidade”, os pronunciamentos toscos e abrasivos de Trump levam jovens manifestantes às ruas em acções de massa. Estas manifestações são não muito discretamente apoiadas pelos principais oponentes de Trump entre os banqueiros da Wall Street, especuladores e magnatas dos mass media. Por outras palavras, o presidente Trump é um homem que abraça e segue os ícones estabelecidos e não um “revolucionário” ou mesmo um “agente de mudança”.
Prosseguiremos, discutindo a trajectória histórica que originou o regime Trump. Identificaremos políticas e compromissos anteriores que determinam a orientação presente e futura da sua administração.
Concluiremos identificando como a reacção actual pode produzir transformações futuras. Contestaremo o actual delírio catastrofista e apocalíptico e apresentaremos razões para uma perspectiva optimista do futuro. Em suma, este ensaio indicará como tendências negativas actuais podem tornar-se realisticamente positivas.
Sequências históricas
Ao longo das últimas duas décadas presidentes dos EUA desbarataram os recursos financeiros e militares do país em múltiplas guerras intermináveis e perdedoras, bem como em milhões de milhões (trillion) de dólares de dívidas comerciais e desequilíbrios orçamentais. Líderes dos EUA enlouqueceram provocando grandes crises financeiras globais, levando à bancarrotas os maiores bancos, destruindo pequenos possuidores de hipotecas, devastando a indústria manufactureira e criando desemprego maciço a que se seguiu o emprego precário e mal pago que levou ao colapso os padrões de vida da classe trabalhadora e dos extractos baixos da classe média.
Guerras imperiais, bail-outs de milhões de milhões de dólares para os bilionários e fuga sem peias de corporações multinacionais para o exterior aprofundaram amplamente as desigualdades de classe e deram origem a acordos comerciais favorecendo a China, Alemanha e México. Dentro dos EUA, os maiores beneficiários destas crises têm sido os banqueiros, bilionários da alta tecnologia, importadores comerciais e exportadores do agro-negócio.
Confrontados com crises sistémicas, os regimes dominantes responderam com o aprofundamento e expansão dos poderes dos presidentes dos EUA sob a forma de decretos presidenciais. Para encobrir a longa série de derrocadas, denunciantes patriotas foram encarcerados e a vigilância estilo estado-policial infiltrou-se em todas as áreas da cidadania.
Os presidentes Bush, Clinton e Obama definiram a trajectória das guerras imperiais e da pilhagem da Wall Street. A polícia estadual, as instituições militares e financeiras estão firmemente incorporadas na matriz do poder. Centros financeiros, como Goldman Sachs, têm reiteradamente estabelecido a agenda e controlado o Departamento do Tesouro dos EUA e as agências que regulam o comércio e a banca. As “instituições permanentes” do estado permaneceram, enquanto presidentes, pouco importando de que partido, foram baralhados e descartado no “Gabinete Oval”.
O “Primeiro Negro” presidente Barack Obama prometeu paz e empreendeu sete guerras. O seu sucessor, Donald Trump, foi eleito com promessas de “não-intervenção” e imediatamente adoptou o “bastão de bombardeamento” de Obama: o minúsculo Iémen foi atacado pelas forças dos EUA; aliados da Rússia na região do Donbass da Ucrânia foram atacados com selvajaria pelos aliados de Washington em Kiev e o “mais realista” representante de Trump, Nikki Haley, adoptou uma atitude belicosa na ONU ao estilo da “Madame Intervenção Humanitária” Samantha Power, zurrando invectivas contra a Rússia.
Onde está a mudança? Trump seguiu Obama ao aumentar sanções contra a Rússia, enquanto ameaça a Coreia do Norte com aniquilação nuclear no seguimento da grande concentração militar acumulada por Obama na península coreana. Obama lançou uma guerra por procuração contra a Síria e Trump escalou a guerra aérea sobre Raqqa. Obama cercou a China com bases militares, navios e aviões de guerra e Trump prosseguiu em passo de ganso com retórica belicista. Obama expulsou um recorde de dois milhões de trabalhadores mexicanos ao longo de oito anos; Trump seguiu-o ao prometer deportar ainda mais.
Por outras palavras, o presidente Trump juntou-se obedientemente à marcha seguindo a trajectória dos seus antecessores, bombardeando os mesmos países alvos enquanto plagia os seus maníacos discursos nas Nações Unidas.
Obama aumentou o tributo anual (ajuda) a Tel Aviv para uns entusiásticos US$3,8 mil milhões enquanto balia umas poucas críticas pro-forma acerca da expansão israelense sobre terras palestinas usurpadas; Trump propôs deslocar a Embaixada dos EUA para Jerusalém enquanto choramingava algumas das suas próprias mini-críticas aos colonatos judeus ilegais em terras roubadas aos palestinos.
O que é esmagadoramente gritante é a semelhança das políticas e estratégias de Obama e de Trump em política externa, seus meios e aliados. O que é diferente é o estilo e a retórica. Ambos os presidentes “Agentes de mudança” romperam de imediatato as mesmas falsas promessas pré-eleitorais e funcionam bem dentro dos limites das instituições permanentes do estado.
Quaisquer que sejam as diferenças que existam elas são resultado de contextos históricos contrastantes. Obama assumiu no momento do colapso do sistema financeiro e procurou regular os bancos a fim de estabilizar operações. Trump assumiu após a “estabilização” de um trilião de dólares de Obama e procura eliminar regulações – nas pegadas do presidente Clinton! Assim, “demasiado barulho” [para nada] sobre a “desregulação histórica” de Trump!
O “Inverno do descontentamento” sob a forma de protestos em massa contra a proibição de Trump a imigrantes e visitantes de sete países predominantemente muçulmanos segue-se directamente às “sete guerras mortais” de Obama. Os imigrantes e refugiados são resultados directos das invasões e ataques de Obama a estes países que levaram a assassinatos, mutilações, deslocação forçada e desgraça para milhões de “predominantemente” (mas não exclusivamente) de muçulmanos. As guerras de Obama criaram dezenas de milhares de “rebeldes”, insurgentes e terroristas. Os refugiados, que fogem para salvar a vida, foram amplamente excluídos dos EUA sob Obama e a maior parte tem procurado abrigo nos campos imundos e caóticos da UE.
Por terrível e ilegal que seja o encerramento da fronteira a muçulmanos decretado por Trump e por esperançosos que pareçam os protestos públicos em massa, ambos resultam da política de assassínio e agressão de quase uma década sob o presidente Obama.
Seguindo a trajectória da política - Obama derramou o sangue e Trump, no seu tosco estilo racista, tem a tarefa de “limpar os estragos”. Enquanto Obama foi agraciado com um “Prémio Nobel da Paz”, o resmungante Trump é fortemente atacado por empunhar a esfregona suja de sangue!
Trump optou por pisar o caminho do opróbrio e enfrenta a cólera do purgatório. Enquanto isso, Obama está a jogar golf, a surfar ao vento e a exibir o seu sorriso despreocupado aos escrevinhadores que o adoram nos mass media.
Enquanto Trump avança às patadas no caminho preparado por Obama, centenas de milhares de manifestantes enchem as ruas para protestar contra o “fascista”, com grande número das principais redes de mass media, dúzias de plutocratas e “intelectuais” de todos os géneros, raças e credos a retorcerem-se moralmente ultrajados! Fica-se confuso com o silêncio ensurdecedor destes mesmos activistas e forças quando as guerras agressivas e ataques de Obama levaram à morte e deslocação de milhões de civis, principalmente muçulmanos e principalmente mulheres – quando seus lares, festas de casamento, mercados, escolas e funerais foram bombardeados.
É assim o confusionismo americano! Dever-se-ia tentar entender as possibilidades que emergem de um sector maciço finalmente a romper seu silêncio quando o belicismo do loquaz Obama se transformou na marcha bruta de Trump para o dia do juízo final.
Perspectivas optimistas
Há muitos que desesperam mas há mais que se tornaram conscientes. Identificaremos as perspectivas optimistas e as esperanças realistas enraizadas nas actuais realidade e tendências. Realismo significa discutir desenvolvimentos contraditórios e polarizadores e portanto não aceitamos quaisquer resultados “inevitáveis”. Isto significa que resultados são “terreno contestado” onde factores subjectivos desempenham um papel importante. A interface de forças em conflito pode resultar numa espiral ascendente ou descendente – rumo a maior igualdade, soberania e libertação ou maior concentração de riqueza, poder e privilégio.
A mais retrógrada concentração de poder e riqueza encontra-se na oligárquica União Europeia de dominação alemã – uma configuração que está sob assédio por parte de forças populares. Os eleitores do Reino Unido optaram por sair da UE (Brexit). Em consequência, a Grã-Bretanha enfrenta uma ruptura com a Escócia e Gales e uma ainda maior separação da Irlanda. O Brexit levará a uma nova polarização quando banqueiros com base em Londres partirem para a UE e líderes do mercado livre confrontarem trabalhadores, proteccionistas e a massa crescente dos pobres. O Brexit fortalece forças nacionalistas-populistas e de esquerda na França, Polónia, Hungria e Sérvia e estilhaça a hegemonia neoliberal na Itália, Espanha, Grécia, Portugal e alhures. O desafio aos oligarcas da UE é que a insurgência popular intensificará a polarização social e pode trazer à tona movimentos de classe progressistas ou partidos ou movimentos autoritários-nacionalistas.
A ascensão de Trump ao poder e seus decretos executivos conduziu a uma elevada polarização dos eleitorados, aumentou a politização e a acção directa. O despertar da América aprofunda fissuras internas entre democratas com “d” minúsculo, mulheres progressistas, sindicalistas, estudantes e outros contra os oportunistas do Partido Democrata com “D” maiúsculo, especuladores, antigos belicistas Democratas, burgueses negros do Partido “D” (os líderes extraviados) e um pequeno exército de ONG’s financiadas pelas grandes empresas.
O abraço de Trump à agenda militar Obama-Clinton e da Wall Street conduzirá a uma bolha financeira, gastos militares empolados e mais guerras dispendiosas. Isto dividirá o regime dos seus apoiantes sindicais e da classe trabalhadora agora que o gabinete de Trump é composto inteiramente de bilionários, ideólogos, sionistas raivosos e militaristas (em oposição à sua promessa de nomear homens de negócios e realistas duros na negociação). Isto poderia criar uma valiosa oportunidade para a ascensão de movimentos que rejeitam a verdadeiramente feia cara do reaccionário regime de Trump.
A animosidade de Trump à NAFTA (Acordo de Livre Comércio da América do Norte) e a defesa do proteccionismo e da exploração financeira e de recursos minará os regimes corruptos, assassinos e narco-liberais que têm dominado o México durante os últimos 30 anos desde o tempo de Salinas. A política anti-imigração de Trump levará mexicanos a escolherem “combater em vez de fugir” ao confrontar o caos social criado pelos narco-gangs e a polícia criminosa. Isto forçará o desenvolvimento do mercado interno e a indústria do México. O consumo e a propriedade de massa interna abarcará movimentos nacionais-populares. O cartel da droga e seus patrocinadores políticos perderão os mercados estado-unidenses e enfrentarão oposição interna.
O protecionismo de Trump limitará o fluxo ilegal de capital a partir do México, que ascendeu a US$48,3 mil milhões em 2016, ou 55% da dívida do México. A transição do México da dependência e do neocolonialismo polarizará profundamente o estado e a sociedade; o resultado será determinado pelas forças de classe.
As ameaças económicas e militares de Trump contra o Irão fortalecerão forças nacionalistas, populistas e colectivistas em relação a políticos neoliberais “reformistas” e pró ocidentais. A aliança anti-imperialista do Irão com o Iémen, Síria e Líbano consolidar-se-á contra o quarteto conduzido pelos EUA da Arábia Saudita, Israel, Grã-Bretanha e EUA.
O apoio de Trump à apropriação maciça de terra palestina por Israel e sua proibição “só judeus” contra muçulmanos e cristãos levará ao sacudir dos quislings multi-milionários da Autoridade Palestina e a ascensão de muitos mais levantamentos e intifadas.
A derrota do ISIS fortalecerá forças governamentais independentes no Iraque, Síria e Líbano, enfraquecendo a alavancagem imperial dos EUA e abrindo a porta a lutas populares democráticas e laicas.
A campanha anti-corrupção em grande escala e a longo prazo do presidente da China, Xi Jinping, levou à prisão e remoção de mais de um quarto de milhão de responsáveis e homens de negócios, incluindo bilionários e líderes de topo do Partido. As prisões, processos e encarceramentos reduziram o abuso do privilégio mas, mais importante, melhoraram as perspectivas para um movimento que ponha em causa as vastas desigualdades sociais. Aquilo que começou “de cima” pode provocar movimentos “a partir de baixo”. O ressuscitar de um movimento no sentido de valores socialistas pode ter um grande impacto sobre estados asiáticos vassalos dos EUA.
O apoio da Rússia a direitos democráticos no Leste da Ucrânia e a reincorporação da Crimeia através de referendo pode limitar regimes fantoches dos EUA no flanco sul da Rússia e reduzir a intervenção estado-unidense. A Rússia pode desenvolver laços pacíficos com estados europeus independentes com a ruptura na UE e a vitória eleitoral de Trump superando a ameaça de guerra nuclear do regime Obama-Clinton.
O movimento à escala mundial contra o globalismo imperialista isola a direita apoiada pelos EUA que tomou poder na América do Sul. A procura de pactos comerciais neoliberais por parte do Brasil, Argentina e Chile está na defensiva. As suas economias, especialmente na Argentina e Brasil, assistiram a um triplica do desemprego, um quadruplicar da dívida externa, crescimento de estagnado a negativo e enfrentam agora greves gerais com apoio de massa. O coaxar do neoliberalismo está a provocar lutas de classe. Isto pode derrubar a ordem pós Obama na América Latina.

Conclusão

Por todo o mundo e no interior dos países mais importantes, a ordem ultra-neoliberal do último quarto de século está em desintegração. Há um ascenso maciço de movimentos a partir de cima e de baixo, de democratas de esquerda a nacionalistas, de populistas independentes a reaccionários da “velha guarda” da direita. Emergiu um universo polarizado e fragmentado. O começo do fim da actual ordem imperial-globalista está a criar oportunidades para uma nova ordem democrático-colectivista dinâmica. Os oligarcas e as elites da “segurança” não cederão facilmente a exigências populares nem se afastarão. Facas serão afiadas, decretos executivos avançarão e golpes eleitorais serão encenados para tentar tomar poder. Os movimentos democrático-populares emergentes precisam de ultrapassar a identidade fragmentária e estabelecer líderes unificados e igualitários que possam actuar de forma decisiva e independente em relação aos líderes políticos existentes que fazem gestos progressistas dramáticos, mas falsos, enquanto procuram um retorno ao fedor e imundície do passado recente.
09/Fevereiro/2017
O original encontra-se em http://petras.lahaine.org/?p=2127
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ . Tradução revista por odiario.info
Publicada por Nozes Pires à(s) sexta-feira, fevereiro 24, 2017 Sem comentários:

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O presidente “bom” e o presidente “mau”

Manlio Dinucci    21.Feb.17    Outros autores
Com as manifestações realizadas a 21 de Janeiro, muitos cidadãos de diversos países aceitaram comportar-se como seguidores e instrumentos de uma das facções em confronto nos EUA. Entre o beatificado Obama e o demonizado Trump, a escolha a fazer não é entre nenhum deles. É a escolha pela soberania nacional, pela paz, pelo direito de cada povo decidir do seu próprio destino, liberto da ingerência e da pressão dos EUA, da NATO, do imperialismo em geral.
Quebrando lanças pelos seus amos estado-unidenses, os europeus – em vez de lutar pela sua própria soberania – unem-se em coro ao concerto de críticas – nem sempre justificadas – sob a batuta das elites da margem ocidental do Atlântico. Invocando a «democracia», desfilam inclusivamente contra o resultado das eleições. Barack Obama foi designado «santo subito», ou seja “santo de imediato”: quando entrou na Casa Branca, em 2009, foi-lhe entregue a título preventivo o Premio Nobel da Paz pelos «seus extraordinários esforços para fortalecer a diplomacia internacional e a cooperação entre os povos».
Isso sucedeu enquanto a sua administração preparava já em segredo, através da secretaria de Estado Hillary Clinton, a guerra que 2 anos mais tarde destruiria o Estado líbio, guerra que se estenderia depois a Síria e Iraque através dos grupos terroristas, instrumentos da estratégia dos Estados Unidos e da NATO. Donald Trump, pelo contrário, foi demonizado de imediato, inclusivamente antes de entrar na Casa Branca. Acusam-no de usurpar o posto destinado a Hillary Clinton, graças a uma operação maléfica ordenada pelo presidente russo Vladimir Putin.
As “provas” vêm da CIA, inquestionavelmente perita em matéria de infiltrações e golpes de Estado. Basta recordar as suas operações destinadas a provocar guerras contra Vietnam, Camboja, Líbano, Somália, Iraque, Jugoslávia, Afeganistão, Líbia y Síria; ou os seus golpes de Estado em Indonésia, Salvador, Brasil, Chile, Argentina e Grécia. E as suas consequências: milhões de personas encarceradas, torturadas e assassinadas; milhões de pessoas deslocadas das suas terras, convertidas em refugiados, vítimas de uma verdadeira conversão em escravos.
E sobretudo as mulheres, adolescentes e meninas submetidas a escravatura, violadas, obrigadas a exercer a prostituição. Haveria que recordar tudo isso a quem, nos Estados Unidos e na Europa, organizaram em 21 de Janeiro a Marcha das Mulheres para defender precisamente essa paridade de género conquistada em duras lutas e constantemente questionada por posições sexistas, como as que Trump expressa. Mas não é por essa razão que se aponta o dedo a Trump numa campanha sem precedente no processo de transmissão do poder na Casa Branca.
O facto é que, nesta ocasião, os perdedores se negam a reconhecer a legitimidade do presidente eleito e estão a implementar um impeachment preventivo. Donald Trump está a ser presentado como uma espécie de Manchurian Candidate que, infiltrado na Casa Branca, estaria sob o controlo de Putin, inimigo dos Estados Unidos. Os estrategas neoconservadores, artífices desta campanha, tratam desse modo de impedir uma mudança de rumo na relação dos Estados Unidos com a Rússia, que a administração Obama fez retroceder aos tempos da guerra fria.
Trump é um «trader» que, embora continue a assentar a política estado-unidense na força militar, tem intenção de abrir uma negociação com a Rússia, provavelmente para debilitar a aliança entre Moscovo e Pequim. Na Europa, os que temem que se produza uma diminuição da tensão com a Rússia são antes de mais os dirigentes da NATO, que ganharam importância graças à escalada militar da nova guerra fria, e os grupos que detêm o poder nos países do leste – principalmente na Ucrânia, na Polonia e nos países bálticos – que apostam na hostilidade anti-russa para obter maior apoio militar e económico de parte da NATO e da União Europeia.
Nesse contexto, não é possível deixar de mencionar, nas manifestações de 21 de Janeiro, as responsabilidades dos que transformaram a Europa na primeira línea de enfrentamento, inclusivamente nuclear, com a Rússia. Teríamos que sair à rua, certamente, mas não como súbditos estado-unidenses que rechaçam um presidente “mau” mas exigindo um “bom”, para nos libertarmos do que nos amarra aos Estados Unidos, país que – não importa quem seja o seu presidente – exerce a sua influência sobre a Europa através da NATO.
Teríamos que manifestar-nos, mas para sair dessa aliança belicista, para exigir a retirada do armamento nuclear que os Estados Unidos têm armazenado nos nossos países. Teríamos que manifestar-nos para ter o direito a opinar, como cidadãs e cidadãos, sobre as opções em matéria de política externa que, indissoluvelmente ligadas às opções económicas e políticas internas, determinam as nossas condições de vida e o nosso futuro.
Fonte: Il Manifesto, http://www.investigaction.net/es/el-presidente-bueno-y-el-presidente-malo/#sthash.rGRUnNBL.dpuf
in ODiario.info
Publicada por Nozes Pires à(s) terça-feira, fevereiro 21, 2017 Sem comentários:

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Raduan Nassar: O Escritor e o Homem




“Vivemos tempos sombrios”
 
Raduan Nassar não é o intelectual asceta que ignora a sociedade onde se insere, Nassar assume o empenho de cidadão viril que dignifica o intelectual completo.
Em seu pronunciamento na entrega do Prêmio Camões de literatura, o escritor critica o golpe, o governo Temer e o STF.
Nassar, palavras firmes no Prêmio Camões
Às dez e meia da manhã desta sexta-feira 17, o escritor Raduan Nassar subiu ao palco montado no Museu Lasar Segall, em São Paulo, para receber o Prêmio Camões de 2016, honraria concedida pelos governos do Brasil e Portugal e um dos principais reconhecimentos da literatura em língua portuguesa. Nassar ofereceu à plateia o seguinte discurso:
Excelentíssimo Senhor Embaixador de Portugal, Dr. Jorge Cabral.
Senhor Dr. Roberto Freire, Ministro da Cultura do governo em exercício. Senhora Helena Severo, Presidente da Fundação Biblioteca Nacional. Professor Jorge Schwartz, Diretor do Museu Lasar Segall.
Saudações a todos os convidados. 
Tive dificuldade para entender o Prêmio Camões, ainda que concedido pelo voto unânime do júri. De todo modo, uma honraria a um brasileiro ter sido contemplado no berço de nossa língua.
  
Estive em Portugal em 1976, fascinado pelo país, resplandecente desde a Revolução dos Cravos no ano anterior. Além de amigos portugueses, fui sempre carinhosamente acolhido pela imprensa, escritores e meios acadêmicos lusitanos.
Portanto, Sr. Embaixador, muito obrigado a Portugal.
Infelizmente, nada é tão azul no nosso Brasil.
Vivemos tempos sombrios, muito sombrios: invasão na sede do Partido dos Trabalhadores em São Paulo; invasão na Escola Nacional Florestan Fernandes; invasão nas escolas de ensino médio em muitos estados; a prisão de Guilherme Boulos, membro da Coordenação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto; violência contra a oposição democrática ao manifestar-se na rua. Episódios todos perpetrados por Alexandre de Moraes.
Com curriculum mais amplo de truculência, Moraes propiciou também, por omissão, as tragédias nos presídios de Manaus e Roraima. Prima inclusive por uma incontinência verbal assustadora, de um partidarismo exacerbado, há vídeo, atestando a virulência da sua fala. E é esta figura exótica a indicada agora para o Supremo Tribunal Federal.
Os fatos mencionados configuram por extensão todo um governo repressor: contra o trabalhador, contra aposentadorias criteriosas, contra universidades federais de ensino gratuito, contra a diplomacia ativa e altiva de Celso Amorim. Governo atrelado por sinal ao neoliberalismo com sua escandalosa concentração da riqueza, o que vem desgraçando os pobres do mundo inteiro.
Mesmo de exceção, o governo que está aí foi posto, e continua amparado pelo Ministério Público e, de resto, pelo Supremo Tribunal Federal.
Prova da sustentação do governo em exercício aconteceu há três dias, quando o ministro Celso de Mello, com suas intervenções enfadonhas, acolheu o pleito de Moreira Franco.
Citado 34 vezes numa única delação, o ministro Celso de Mello garantiu, com foro privilegiado, a blindagem ao alcunhado “Angorá”. E acrescentou um elogio superlativo a um de seus pares, o ministro Gilmar Mendes, por ter barrado Lula para a Casa Civil, no governo Dilma. Dois pesos e duas medidas
É esse o Supremo que temos, ressalvadas poucas exceções. Coerente com seu passado à época do regime militar, o mesmo Supremo propiciou a reversão da nossa democracia: não impediu que Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados e réu na Corte, instaurasse o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Íntegra, eleita pelo voto popular, Dilma foi afastada definitivamente no Senado.
 O golpeestava consumado!
 Não há como ficar calado.
 Obrigado.

OBRIGADO, RADUAN NASSAR!
Este artigo encontra-se em: as palavras são armas http://bit.ly/2kA5VyS
Publicada por Nozes Pires à(s) domingo, fevereiro 19, 2017 Sem comentários:

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Em coluna

Comentários à História da União Soviética de Peter Kenez

António Barata - Publicado em Segunda, 17 Outubro 2011 02:00
António Barata
Editado inicialmente nos EUA em 1999, a História da União Soviética, de Peter Kenez (Edições 70) foi publicado em Portugal em 2007, tendo sido reposto pela FNAC este Verão.

Como é um livro escrito a pensar no grande público, não é muito profundo nem se detém na análise política e ideológica. É principalmente uma descrição das circunstâncias que levaram à tomada do poder pelos bolcheviques e das transformações por que passou a URSS até à sua implosão. O resultado é um trabalho que respeita os factos e não confunde relato histórico com propaganda anticomunista. Lenine, Trotsky, Estaline, os bolcheviques em geral, não são tratados como criminosos, mas como revolucionários que, chegados ao poder, se viram impossibilitados de realizar o projecto igualitário a que se propunham (o autor refere o insucesso da revolução de 1917 como resultado da derrota da revolução alemã, do atraso económico e social de uma Rússia recente e escassamente industrializada e com um enorme campesinato, da mortandade de centenas de milhões de soviéticos provocada pela guerra mundial, guerra civil, epidemias, fome generalizada, liquidação durante a guerra civil da classe operária educada pelas décadas de luta revolucionária que culminaram na revolução). Por isso se "viram obrigados a improvisar".
Mas a verdade é que aqui e ali o verniz estala e surgem expressões que traem a "imparcialidade" do historiador. A sua formação liberal moderada transparece nas explicações políticas e sociais que faz de alguns acontecimentos.
O MELHOR...
Como para o autor o modo de produção capitalista e a democracia estão para além das ideologias, as políticas postas em marcha pelos bolchevistas, estalinistas e pós-estalinistas são ajuizados principalmente pelos resultados e eficácia na satisfação do bem-estar e das liberdades, tendo como padrão os modelos dos países ocidentais mais desenvolvidos. Por isso nas suas descrições e análises umas vezes ignora, noutras dá pouca atenção, às tentativas do poder soviético para substituir o modo de produção capitalista pelo socialista, eliminar as desigualdades sociais e a exploração do homem pelo homem. Considera a revolução "um acidente de percurso", simpatiza com a NEP e com as relativas liberdades económica, política e cultural proporcionadas por aquela abertura ao capitalismo e à iniciativa privada nos anos 20, a que chama a era de ouro da revolução, em contraposição ao "utopismo" dos primeiros meses de revolução e ao "comunismo de guerra", à fossilização e aos métodos ditatoriais que se seguiram de Estaline a Gorbatchov.
O autor, ao estilo académico, adopta uma aparente neutralidade ideológica. O que não o impede de fazer análises e observações acertadas. Particularmente interessante é o espaço que dá à questão camponesa e agrícola, sempre presente ao longo do livro, cobrindo todos os períodos da história da URSS. Tal atenção é plenamente justificada, dado o peso social esmagador do pequeno campesinato e dos camponeses sem terra que constituíam mais de 70% da população russa, condicionando assim de forma determinante a evolução da revolução e da União Soviética. O autor considera que, face ao atraso da Rússia, foi o campesinato quem pagou a industrialização da URSS e que foi à sua custa que esta fez a acumulação primitiva de capital. Sem o seu apoio, mesmo que relutante, os comunistas não teriam conseguido derrotar os "brancos" nem os nazis e manter-se no poder durante décadas. Igualmente acertada a observação de que, a partir dos anos 30, o marxismo tenha começado a ser substituído como ideologia do partido pelo pragmatismo e uma mescla de nacionalismo com elementos marxistas deturpados. Dá-se o abandono do internacionalismo e do incentivo às revoluções operárias, privilegiam-se os entendimentos com as pequena e média burguesias, alimenta-se a ideia de que é possível construir o socialismo num só país, que no socialismo cresce a resistência da burguesia e com ela a necessidade de reforçar o Estado e a repressão, que a igualdade é uma ideia pequeno-burguesa (Discurso de Estaline em Junho de 31, "revolução cultural", reavaliação da história da Rússia e recuperação do heróis nacionais do império czarista, "grande guerra patriótica", etc.). Evolução que é acompanhada pelo definhamento teórico e cultural, crescimento do poder dos burocratas e da polícia política, dos métodos ditatoriais e do culto de Estaline.
... E O PIOR
À medida que avançamos no tempo, a neutralidade do historiador vai cedendo à sua ideologia. Isso é particularmente notório no que se refere à guerra fria, diante da qual a sua "objectividade" branqueia o papel do Ocidente e em particular dos EUA – "os americanos não podiam ter consentido de ânimo leve o comportamento soviético na Europa de Leste. Tendo em conta a natureza de uma política externa controlada de forma mais ou menos democrática... os políticos teriam dificuldade em explicar aos seus eleitores que, se por um lado a Rússia estalinista era uma ditadura sanguinária, por outro não representava uma ameaça aos interesses vitais americanos".
É ridícula dsta forma aparentemente ingénua e cândida de explicar o envolvimento norte-americano num confronto por si inspirado e comandado, no qual foi referência e principal protagonista, dividiu o mundo em dois blocos durante toda a segunda metade do século passado e por mais de uma vez colocou o mundo à beira da guerra nuclear, espalhando a morte e a destruição por todo o mundo, com o argumento do "escrutínio" dos eleitores. É uma forma sonsa de dizer que os EUA foram empurrados pelas circunstâncias, que os aliados não estavam alarmados com a possibilidade de os comunistas – principais animadores dos movimentos de resistência e das guerrilhas na Europa ocupada e noutras partes do mundo – ocuparem o vazio deixado pela queda dos governos fantoches, principalmente na França, Itália e Balcãs, onde a derrota dos nazis abriu portas a levantamentos populares e alimentou sonhos em largos sectores populares de que a revolução social se seguiria à libertação; de "ignorar" que foi o medo desse cenário que levou Roosevelt e Churchill a "impor" a Estaline, em Ialta, uma nova ordem internacional, comprometendo a União Soviética com uma repartição de zonas de influência. À URSS reconhecia-se o direito de tutelar os países de Leste que tinha ocupado (teve de retirar da Áustria) e os Balcãs (à excepção da Grécia), ficando o resto sob influência anglo-americana. Foi nesta conferência ditada pelo alarme ocidental para conter a "ameaça comunista" que nasceu a guerra fria. E paralelamente a corrida aos armamentos nucleares e convencionais que a esgotou e levou ao colapso económico da URSS em 40 anos.
Para melhor fazer passar o seu ponto de vista, o autor adopta uma atitude centrista. Distancia-se tanto dos analistas "que acreditavam que os dirigentes soviéticos tinham um plano para a conquista do mundo em que a incorporação da Europa de Leste era apenas o primeiro passo", como dos que entendem que a guerra fria foi uma "consequência das políticas agressivas do Ocidente, em particular dos Estados Unidos". Chegado aqui, a objectividade sofre nova entorse. Os críticos dos EUA são convenientemente reduzidos a "uma nova geração de historiadores (que) iniciou o revisionismo" surgida nos anos 70, nos EUA. E são acusados de "pouca atenção prestarem à União Soviética", de não "se mostrarem particularmente interessados na cultura política soviética", de "não dominar completamente a opinião ocidental". E em jeito de absolvição, que "os arquivos americanos estavam disponíveis, mas não os arquivos soviéticos". Conclusão, os que responsabilizam o Ocidente e os EUA são ignorantes, não sabem do que falam.
"A eclosão da guerra fria estava predestinada". Ou seja, foi uma fatalidade porque os governantes dos EUA não conseguirem explicar aos seus governados que a URSS não constituía uma ameaça aos interesses americanos, e "os dirigentes comunistas perceberam, correctamente, que mais contactos com o Ocidente capitalista eram inerentemente subversivos... Era considerado fundamental isolar os povos soviéticos do resto do mundo... Os estalinistas descreviam o seu país como estando rodeado de inimigos implacáveis. A guerra fria servia os seus intentos: tornou-se um instrumento de mobilização que justificava as medidas mais severas".
É verdade que estes pontos de vista moldavam a política e a ideologia da URSS. O problema é que eles são o resultado da guerra fria e não a sua causa. Argumentar desta maneira é colocar as coisas de pernas para o ar. Porque se sentia ameaçada e, como diz o autor "desconfiada" – e tinha boas razões para isso, dada a hostilidade das democracias para com a URSS: pacto de Munique, abertura da segunda frente só quando se tornou evidente que os soviéticos iam vencer os alemães e libertar a Europa) a União Soviética procurava os compromissos e não o confronto, ordenava aos partidos comunistas contenção, entendimento com as suas burguesias e nada de revoluções. Para o Ocidente, pelo contrário, a perspectiva era outra, nada de compromissos e varrer das cabeças das pessoas qualquer ideia de revolução social. Por isso criou o Plano Marshal e aceitou que os trabalhadores tivessem melhores salários e condições de vida, segurança social, férias pagas, direitos sindicais e políticos, combinando e Estado providência com a diabolização do comunismo e a perseguição aos comunistas. A criação da NATO, a instalação de bases militares americanas e de mísseis nucleares e gigantescos meios de guerra por toda a Europa central cercando o bloco soviético não foram uma invenção. Tal como o não foram o maccarthismo, a instauração de ditaduras sanguinárias na América Central e do Sul, África, Ásia, Grécia e Turquia, o apoio a Salazar e Franco, ao apartheid. Nem o afogamento em sangue das revoluções no Congo, Nicarágua, El Salvador, Vietname e Camboja, Angola, Etiópia, ou golpes preventivos e genocídas na Indonésia, Filipinas, Chile e Argentina, entre outros de uma extensa lista.
in Diário Liberdade blogspot.com
Publicada por Nozes Pires à(s) sábado, fevereiro 18, 2017 Sem comentários:

Avelãs Nunes e a história da Economia Política

As lições de história do pensamento econômico oferecidas por Avelãs Nunes devem se tornar um material do mais amplo conhecimento das novas gerações de estudantes de Economia.

Posted on 15/02/2017 // 

avelas-nunes

Por José Paulo Netto.

O chamado Prêmio Nobel, instituído em 1895 e concedido a partir de 1901, só passou a ser atribuído a especialistas da área da Economia em 1969 – e, neste ano, os primeiros agraciados, dividindo a láurea, foram o norueguês Ragnar Frisch (1895-1973) e o holandês Jan Tinbergen (1903-1994). Este último, figura ilustre e consagrada, nos dois anos seguintes meteu-se numa polêmica com um então pouco conhecido advogado português, que criticara as suas ideias. Nome do jovem intelectual que ousou questionar o eminente premiado: António José Avelãs Nunes, nascido na pequena Pinhel, em dezembro de 1939.
Três décadas mais tarde, amadurecido e no topo de brilhante carreira universitária – que, antes do 25 de Abril, a PIDE salazarista tentara impedir –, Avelãs Nunes, já pesquisador consagrado, ocupava a Vice-Reitoria da Universidade de Coimbra, cargo que exerceu de 2003 a 2009, quando se aposentou como Professor Catedrático, que o era desde 1995. Da sua estatura intelectual e da relevância da sua intervenção acadêmica, com ressonância para além das fronteiras portuguesas, dão provas inequívocas a notável homenagem prestada pela sóbria Universidade de Coimbra ao seu professor da Faculdade de Direito – dedicando-lhe os três tomos (3.461 páginas) do volume LVII do cinqüentenário Boletim de Ciências Econômicas, editados por ela em 2014.
O nome de Avelãs Nunes é bastante conhecido nos meios acadêmicos do Direito no Brasil – desde finais dos anos 1990, vem frequentemente ao nosso país, quer no desempenho de missões científicas, quer para conferências e outros eventos universitários. Algo de sua larga bibliografia na área está aqui divulgada e ele já foi objeto de honrarias e inúmeras manifestações de apreço. Mas não é a intervenção jurídico-acadêmica de Avelãs Nunes que atrai meu interesse aqui – o primeiro parágrafo deste texto, não acidentalmente, refere um pequeno e inicial episódio da sua trajetória no âmbito da história da Economia Política. É como historiador do pensamento econômico que me importa lembrá-lo aqui.
É fato que a intervenção de Avelãs Nunes esteve/está centrada na formação das novas gerações que ingressam nas Faculdades de Direito. Apresentando um livro recentemente editado, ele escreveu:
“Durante os mais de quarenta anos em que fui professor de Economia Política na Faculdade de Direito de Coimbra, sempre incluí nos meus cursos um capítulo sobre a história da ciência econômica e do pensamento econômico [itálicos meus – JPN]. Preocupado em ajudar a formar bons juristas, entendia (e continuo a entender) que não é possível compreender o Direito, como produto social e como produto do Estado, sem conhecer e compreender a evolução econômica das sociedades capitalistas e a história das idéias econômicas […] Procurava ajudar os meus alunos a acompanhar a evolução da ciência econômica desde o seu aparecimento, com o capitalismo, como ciência da burguesia (que ajudou a dissolver a sociedade feudal e a consolidar a nova ordem burguesa), até nossos dias”
As origens da ciência econômica. Fisiocracia, Smith, Ricardo, Marx. Lisboa: Página a Página, 2016, p. 7.
 Mas o que, na citação acima, Avelãs Nunes designa como “um capítulo sobre a história da ciência econômica e do pensamento econômico” não diz minimamente da magnitude da sua produção neste domínio: ele é, de fato, um grande historiador da Economia Política – está entre os mais importantes autores que escreveram em língua portuguesa sobre este objeto. E é acerca deste aspecto (central) da sua obra que pretendo chamar a atenção dos meus eventuais leitores – em especial os jovens que se dedicam àquilo que, mais precisamente, deve caracterizar-se como crítica da Economia Política.
É de conhecimento público que poucas disciplinas acadêmicas foram tão vulnerabilizadas pelo pensamento pós-moderno quanto a História. Mas no âmbito da formação específica em Economia, as lacunas e debilidades no ensino da história da teoria econômica não decorrem apenas (ou principalmente) da vaga pós-moderna – há muito que o trato acadêmico-histórico da teoria econômica, quando efetivado, enferma de limites conhecidos e de vícios e preconceitos incuráveis. Pois bem: é justamente neste terreno que a obra de Avelãs Nunes revela-se um indispensável recurso teórico-crítico para a formação dos economistas e (saibam-no os colegas professores que se recusam a coonestar essa medievalesca monstruosidade ideológica que se auto-intitula especiosamente “escola sem partido”) demonstra-se também um eficiente instrumento didático-pedagógico.
A síntese das pesquisas de Avelãs Nunes neste campo está acessível no seu excelente livro Uma introdução à Economia Política (S. Paulo: Quartier Latin, 2007)*. Percorrendo as suas mais de 600 páginas – que, embora carregadas de erudição, estão redigidas em prosa límpida, cristalina –, o leitor se apropria do pensamento característico do mercantilismo, penetra nos meandros da fisiocracia, tem um quadro analítico suficiente da “escola clássica” (Smith, Say, Malthus, Ricardo) e chega a um corretíssimo sumário da crítica da Economia Política elaborada por Marx; a ruptura com a perspectiva clássico-marxista é estudada com uma ampla e informada apreciação da “revolução marginalista” e as discussões sobre Keynes e seu legado constituem os dois derradeiros capítulos do livro. Aliás, ao pensamento de Keynes e à crítica de que foi objeto na segunda metade do século XX, já na abertura dos anos 1990 Avelãs Nunes dedicou um ensaio seminal, altamente sofisticado, peça-chave para desmontar as formulações do mal-chamado neoliberalismo (O keynesianismo e a contra-revolução monetarista. Coimbra: Separata do Boletim de Ciências Econômicas – Universidade de Coimbra, 1991). Se este ensaio exige do leitor conhecimentos mais aprofundados, há, na obra de Avelãs Nunes, além de Uma introdução à Economia Política, outros vários materiais de caráter propedêutico que podem (e devem) ser utilizados por um público não necessariamente acadêmico ou especializado – p. ex., o ensaio Noção e objeto da Economia Política, cuja primeira edição é de 1994 (Coimbra: Almedina, 2014, reimpressão da 3ª. ed.).
A segurança com que Avelãs Nunes se move no terreno da história econômica está ancorada no seu pleno domínio da crítica da Economia Política, que ele tem exercitado diante dos processos econômico-sociais contemporâneos – em especial, mas não exclusivamente, europeus. Esse domínio aparece claramente em estudos publicados seja em volumes avulsos (As voltas que o mundo dá… Reflexões a propósito das aventuras e desventuras do Estado social. Lisboa: Avante!, 2010), seja em periódicos especializados (O euro: das promessas do paraíso às ameaças de austeridade perpétua.
Separata do Boletim de Ciências Econômicas. Coimbra: Faculdade de Direito/Universidade de Coimbra, vol. LVI, 2013). Nesses materiais, o gume polêmico do trabalho de Avelãs Nunes ganha relevo e alguns deles são, mesmo, textos de combate – p. ex., Os trabalhadores e a crise do capitalismo, editado entre nós (Florianópolis: Empório do Direito, 2016). Escusa acrescentar – porque Avelãs Nunes é, como diria Mariátegui, um marxista convicto e confesso – que, nas suas polêmicas, assim como nas suas elaborações teórico-históricas, Avelãs Nunes assume explicitamente a perspectiva crítica da defesa dos interesses do proletariado e da massa dos trabalhadores.
Como observei acima, Avelãs Nunes já é bem reconhecido no mundo jurídico do Brasil (parece-me, inclusive, que figura como membro honorário da Academia Brasileira de Letras Jurídicas). Mas, a meu juízo, não o é, ainda, pelos economistas e no campo da história do pensamento econômico – o que é de se lamentar. Especialmente se se recorda que a Avelãs Nunes a própria história da economia brasileira nada tem de estranha: foi ele exatamente quem, na primeira metade dos anos 1980, para a sua tese de doutoramento, elaborou um dos mais cuidadosos exames críticos produzidos no exterior sobre a política econômica da ditadura instaurada em 1964: Industrialização e desenvolvimento: a economia política do “modelo brasileiro de desenvolvimento” (S. Paulo: Quartier Latin, 2005).
Essa é outra das razões que, penso, devem tornar as lições de história do pensamento econômico oferecidas por Avelãs Nunes um material do mais amplo conhecimento das novas gerações de estudantes de Economia.
* Algumas das quais retomadas em outro belo livro, Uma volta ao mundo das idéias econômicas. Será a Economia uma ciência? (Coimbra: Almedina, 2008). Dados os limites do espaço de que disponho, as referências às obras de Avelãs Nunes serão mínimas – para o leitor que se interessar por sua bibliografia, sugiro a consulta à última seção do volume III do citado Boletim de Ciências Econômicas.
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José Paulo Netto nasceu em 1947, em Minas Gerais. Professor Emérito da UFRJ e comunista. Amplamente considerado uma figura central na recepção de György Lukács no Brasil, é coordenador da “Biblioteca Lukács“, da Boitempo. Recentemente, organizou o guia de introdução ao marxismo Curso Livre Marx-Engels: a criação destruidora (Boitempo, Carta Maior, 2015). No Blog da Boitempo escreve mensalmente, às segundas, a coluna “Biblioteca do Zé Paulo: achados do pensamento crítico“, dedicada a garimpar preciosidades esquecidas da literatura anticapitalista.
Publicada por Nozes Pires à(s) sábado, fevereiro 18, 2017 Sem comentários:

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Consequências da libertação de Alepo

Alberto Cruz*    06.Feb.17    Outros autores
Com todas estas movimentações há um país que, na prática, desaparece do Médio Oriente: os EUA. E este desaparecimento tem um actor que o tornou possível: a Rússia.
A vitória do governo sírio sobre o conglomerado de forças islâmicas que controlavam os bairros orientais de Alepo – a partir de agora «os contras?» [1] - traz consigo uma reconfiguração não apenas do mapa político interno da Síria, mas também do Médio Oriente e mesmo mais. Não só porque esta vitória marca um antes e um depois da guerra, mas porque coloca claramente em cima da mesa três elementos dificilmente questionáveis:
a) Bashar Al-Assad está de pedra e cal;
b) A Rússia tem todas as cartas na mão;
c) Os EUA deixam de ser o actor principal numa zona que até há muito pouco era do seu domínio exclusivo.
1. Antecedentes
Sem remontar aos seis anos de guerra e aos quatro que a cidade de Alepo já tinha de dividida em três sectores, um pró-governamental, outro curdo e outro em poder dos «contras», há que partir de um facto crucial que pôs em movimento toda a engrenagem da situação que agora se vive no país e na região. Foi quando, em 27 de Julho passado, depois de uma vitoriosa, mas não falada ofensiva do exército sírio e dos seus aliados lançada na zona norte da cidade, as forças governamentais conseguiram cortar todas as linhas de abastecimento de armas e combatentes à zona da cidade dominada pelos «contras». Alepo ficou cercada, com os «contras» cercados por forças governamentais e curdas, que cooperaram tacticamente com o governo, facilitando assim o seu triunfo.
Isto verificou-se dez dias apenas depois do golpe militar falhado na Turquia e relevou o que até então só se podia intuir. A Turquia, ao restabelecer relações políticas com a Rússia, depois do golpe falhado – é cada vez mais claro que o mesmo só pôde ser derrotado pela informação que a inteligência russa proporcionou ao governo de Erdogan –, tinha deixado de considerar, como sempre tinha dito, Alepo como a sua «linha vermelha» e a sua «zona de influência». Porque, ao mesmo tempo, a Turquia fez dois movimentos inusitados: tirou os seus militares de uma das zonas operacionais que os países que alimentam e sustentam os «contras» têm na Jordânia e controlou com mais rigor a passagem das suas fronteiras por homens e abastecimentos destinados aos «contras» na zona de Idlib, chegando à posição extrema de fechar qualquer passagem fronteiriça, tal como lhe tinha sido solicitado pela Rússia.
Sendo a ofensiva do governo sírio limitada a uma zona muito concreta, mas de grande importância estratégica, a posição turca de não intervir e nem sequer protestar foi considerada como um movimento tectónico que ia influenciar, como influenciou, não só os «contras», mas o futuro da guerra.
Os restantes patrocinadores dos «contras» rapidamente se deram conta do que tudo isto implicava e, a partir das suas salas de operações, planearam um contra-ataque que recuperasse o statu quo anterior. Para isso foi escolhida outra zona da cidade, o sul, onde se supunha que havia menos forças governamentais. Quatro dias mais tarde, a 1 de agosto, lançou-se a ofensiva encabeçada pela isenta de pagamento de franchising à Al-Qaeda, a Frente para a Conquista do Levante – que tinha perdido o seu anterior nome, Frente Al-Nusra –, e a quem todos os anteriores grupos se subordinaram (um total de 15 desses grupos participou dessa ofensiva). O objectivo proclamado era o de romper o cerco de Alepo, mas na prática, o que se pretendia era duplo: por um lado fazer frente à Turquia, por outro demonstrar aos seus patrocinadores que a Frente estava viva e podia executar operações militares de envergadura.
Além do mais, aquela ofensiva teve lugar no momento em que se ia realizar a reunião entre Erdogan e Putin, em Moscovo. Foi em 19 de agosto, e o objectivo geoestratégico da ofensiva era claro: meter a Turquia na ordem, obrigando-a a «normalizar» a sua atitude, isto é, voltar a ser o crivo passador dos «contras» e dobrar a Rússia. No caso de não atingir o objectivo a situação tornar-se-ia irreversível para os «contras» e os seus patrocinadores árabes e ocidentais.
Nessa ofensiva, os «contras» utilizaram praticamente tudo o que tinham, além dos seus melhores membros. A partir dos seus próprios portais na net anunciaram que, no total, se tinham mobilizado entre 9.000 e 12.000 combatentes e, pela forma como a batalha se desenrolou deve ter sido verdade. Ainda que, inicialmente, conseguissem romper o cerco, a perda de combatentes e material foi tão volumosa que não foi possível a sua reposição. Os cálculos mais conservadores estimam que os «contras» perderam entre um mínimo de 1.499 e um máximo de 1.903 mortos e cerca de 5.000 feridos. Isto é, o número total de baixas nessa ofensiva rondou os 60% dos combatentes. Por outro lado, o governo sírio e os seus aliados tiveram entre 480 e 516 mortos, enquanto o número de feridos terá superado os mil [2]. Os próprios «contras» anunciaram nos seus portais que tinham escassez de sangue para efectuar as transfusões necessárias devido ao alto número de feridos. Porém, este êxito não durou nem um mês, visto que em 4 de Setembro o governo sírio restabeleceu a situação e apertou ainda mais o cerco aos bairros orientais de Alepo em poder dos «contras».
O golpe não foi apenas material, foi também moral. Os «contras» entraram irreversivelmente em coma. Nem sequer os novos fornecimentos de material, que tanto a Arábia saudita como o Catar anunciaram, os salvaram da derrota. A Turquia retirou-se de cena e centrou-se exclusivamente nos curdos, ao mesmo tempo que aceitava o papel que de forma inteligente a Rússia punha na mesa: o pragmatismo sunita. A Rússia apoia a constituição de Ancara como o grande centro do mundo sunita afastado da hegemonia estado-unidense e das monarquias do Golfo Pérsico, especialmente do wahabismo da Arábia Saudita.

2. Consuma-se a derrota, e não apenas dos «contras»

As coisas chegaram a um ponto tal que ficou claro para quase todo o mundo o que se estava a passar. O governo sírio estava a ganhar a guerra graças à ajuda da Rússia (e do Irão) e os «contras» não tinham já a menor possibilidade de reverter a situação.
O Conselho do Atlântico [3], um centro de análise que fornece a ideologia à NATO no campo das relações internacionais, reconhecia que o mundo tinha dado uma volta inesperada, e que era a Rússia quem tinha quase todos os trunfos na mão. Num relatório do seu programa Syria Project dizia: «a Rússia ocupa agora uma posição forte e colocou os rebeldes numa situação extremamente difícil».
Apesar disto, ainda restava uma última possibilidade: que nas eleições presidenciais norte-americanas ganhasse Hillary Clinton, furibunda partidária do derrube de Al-Assad da presidência da Síria. No entanto, em 1 de Novembro os «contras» fizeram um último esforço para evitar o que já então parecia inevitável: a derrota.
Então, nem sequer houve um triunfo fugaz. Novos golpes, novas derrotas e a debacle. Entre outras coisas porque nessa ocasião os «contras» só puderam dispor de uns 3.000 combatentes devido às perdas sofridas na ofensiva anterior.
Para rematar o bouquet, Hillary Clinton perdeu as eleições. Trump, o novo presidente, tinha dito claramente que a política externa dos EUA ia mudar e que já não se centraria no derrube de governos considerados hostis. A sorte dos «contras» estava traçada.
Com uma clareza que não é habitual, o Conselho Europeu do Assuntos Exteriores [4] dizia, preto no branco, o quem quer que tenha olhos pode ver e o quem quer que não tenha perdido a sua capacidade de pensar pode deduzir: «já não há qualquer esperança real de depor Assad». E propunha uma mudança da abordagem europeia à questão da Síria partindo desta nova realidade: «com as forças da oposição síria, os seus patrocinadores regionais e grande parte da comunidade política europeia pondo as suas esperanças na vitória de Hillary Clinton, uma vez conhecidos os resultados eleitorais a abordagem europeia deve necessariamente mudar para uma melhor gestão da realidade da sobrevivência de Assad».
Toda a gente estava em estado de choque, incluindo os «contras». Foi esse o momento que o exército sírio aproveitou para, juntamente com os seus aliados – principalmente os palestinos que integram a «Brigada Jerusalém» [5] –, iniciarem a batalha final pela libertação de Alepo. Os bairros orientais em poder dos «contras» iam sendo libertados com rapidez, um após outro, numa demonstração de descoordenação dos «contras» que surpreendeu até os seus patrocinadores.
Depois dos fracassos das duas ofensivas anteriores, a única coisa com que os «contras» ficavam era a guerra da propaganda. Primeiro foi dito que se constituía o «Exército de Alepo para lutar contra o regime», depois, que a resistência não tinha sido possível porque Alepo tinha sido destruída pelos bombardeamentos russo. Depois…
A realidade era o que diziam os meios de comunicação dos países que estiveram, e ainda estão a apoiar os «contras»: «Para muitos organismos regionais e internacionais é um mistério incompreensível [o derrube dos «contras» como um castelo de cartas em Alepo], porque se esperava uma luta dura e digna, dada a importância estratégica da cidade». Um mistério que era muito fácil de explicar, como também se dizia: «as divergências entre os diferentes grupos, as acusações entre eles sobre quem é o responsável pelo desastre e como a inteligência militar [do governo] tem olhos, agentes e espias em todas as estruturas militares, de segurança e económicas dos grupos armados, o que permitiu ir acumulando imagens, informação e coordenadas de contra o quê, contra quem e onde agir». Inclusive, ia-se mais longe, deixando à vista outra das grandes mentiras da propaganda: «uma boa parte da própria população [dos bairros em poder dos «contras»] estava a proporcionar informação ao exército sírio [6].
Esta afirmação não de todo surpreendente se se tiver em conta o que disse a ONU depois de a Síria ter retomado o controlo completo da cidade. Suponho que não é preciso recordar que durante meses se massacrou insistentemente que a população «cercada» em Alepo ultrapassava as 250.000 pessoas. Inclusive chegou a dizer-se que nesses bairros morava meio milhão de pessoas. Nada mais longe da realidade, pois quando se deu a libertação da cidade verificou-se que esses números não eram verdadeiros. Segundo a ONU havia um total de 147.000 civis, 111.000 decidiram mudar-se para as zonas que eram controladas pelo governo e 36.000 para a zona que os «contras» controlam, a província de Idlib [7], quando se chegou a acordo para a sua evacuação.
Como consequência da derrota de Alepo, os «contras» estão na fase terminal da sua crise. Cada vez que se negoceia uma rendição com o governo, ela é feita nas condições determinadas pelo governo, e desde há algum tempo que as condições são sempre as mesmas: entrega do armamento pesado e transferência para Idlib. É uma província quase totalmente em poder dos «contras». Mas o governo está a actuar de forma inteligente, visto que ao transferir para ali todos os grupos dos diferentes grupos dos «contras» está a acentuar os confrontos e as divisões internas, debilitando assim qualquer hipotética estratégia, não apenas de combate mas também de coordenação política.
3. As navalhadas dos «contras» no governo
Um dos mantras propagandísticos dos que apoiam os «contras» é que há um segmento da população que não se revê nem nos radicais islâmicos nem no governo e que em várias ocasiões em que se decretaram tréguas houve manifestações populares de rejeição de uns e de outros. É uma meia verdade, mais mentira que verdade. É certo que em algumas cidades, que quase se podem contar pelos dedos de uma só mão, se verificaram manifestações desse tipo, mas isso é uma velha estória. A verdade é que os radicais islâmicos controlavam esses protestos desde o primeiro momento e que actualmente o controlo dos radicais islâmicos é total, incluindo a forma de governo do território que controlam, cada vez mais pequeno.
Como o maior território é a província de Idlib, para onde o governo os conduz cada vez que se rendem em alguma zona e recusam integrar-se na vida civil (na sua grande maioria são amnistiados, dando-se até o caso de em algumas cidades fazerem funções quase de polícia), há que falar da forma de alguns dos seus métodos de «governo». E nada melhor para isso que tomar como referência, uma vez mais, o Conselho do Atlântico [8].
Esta instituição fala concretamente do sistema judicial existente em Idlib e diz que «é semelhante à lei da selva», porque aplicando a Sharia e a Itijab elimina-se os inimigos internos e reforça-se o controlo de uns grupos pelos outros. Acrescente-se que cada grupo tem o seu próprio sistema judicial, que os predominantes são os ex-Nusra e Ahar al-Sham, e que as sentenças têm, inevitavelmente, que ver com o grau de afinidade ou parentesco das pessoas julgadas. «As pessoas influentes minam os seus veredictos» e estes tribunais «encontram sempre um qualquer pretexto legal para os seus actos ilegais. Diga-se que há que ter em conta que as decisões “são sempre favoráveis aos «contras» ”, que «as circunstâncias legais não mudaram desde que se instalou este regime» (em Idlib), e que também se afirma que «os líderes militares interferem directamente nos casos, de acordo com os seus interesses e objectivos», que «todos os juízes são pró-salafitas» e que «se acusam mutuamente de terem erros na doutrina e na aplicação da lei». Para não tornar a referência mais extensa, acrescentar apenas que «estes tribunais funcionam como organismos de segurança [das diferentes organizações] que aterrorizam os residentes locais porque têm liberdade total de deter, sequestrar ou inclusive assassinar as pessoas nas zonas em que são responsáveis».
A citação é extensa, mas vale a pena porque põe em evidência uma realidade que muito poucas pessoas têm querido ver e que, com toda a crueza, reconhece também que uma outra seita antes muito prestigiada caiu agora numa paralisia sectária, a Al-Quds Al Arabi. Numa pouco usual mostra de reconhecimento dessa realidade, critica uma «oposição que há uns anos tinha o controlo das principais cidades da Síria e que está reduzida a umas poucas zonas sem relevância estratégica», entre outras coisas «porque não foi capaz de demonstrar que pode governar com eficácia os territórios que ocupa» e isso, logicamente, «foi rentabilizado pelo regime» [9].
Depois da derrota de Alepo todos os grupos que compõem os «contras» estão em luta entre si. Os assassínios de comandantes de este ou daquele grupo são habituais (sem esquecer a responsabilidade dos comandos especiais do exército sírio em alguns deles), e o desânimo espalha-se como nódoa de azeite entre os «contras». A estratégia do governo sírio está a dar frutos pois as divisões estão a acentuar-se. O facto de grupos diferentes terem de conviver numa zona limitada e, sobretudo de diferentes lealdades, está a mostrar-se um eficaz caldo de cultura. As suas divisões internas e a sua debilidade – juntamente com a pressão da Turquia – obrigaram já seis dos grupos que compõem os «contras» a aceitar o cessar de hostilidades proposto pela Rússia e pela Turquia [10].
4. A recomposição do Médio Oriente
Os EUA e a União Europeia nunca se arrependerão o suficiente pelo seu papel no golpe-de-estado falhado na Turquia. Se a implicação do primeiro parece clara, a inacção da segunda foi clamorosa. Isso enfureceu Erdogan e facilitou a movimentação da Rússia. A reconciliação da Turquia com a Rússia incluiu, entre outras coisas, a retoma o gasoduto «Corrente Turca (Turk Stream), pelo que a operação desenhada pelos EUA e os seus aliados árabes, Catar e Arábia Saudita, de trazer o gás para a União Europeia através da Síria – que foi a origem da guerra – passou definitivamente à história. Este era o grande trunfo que os EUA tinham para estrangular definitivamente a Rússia, juntamente com o conflito ucraniano, visto que por este país passa a parte de leão do gás utilizado pela União Europeia.
O principal prejudicado pelo modo como as coisas evoluíram e pela vitória do governo sírio é o Catar que, pouco a pouco, se foi habituando à ideia do que implica ter tomado partido contra a Rússia e os seus interesses na zona. Foi o primeiro país a dar conta do que se estava a passar e a iniciar uma aproximação silenciosa à Rússia que já se traduziu na compra de 19,5% das acções da principal petrolífera russa, a Rosneft, de propriedade estatal (10 de Dezembro de 2016). O Catar rompia com estrondo o suposto «isolamento» da Rússia e fê-lo quando a ofensiva final para libertar Alepo ainda estava em marcha, com o que, literalmente, deixou de rabo ao léu os seus patrocinados «contras». Então, já era evidente que os «contras» estavam a desmoronar-se como um castelo de cartas que, apesar de toda a sua retórica anterior, a Turquia considerava a cidade de Alepo e a província do mesmo nome (que era o pulmão industrial da Síria, ou que o era antes da guerra) dentro da sua zona de influência e que, com quem há que contar é com a Rússia e não com outros.
O Catar está já a começar a entender até onde levou a sua estratégia de apoio aos Irmãos Muçulmanos em geral, e aos salafitas e takfiristas na Síria em particular. Depois, para salvar a face e não perder definitivamente a possibilidade, por remota que seja hoje, de vender gás na Europa, o que tinha de fazer era iniciar uma nova relação com o país que neste momento tem todas as cartas na mão: a Rússia.
Já tinha havido outros movimentos nos países árabes de aproximação à Rússia, ainda que não directamente ligados à guerra contra a Síria. É o caso do Egipto. Este país está muito sentido com a Arábia Saudita por depois do golpe que derrotou os Irmãos Muçulmanos não terem chegado os milhões de dólares prometidos pela Arábia Saudita como contrapartida. Por isso, o Egipto moveu-se imperceptivelmente, não só para a Rússia mas também para o governo sírio. O Egipto e a Rússia fizeram manobras conjuntas no Sinai – um lugar onde há uma forte implantação do chamado Estado Islâmico –, os barcos russos têm facilidades no trânsito no Canal do Suez e discute-se a compra a compra de armamento russo pelos egípcios.
Por isso, não é de estranhar que no passado mês de Outubro o Egipto rompesse as ligações à Liga Árabe (onde o lugar da Síria foi atribuído aos «contras) e votasse no Conselho de Segurança da ONU uma resolução apresentada pela Rússia que era contrária a uma outra apresentada pela França e Espanha, em nome dos países ocidentais e árabes. Foi uma chamada de atenção que não passou despercebida, e que um mês mais tarde foi seguida de uma muito mais importante: o envio de 18 aviões de combate para a Síria e 200 soldados em «apoio ao governo sírio» na sua luta contra o chamado Estado Islâmico.
No entanto não é tudo, dias mais tarde, dia 20 desse vertiginoso mês de Dezembro, a Rússia, o Irão e a Turquia chegavam a um acordo sobre a Síria que definia novas linhas sobre a guerra e mostrava uma nova relação de poder na zona. Em síntese, estes três países acordaram que a Síria deve manter intactas as suas fronteiras, manter um estado secular, alcançar a paz inter-religiosa interétnica, combater o chamado Estado Islâmico e a Frente para a Conquista do Levante, ex Al-Nusra (Al-Qaeda) e dirigir as conversações directas que haja entre o governo sírio e os grupos dos «contras» que se juntaram ao fim das hostilidades, bem como alguns outros que não pegaram em armas.
Pensar que quando a Rússia e a Turquia chegaram a acordo sobre o cessar das hostilidades, o fizeram sem ter em conta, por um lado, a Síria e o Irão (além de um actor não estatal como o Hezbollah) e a Arábia Saudita e o Catar, por outro, é não ter em conta nada de nada e não saber nada de nada. A Turquia foi rapidamente ao Catar explicar «profundamente» o conteúdo do acordo e anunciou também que se ia reunir ali com um representante saudita. Neste momento, a Turquia é a potência inquestionável da zona, com a inestimável ajuda da Rússia, ainda que seja uma situação que apenas agora começou a definir-se. Se o cessar das hostilidades tiver êxito, e não estamos a falar das conversações de paz do Cazaquistão, ficará nessa posição durante muito tempo.
Por seu lado, a Rússia também não esteve parada e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros viajou até ao Egipto para propor o comprometimento deste país no acordo de paz do Cazaquistão, como «mediador e garante», e estudar a possibilidade de enviar um contingente maior de tropas como «forças da paz» nas localidades que aderiram ao acordo de reconciliação que o governo promove. Se esta proposta russo-síria for aceite será o golpe de misericórdia no velho Médio Oriente e ver-se-á melhor que nunca essa recomposição em andamento.
5. E mais além
Mas o interessante é que com todas estas movimentações há um país que, na prática, desaparece do Médio Oriente: os EUA. E este desaparecimento tem um actor que o tornou possível: a Rússia. Dizer que os EUA perderam a guerra contra a Síria pode parecer muito atrevido, mas é bastante parecido com o que estamos a viver. Sem questionar que as primeiras semanas houve revoltas populares, e que a partir desse momento começou uma guerra de agressão contra a Síria por parte de uma associação de países encabeçados pelos EUA, Arábia Saudita e Catar, a verdade é que esta associação de países armou, financiou e manteve os seus patrocinados «contras» até ao ponto de, no final de 2015, darem a impressão de ir conseguir o seu grande objectivo: derrotar Al-Assad, seguindo o padrão usado na Líbia. Foi quando, a pedido do governo, a Rússia e a história mudaram de rumo até chegar a situação de agora: os «contras» estão derrotados, tal como a estratégia dos EUA, da Arábia Saudita e do Catar. Isto para não falar ainda da NATO.
A Rússia quis sempre chegar a um qualquer acordo com os EUA, mas tal não foi possível, entre outras coisas, pela divisão que havia entre o governo de Obama e o Pentágono. Foram dezenas de contactos, reuniões e acordos que não chegaram a parte alguma o que levou, a Rússia, perante a situação de enquistamento a que se chegou, a um movimento inédito: deixar os EUA à margem e iniciar conversações com outros atores. Primeiro com os amigos (Irão) e depois com os inimigos (Turquia). Isto colocou os outros na defensiva e à espera do que estes novos atores decidissem, e do que resultou tudo isto.
Em muitos anos, esta é uma situação inédita que ainda é cedo para avaliar, mas o que toda a gente está a observar com muito interesse é que, se vitoriosa, ela marcará o rumo geopolítico do futuro. E é evidente que também se está numa situação precária, e que não se sabe o que se vai passar com a presidência de Trump. No entanto, por pouco que se verifiquem as suas promessas sobre a Síria teremos assistido ao nascimento de uma nova era na zona (e um pouco mais além).
Notas:
[1] O termo «contras» foi utilizado na Nicarágua sandinista para se referir aos diferentes grupos que se opunham ao governo da FSLN e que recebiam apoio desde o exterior do país, sobretudo dos EUA que foram os impulsionadores da guerra que se lançou contra a Nicarágua e que financiaram com salários e forneceram material militar aos «contras».
[2] http://elterritoriodellince.blogspot.com.es/2016/11/del-colapso-la-derrota-de-nuevo-otra.html
[3] http://www.atlanticcouncil.org/syriaproyect
[4] http://www.ecfr.eu/article/commentary_the_first_trump_test_european_policy_and_the_siege_of_aleppo7186
[5] Síria é um dos países onde se acolhem refugiados palestinos. Calcula-se que no país viviam antes da guerra uns 500.000, que na sua maioria continuam a viver aí, ainda que aproximadamente 100.000 se tenham mudado para o Líbano, alojando-se nos campos de refugiados ali existentes. Quando se iniciou a guerra os palestinos tentaram manter-se à margem. Havia duas posturas, a do Hamas, que defendia a participação ao lado dos «contras», e a das diferentes organizações de esquerda que defendiam a participação ao lado do governo. Esta situação durou mais de um ano, até que os «contras» tomaram o campo de refugiados de Handarat, situado no norte de Alepo, e atacaram os que defendiam o governo. Este campo ficou famoso no verão de 2016 por os «contras» terem decapitado um menino de 12 anos, por defender Al-Assad. Não obstante, desde 2012 e 2013 que a imensa maioria dos palestinos refugiados na Síria defendem o governo de Al-Assad e constituíram três brigadas de combate: a «Jerusalém», a «Galileia» e a formada pelo Exército de Libertação da Palestina. Além disso, organizações como a Frente Popular de Libertação da Palestina-Comando Geral, a Al Fatah Intifada e um ramo do Hamas denominado Aknaf Bait al Maqdis combate ao lado do governo sírio na zona central do país, especialmente nos arredores do campo de refugiados de Yarmouk, cujo controlo se reparte entre os «contras» e o chamado Exército Islâmico.
[6] The National, 12 de Dezembro de 2016 (principal jornal dos Emiratos Árabes Unidos).
[7] http://www.un.org/press/en/2017/db170111.doc.htm?__hstc=143095274.8e6501ed1ff01abb67548d3e30635247.1480686736463.1484425528466.1484469935998.10&__hssc=143095274.6.1484469935998&__hsfp=282875472
[8] http://www.achariricenter.org/factions-judicial-system-in-idlib-ar/
[9] Al-Quds Al-Arabi, 2 de janeiro de 2017 (jornal editado en Londres).
[10] Faliak al-Sham (Legião do Levante), Jaish al-Islam (Exército do Islão), Suvar al-Sham (Revolução do Levante), Jaisj al-Mudzhahiddin (Exército dos Mujaidines), Jaish Idlib (Exército de Idlib) e Dzhabhat al-Shamiya (Frente do Levante). Inicialmente também se juntou o próprio Ahrar al Sham (Movimento Islâmico do Povo do Levante), mas depois de um agitado debate interno decidiu retirar a sua assinatura do acordo. Este grupa conta já com uma importante divisão, porque a maioria dos seus membros são partidários da fusão com a antiga Frente Al-Nusra (Al-Qaeda). Estes dois grupos são os que controlam a província de Idlib. O resto não passa de comparsas sem a menor influência política ou social, pelo que o cessar de hostilidades será, no melhor dos casos, parcial e com âmbito militar muito reduzido, mas que terá importância política se se conseguir algum acordo.


* Escritor e jornalista especializado em Relações Internacionais
Texto completo en: http://www.lahaine.org/repercusiones-de-la-liberacion-de
Tradução de José Paulo Gascão
in ODiario.info
Publicada por Nozes Pires à(s) segunda-feira, fevereiro 06, 2017 Sem comentários:

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Opinião

De Pinochet a Trump

José Goulão
José Goulão
Quinta, 02 de Fevereiro de 2017
Entre os matadouros humanos do general Augusto Pinochet, no Chile, e o terror anunciado e já iniciado por Donald Trump, expoente capitalista entronizado presidente dos Estados Unidos da América, distam 35 anos.
http://www.abrilabril.pt:80/sites/default/files/styles/jumbo1200x630/public/assets/img/donald_trump_2fev_res.jpg?itok=7zMI7qRz
«O ingresso de Donald Trump na Casa Branca aparenta ser um regresso do neoliberalismo à experiência original»
«O ingresso de Donald Trump na Casa Branca aparenta ser um regresso do neoliberalismo à experiência original»Créditos / Agência Lusa
Nesse período proclamou-se o fim da História, transformou-se o mercado no deus absoluto de céus e terra; homens e mulheres maravilharam-se, rendendo-se às novas missangas da tecnologia e da globalização; revolucionaram-se mapas nos quais se desfizeram, nasceram, renasceram e inventaram países.
Para que tais milagres, celebrados em mirabolantes farândolas mediáticas, fossem possíveis liquidaram-se milhões de pessoas, transformaram-se mais milhões ainda em refugiados, o terrorismo expandiu-se como ameaça global, o fosso das desigualdades entre os seres humanos cresceu de modo exponencial, o planeta foi dizimado ambientalmente, os comércios livres de armas, de drogas e de dinheiros sujos funcionam como alavancas clandestinas do poder económico e financeiro; um único exército de mil exércitos controla o mundo.
E, contudo, a crise afectando o sistema que determina a ordem mundial chegou, viu, e teima em resistir a todas as mezinhas. Muitos factos que nos rodeiam indiciam que o sistema de anarquia capitalista global está a atingir o esgotamento do prazo de validade – pelo menos nos padrões de funcionamento mais usados – e procede agora a correcções de rota, neste caso um visível regresso às origens.
É aqui que se dá o encontro entre Augusto Pinochet e Donald Trump, irmanados prosaicamente pelo fascismo político, redescoberto como a solução que resta, e a mais garantida, de fazer funcionar o fascismo económico e financeiro inerente à plenitude neoliberal.
O neoliberalismo, que tem sido entendido como estado supremo e bem-aventurado do capitalismo, no qual o mercado reina sem peias sociais e de dignidade humana, é o primado absoluto da economia do lucro máximo e da liberdade de especulação financeira
A primeira experiência da passagem à prática das teorias neoliberais renascidas na chamada Escola de Chicago, sob a tutela do seu mestre Milton Friedman, foi o Chile de Pinochet, estabelecido em Setembro de 1973 por acção do golpe militar fascista que derrubou o presidente Salvador Allende e o seu governo de Unidade Popular, legitimados por eleições livres e democráticas.
Os enviados da Escola de Chicago, os chamados «Chicago boys» na sequência do golpe preparado por Henry Kissinger e pela CIA – como outros na mesma época, na América Latina… E também na Europa – tomaram as rédeas da economia chilena sob a protecção de uma feroz ditadura política.
O sanguinário processo deu origem a milhares de democratas assassinados e desaparecidos, sindicatos e partidos dizimados, liberalização absoluta das leis de trabalho e do mercado laboral, privatizações sem limites e a preços de saldo, substituição da segurança social por seguros de saúde para alguns, enfim não é preciso enumerar a longa lista de malfeitorias pois algumas até as conhecemos por experiência própria, via União Europeia.
Da passagem da experiência chilena à institucionalização regimental do neoliberalismo foi um ápice. No Reino Unido, a primeira-ministra Margaret Thatcher, admiradora confessa de Friedman e Pinochet, procedeu a transformações económicas neoliberais sob o enquadramento do sistema político vigente, adaptado às circunstâncias – por isso ficou conhecida como «dama de ferro», devido à maneira como dizimou a vertente social da economia e reduziu a pó o poder sindical, sem hesitar em recorrer a acções de repressão de tipo fascista.
«No primeiro período da "revolução conservadora", principalmente na Europa, o sistema de pluralismo democrático foi reduzido ao primado dos chamados "blocos centrais" ou "arcos da governação" (...)»
Rumo idêntico seguiu a administração Reagan nos Estados Unidos da América, a partir de 1980, ano em que se iniciou a chamada «revolução conservadora» que trouxe o mundo à situação em que se encontra. Membros da administração de Ronald Reagan e seus discípulos tornaram-se determinantes nas presidências seguintes, tanto sob os rótulos republicano, Bush pai e filho, como democrata – casos da família Clinton e de Obama.
Do mesmo modo, no Reino Unido e através da Europa a política neoliberal instaurada por Thatcher foi seguida, no essencial, pelos trabalhistas como Tony Blair e outros descobridores da «terceira via», de Felipe Gonzalez a Hollande, sem esquecer os sociais-democratas nórdicos e alemães.
Daí que a transformação da Comunidade Europeia em União Europeia, nos anos noventa, se tenha processado, por inteiro, sob os cânones neoliberais, de que são exemplos as destruições dos aparelhos públicos e sociais nos Estados membros, os intermináveis processos de privatizações, de agonia austeritária, de «liberalização» dos sistemas laborais, de ditaduras das dívidas e dos défices.
Eis então que a crise explode em 2009, depois de ter amadurecido durante os primeiros anos do século. É significativo que entre os principais instrumentos de combate ao fenómeno, nos dois lados do Atlântico, tenham estado a degradação ainda mais ostensiva da democracia e a multiplicação de guerras e agressões, ditas “humanitárias” e “democráticas”, nas regiões mais geoestratégicas do globo.
No primeiro período da «revolução conservadora», principalmente na Europa, o sistema de pluralismo democrático foi reduzido ao primado dos chamados «blocos centrais» ou «arcos da governação», cópias mais ou menos aparentadas do sistema bipartidário norte-americano: duas siglas obedientes ao mesmo sistema económico e financeiro e apenas ligeiramente diferenciadas nas práticas política e social.
A partir de 2009, sobretudo na União Europeia, o processo de desvalorização democrática perdeu o pudor e, como hoje podemos testemunhar, o fascismo e a xenofobia afirmam-se sem disfarces perante a cumplicidade, quando não o apoio, de Bruxelas. A Hungria, os Estados do Báltico, a Polónia, a Eslováquia seguem o seu rumo autoritário sem ser incomodados, enquanto todas as antenas da União fiscalizam o exemplo democrático e plural português como algo de anacrónico e desafiador, com os instrumentos punitivos à mão.
Por isso, não têm os agentes da especulação financeira e da exploração económica acastelados nas estruturas da União Europeia qualquer credibilidade para se afirmarem como bastiões de defesa da democracia perante a investidura e as investidas fascistas de Donald Trump.
«Donald Trump não é um "engano" do establishment norte-americano. Nem ele enganou ninguém para chegar onde chegou. Foi como candidato com programa fascista e ultra-nacionalista que foi eleito presidente (...)»
A xenofobia e o desprezo de Merkel perante os refugiados e os povos do sul da Europa, a aliança institucional de Renzi com a extrema-direita berlusconiana em Itália, os despropósitos de Hollande ao governar há mais de um ano na arbitrariedade do estado de excepção, enquanto vai cumprindo a agenda social da família Le Pen pretensamente para travar o passo a Marine Le Pen, são maneiras mais ou menos encapotadas de estar em sintonia com Trump. Porque, além disso e como sabemos perante abundantes exemplos, a construção de muros, cercas e fossas anti-refugiados é uma prática europeia prévia à emergência de Trump; e também nada obstou a que a União Europeia fosse parte activa na concretização do golpe fascista na Ucrânia, apresentado como «revolução democrática», e nas guerras que destruíram países como o Iraque, a Líbia e a Síria.
Aliás, toda a argumentação dos governos europeus tentando harmonizar as declarações de fidelidade à NATO e a suposta contestação a Trump caem pela base sabendo-se que o mesmo Trump é, sem tirar nem pôr, o comandante supremo da NATO.
O ingresso de Donald Trump na Casa Branca aparenta ser um regresso do neoliberalismo à experiência original. Embora, visivelmente, a prática do novo presidente norte-americano esteja a suscitar contradições – que são mais inquietações – em alguns círculos do grande poder capitalista norte-americano e transnacional, os seus métodos parecem ser necessidades objectivas para a sobrevivência do neoliberalismo perante a crise, sob a ameaça de esgotamento dos efeitos temporariamente favoráveis da globalização, do aviltamento da democracia e do recurso à multiplicação de guerras.
A afirmação brutal de um nacionalismo norte-americano fundamentalista, tradicionalista e doentio, em busca da recuperação de galões económicos perdidos na globalização e no neoliberalismo exercido em tons formalmente democráticos, coloca-o em confronto com outros nacionalismos tradicionais ou renovados, recriando cenários tragicamente semelhantes aos que antecederam a Primeira Guerra Mundial.
Acresce que Donald Trump não é um «engano» do establishment norte-americano. Nem ele enganou ninguém para chegar onde chegou. Foi como candidato com programa fascista e ultra-nacionalista que foi eleito presidente, dentro do funcionamento normal do sistema político – mesmo com minoria de votos, como aliás já sucedeu em outros casos nos Estados Unidos, e também em países europeus. Sabemos ainda, como regra geral, que a vontade real das maiorias poucas vezes se casa com a democracia.
Como talvez nenhum outro presidente norte-americano, Trump entra a cumprir o que prometeu, não se esconde em eufemismos nem discursos redondos. Surpreendente é que tantas almas mainstream se declarem agora estupefactas e continuem a acreditar que existem dissonâncias entre Trump, o establishment e o próprio neoliberalismo – quando têm todos, e sempre, a mesma essência: poder absoluto do mercado, ganância de lucros sem limites, exploração máxima, direitos humanos zero, especulação financeira sem barreiras.
O que a chegada de Donald Trump à Casa Branca demonstra, em primeiro lugar, é que o neoliberalismo deu como esgotada a etapa de convívio com a democracia – ainda que precária – e, nas condições actuais, liga a sua própria sobrevivência ao autoritarismo político, no limite o próprio fascismo. Aqui chegou o estado supremo do capitalismo.
Posto isto, enquanto Donald Trump e Augusto Pinochet selam simbolicamente a sua cumplicidade, grande borrasca paira sobre o mundo. Quando um ciclo se fecha, outro deverá estar em formação. O problema mais inquietante são as circunstâncias do ponto de partida.
Trump não é um fenómeno, um erro ou engano; é uma consequência natural de um sistema acossado por uma crise renitente que resiste a terapias cada vez mais extremas.
in AbrilAbril.info
Publicada por Nozes Pires à(s) sexta-feira, fevereiro 03, 2017 Sem comentários:
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Léger-Marie Deschamps, Un Philosophe entre Lumières et Oubli, 2001, Ed. L'Harmattan.
Renascimento e Utopias, Actas da Academia de Ciências, 1997
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Revista «espaço público», 1.
José Félix Henriques Nogueira, Revista editada pela Escola Sec. de Henriques Nogueira, 2008.
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Discursando

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No 2º Congresso Republicano de Aveiro, 1969, em nome dos estudantes universitários do Porto
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