Avelãs Nunes e a história da Economia Política
As lições de história do pensamento econômico oferecidas por Avelãs Nunes devem se tornar um material do mais amplo conhecimento das novas gerações de estudantes de Economia.
Por José Paulo Netto.
O chamado
Prêmio Nobel, instituído em 1895 e concedido a partir de 1901, só passou
a ser atribuído a especialistas da área da Economia em 1969 – e, neste
ano, os primeiros agraciados, dividindo a láurea, foram o norueguês
Ragnar Frisch (1895-1973) e o holandês Jan Tinbergen (1903-1994). Este
último, figura ilustre e consagrada, nos dois anos seguintes meteu-se
numa polêmica com um então pouco conhecido advogado português, que
criticara as suas ideias. Nome do jovem intelectual que ousou questionar
o eminente premiado: António José Avelãs Nunes, nascido na pequena
Pinhel, em dezembro de 1939.
Três décadas
mais tarde, amadurecido e no topo de brilhante carreira universitária –
que, antes do 25 de Abril, a PIDE salazarista tentara impedir –, Avelãs
Nunes, já pesquisador consagrado, ocupava a Vice-Reitoria da
Universidade de Coimbra, cargo que exerceu de 2003 a 2009, quando se
aposentou como Professor Catedrático, que o era desde 1995. Da sua
estatura intelectual e da relevância da sua intervenção acadêmica, com
ressonância para além das fronteiras portuguesas, dão provas inequívocas
a notável homenagem prestada pela sóbria Universidade de Coimbra ao seu
professor da Faculdade de Direito – dedicando-lhe os três tomos (3.461
páginas) do volume LVII do cinqüentenário Boletim de Ciências Econômicas, editados por ela em 2014.
O nome de
Avelãs Nunes é bastante conhecido nos meios acadêmicos do Direito no
Brasil – desde finais dos anos 1990, vem frequentemente ao nosso país,
quer no desempenho de missões científicas, quer para conferências e
outros eventos universitários. Algo de sua larga bibliografia na área
está aqui divulgada e ele já foi objeto de honrarias e inúmeras
manifestações de apreço. Mas não é a intervenção jurídico-acadêmica de
Avelãs Nunes que atrai meu interesse aqui – o primeiro parágrafo deste
texto, não acidentalmente, refere um pequeno e inicial episódio da sua
trajetória no âmbito da história da Economia Política. É como
historiador do pensamento econômico que me importa lembrá-lo aqui.
É fato que a
intervenção de Avelãs Nunes esteve/está centrada na formação das novas
gerações que ingressam nas Faculdades de Direito. Apresentando um livro
recentemente editado, ele escreveu:
“Durante os mais de quarenta anos em que fui professor de Economia Política na Faculdade de Direito de Coimbra, sempre incluí nos meus cursos um capítulo sobre a história da ciência econômica e do pensamento econômico [itálicos meus – JPN].
Preocupado em ajudar a formar bons juristas, entendia (e continuo a
entender) que não é possível compreender o Direito, como produto social e
como produto do Estado, sem conhecer e compreender a evolução econômica
das sociedades capitalistas e a história das idéias econômicas […]
Procurava ajudar os meus alunos a acompanhar a evolução da ciência
econômica desde o seu aparecimento, com o capitalismo, como ciência da burguesia (que ajudou a dissolver a sociedade feudal e a consolidar a nova ordem burguesa), até nossos dias”
As origens da ciência econômica. Fisiocracia, Smith, Ricardo, Marx. Lisboa: Página a Página, 2016, p. 7.
Mas o que,
na citação acima, Avelãs Nunes designa como “um capítulo sobre a
história da ciência econômica e do pensamento econômico” não diz
minimamente da magnitude da sua produção neste domínio: ele é, de fato, um grande historiador da Economia Política
– está entre os mais importantes autores que escreveram em língua
portuguesa sobre este objeto. E é acerca deste aspecto (central) da sua
obra que pretendo chamar a atenção dos meus eventuais leitores – em
especial os jovens que se dedicam àquilo que, mais precisamente, deve
caracterizar-se como crítica da Economia Política.
É de
conhecimento público que poucas disciplinas acadêmicas foram tão
vulnerabilizadas pelo pensamento pós-moderno quanto a História. Mas no
âmbito da formação específica em Economia, as lacunas e debilidades no
ensino da história da teoria econômica não decorrem apenas (ou
principalmente) da vaga pós-moderna – há muito que o trato
acadêmico-histórico da teoria econômica, quando efetivado, enferma de
limites conhecidos e de vícios e preconceitos incuráveis. Pois bem: é
justamente neste terreno que a obra de Avelãs Nunes revela-se um
indispensável recurso teórico-crítico para a formação dos economistas e
(saibam-no os colegas professores que se recusam a coonestar essa
medievalesca monstruosidade ideológica que se auto-intitula
especiosamente “escola sem partido”) demonstra-se também um eficiente
instrumento didático-pedagógico.
A síntese das pesquisas de Avelãs Nunes neste campo está acessível no seu excelente livro Uma introdução à Economia Política (S.
Paulo: Quartier Latin, 2007)*. Percorrendo as suas mais de 600 páginas –
que, embora carregadas de erudição, estão redigidas em prosa límpida,
cristalina –, o leitor se apropria do pensamento característico do
mercantilismo, penetra nos meandros da fisiocracia, tem um quadro
analítico suficiente da “escola clássica” (Smith, Say, Malthus, Ricardo)
e chega a um corretíssimo sumário da crítica da Economia Política
elaborada por Marx; a ruptura com a perspectiva clássico-marxista é
estudada com uma ampla e informada apreciação da “revolução
marginalista” e as discussões sobre Keynes e seu legado constituem os
dois derradeiros capítulos do livro. Aliás, ao pensamento de Keynes e à
crítica de que foi objeto na segunda metade do século XX, já na abertura
dos anos 1990 Avelãs Nunes dedicou um ensaio seminal, altamente
sofisticado, peça-chave para desmontar as formulações do mal-chamado
neoliberalismo (O keynesianismo e a contra-revolução monetarista. Coimbra: Separata do Boletim de Ciências Econômicas
– Universidade de Coimbra, 1991). Se este ensaio exige do leitor
conhecimentos mais aprofundados, há, na obra de Avelãs Nunes, além de Uma introdução à Economia Política,
outros vários materiais de caráter propedêutico que podem (e devem) ser
utilizados por um público não necessariamente acadêmico ou
especializado – p. ex., o ensaio Noção e objeto da Economia Política, cuja primeira edição é de 1994 (Coimbra: Almedina, 2014, reimpressão da 3ª. ed.).
A segurança
com que Avelãs Nunes se move no terreno da história econômica está
ancorada no seu pleno domínio da crítica da Economia Política, que ele
tem exercitado diante dos processos econômico-sociais contemporâneos –
em especial, mas não exclusivamente, europeus. Esse domínio aparece
claramente em estudos publicados seja em volumes avulsos (As voltas que o mundo dá… Reflexões a propósito das aventuras e desventuras do Estado social. Lisboa: Avante!, 2010), seja em periódicos especializados (O euro: das promessas do paraíso às ameaças de austeridade perpétua.
Separata do Boletim de Ciências Econômicas.
Coimbra: Faculdade de Direito/Universidade de Coimbra, vol. LVI, 2013).
Nesses materiais, o gume polêmico do trabalho de Avelãs Nunes ganha
relevo e alguns deles são, mesmo, textos de combate – p. ex., Os trabalhadores e a crise do capitalismo,
editado entre nós (Florianópolis: Empório do Direito, 2016). Escusa
acrescentar – porque Avelãs Nunes é, como diria Mariátegui, um marxista
convicto e confesso – que, nas suas polêmicas, assim como nas suas
elaborações teórico-históricas, Avelãs Nunes assume explicitamente a
perspectiva crítica da defesa dos interesses do proletariado e da massa
dos trabalhadores.
Como
observei acima, Avelãs Nunes já é bem reconhecido no mundo jurídico do
Brasil (parece-me, inclusive, que figura como membro honorário da
Academia Brasileira de Letras Jurídicas). Mas, a meu juízo, não o é,
ainda, pelos economistas e no campo da história do pensamento econômico –
o que é de se lamentar. Especialmente se se recorda que a Avelãs Nunes a
própria história da economia brasileira nada tem de estranha: foi ele
exatamente quem, na primeira metade dos anos 1980, para a sua tese de
doutoramento, elaborou um dos mais cuidadosos exames críticos produzidos
no exterior sobre a política econômica da ditadura instaurada em 1964: Industrialização e desenvolvimento: a economia política do “modelo brasileiro de desenvolvimento” (S. Paulo: Quartier Latin, 2005).
Essa é outra
das razões que, penso, devem tornar as lições de história do pensamento
econômico oferecidas por Avelãs Nunes um material do mais amplo
conhecimento das novas gerações de estudantes de Economia.
* Algumas das quais retomadas em outro belo livro, Uma volta ao mundo das idéias econômicas. Será a Economia uma ciência? (Coimbra:
Almedina, 2008). Dados os limites do espaço de que disponho, as
referências às obras de Avelãs Nunes serão mínimas – para o leitor que
se interessar por sua bibliografia, sugiro a consulta à última seção do
volume III do citado Boletim de Ciências Econômicas.
***
José Paulo Netto nasceu
em 1947, em Minas Gerais. Professor Emérito da UFRJ e comunista.
Amplamente considerado uma figura central na recepção de György Lukács
no Brasil, é coordenador da “Biblioteca Lukács“, da Boitempo. Recentemente, organizou o guia de introdução ao marxismo Curso Livre Marx-Engels: a criação destruidora (Boitempo, Carta Maior, 2015). No Blog da Boitempo escreve mensalmente, às segundas, a coluna “Biblioteca do Zé Paulo: achados do pensamento crítico“, dedicada a garimpar preciosidades esquecidas da literatura anticapitalista.
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