O que não aprendemos com a Revolução Russa
Parece-me, por vezes, que alguns celebram a Revolução Russa para melhor esquecê-la.
Por Mauro Luis Iasi.
“[Em alguns] processos, acontece com extraordinária frequência
ser ‘recordado’ algo que nunca poderia ter sido ‘esquecido’,
porque nunca foi, em ocasião alguma, notado […]”
S. Freud, “Recordar, repetir e elaborar”, 1914)
ser ‘recordado’ algo que nunca poderia ter sido ‘esquecido’,
porque nunca foi, em ocasião alguma, notado […]”
S. Freud, “Recordar, repetir e elaborar”, 1914)
O centenário da Revolução Russa foi
marcado, aqui e no mundo, por inúmeras celebrações, debates, publicações
e outras iniciativas, o que demonstra o incrível impacto que este
acontecimento teve e ainda tem sobre todos nós. Tudo isso é muito
importante e configura um dado extremamente positivo nesta conjuntura de
defensiva da esquerda.
Nossa reflexão aqui vai em uma direção um pouco distinta da necessária celebração. Já na abertura de sua magistral obra O Estado e a revolução
Lênin nos lembra que Marx, assim como outros revolucionários, foram
perseguidos em vida, que suas obras foram alvo do ódio mais feroz, da
difamação e da mentira. No entanto, “depois da morte deles, tentam
transformá-los em ícones inofensivos, canonizá-los, por assim dizer”,
tudo isso para consolo e enganação dos oprimidos, ao mesmo tempo
“castrando o conteúdo da doutrina revolucionária, embotando seu gume
revolucionário, vulgarizando-a.” (Lênin, O Estado e a revolução, p. 27).
Creio que algo semelhante ocorre quando
falamos da Revolução Russa. Ao mesmo tempo em que se ressalta seus
líderes e ícones, seus símbolos e sua grandiosidade, tenta-se cerca-la
de uma rígida fronteira que a circunscreveria em sua época, incapaz de
qualquer universalidade que não seja abstrata. Transforma-se este
episódio épico em ícone, castrando sua substância revolucionária,
aviltando-o.
Sabemos que este como qualquer outro
acontecimento histórico é constituído de particularidades que o
identificam e caracterizam. Mas estamos convencidos de que há
ensinamentos universais que nem sempre são destacados como deveriam,
exatamente porque são incômodos e provocativos no interior do caminho
que a esquerda brasileira escolheu trilhar. O desafio está em determinar
o que há de particular e o que há de universal nessa experiência
histórica.
Acreditamos que podemos indicar,
resumidamente, cinco aspectos que são próprios da experiência soviética e
que dificilmente se apresentariam em novos contextos históricos, são
eles: a) o tsarismo e a luta pelas nacionalidades; b) uma particular
estrutura agrária e a forma da luta camponesa; c) um desenvolvimento
urbano e industrial peculiar com o desenvolvimento do movimento operário
e revolucionário (com uma particular forma de presença do marxismo); d)
a crise da II Internacional e a natureza da disputa ali travada; e) uma
conjuntura marcada pelas guerras de 1904 e depois 1914.
Cada um desses aspectos mereceria uma
análise aprofundada que não cabe aqui. Digamos somente que contribuíram
para a singularidade da Revolução Russa, ao mesmo tempo que são a base
de sua universalidade. O império tsarista formou-se no século XV,
estendendo-se desde a Europa Oriental até o mar do Japão, submetendo ao
seu domínio uma série de nacionalidades e povos (57% da população do
império não era russa). A base servil das relações e a formação de uma
aristocracia, cuja forma tsarista é a expressão, faz com que a
resistência se expresse na dupla determinação da luta pela terra e pela
afirmação das nacionalidades. Esta contradição se apresenta numa intensa
luta camponesa, em rebeliões que culminam nas revoltas de Pugachev em
1858 e no Movimento Terra e Liberdade de Tchernichevski de 1860 que
levarão à abolição da servidão em 1861. O Estado tsarista centraliza e
articula esta dominação com base em uma imponente máquina militar e
burocrática, apoiando-se em uma sociedade patriarcal e em uma ideologia
da superioridade predestinada do povo russo e da infalibilidade do tsar e
seu poder divino. O tsarismo soube modernizar-se, principalmente nos
reinados de Pedro (1682-1725) e Catarina (1762-1796), criando grandes
cidades e, finalmente com Alexandre II (1855-1881), iniciando um
processo de industrialização associado a presença do capital
imperialista.
Tanto o desenvolvimento industrial como os limites das lutas camponesas que evoluem para o chamado populismo russo dos narodiniks
até o terrorismo e o anarquismo, marcará a forma política da luta de
classes na velha Rússia. Por um lado, a tradição da luta camponesa
desembocará na formação do movimento Socialista Revolucionário, que se
forma como partido em 1901, e de outro pela entrada do marxismo através
de Plekhanov, Vera Zassulitch, Martov e outros, primeiro através de
círculos de estudo e, em 1883, com a formação do POSDR.
Um forte partido operário, articulado
internacionalmente através da II Internacional, enraizado na classe
trabalhadora concentrada nas três principais cidades do império, faz com
que a Rússia acompanhe o amadurecimento do movimento e da luta operária
europeia, equalizando sua situação, o que em outras condições não seria
possível.
Por fim, uma conjuntura de crise do
capital e de guerras, primeiro a guerra com o Japão desfechada em 1904 e
que provocou uma situação revolucionária em 1905 e, depois, a primeira
Grande Guerra que eclodiu em 1914. Dada a particularidade da estrutura
agrária, responsável por 45,3% da economia tsarista e 37% de todo cereal
consumido da Europa), uma produção agrícola de baixa produtividade
unitária que alcançava seu volume pela dimensão de seu conjunto, a
guerra produz impactos significativos na queda da superfície plantada, e
por conseguinte, no preço dos gêneros de primeira necessidade. A
convocação massiva de camponeses não impacta somente na produtividade no
campo, mas muda a composição das famílias fazendo com que as mulheres,
submetidas à secular opressão, possam emergir no terreno fértil da luta
de classes. A crise se expressa, também, no agudizar das contradições
internas do bloco dominante, fazendo emergir contradições no seio da
aristocracia e da recente burguesia que cobram mais espaço político no
extremamente centralizado poder autocrático do Tsar.
Não podemos esperar que nenhum destes
aspectos particulares possam se apresentar além das circunstâncias
específicas que os produziram historicamente, assim como a subjetividade
política que deles deriva. Lideranças como Lênin, Trótski, Kollontai,
Krúpskaia e outros foram tanto artífices destes tempos como seu produto.
Em seu conjunto, esses fatores objetivos e subjetivos, pode levar à
percepção de que a Revolução Russa é um acontecimento único e do qual
não se pode retirar nenhum aspecto universal.
No entanto, para aqueles que compreendem
os fundamentos da dialética materialista, não é novidade que uma
universalidade é a síntese de múltiplas particularidades e que
exatamente aquilo que confere a singularidade a um acontecimento pode
ser também a base de sua universalidade. A particularidade da revolução
Russa expressa a forma específica em esta formação social transitou para
o modo de produção capitalista, amaneira particular que se expressou a
formação de seu Estado, a forma típica que assumiu nestas condições a
luta de classes, principalmente no momento em que se produzem situações
revolucionárias. Dito de outra forma, uma maneira particular através da
qual os russos viveram a singularidade de nossos tempos.
Marx e Engels também viveram tempos
particulares e ao mesmo tempo em que tiveram que atuar e responder a
questões muito bem determinadas da conjuntura política da luta de
classes em que estavam envolvidos, teorizaram sobre os caminhos da
revolução proletária. A Prússia do século XIX não é a Rússia do inicio
do século XX, mas ao abstrair as condições particulares emerge uma
singularidade que pode indicar momentos de uma universalidade em
construção.
Em sua Mensagem do Comitê Central à Liga
dos Comunistas (1850) Marx e Engels apontam alguns aspectos que devemos
ressaltar: a) os trabalhadores encontram-se em uma situação histórica na
qual ainda lutam contra os adversários de seus adversários, o momento
da revolução burguesa; b) no curso desta luta os trabalhadores devem
estabelecer alianças e, por isso, devem se preocupar em não marchar a
reboque de seus aliados que devem triunfar em um primeiro momento,
consolidando seu poder contra o proletariado; c) para isso os
trabalhadores devem cuidar de sua independência e autonomia de classe,
tanto mantendo sua organização independente (legal e secreta) como um
programa próprio; d) No curso desta luta, no momento em que a burguesia
tentar consolidar o poder em benefício próprio, os trabalhadores devem
criar órgãos próprios de poder, criando uma dualidade de poderes que
deve ser defendida a todo custo contra os ataques da burguesia; e)
Trata-se de gerar, desde o início da Revolução Burguesa, as condições de
desenvolvimento de uma Revolução Proletária, uma revolução em
permanência, ou mais precisamente, uma Revolução Permanente.
Não é necessário muito esforço para notar
que se abstrairmos o contexto particular das lutas na Alemanha de
1848/1850, estamos diante de uma universalidade vazia de determinações,
ou seja, uma singularidade, que é praticamente o roteiro da revolução
Russa. Não porque Marx tinha dons premonitórios, mas porque a análise da
realidade particular de seu tempo se eleva a uma universalidade que
serve de ponto de partida singular àqueles que pensaram os caminhos da
revolução no inicio do século XX.
Ocorre que as experiências posteriores
vão agregando novas particularidades, tornando cada vez mais rico a
universalidade que daí deriva. Em 1850 Marx não tem como responder uma
questão central: qual a forma do Estado nesta transição revolucionária.
Será a Comuna de Paris de 1870 que agregará a forma finalmente
encontrada.
A revolução Russa dá um passo essencial
nesta construção histórica, sem dúvida por suas particularidades, mas
estamos convictos que inscreve novos aspectos à universalidade da
alternativa revolucionária. Acreditamos que a revolução Russa nos deixa
algumas questões essenciais para pensar os nossos dias, são elas: a) a
questão do Estado; b) a combinação da espontaneidade e da ação política
dirigida conscientemente pela classe revolucionária; c) a questão da
transição, tanto no que diz respeito a forma econômica quanto a forma
política a ela correspondente.
Antes, entretanto, gostaríamos de
destacar que a experiência russa é a última que atualiza e supera a
primeira das características apontadas por Marx e Engels em 1850, qual
seja, o momento democrático burguês da revolução proletária. Os
marxistas posteriores, por uma série de motivos, transformaram este
momento em uma “etapa”, em um longo processo em que o capitalismo
deveria se desenvolver e consolidar antes que fosse possível uma
revolução socialista. Na verdade, esta é uma afirmação característica da
II Internacional e do reformismo que levará à sua falência e que será
transformada em dogma pela III Internacional stalinizada. A visão de
Lênin e Trótski é, neste aspecto, heterodoxa ao ser ortodoxa. Ambos, por
razões muitas vezes distintas, vêm a necessidade de se aproveitar o
momento para superar, o mais rapidamente possível, o momento democrático
burguês, aproveitando-se da instabilidade da queda do antigo regime
para avançar a revolução proletária, de forma que parte do
desenvolvimento necessário será realizado já sob o poder proletário.
Ambos parecem relativizar a convicção de Marx segundo a qual nenhuma
sociedade nova pode surgir antes que se desenvolvam todas as forças
produtivas que a velha sociedade pode conter (daí sua heterodoxia), para
se aproximar de Marx e sua afirmação de que o movimento que leva do
momento burguês ao momento proletário da revolução é uma revolução
permanente (daí sua ortodoxia).
Este fato coloca no centro a questão que
julgo ser a fundamental colocada pela experiência soviética: o Estado.
Já em agosto de 1917, ao apresentar seu livro sobre o assunto, Lênin
afirmava que “a questão do Estado assume, em nossos dias, particular
importância, tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista
político prático”. Mas no que consiste, em suma, esta questão?
Podemos resumir esta complexa questão à
afirmação leniniana, sustentada numa compreensão precisa da teoria do
Estado em Marx e Engels, segundo a qual o Estado Burguês não pode ser
ocupado ou disputado, mas deve ser aniquilado pela ruptura
revolucionária, substituindo-o por um Estado Proletário. Mencheviques e
Socialistas Revolucionários de direita (existiam os de esquerda, como
Martov que se opuseram a política de participação no Governo
Provisório), estavam convencidos que era possível participar no Estado
burguês graças a uma correlação de forças favorável que permitiria
utilizar o Estado como instrumento de uma intencionalidade popular.
Esta questão teórica e política/prática
foi respondida cabalmente pela Revolução Russa, mas não somente, também
pela derrota da Revolução Alemã de 1918/19, por toda experiência
socialdemocrata do pós segunda guerra, pelo governo da Unidade Popular
no Chile (1970-1973) e inúmeras outras experiências do século XX.
No entanto, curiosamente, a esquerda
construiu uma certeza no sentido exatamente oposto a este. Parece ter se
consolidado a convicção que a ruptura e a passagem revolucionária para
um Estado Proletário é um aspecto particular da Rússia e que a
característica própria dos tempos que se abriam era de uma alteração na
natureza do Estado que permitiria que se estabelecesse sua disputa e
utilização no sentido da transição socialista ou de uma transição para o
socialismo. É comum atribuir a Gramsci esta concepção de um “Estado
ampliado” em contraposição a uma compreensão “restrita de Estado”
presente em Marx e Lênin. Não cabe aqui aprofundar se esta atribuição é
ou não pertinente (estamos convencidos que Gramsci debate sobre a forma
da via revolucionária, mas não rompe com os fundamentos da Teoria de
estado de Marx e, mesmo, de Lênin), mas o fato é que a Revolução Russa
aconteceu e se consolidou, assim como a Chinesa em 1949 e a Cubana em
1959, ao mesmo tempo em que nenhuma das chamadas experiências de
“democratização” do Estado burguês, desde o eurocomunismo e a social
democracia até as recentes experiências democráticas populares levaram a
nada remotamente perto do socialismo.
A atual tendência do irracionalismo hoje
reinante funciona assim: escolhe um aspecto da realidade, o isola e
proclama o fim da possibilidade do socialismo num êxtase hiperempirista,
logo e seguida, quando a realidade parece desmentir sua convicção,
passa a defender que a realidade não existe.
O mesmo ocorre com o segundo ensinamento
da Revolução Russa. Lênin tinha certeza que as revoluções não acontecem
simplesmente, elas precisam ser feitas. Isto é, a revolução proletária
possui um aspecto de intencionalidade política muito mais marcante que
sua antecessora histórica. Isto não significa que ela seja unicamente
produto da intencionalidade da classe revolucionária ou de sua
organização política. O que a Revolução Russa comprovou, e o rico debate
entre Lênin e Rosa apenas expressa no campo teórico, é que a revolução
de nossos tempos é uma combinação entre aspectos espontâneos e
intencionais, objetivos e subjetivos, da luta de classes. Não é o caso
de repassar aqui os fatos sobejamente conhecidos, mas reafirmar que a
revolução não teria sido possível sem episódios onde a espontaneidade da
classe foi marcante – tais como a insurreição de 1905 ou a de fevereiro
de 1917, a revolta nas bases militares, as greves – da mesma forma que
nada disso teria encontrado sucesso sem a capacidade de organização, de
ação política e iniciativa de direção no sentido de resistir – como
ocorreu depois do fracasso das jornadas de junho e a reação do governo,
como na resistência ao golpe de Kornílov e a ação que levou à derrubada o
Governo Provisório como em outubro de 1917.
No lugar desta complexa dialética, a
esquerda contemporânea parece ter se rendido a um culto ao espontâneo e a
uma inversão estranha. Empenha-se em realizar as tarefas objetivas,
fazer manifestações, produzir greves, criar insatisfação, enquanto
espera que a história resolva os problemas que só a ação subjetiva da
classe pode gerar, tais como as questões da estratégia e da tática, o
programa, o plano operacional e a via, os problemas da organização e
outros.
Sem dúvida, a maior contribuição da
Revolução Russa deriva do fato que ela possibilitou levar a transição
socialista a um ponto onde não se havia antes chegado. Para o bem e para
o mal, isto é, o que os russos generosamente nos ensinam se fundamenta
em grande parte nos seus erros. Aqui, mais uma vez retornamos a questão
do Estado. Se para nós a questão da necessária destruição do Estado
burguês e sua substituição por um Estado proletário se comprovou válida,
pela experiência soviética e pelos fatos posteriores, a relação entre o
Estado proletário e a transição socialista nos coloca uma série de
questões sobre as quais precisamos refletir.
Marx parecia estar convencido que na
primeira fase da sociedade comunista, o que nós resolvemos chamar de
socialismo, ocorre uma transição econômica que tem por objetivo eliminar
as bases daquilo que um dia dividiu a sociedade em classes e que ele
sintetiza em cinco iniciativas: a) superar a escravizante subordinação
dos indivíduos à divisão do trabalho; b) superar o antagonismo entre
trabalho intelectual e manual; c) transformar o trabalho de meio de vida
em primeira necessidade da existência; d) superar o indivíduo burguês,
desenvolvendo o ser social em todos os sentidos; e) desenvolver as
forças produtivas para sejam capazes de produzir além das necessidades,
em abundância. Somente isso permitiria que cada um trabalhasse de acordo
com suas possibilidades e recebesse de acordo com suas necessidades
superando “os estreitos horizontes do direito burguês”, conforme Marx
famosamente afirmou na Critica do programa de Gotha.
A estas mudanças econômicas corresponderia uma transição política na
qual o Estado só poderia ser a Ditadura Revolucionária do Proletariado.
Coerente com sua concepção de revolução
permanente, Marx pensava que não apenas a passagem do momento
democrático burguês para o momento proletário, mas da primeira fase para
o comunismo, portanto, para uma sociedade sem classes e sem Estado,
deveria ser um movimento contínuo. Dada as características das tarefas
enunciadas, este movimento não poderia ser efetivado pelo ato único da
revolução, daí a concepção de uma transição e da necessidade do Estado.
Tal necessidade resulta diretamente da experiência da Comuna à qual nos
referimos, seja pela necessidade de resistir às classes dominantes
derrotadas e destruir sua capacidade de reação o que faltou fazer na
Comuna de Paris), seja pela consolidação de uma ordem que seja fosse de
conduzir a transição até a superação do Estado.
Lênin atribui este movimento um caráter
de “definhamento”, uma vez que a própria ação do Estado proletário na
medida em que fosse implementando as medidas citadas, iria tornando cada
vez mais desnecessário o Estado. Para isso, a Ditadura do Proletariado
deveria ser um Estado dos operários, camponeses e demais trabalhadores e
não um Estado dos funcionários, como alertava o próprio Lênin em seu O Estado e a revolução. Ora,
a experiência soviética demonstrou que a suspeita dos anarquistas que
um Estado desenvolveria interesses próprios em sua perpetuação,
independente do caráter revolucionário da classe que representa, acabou
por se mostrar mais problemático que nós marxistas julgávamos.
O fato é que o Estado não definhou, pelo
contrário, fortaleceu-se e consolidou uma profunda deformação
burocrática invertendo a previsão leniniana, isto é, tornou-se de fato
um estado dos funcionários com enorme poder sobre os trabalhadores.
Costuma-se utilizar este fato como comprovação daquela convicção citada
sobre o denominado caráter ampliado do Estado contemporâneo, isto é, o
caráter “oriental” da formação social russa, nos termos gramscianos,
teria permitido a tomada do poder, mas condenado a transição a um ato
dirigido pelo alto, imposto à sociedade sem mediações. Nesta leitura os
problemas da transição seriam melhor resolvidos pelo desenvolvimento de
uma sociedade civil forte, resultado de um pleno desenvolvimento do
capitalismo. O problema é que esta leitura faz com que muitos visitem o
túmulo dos bolcheviques para criticá-los por sua impaciência enquanto
levam flores e desculpas aos injustiçados mencheviques.
Acreditamos que os motivos e as
determinações deste fenômeno são outros (trataremos deste assunto na
próxima coluna), no entanto, não podemos concordar que a solução seria
não ter ousado tomar o poder e construir uma experiência proletária e
socialista, até porque a alternativa à tomada do poder pelos
bolcheviques aliados aos SRs de esquerda e anarquistas não seria o lento
amadurecimento de uma democrática sociedade ocidental, mas o golpe de
Kornílov e possivelmente o desmembramento da Rússia em áreas de
influência imperialista como ocorreu na China.
Assim, o risco é que muitos enaltecem e
celebram a Revolução Russa para defender que hoje devemos fazer
exatamente o oposto do que nossos camaradas realizaram: devemos ceder a
tentação de tomar o poder e, no lugar da ruptura revolucionária propor a
democratização do Estado burguês até que com o desenvolvimento das
forças produtivas e da consciência de classe dos trabalhadores torne-se
possível a passagem para o socialismo; devemos acreditar que as massas
mudarão a sociedade quando estiverem prontas e dispostas a fazê-lo e as
demais classes da sociedade (principalmente as camadas médias) estejam
dispostas a aceitar isso sem surtar histericamente ou reagir de forma
brutal; e, finalmente, devemos rejeitar a proposta de socializar os
meios de produção exercitando formas mistas de propriedade e convivência
de relações sociais de produção que vá introduzindo, aos poucos, formas
socializadas em uma economia de mercado até que, em um místico dia
futuro, cheguemos ao socialismo sem traumáticas rupturas.
Os herdeiros do reformismo se inquietam
diante de uma realidade que atualiza o impasse do início do século: a
guerra, o imperialismo, a crise, a prepotência de um Estado de classe se
esforçando para manter um Modo de Produção moribundo. Lênin, na mesma
apresentação do livro citado afirmou que dezenas de anos de relativa paz
criaram os elementos do oportunismo que predominava nos partidos
socialistas oficiais, mas que a crise teria varrido as certezas que
embasam os desvios oportunistas e o líder bolchevique podia prever, com
certo otimismo, ao final de sua apresentação que:
“A questão da atitude
da revolução socialista do proletariado em relação ao Estado adquire,
desse modo, não apenas importância política prática, mas também
relevância da maior atualidade como questão do esclarecimento das massas
sobre aquilo que terão de fazer num futuro próximo para sua libertação
do jugo do capital.” (Vladímir Lênin, O Estado e a revolução, p.24)
As últimas décadas de “relativa paz”
criaram as condições para a ressurreição do oportunismo. A crise atual
recria as condições para a crise deste oportunismo e a retomada de uma
política revolucionária.
Parece-me, por vezes, que alguns celebram a Revolução Russa para melhor esquecê-la.
***
Tariq Ali apresenta O Estado e a revolução, de Lênin, na TV Boitempo.
***
Mauro Iasi é
professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do
NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e
membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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