Filipe Duarte Santos: “As alterações climáticas passaram a fazer parte do xadrez geoestratégico”
A guerra na Ucrânia impulsionou uma crise energética e um novo proteccionismo, arrastando a descarbonização das economias para o xadrez geoestratégico, diz o geofísico Filipe Duarte Santos.
A guerra na Ucrânia abriu caminho não só para uma crise energética, mas também para relações internacionais mais proteccionistas e menos cooperativas — e, infelizmente, “as mudanças climáticas passaram a fazer parte deste xadrez geoestratégico”, afirma Filipe Duarte Santos, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável.
Apesar de as mudanças ocorridas este ano no tabuleiro geopolítico criarem “dificuldades na cooperação estratégica”, Duarte Santos está optimista e vê na crise do gás uma “oportunidade para acelerarmos a transição energética”. A União Europeia e Portugal conseguiram reduzir as emissões apesar do regresso ao carvão, mas, ainda assim, “a procissão ainda vai no adro”, avisa o geofísico. Esta descarbonização mundial, alerta ainda o especialista, não poderá ser feita se deixarmos para trás os países em desenvolvimento.
O seu livro mais recente, Alterações Climáticas (Fundação FMS, 2021), foi publicado antes da guerra na Ucrânia e da crise energética. Se fosse reeditado hoje, que linhas teria de acrescentar à obra?
Este deplorável conflito que temos na Europa — trágico, em muitos aspectos — veio chamar a atenção do mundo para a grande dependência que o mundo tem dos combustíveis fósseis. Não quer dizer que isto não fosse conhecido antes. Mas uma coisa é as pessoas ouvirem dizer, há cerca de 50 anos, que 80% das fontes primárias de energia são combustíveis fósseis. Outra é sentirem que se lhe cortam ou reduzem o fornecimento de gás natural ou se o preço do petróleo aumenta muito isso tem consequências muito graves sobre a economia, sobre a vida de cada um de nós. Penso que este foi o aspecto mais saliente desta dependência. Temos feito avanços na transição energética mas ainda estamos muito longe de conseguirmos a descarbonização da economia europeia e, mais longe ainda, da mundial. Esta é, portanto, uma oportunidade de acelerarmos a transição energética. E isto é uma coisa que é positiva. Mas, entretanto, em 2022, atingiu-se o máximo do consumo de carvão a nível mundial.
Antes de a guerra na Ucrânia eclodir, pensava-se que estávamos na era do fim do carvão. Já não estamos?
Não, penso que vamos acabar por deixar de consumir carvão para geração de energia. Mas, neste momento e nos próximos anos, a China continua a ter uma dependência muito grande no carvão. É o maior consumidor de carvão do mundo. No que respeita ao petróleo, o maior consumidor e produtor de petróleo no mundo são os Estados Unidos da América. Quanto ao gás natural, a maior produção é dos Estados Unidos, seguidos pela Rússia. O uso do carvão vai diminuir, mas ainda vai passar um tempo considerável até praticamente não se usar no mundo. Porque há uma grande dependência, é um combustível que é relativamente abundante e relativamente barato.
E como se faz a transição energética entretanto?
Aquilo que acho importante termos presente é que temos dois grupos de países no mundo. Um com economias avançadas e outro com os restantes países. Nos chamados países desenvolvidos, como se costuma dizer, a transição energética está a fazer-se a um ritmo que é compatível com o cumprimento do Acordo de Paris. O problema é que nos restantes países do mundo isso não está a acontecer. Pelo contrário, a trajectória das emissões de gases com efeito de estufa é crescente, o que é incompatível com o Acordo de Paris. Há que ter em atenção que estamos perante um problema global e, portanto, o que interessa são as emissões globais mundiais.
E porquê? Porque esses outros países não beneficiaram — como beneficiou o Ocidente — de consumir grandes quantidades de energia sob a forma de combustíveis fósseis e, com isso, adquirir um bem-estar e uma prosperidade económica que é invejável. Quando se faz a história das emissões dos gases com efeito de estufa, é impressionante ver como as primeiras contribuições em larga escala das emissões de dióxido de carbono vieram do Reino Unido, que foi o primeiro a explorar carvão de uma forma intensiva. Depois, veio o resto da Europa, e depois vieram os Estados Unidos. Os Estados Unidos são, do ponto de vista histórico, aqueles que emitiu maior quantidade de CO2 — cerca de 25% da totalidade das emissões históricas. Têm um total de 1,5 milhões de milhões [biliões] de toneladas de CO2. É um número gigantesco. E cerca de 22% vieram da Europa a 27, mais a Grã-Bretanha.
Foi esse consumo intensivo de energia, juntamente com a ciência moderna, com a tecnologia e com a democracia (um aspecto muito importante), que deu [a estes países] nível de vida, prosperidade e bem-estar. Nem todas as pessoas em economias avançadas beneficiam dessa situação, mas, em média, avançou-se muito na qualidade de vida das pessoas. Mas, em termos estatísticos, esta não é a situação do resto do mundo, porque, para chegar ao mesmo estado de desenvolvimento socioeconómico, será necessário consumir mais energia per capita. É necessário que os países com economias avançadas, os países mais ricos, auxiliem os outros a fazerem a transição energética e, para isso, é necessário um financiamento muito considerável. E é aí que está uma das problemáticas mais difíceis para conseguirmos a descarbonização da economia mundial.
Os dados mais recentes do Eurostat mostram que as emissões europeias continuam a cair, apesar do regresso ao carvão. Temos razões para estar optimistas?
Sim. Fruto desta situação de guerra na Europa e do risco de haver cortes de energia em França e noutros países houve uma diminuição do consumo. Isto são boas notícias. Neste aspecto, estou optimista. Mas a população global está a aumentar, todos os países têm uma agenda de desenvolvimento e é perfeitamente legítimo almejarem uma melhor situação socioeconómica. Mas, para isso, é necessário muita energia. A procura actual por energia é gigante. Portanto, temos de encontrar as fontes de energia que sejam compatíveis com o ambiente, ou seja, temos de fazer a tal transição energética. Temos de diminuir a dependência dos combustíveis fósseis. Mas isso não é uma coisa fácil, tem muitas problemáticas.
Como por exemplo?
A procura por certos elementos, como sejam lítio, o cobalto e o cádmio. Existem muitas minas e ainda se irão encontrar outras, mas não são elementos minerais inesgotáveis.
A própria extracção desses elementos não é isenta de custos ambientais.
Exactamente. Temos de ter em conta que, quaisquer que sejam as formas de energia, elas estão associadas a problemáticas que têm incidências ambientais. E é muito importante que sejamos todos mais conscientes da necessidade de praticar um conceito que é o de “suficiência energética”. Não é eficiência energética, mas sim suficiência energética. É no fundo dizer que se pode viver bem, com formas de prosperidade, mas que não precisamos de consumir tanta energia. Podemos planear melhor as deslocações, ser mais racionais nas nossas casas, repensarmos as temperaturas que consideramos ideais. Bem sei que há muitas pessoas em Portugal que vivem em condições em que há frio dentro das casas — e não é desses que estou a falar. Temos de ter presente que a energia não se produz. “Produzir energia” é uma expressão que se usa muito, mas é errada.
Qual seria a expressão correcta?
Nós só conseguimos converter energia de uma forma para outra. Com painéis fotovoltaicos, por exemplo, conseguimos converter energia radiante (a energia electromagnética proveniente do Sol) em energia eléctrica. É um processo de conversão [e não produção].
Portugal continua a reduzir emissões de gases com efeito de estufa, em parte graças a uma produção recorde de energia a partir de fontes renováveis. Podemos ficar descansados ou esta narrativa pode desincentivar a suficiência energética?
As pessoas certamente estão a ser influenciadas pelo custo da energia, que as desincentiva a consumir energia desnecessariamente. O processo de descarbonização que está a ser feito em Portugal, relativamente ao desenvolvimento das energias renováveis, é muito meritório em comparação a outros países da União Europeia. Mas, ainda assim, a procissão ainda vai no adro. Porque daqui até atingirmos a neutralidade carbónica vai uma distância muito considerável.
Vou dar um exemplo muito concreto: a indústria cimenteira. Temos uma grande experiência na produção de cimento e sabemos que é uma indústria que consome muita energia. Como é que vamos fazer a descarbonização deste sector? Há uma primeira fase em que podemos aumentar a eficiência energética. Para a mesma funcionalidade, diminuímos as emissões. Mas a certa altura podemos utilizar também biocombustíveis que fazem parte de um ciclo biológico: as árvores são utilizadas para gerar energia, mais tarde vão nascer outras nesses terrenos.
Mas a certa altura o que se pode fazer é a captura do dióxido de carbono que é emitido nesses processos de fabricação do cimento. É algo mais disruptivo, muito mais difícil de conseguir. Mas qual é o valor económico do CO2? Bom, a tecnologia está a evoluir. Podemos combinar o dióxido de carbono (retirado directamente dos efluentes de uma siderurgia, central térmica a carvão ou grande indústria) com o hidrogénio verde (obtido a partir de fontes renováveis). Podemos fazer outros combustíveis que podem ser utilizados, por exemplo, nos aviões. Isto praticamente sem emissões de gases com efeito de estufa (há sempre emissões residuais, mas são muito menores do que se utilizarmos directamente petróleo, carvão ou gás natural).
O facto de estarmos a lidar com os efeitos de uma guerra na Europa, uma crise energética e um período de inflação está a tirar força aos esforços de mitigação e adaptação?
É difícil prever. Quando nós tivemos a crise covid-19, uma coisa que se falava com frequência era que, pelo facto de as pessoas se deslocarem menos, estarem mais recolhidas nas suas casas, a natureza começou a “aparecer” nas cidades. Mas isso foi passageiro. Logo a seguir à fase mais exigente da pandemia, a ambição das pessoas era viajar para outras paragens. Como funcionamos? Como é a nossa psicologia?
Face a uma situação de crise, aquilo que vejo na descarbonização das economias, sobretudo dos Estados Unidos, da União Europeia e da China, é que passou a estar na ordem do dia uma competição tecnológica muito vincada. Os Estados Unidos querem preservar intacta a sua superioridade tecnológica, económica e militar. As mudanças climáticas passaram a fazer parte deste xadrez geoestratégico. Esta dificuldade na cooperação geoestratégica para as questões da transição energética não é favorável à acção climática à escala global.
Estamos numa situação em que a União Europeia vai começar a estabelecer um imposto para produtos que são importados de regiões em que há menos atenção à mitigação, ou seja, à redução de emissões. É um imposto fronteiriço. Por outro lado, a China domina tudo aquilo que diz respeito à indústria dos painéis fotovoltaicos. Uma nova lei foi aprovada no Congresso americano prevê um financiamento de 370 mil milhões de dólares, dos quais uma parte vai para a transição energética. Mas isto implica uma forma de proteccionismo porque há incentivos, por exemplo, para que estes painéis solares sejam fabricados nos Estados Unidos. Ficam mais baratos porque há incentivos — e isto não é preconizado pela Organização Mundial do Comércio. Pode gerar tensões.
Depois, há a questão dos elementos. A China tem uma capacidade muito grande de explorar essas terras raras. Mas nós temos um planeta que é finito. Há uma tendência de desaceleração do crescimento, é provável que a população mundial acabe por não ultrapassar muito os 11 mil milhões, mas também isso já é um número muito elevado. O planeta continua a ser o mesmo, com os mesmos recursos. Temos de encontrar uma forma de solidariedade entre todos os países, uma forma de compreensão dos problemas comuns para enfrentarmos estes desafios do nosso tempo.
A paz e a prosperidade criam um ambiente mais favorável para acção climática?
Sim, sem dúvidas. Os Estados Unidos e a China colaboravam em questões como o desenvolvimento de indústrias, tanto eólica como a fotovoltaica. Esses grupos de trabalho deixaram de funcionar neste Verão. De certo modo, em retaliação à visita a Taiwan de Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes. Houve agora uma conversa em Bali, durante a cimeira do G20, entre o Presidente dos Estados Unidos [Joe Biden] e o Presidente da China [Xi Jinping] sobre este assunto. E isso é uma coisa positiva. Mas estamos num mundo em que os grandes blocos tendem a ser mais proteccionistas — e a transição energética vai fazer parte deste processo. A transição energética beneficia de haver maior cooperação geoestratégica, que é uma coisa que neste momento não temos entre as grandes potências do mundo.
Escreveu num artigo de opinião em que o cânone actual está alicerçado na tecnologia. Qual é o risco que corremos quando vemos na tecnologia uma solução para todos os problemas climáticos?
Esta é uma pergunta muito interessante, e aí há notícias novas. Alcançámos recentemente aquilo a que se chama, em termos técnicos, o Critério de Lawson na fusão nuclear. Isto foi feito num laboratório que tem como uma das suas missões aperfeiçoar as bombas de hidrogénio. Eles produziram mais energia com a fusão do que gastaram com os feixes muito potentes de laser usados para gerar temperaturas muito elevadas. Mas ainda estamos longe de ter uma aplicação comercial, ainda estamos na fase das experiências.
Há muitas possibilidades tecnológicas. Mas a tecnologia, até a um certo ponto, é uma ilusão. Porque o mais importante somos nós próprios, seres humanos. As nossas capacidades e as nossas deficiências. Conhecermo-nos a nós próprios, como dizia o filósofo Sócrates. Somos muito motivados pela utilidade, ou seja, pelo consumo. Com as tais 11 mil milhões de pessoas que referi, não vejo como seja possível. Acresce que temos um mundo muito desigual e esse é o principal obstáculo.
O nosso cérebro foi desenhado pela evolução para tomar decisões em função de critérios de sobrevivência. Se a crise climática é um desafio de vida ou morte para a humanidade, por que razão há tanto cepticismo?
Primeiro deixe-me dizer que não estou nada convencido de que a nossa sobrevivência como espécie esteja em perigo. Excepto no caso de uma guerra nuclear — aí sim, as coisas são realmente muito mais complicadas.
Nem a longo prazo? Estou a pensar nas gerações seguintes.
Quanto mais longo é o prazo, maior é a incerteza. Estou convencido de que temos uma capacidade de adaptação muito grande. Aquilo que me ocorre dizer em resposta é que é possível resolver este problema da transição energética. Vou-lhe dar um exemplo muito concreto de um artigo que foi publicado na Science, que é uma revista americana, uma das melhores do mundo.
É uma publicação científica revista por pares.
Exactamente. Foi publicado salvo erro em Outubro de 2020, no ano da pandemia. E o que eles fizeram foi comparar o investimento que foi feito pelos países mais desenvolvidos para combater a pandemia. Esse investimento foi feito em desenvolver as vacinas e em torná-las acessíveis. Em Portugal, como em tantos outros países, as pessoas foram vacinadas sem pagar.
Depois, os autores compararam esse custo, que é da ordem dos milhões de milhões, com o investimento necessário para fazer a transição energética. Poder-se-á dizer logo à partida: “Ah, bom, mas as coisas não são comparáveis.” Porque na covid era a vida das pessoas que estava em causa, ao passo que na mudança climática não é, embora haja um número elevado de vítimas nos eventos extremos. Mas há o facto de que o custo da transição energética é, realmente, muito menor se comparado ao investimento feito para se defenderem da covid-19.
Isto mostra que é possível?
É possível. Em relação às alterações climáticas, o problema é mais político do que económico. Não podemos deixar de dizer que há países, como os Estados Unidos, cuja economia e riqueza foram baseadas nos combustíveis fósseis. A indústria dos combustíveis fósseis é muito poderosa e optou por desinformar, semear alguma dúvida sobre a justificação de estas mudanças climáticas estarem relacionadas com a actividade humana. Isso é uma coisa que está muito bem estabelecida. E, portanto, isso será parte deste cepticismo que temos observado.
Tem um discurso optimista. Há algo que lhe tire o sono quando pensa na crise climática?
Acredito muito na nossa racionalidade. Penso que somos seres racionais, temos essa capacidade. E temos todas as outras características relacionadas com o circuito da dopamina no nosso cérebro. É um cérebro que é comum a todos os mamíferos. Mas nós, aquando da evolução do género Homo, do qual o Homo sapiens é a única espécie que ainda existe, tivemos o volume do nosso cérebro muito aumentado.
Temos este ciclo da dopamina que está muito relacionado com a reprodução, o prazer que nos dá a comida e com o consumo. A satisfação que nos dá ir a um hipermercado comprar alguma coisa, porque estamos aborrecidos com qualquer coisa, e aquela aquisição nos dá um certo alento. É muito importante conhecermos estes aspectos de como nós funcionamos. E termos a capacidade de amenizar estas tendências mais primitivas. Outro aspecto é a questão do tempo. Nós estamos muito mais centrados com o curto prazo, com aquilo que se vai passar na próxima semana, no próximo mês. Como é que vamos chegar ao fim do mês? E isso é perfeitamente justificável, mas também temos de pensar que os nossos filhos, os nossos netos, vão viver neste mundo. Não vão viver em Marte.
O que está a dizer é que, se vou a um shopping e compro um novo produto electrónico, o meu reforço é imediato. Ao passo que a recompensa por um esforço em prol da mitigação já será muito distante no tempo. É isso?
Exactamente. É uma recompensa em diferido. É muito mais complexa do ponto de vista mental. Até podemos não ver o benefício que os nossos bisnetos terão. É este o aspecto que acho importante as pessoas racionalizarem. Quanto mais pessoas racionalizarem isso, melhor será a nossa resposta. Mas insisto que o problema será muito diferente nos nossos países e em África, certos países da América Latina ou mesmo na Índia. Esta é a grande complexidade, porque temos realmente um mundo muito desigual. Todos os países têm interesses comuns em termos destes problemas climáticos globais, mas é muito difícil comunicar isto. Vamos ter de privilegiar aquilo que temos em comum. Temos de dar mais atenção ao nosso futuro comum e isso é realmente um esforço — mas acho que é um esforço que dará bons resultados no futuro.
Com o ano novo quase a bater à porta, qual é o seu desejo para o planeta em 2023?
Paz. A guerra é uma situação extrema — fala-se muito de sustentabilidade e a guerra é exactamente o oposto disso. Devíamos caminhar para um mundo com maior cooperação geoestratégica entre as grandes potências. Há espaço para todos.
in jornal Público