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domingo, 12 de novembro de 2023

Esperança não é esperar

 


Greg Godels

Onde quer que estejamos subjetivamente, objetivamente, a necessidade de iniciar uma transição para o comunismo é colocada por essa crise existencial. Não há outra saída para a humanidade que não seja esta. Qualquer coisa que nos distraia disso, qualquer tipo de fantasia de que algum tipo de mundo multipolar será melhor de alguma forma, deve ser dissipada porque não temos mais tempo a perder.

 

 

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Desde o fim da Guerra Fria, mudanças importantes e profundas nas relações entre os Estados capitalistas, juntamente com mudanças igualmente acentuadas no conteúdo dessas relações, têm seduzido intelectuais e académicos de esquerda a abraçar aqueles países cujos governos se chocam – por razões inconfessadas – com as exigências políticas ou económicas dos EUA e seus aliados. Eles começaram a ver acriticamente esses países como companheiros de luta por justiça social, por exemplo, como anti-imperialistas. Mesmo rivais  por esferas de interesse que começavam a aparecer eram vistos como anti-imperialistas se se opusessem à hegemonia dos EUA. Dito de uma forma crua, eles apresentam como seu amigo o inimigo do seu inimigo – os EUA e o "Ocidente".

 

Por que razão tantas pessoas na esquerda subscreveram esta falácia?

 

Devemos começar pela natureza do imperialismo na Guerra Fria.

A Guerra Fria sustentou alinhamentos únicos, embora historicamente vinculados. O mundo estava dividido entre os países de orientação socialista liderados por partidos comunistas ou operários, as principais potências capitalistas e as suas neocolónias, e os países não alinhados que se recusavam a participar na cruzada anticomunista organizada pelas potências capitalistas. Tal ordem claramente definida, com um conflito igualmente claramente definido entre o líder do campo socialista, a URSS, e o líder do campo capitalista, os EUA, levou muitos a acreditar que a era do imperialismo clássico, a era das rivalidades interimperialistas, tinha acabado.

 

Estavam errados.

 

O fim da URSS e a emergência e intensificação de inúmeras crises capitalistas – políticas, sociais, ecológicas e, principalmente, económicas – criaram poderosas forças centrífugas que desmontaram o campo capitalista e dissolveram a sua unidade. Além disso, as mudanças globais – a mobilidade do capital, o pronto casamento entre capital e trabalho em novas regiões e países, o transporte barato e eficaz, o surgimento de novas tecnologias, novas categorias de mercadorias e a mercantilização de bens públicos, comuns e de livre acesso, – geraram novos concorrentes e intensificaram a concorrência.

 

As crises e a concorrência são o solo fértil das rivalidades capitalistas e dos conflitos estatais.

 

O mundo que emergiu depois de 1991 tinha mais em comum com o mundo que Lenine conhecia antes da Primeira Guerra Mundial do que com a época da Guerra Fria e o seu choque de sistemas sociais e os seus blocos. Assim como os capitalistas do século XIX se esforçaram para estabelecer as regras para esculpir pacificamente o mundo e estabelecer o livre comércio por meio da Conferência de Berlim de 1884-1885, os aliados capitalistas do pós-Guerra Fria buscaram regras, alianças, acordos comerciais e a eliminação de barreiras ao movimento de capitais, à troca de mercadorias e à exploração do trabalho globalmente. Ambos os períodos foram amplamente anunciados como triunfantes para o capitalismo e a sua inevitável extensão a todos os cantos do globo.

 

Mas, como as grandes potências do século XIX passaram a perceber, o desenvolvimento desigual, o aparecimento de novos rivais e a concorrência implacável interromperam a promessa de paz e harmonia. Depois de um promissor interlúdio de paz relativa – o primeiro período de modesta harmonia ocidental desde as guerras napoleónicas – a nova ordem do século XIX começou a desfazer-se com instabilidade económica, conflitos, aumento da militarização, resistência colonial e guerras nacionalistas.

 

Da mesma forma, as potências capitalistas pós-Guerra Fria desfrutaram de um interlúdio de comércio mundial em rápida expansão – a chamada "globalização" – e da orientação regulatória de poderosas instituições internacionais. Essa harmonia também se mostrou ilusória,  foi quebrada por uma série de crises económicas e guerras regionais na viragem do século XXI. A chamada crise das “ponto com” [.com] marcou como cumprida uma década de arroubo capitalista e a ideologia do “não-há-alternativa”. Abalada novamente por uma "pequena" depressão global, uma crise da dívida europeia, uma falsa recuperação alimentada pela dívida, um desastre de saúde pública global e, agora, um período prolongado de estagnação e inflação, a prometida concórdia do domínio capitalista foi quebrada nos bancos de areia de guerras constantes, instabilidade social e política e disfunção económica.

 

Este é o mundo capitalista de hoje – não tão diferente do mundo capitalista nas vésperas de 1914.

 

Os pensadores mais perspicazes da viragem do século passado viam o fim da estabilidade e da aparente harmonia do capitalismo oitocentista como uma oportunidade. Lenine e outros perceberam o início de uma nova era propícia para mudanças revolucionárias.  Previam uma fase do capitalismo trazendo guerra, miséria e sofrimento para as massas na Europa e além dela. Para esses visionários, a única saída do desespero inevitavelmente forjado pelo domínio das finanças e do monopólio organizado num sistema global de imperialismo era a revolução e o socialismo. A trágica Primeira Guerra Mundial provou que eles estavam certos.

 

Hoje, sem uma visão para resgatar os trabalhadores – aqueles que sentem o peso das crises em expansão do capitalismo, as guerras mais frequentes, a deslocação de pessoas e falência de soluções – o campo da política é deixado para os oportunistas de direita, os falsos-populistas, os demagogos, os vendedores ambulantes de nostalgia e outros charlatães de direita e de esquerda como se fossem alienígenas a cair do céu, em vez do produto natural de um programa revolucionário.

 

De forma mais ampla, mesmo governos "liberais" estão a voltar-se para o nacionalismo, barreiras comerciais, tarifas e sanções - a postura tradicional da direita. Em grande parte  a esquerda não reparou em que o governo Biden, por exemplo, continuou a maioria dos regimes comerciais e de sanções, e até mesmo as políticas de imigração, do governo Trump.

 

À medida que o capitalismo se recupera atrás de interesses pessoais estreitos, concorrência feroz e implacável e conflito entre Estados, a grande maioria da esquerda euro-americana continua a circular em torno de um liberalismo e social-democracia cada vez mais desacreditados. Sem resposta para um mundo de rivalidades cada vez maiores entre Estados-nação e tensões globais, muita gente na esquerda está presa a uma estratégia defensiva que promete mais do mesmo ou um retorno a uma imaginada "era dourada": antes de Trump e do populismo de direita, ou antes de Reagan, Thatcher e o fundamentalismo de mercado. Não conseguindo localizar a decadência do capitalismo no próprio capitalismo, essa esquerda promete administrar o capitalismo para obter melhores resultados – uma ilusão centenária.

 

Igualmente delirante é a noção – popular entre uma parte considerável da esquerda – de que um bloco ou ordem emergente constitui a base de um poderoso movimento contra o imperialismo quando esse bloco é composto por Estados dominados pelo capitalismo ou Estados com um grande setor económico capitalista. Se Lenine tem razão – e temos razões esmagadoras para acreditar que a tem – o capitalismo está no cerne do sistema de rivalidade imperialista. Como podem os Estados dependentes do capitalismo colaborar, deixando de lado os  seus próprios interesses,  na criação de um mundo sem concorrência, atritos, conflito e guerra entre si,  eles próprios compostos por capitais concorrentes? O capitalismo não é a essência do imperialismo, e a rivalidade, o conflito e a guerra o resultado inevitável? Houve uma contratendência desde que Lenine escreveu o Imperialismo em 1916?

 

A partir de treze anos atrás, com a fundação de um grupo modestamente alternativo de cinco Estados poderosos impedidos de aceder ao clube superior e exclusivo dos Estados capitalistas, o alinhamento dos BRICS tornou-se uma causa para alguma gente de esquerda. Baseados mais na fé cega do que em qualquer coisa prometida pelos membros do BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul –,  essas pessoas, no entanto, ergueram uma construção ideológica chamada "multipolaridade".

 

Quando as perspetivas políticas radicais parecem sombrias, quando a perspetiva do socialismo parece remota, muita gente à esquerda volta-se para o tabuleiro de xadrez global, fingindo que algumas peças de xadrez representam a mudança social que almejam no seu próprio quintal. Frustrados com o longo e difícil caminho de conquistar as massas no seu próprio país para um programa ao serviço dos trabalhadores, a “esquerda” nos EUA e na UE investe indiretamente nas ações de outros governos que, por várias razões, se opõem aos governos dos EUA e da UE.

 

Esta identificação substituta não deve ser confundida irrefletidamente com solidariedade ou internacionalismo. Tanto a solidariedade como o internacionalismo emergem com simpatia por outros povos e os seus interesses ou com seus governos apenas quando esses governos estão a servir ao povo. A solidariedade com Cuba, por exemplo, baseia-se na resistência de longa data do povo de Cuba às exigências, coerção e agressão dos EUA e seus aliados. Uma vez que o governo de Cuba organiza e apoia essa resistência, ele também merece a nossa solidariedade.

 

O zelo pela multipolaridade nasce de um facto e de uma esperança. É facto que o governo dos EUA pode ter perdido parte da sua capacidade de impor a sua vontade ao resto do mundo e que as potências globais se levantaram para desafiar a dominação dos EUA. Isso explica parte do crescente conflito e caos nas relações internacionais.

 

Mas os fanáticos da multipolaridade interpretam isso como um retrocesso ao sistema do imperialismo quando é, na melhor das hipóteses, um revés para o imperialismo norte-americano. A falácia está em assumir que os desafiantes capitalistas são de alguma forma benignos e que eles, magicamente, restringirão os seus interesses para estabelecer a harmonia e a paz globais. Não há base histórica ou no curso dos acontecimentos  contemporâneos para essa suposição, além da mera esperança.

 

Certamente, trata-se de uma leitura radical equivocada da história recente e dos acontecimentos de hoje. Nas últimas semanas, as relações entre os governos do Canadá e da Índia chegaram a um ponto de ebulição, o conflito entre Arménia e Azerbaijão eclodiu novamente, e dois governos reacionários, a Polónia e a Ucrânia, entraram em conflito sobre a questão dos cereais.

 

Tudo aconteceu sem  o patrocínio do governo dos EUA. O governo da Venezuela - um forte defensor da ideologia da multipolaridade - está num amargo conflito com a Guiana sobre 160.000 quilómetros quadrados de território rico em petróleo, rejeitando um "referendo consultivo" proposto pelo governo da Guiana.

 

A presença dos ícones da multipolaridade dentro dos BRICS dificilmente garante que derrubar a hegemonia dos EUA desativará o sistema imperialista: os membros Índia e RPC mantêm relações purulentas que irrompem em guerra aberta de tempos em tempos. O Brasil sob Bolsonaro era abertamente hostil e conflituoso com todos os países mais progressistas da América Central e do Sul (o que nos lembra que a base do o imperialismo se encontra entre governos e sistemas socioeconómicos e não simplesmente países), e a Rússia está a disputar acaloradamente com a França os recursos valiosos na África Central.

 

E os novos membros do BRICS carregam uma bagagem ainda mais contraditória. Egito e Etiópia têm uma disputa hídrica de longa data que não será resolvida pelos BRICS. Irão e Arábia Saudita têm uma disputa existencial travada por procuração, designadamente no Iémen. Os sauditas estão dispostos a reconhecer Israel para adquirir tecnologia nuclear à altura do Irão, uma ação pouco sugestiva de paz e prosperidade.

 

Há um interesse comum progressista, anticapitalista ou anti-imperialista unindo essa formação? Ou estão unidos apenas por conveniência neste ou em qualquer outro bloco que os tenha? A Índia de Modi, por exemplo, aceita a adesão a quase todas as formações internacionais – de orientação ocidental ou não.

 

É um pensamento mágico acreditar que, sem a mão pesada do império norte-americano, a predação e o conflito imperialistas desaparecerão. Lenine zombou da noção de Kautsky de que a harmonia multipolar (ultra-imperialismo) viria a seguir à Primeira Guerra Mundial, e os eventos provaram que ele estava certo.

 

Além disso, o idealismo investido na multipolaridade e nos BRICS ficou muito aquém do que pensavam os que se reclamam de esquerda contemporâneos, como  mostraram Patrick Bond e outros (apesar do seu uso do conceito inútil de "subimperialismo"). Os BRICS estabelecem uma fasquia muito baixa no reordenamento das relações globais, contrariando os desejos de muitos na esquerda.

 

Ativistas em Joanesburgo, durante a mais recente reunião do BRICS, organizaram um evento “BRICS a partir das bases”. Embora tenha organizada pela Fundação social-democrata de centro-esquerda Rosa Luxemburgo, o coordenador sul-africano fez uma observação perspicaz:

 

Trevor Ngwane, disse: "Os BRICS querem alavancagem. Em vez de dizer: 'Somos capitalistas a lutar para sermos capitalistas maiores', eles querem ficar fortes, começam a fingir que, se ficarem fortes, a vida vai melhorar para a classe trabalhadora. Sabemos que haverá uma pergunta:   significa isto que se está a favorecer a América?

 

"Durante a luta, havia um partido que costumava dizer: 'Nem Washington nem Moscovo', então não devemos ser influenciados e convencidos a escolher entre estes dois. Temos de encontrar o nosso próprio caminho como socialistas para o socialismo.

 

"O problema dos projetos do BRICS é que é tudo de cima para baixo. É algo organizado pelos governos."

 

Sim, os BRICS são organizados por governos, governos capitalistas na sua maioria, como Trevor Ngwane está bem ciente.

 

Mas, mais importante, ele questiona como os BRICS (e,  implicitamente, a multipolaridade) estão de alguma forma relacionados com o objetivo do socialismo. É o socialismo que falta nos BRICS e na discussão da multipolaridade. Um programa oferecido aos trabalhadores que apenas baralha as cartas das potências capitalistas não é resposta alguma.

 

Numa discussão recente sobre os BRICS e o Fórum Económico do Leste entre os três principais expoentes da multipolaridade, não há uma única palavra sobre socialismo. Fala-se de desenvolvimento, de startups, de parcerias público-privadas, de prioridades estratégicas e de investimentos – até de mísseis hipersónicos russos – mas nem uma palavra sobre socialismo.

 

Um interveniente na discussão afirma capturar os BRICS com este sofisma: "Então, estamos a lidar realmente não apenas com uma divisão geográfica, mas com uma divisão de estruturas económicas, uma economia mista público-privada, não como a parceria público-privada ocidental, em que se socializa as perdas e privatiza os lucros, mas algo em que o objetivo não é realmente obter lucro, mas fazer a economia crescer como um todo". Capitalismo com rosto humano?

 

Com certeza, há defensores da multipolaridade que acreditam vê-la como um passo em direção ao socialismo. Eles reconhecem no aprofundamento das crises económicas, sociais, políticas e ecológicas que o capitalismo enfrenta, que o socialismo pode ser uma solução. Mas como John Smith tão francamente coloca numa entrevista recente: "Convencer as pessoas de que o socialismo é necessário não é muito difícil. O que é muito mais difícil é convencer as pessoas de que o socialismo é possível."

 

Vivemos numa época em que, em vez de unir a pessoas, organizações ou partidos que defendem, organizam e lutam pelo socialismo, muita gente na nossa esquerda se tornou observadora de um jogo de xadrez entre governos capitalistas, aplaudindo qualquer força que tente diminuir o poder dos EUA. Como isso vai ou não beneficiar as massas exploradas do mundo pouco lhes importa.

 

Smith, autor de uma análise ponderada do imperialismo do século XXI, resume sucintamente o nosso desafio diante das profundas crises do capitalismo:

 

Onde quer que estejamos subjetivamente, objetivamente, a necessidade de iniciar uma transição para o comunismo é colocada por essa crise existencial. Não há outra saída para a humanidade que não seja esta. Qualquer coisa que nos distraia disso, qualquer tipo de fantasia de que algum tipo de mundo multipolar será melhor de alguma forma, deve ser dissipada porque não temos mais tempo a perder.

 

 

Fonte: Multipolarity: False Hope for the Left - MLToday , publicado e acedido em 09.10.2023

 

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