A rebelião herética: 100 anos de “Marxismo e Filosofia”, de Karl Korsch
O pensamento de Korsch se apresenta, hoje, apesar de suas limitações e problemas, como um oportuno recomeço à teoria marxista. Se algumas das proposições colocadas por Korsch caducaram ou se mostraram equivocadas, o princípio norteador de sua obra, o fio-condutor que o impeliu a uma apaixonada defesa do caráter crítico-revolucionário do marxismo, permanece vivo e importante.
Por Gabriel Teles
“De
outro lado, representantes credenciados das duas principais tendências
do ‘marxismo’ oficial contemporâneo, com seguro instinto, logo farejaram
neste modesto ensaio uma rebelião herética contra alguns dogmas comuns
ainda hoje – e apesar de todas as oposições aparentes – às duas
confissões da velha igreja marxista ortodoxa: diante do concílio
reunido, condenaram as ideias expressas neste livro como desvio da
doutrina estabelecida.”
Karl Korsch, Antícritica (1930)
Excetuando poucas menções ou discussões, a efeméride dos 100 anos do livro Marxismo e Filosofia, passou quase despercebida pela intelectualidade brasileira. Eclipsado pela comemoração de outro centenário, aquele de História e consciência de classe, a obra korschiana é quase confinada sob as sombras do livro de Lukács. Em texto publicado anteriormente neste Blog, insisti na marginalização da obra de Korsch nos estudos do marxismo no Brasil. Nessa discussão, destaquei como o autor é frequentemente citado, mas raramente lido e debatido. Essa constatação é facilmente verificável. Basta realizar uma simples pesquisa bibliográfica sobre Karl Korsch para perceber que existem poucos estudos dedicados a ele. Como explicar, em suas múltiplas determinações, o status periférico do seu pensamento ou o silêncio sobre a sua obra?
A primeira constatação a que cheguei foi a de que Karl Korsch não pode ser considerado um autor marginal dentro dos estudos marxistas. Ele é, em verdade, um pensador marginalizado. As determinações dessa marginalização são diversas, bem como as interpretações sobre elas. Trata-se, no entanto, de um autor incontornável, que participou de diversos debates e reflexões que enriqueceram o marxismo e que ainda ecoam na contemporaneidade. Uma destas notáveis contribuições é, sem dúvida, sua obra Marxismo e Filosofia, que celebra seu centenário neste ano.
Em 1923, quando Korsch lançou a sua obra, ele a empunhava em uma mão e, na outra, um fuzil. Nesse mesmo ano, atuou como Ministro da Justiça de Turíngia durante seis meses, onde foi formado um governo de coalização entre comunistas (KPD) e social-democratas independentes (ala esquerdista do USPD). Tal experiência ficou conhecida como O outubro alemão. A pretensão dos dirigentes do partido era que esse governo se tornaria uma base central e regional para a insurreição revolucionária que estava se desenhando desde então na Alemanha.1 Esse breve contexto serve como um exemplo de como Korsch estava munido não apenas com as armas da crítica, mas também com a crítica das armas, em coerência com sua proposta de marxismo crítico-revolucionário.
Nesse sentido, no presente texto, como um tributo e uma homenagem aos cem anos de Marxismo e Filosofia, gostaria de analisar as principais determinações do pensamento de Karl Korsch. Convido, assim, o leitor e a leitora a conhecer melhor a obra e o projeto revolucionário desse marxista “herético”.
***
Quando examinamos o conjunto da obra de Korsch, é possível observar, como afirmado por Oskar Negt (1975), que sua teoria atua como um verdadeiro sismógrafo, registrando meio século de contradições, desastres, fracassos e vitórias do movimento do proletariado ao longo de sua dinâmica na luta de classes. Seguindo a metáfora de Negt, podemos analisar que os aspectos nucleares do pensamento korschiano surge, tal como verdadeiras “ondas sísmicas”, no contexto compreendido entre a liquidação burocrática da Revolução Russa e a aparição dos movimentos radicais da Alemanha de 1923. É nesse cenário, de simultânea avaliação dos processos revolucionário e de atuação política para sua não liquidação, que emerge os fundamentos axiais das contribuições teórico-metodológicas de Karl Korsch ao marxismo.
Nesse sentido, é possível identificar quatro eixos que permeiam a sua atuação enquanto militante e teórico marxista: 1) o movimento revolucionário do proletariado; 2) o historicismo; 3) unidade entre teoria e prática; e, por fim, 4) antidogmatismo. Esses eixos funcionam como elementos condutores que orientam seu pensamento, proporcionando uma maior coerência ao longo das diversas fases de sua trajetória intelectual e política. Eles representam, enfim, as bases intelectuais fundamentais de seu pensamento. A seguir, abordaremos cada um desses eixos em sequência.
Movimento revolucionário do proletariado
A obra de Karl Korsch possui uma relação intrínseca com o movimento revolucionário do proletariado. Como teórico marxista, dedicou-se a analisar e compreender a dinâmica da luta de classes e a importância da ação revolucionária para a transformação social.
Sustentava que o movimento revolucionário do proletariado não pode se restringir apenas à conquista de demandas econômicas ou a melhorias dentro da sociedade capitalista, mas sim buscar a superação radical dessa mesma sociedade. Para ele, a transformação social só poderia ser alcançada por meio da ação política revolucionária, visando à abolição das relações de classe e à construção de uma sociedade comunista.
Ao analisar a sua trajetória política, é perceptível o vínculo com a luta dos trabalhadores desde a sua juventude, tornando-se mais concreta e radical à medida que as lutas de classes se intensificavam, o que levou à sua adesão ao marxismo no final do ano de 1919. A partir desse momento até o final de sua vida, Korsch direciona as suas energias na luta pela emancipação dessa classe e pela abolição do capital.
No que nos interessa desse processo, a reconstrução do marxismo crítico-revolucionário defendida por Korsch perpassa, diretamente, sua relação com o proletariado. O primeiro indício dessa relação é a própria definição de Korsch de marxismo que carregará consigo até o final de sua vida: expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado. O marxismo só pode se apresentar, para o nosso autor, como uma expressão teórica daquela classe que possui, em seus interesses históricos, a vontade e as condições de possibilidade de destruição da sociedade capitalista. Por esse ângulo, o marxismo não “criou” o movimento dos trabalhadores; em verdade é a sua expressão a nível teórico, elevando a sua consciência a um novo patamar importante e necessário.
Pode-se afirmar, dessa forma, que Marx e o marxismo realizaram a síntese, pela primeira vez – e de maneira unificada e na totalidade concreta de um corpo teórico-político –, de todo o conteúdo das novas ideias que, ultrapassando o horizonte burguês, emergem inevitavelmente na consciência da classe proletária a partir de sua condição social. Somente com uma teoria crítico-revolucionária da ação do proletariado é que se poderia esclarecer as condições históricas e a natureza desta mesma ação e assim, elevar a classe que, atualmente explorada, é convocada a atuar à consciência das condições e da natureza de sua própria ação.
Ao se debruçar sobre a obra de Korsch a partir da publicação de Marxismo e Filosofia, é notório como todo o seu arsenal teórico e metodológico está a serviço de não apenas expressar teoricamente essa classe autodeterminada, mas também em contribuir para que a totalidade da classe se transforme em revolucionária em suas lutas. A luta de classes, tanto na prática das organizações proletárias, quanto do ponto de vista teórico, na batalha das ideias (luta cultural), é um dos eixos da relação de Korsch com a classe proletária.
Em síntese, Korsch empenhou-se na defesa da autonomia dos trabalhadores em sua luta contra a sociedade capitalista e seus falsos representantes (pseudomarxismo). A reconstituição do caráter crítico-revolucionário do marxismo, efetuada por Korsch, perpassa a relação unitária entre teoria e prática, levando à máxima entoada, pela primeira vez, nos estatutos da AIT, elaborados pro Marx: A emancipação dos trabalhadores deve ser obra dos próprios trabalhadores. Sua teoria, enfim, ressoa como um sismógrafo sensível, capturando as complexidades da luta de classes e oferecendo perspectivas valiosas para a busca por uma sociedade emancipada por meio da luta dos trabalhadores.
Historicismo
Um dos elementos mais expressivos no pensamento do Korsch é sua discussão sobre a historicidade das relações sociais, bem como dos conceitos que as expressam idealmente. É permeado, de início ao fim, a importância da História e suas transformações nos textos e discussões korschianas. A percepção e utilização da historicidade como uma das categorias fundamentais em seu pensamento estão intrinsecamente conectadas à sua coerência com o materialismo histórico, o qual, como o próprio nome sugere, atribui uma importância primordial à história.
É crucial ressaltar que Korsch não menciona o historicismo como um elemento constitutivo de seu pensamento. Na realidade, essa caracterização é uma atribuição feita por vários autores que analisaram sua obra. Das poucas menções ao historicismo, podemos mencionar aquela feita em Marxismo e Filosofia, especialmente à obra de Dilthey e sua escola, ao colocá-la como uma das mais avançadas da filosofia burguesa.2 Além disso, é relevante ressaltar que o termo historicismo é de natureza polissêmica, carregando consigo uma variedade de interpretações e assimilações por outros campos de conhecimento (IGGERS, 1995).
Nesse aspecto, fica claro que a ideia de historicismo atribuído ao nosso autor, está longe daquela abordagem ligada tanto ao historicismo clássico, como em Wilhelm Dilthey e Leopold von Ranke, quanto do historicismo hermenêutico, como em Hans-Georg Gadamer. Trata-se, na verdade, da assimilação crítica do historicismo (especialmente o seu “objeto”, a história) pelo marxismo. Essa assimilação tem sido explorada por diversos autores, como Fredric Jameson (1979), que examina a relação tanto conflituosa quanto articuladora entre marxismo e historicismo. Michael Löwy (1994), por sua vez, identifica o surgimento de um “marxismo historicista” na virada do século XIX para o século XX, tendo autores fundamentais como Lukács, Korsch e Gramsci. Além disso, é importante mencionar a crítica feita por Althusser (1969) a uma leitura historicista do marxismo.
Em Korsch, como já colocamos, o historicismo se apresenta em sua discussão mais ampla sobre a história e historicidade das relações sociais concretas e das ideias que as expressam. Teoricamente, para sermos mais precisos, o historicismo em nosso autor se manifesta principalmente em suas discussões sobre o princípio da especificidade histórica. Tanto Elliot (1979) quanto Kellner (1975), bem como Xenos (1975), vão afirmar que o conceito de especificidade histórica é a medula espinhal de sua teoria. Esse princípio, que também é formulado enquanto conceito, é uma das grandes contribuições de Korsch para a renovação do materialismo histórico.
Embora Marx não tenha utilizado essa terminologia específica, o conceito do “princípio da especificidade histórica” pode ser identificado como um dos elementos constituintes de seu pensamento e, por extensão, do marxismo como um todo. Esse princípio permeia todas as fases de sua obra, desde sua juventude, quando ele e Engels desenvolveram conjuntamente o materialismo histórico, até sua obra mais sistemática, O capital. Korsch foi o primeiro autor a atribuir-lhe tal denominação, ao reconstruí-lo e explicitá-lo como um dos componentes fundamentais do materialismo histórico, conferindo-lhe assim contorno e relevância teórico-metodológica. O princípio central desse conceito reside na compreensão do caráter singular de cada momento histórico e na apreensão de sua historicidade, incluindo todas as relações e condições sociais envolvidas de forma materialista e inserida na totalidade na análise das relações sociais.
Embora o conceito de historicidade tenha sido explicitado na obra de Korsch apenas na década de 1930, é evidente que ele acompanha o autor desde sua adesão ao marxismo até seu último manuscrito não publicado em vida. Um exemplo disso é a própria ideia de aplicar o materialismo histórico ao próprio materialismo histórico, mencionada pela primeira vez em “Marxismo e Filosofia”. Essa abordagem é um desdobramento do princípio da especificidade histórica, buscando explicar a história e a historicidade do marxismo à luz de suas próprias ferramentas teórico-metodológicas. Inclusive, a análise do marxismo pelo próprio marxismo é o aspecto essencial como Lowy define o seu conceito de “marxismo historicista”.3 Nesse caso, de nossa parte, só podemos concordar com Löwy em “tipificar” Korsch como um marxista historicista se tal epíteto expressar a assimilação crítica do objeto do historicismo pelo marxismo.
Em síntese, o historicismo de Korsch é um dos elementos constitutivos de seu pensamento que, articulado com outras determinações, contribui para a reconstituição de um marxismo crítico-revolucionário. No entanto, simultaneamente, o historicismo, em Korsch, constitui a sua força e a sua fraqueza. Força pois expressa a particularidade das relações sociais e, do ponto de vista metodológico, a perspectiva do proletariado.4 Fraqueza pois há um excesso de historicismo, criando um problema na relação da historicidade do ser, retrocedendo em relação até mesmo a Hegel. Tal limitação é o que denominaremos como historicismo cabal – também cunhado, por Viana (2012), como historicismo absoluto.
Marxismo militante
Como já afirmamos, Korsch concebia o marxismo umbilicalmente ligado ao movimento revolucionário do proletariado. Desta premissa, deriva a necessária relação e unidade entre teoria e prática, cujas ideias devem expressar, teórica e politicamente, o conjunto dos interesses históricos do proletariado. Logo, o marxismo não pode ser colocado como uma teoria apartada dos conflitos sociais, da dinâmica da luta de classes. Daí que o próprio ato de teorização é, também, um ato de ação política e de contribuição para a luta proletária no interior da luta de classes.
A teoria marxista, para Korsch, só manteria o seu fundamento preservado se servisse como uma arma para os fins revolucionários dos trabalhadores (a arma da crítica, diria Marx). Tal proposta de um marxismo que une teoria e prática (concebendo a teoria enquanto prática, a prática teórica) é o que denominamos como “marxismo militante”.
Para Korsch, o objetivo do marxismo não pode ser a análise da sociedade capitalista existente em seu estado “afirmativo”, mas essa mesma sociedade em declínio tal como é revelada pela teoria, evidenciando a possibilidade de sua dissolução e decadência. O sujeito histórico a efetuar tal dissolução é o proletariado. Logo, “seu primeiro propósito não é o prazer contemplativo do mundo existente, mas sua transformação prática” (KORSCH, 1972b, p. 61). Tais premissas de seu marxismo militante estão espalhadas na quase totalidade da obra de Korsch, tanto aquelas de cunho teórico, quanto aquelas de lastro político-conjuntural.
A primeira manifestação teórica dessas premissas pode ser encontrada em Marxismo e Filosofia, no qual Korsch estabelece uma abordagem inovadora sobre a relação entre teoria e prática, aproximando-se da tese marxiana da unidade entre ser e consciência presente em A Ideologia Alemã. Essa abordagem teórica é desenvolvida também em seu livro Karl Marx, no qual Korsch trata da prática revolucionária na obra de Marx. Ele afirma que a teoria da luta de classes proposta por Marx é, em si mesma, uma luta de classes, sendo ao mesmo tempo expressão e impulsionadora da revolução social da classe proletária.
Korsch, nesse aspecto, não condiciona a teoria à realidade social concreta. O que ele faz é evidenciar que a própria teoria é parte integrante da realidade concreta e, portanto, tem o potencial de agir como uma força mobilizadora. O que temos aqui é um fiel seguidor do princípio marxiano de que “[…] a teoria também se torna força material quando se apodera das massas” (MARX, 2015, p. 157). Em conclusão, o marxismo militante, nos escritos de nosso autor alemão, representa uma abordagem vigorosa e comprometida com a transformação social radical. Korsch defendeu a necessidade de os teóricos marxistas se envolverem ativamente na luta de classes, colocando em prática os princípios revolucionários do marxismo. Sua crítica à passividade teórica e ao academicismo elitista ecoou entre os militantes, encorajando a ação direta e a organização dos trabalhadores em busca da libertação da opressão capitalista.
Antidogmatismo
O antidogmatismo é uma postura que se opõe ao dogmatismo, ou seja, à adoção acrítica de doutrinas ou ideias sem questionamento ou reflexão crítica. No contexto do marxismo, o antidogmatismo surge como uma resposta à tendência de transformar o marxismo em uma doutrina rígida e imutável, sem espaço para assimilação de outras formas de saber ou da ampliação de seu universo conceitual à luz das transformações da realidade concreta.
Uma das críticas centrais ao dogmatismo é que ele tende a congelar o pensamento em um determinado momento histórico, petrificando o seu alcance de análise e sua eficácia nos processos sociais da luta de classes. Por esse ângulo, o pensamento antidogmático reconhece a necessidade de uma análise crítica constante da realidade social e das contradições presentes nela. Isso implica, invariavelmente, em certa atitude autocrítica, na revisão de pressupostos e na reavaliação das estratégias políticas; mas também, caso seja necessário, uma postura anticrítica, reafirmando um posicionamento anterior (tal como Korsch o fez em relação aos críticos de seu livro Marxismo e Filosofia).
Ao adotar uma postura antidogmática, os marxistas reconhecem a importância da análise concreta da realidade, das transformações sociais e das contradições de classe. Buscam compreender a historicidade do marxismo e suas possibilidades de transformação, sem cair em simplificações ou reducionismos que comprometam sua eficácia revolucionária. O antidogmatismo no marxismo, então, é uma abordagem teórica e política que enfatiza a necessidade de uma constante atualização já que o capitalismo se transforma e se complexifica – apesar de resguardar a sua essência. Promove a flexibilidade, a abertura para crítica construtiva e assimilação, visando manter a vitalidade e a relevância do marxismo como ferramenta revolucionária de transformação social, sem perder de vista a perspectiva do proletariado.
Korsch, nessa perspectiva, pode ser considerado um marxista antidogmático. É assim que tanto Viana (2012) quanto Gerlach (1965) o caracterizam em textos que discutem essa questão. Em verdade é o próprio Korsch que autodenomina o marxismo professado por ele, como antidogmático e “não dogmático”. Em dois momentos de sua obra, com diferenças temporais significativas, podemos visualizar o cuidado de Korsch em explicitar o caráter não dogmático e antidogmático de sua obra. O primeiro deles é a sua Anticrítica, escrita em 1931. Nela, uma das manifestações do caráter antidogmático do pensamento de Korsch é a sua crítica desapiedada à qualquer petrificação do marxismo. É o que ele efetivou, desde meados da década de 1920, criticando inicialmente o reformismo socialdemocrata (II Internacional) e posteriormente o marxismo-leninismo (III Internacional).
Em sua crítica à II e III Internacional, Korsch destacou a necessidade de uma abordagem antidogmática e aberta à teoria e à prática revolucionária. Ele acreditava que o marxismo deveria ser uma força viva, capaz de se adaptar às condições em constante mudança e de responder às novas formas de opressão e exploração. Korsch rejeitou o dogmatismo ideológico e a rigidez política, defendendo uma constante revisão crítica das ideias e estratégias revolucionárias, mas sempre conservando o caráter crítico-revolucionário do marxismo.
Em seu texto Uma Abordagem não Dogmática do Marxismo, de 1946, Korsch (2013) traz à tona a experiência do círculo de estudos que encabeçava no início da década de 1930 na Alemanha, que logo foi desarticulado com a ascensão de Hitler ao poder. A ideia do círculo era uma experiência de distensão e “desdogmatização” de certas partes da teoria marxista, reabilitando seu caráter crítico e militante. Korsch, ao relembrar as reflexões do grupo, evidencia que não é o estudo da dialética, por si só, que transforma seus leitores em revolucionários. Desse princípio, o nosso autor chega ao primeiro resultado “não dogmático” do marxismo:5
[…] um homem não se torna um revolucionário pelo estudo da dialética mas, pelo contrário, a mudança revolucionária na sociedade humana afeta, entre outras coisas, a forma como as pessoas de um determinado período tendem a produzir e a intercambiar seus pensamentos. A dialética materialista, portanto, é a investigação histórica da maneira pela qual, em um dado período revolucionário e durante as diferentes fases desse período, determinadas classes sociais, grupos, indivíduos formam e aceitam novas palavras e ideias (KORSCH, 2013, p. 277).
Um dos elementos vitais do caráter antidogmático do pensamento de Korsch, ao colocar que o marxismo não se resume simplesmente à obra de Marx, é compreender que a realidade não se limita a leituras dogmáticas e citações do autor. A diferença está em reconhecer que não basta apenas ler e citar Marx; é necessário compreender seus escritos e sua ligação com a luta revolucionária do proletariado, assim como compreender a luta de classes, a fim de avançar o pensamento marxista.
Assim, a proposta de um marxismo não dogmático resgata a noção de historicidade e totalidade, reintegrando essa concepção em uma perspectiva mais abrangente (VIANA, 2012). Ao aplicar a análise marxista ao próprio marxismo, Korsch buscou desmistificar as ideologias e todas as formas de consciência, ao compreendê-las como produtos sociais e históricos. Essa visão mais ampla permite uma análise crítica de ideias e concepções, reconhecendo sua relação intrínseca com o contexto histórico e social em que surgem. Daí o vínculo entre dogmatismo e o reformismo, pois só petrificando o marxismo é possível inseri-lo numa abordagem reformista e não revolucionária.
Já Gerlach (1965), adjetivou o marxismo desenvolvido por Korsch como antidogmático pois propôs uma reavaliação radical das correntes dominantes dentro do movimento operário. Ele buscava revitalizar o marxismo, trazendo-o de volta às suas raízes revolucionárias e fortalecendo sua relevância na luta contra a exploração capitalista. Nesse sentido, a crítica de Korsch refletia sua convicção de que o movimento dos trabalhadores deveria romper com a complacência e o reformismo, abraçando a transformação radical da sociedade em direção ao socialismo. A melhor maneira de efetuar essa crítica era, evidentemente, aplicar o materialismo histórico a si mesmo, o que possibilitava revisar e desenvolver a teoria marxista por meio de sua aplicação prática.
Além disso, em nome do antidogmatismo, Korsch fez críticas, inclusive a Marx, no final de sua vida, questionando alguns aspectos específicos de sua teoria da revolução. Essa postura antidogmática de Korsch reflete sua busca por uma compreensão crítica e dinâmica do marxismo, em vez de aderir cegamente a um conjunto fixo de ideias ou dogmas. Ele procurou, afinal, examinar e analisar continuamente as teorias e conceitos marxistas à luz das condições em constante mudança da sociedade.
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O pensamento de Korsch se apresenta, hoje, apesar de suas limitações e problemas, como um oportuno recomeço à teoria marxista. Se algumas das proposições colocadas por Korsch caducaram ou se mostraram equivocadas, o princípio norteador de sua obra, o fio-condutor que o impeliu a uma apaixonada defesa do caráter crítico-revolucionário do marxismo, permanece vivo e importante. Para finalizar, tomamos emprestado a analogia feita por Michel Löwy (1997) ao tratar e avaliar o caráter crítico da obra de Marx.
A obra de Korsch tem sido descrita, por alguns de seus intérpretes, como um edifício, com uma arquitetura imponente, cujas estruturas se conectam harmoniosamente, desde os alicerces até o telhado. No entanto, não seria mais apropriado e oportuno considerá-la como um canteiro de obras em constante progresso, sobre o qual gerações de críticos marxistas continuam a trabalhar?
Notas
1
A tão esperada insurreição foi frustrada e a invasão de Turíngia
aconteceu não pelos nazistas, mas pelo próprio Exército Alemão sob
ordens do Governo Federal de Berlim, que alegava que a ordem e a lei
foram quebradas na região e os comunistas se apoderaram ilegalmente do
governo regional. Os membros do governo regional de Turíngia passaram
para a clandestinidade e se aglutinam em Leipizig, região próxima de
Jena. Alguns deles são presos, inclusive Korsch; porém, quatro meses
depois após a invasão e a instauração da ordem em Turíngia houve a
anistia e Korsch foi libertado.
2
Korsch (2001), em sua juventude, como atestam suas cartas, participou
ativamente dos seminários, em Jena, ministrado pelo último assistente
de Dilthey, Herman Nohl.
3
“Designamos pelo termo marxismo historicista uma corrente metodológica
no seio do pensamento marxista que se distingue pela importância central
atribuída à historicidade (dialeticamente concebida) dos fatos sociais e
pela disposição em aplicar o materialismo histórico a si mesma.
Ela se caracteriza também pela incorporação de certos temas do
historicismo ‘clássico’ no quadro de sua teoria do conhecimento – não de
forma eclética mas por uma apropriação crítica que nega/conserva/supera
(Aufhebung) estes temas, no seio de uma visão de mundo marxista (LÖWY, 1994, p. 153).
4
Tal como podemos constatar, na seguinte citação, em que Korsch afirma
como a especificidade histórica, no confronto político, torna-se uma
arma revolucionária ligada à perspectiva do proletariado: “A par da sua
importância teórica para a investigação sócio-econômico, o princípio da
especificidade histórica reveste-se ainda de um outro mérito não menos
importante. Este princípio reforça a posição do agressor no quadro de um
confronto político entre uma tendência apologética, ou seja, uma tendência que defende a ordem existente, e uma tendência crítica da sociedade, isto é, uma tendência de pendor revolucionário” (KORSCH, 2018, p. 43).
5
Essa discussão sobre o caráter não dogmático dos princípios da
dialética marxista também é desenvolvido na Introdução da edição de O capital,
editada por Korsch (1972a) nos anos 1930: “[Marx] não pretendia nem
remotamente transformar o seu novo princípio em uma teoria filosófica
geral da história que seria imposta do exterior sobre o padrão atual dos
acontecimentos históricos. O mesmo pode ser dito da concepção da
história de Marx, como ele mesmo disse de sua teoria do valor, que não
pretendia ser um princípio dogmático, mas apenas uma abordagem original e
mais útil do mundo real, sensível, prático que se apresenta diante do
sujeito ativo e reflexivo.”
Referências bibliográficas
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Gabriel Teles é professor de Sociologia do Instituto Federal de Goiás, finalizou sua tese de doutorado intitulada Karl Korsch e a reconstituição do marxismo crítico-revolucionário em Sociologia pela USP.