UMA ENTREVISTA DE
Branko Marcetic
Gene Sharp dificilmente é um nome conhecido, mas
as ideias do falecido pensador sobre a ação não violenta têm permeado
os movimentos de protesto nos Estados Unidos e em todo o mundo. E, no
entanto, embora Sharp seja frequentemente classificado com líderes
dissidentes como Gandhi e Martin Luther King, ele próprio não era uma
figura anti-establishment. Confinado por décadas no Centro de Assuntos Internacionais de Harvard,
ele trabalhou em estreita colaboração com intelectuais no centro do
establishment de defesa dos EUA. Como um militante da Guerra Fria chegou
a exercer tanta influência sobre os movimentos de protesto da Venezuela
ao Oriente Médio?
Em um ensaio para o Nonsite,
Marcie Smith, do John Jay College, apresentou algumas das descobertas
de sua pesquisa sobre a vida e o trabalho de Sharp. Sharp, ela
descobriu, foi, em suas palavras, “um dos mais importantes intelectuais
de defesa da Guerra Fria que os EUA produziram” — um fato que pode
surpreender alguns daqueles que foram influenciados por suas ideias.
Nesta entrevista com Branko Marcetic, da Jacobin, Smith
expande seu ensaio, descrevendo a vida e a carreira de Sharp e como ele,
paradoxalmente, ajudou a injetar ideias neoliberais sobre o Estado no
clima intelectual da esquerda norte-americana.
BM
Vamos começar com uma explicação sobre quem foi Gene Sharp e
por que ele foi uma figura tão importante. Em primeiro lugar, o que a
levou a investigar a história dele?
MS
Gene Sharp é, como disse o Politico, a figura política
norte-americana mais importante da qual você nunca ouviu falar. E acho
que essa é uma avaliação justa. Ele foi um cientista social que faleceu
no início de 2018 e que passou sua carreira escrevendo sobre a dinâmica
da ação não violenta como ferramenta política. Se você pesquisar no
Google sobre ele, verá muitos artigos falando sobre ele ao mesmo tempo
que Gandhi e Martin Luther King Jr. Ele foi indicado várias vezes para o
Prêmio Nobel da Paz.
Especialmente depois de seu falecimento, acho que podemos observar um
esforço da classe dominante para quase santificá-lo, para canonizá-lo.
Basta dar uma olhada na BBC, no New York Times ou no Washington Post, além de veículos como o Waging Nonviolence
e outros veículos de esquerda, e ele é apresentado, geralmente sem
ressalvas, como um herói dos movimentos populares em todo o mundo e um
amigo da esquerda, em termos gerais.
Passei cerca de dez anos, de 2006 a 2016–2017, envolvida no movimento
climático dos EUA, e também passei algum tempo trabalhando no movimento
climático internacional. E, há cerca de três ou quatro anos, comecei a
ficar extremamente consciente e com uma frustração em relação aos
desafios crônicos que, na minha opinião, eu continuava observando —
estranhos tiques idiossincráticos em nosso movimento que eu não
conseguia entender.
Iniciei essa pesquisa como um esforço para entender esses desafios e,
como parte disso, comecei a analisar de forma um pouco mais crítica
alguns dos intelectuais e livros que circulavam no movimento, geralmente
sem nenhum tipo de ceticismo ou engajamento crítico. Muitos desses
manuais de organização são superficialmente apolíticos; não há uma
ideologia óbvia que os origine. Na verdade, muitas vezes “ideologia” é
tratada como uma palavra ruim. De qualquer forma, Gene Sharp é um dos
intelectuais cujo nome sempre aparecia, e quanto mais eu lia sobre Sharp
e lia o trabalho do próprio Sharp, mais eu ficava surpresa com o fato
desse sujeito ser tão importante para os movimentos de protesto dos EUA e
também para os movimentos de protesto internacionais.
Passei cerca de dois anos e meio aprendendo sobre Sharp e lendo seu corpus —
ele escreveu prolificamente. Meu argumento é triplo. Acho que Sharp é
melhor compreendido não como um Gandhi moderno, mas como um dos mais
importantes intelectuais de defesa da Guerra Fria que os EUA produziram.
Ele deve ser considerado e reconhecido ao lado de pessoas como o
estrategista nuclear Thomas Schelling, que foi de fato seu mentor e foi
quem o trouxe para o Centro de Assuntos Internacionais de Harvard.
Em segundo lugar, Sharp deve ser entendido como uma espécie de
teórico neoliberal inicial da transformação do Estado. Porque, apesar de
ter adotado um tipo de influência da realpolitik – esse é o tom de
todos os seus principais trabalhos -, o que mais inspirou Sharp foi o
fato da visão de mundo que ele tinha, assim como muitos dos guerreiros
da Guerra Fria, em termos de bem e mal. Para ele, o mal era
personificado pelos Estados Unidos, que eram os maiores inimigos do
mundo. E, para ele, o mal era personificado pelo ditador totalitário.
Mas se você analisar mais de perto o trabalho de Sharp, verá que sua
acusação não é apenas contra os ditadores, mas também contra o ” Estado
centralizado” de forma mais ampla. Em sua opinião, esse estado
centralizado é a principal fonte e vetor de violência no mundo moderno. É
ele que produz a tirania, o genocídio e a guerra; se não fosse o Estado
centralizado, o mundo não seria tão violento. Quais são as
características do “estado centralizado” para Sharp? Características que
são facilmente identificáveis para a maioria da esquerda como as
principais características redistributivas do estado do New Deal —
coisas como regulamentação econômica, propriedade pública de setores
importantes. Sharp fala sobre como, em um ” Estado centralizado”, há
muitos “controles governamentais” na economia.
Portanto, ele quer a “descentralização” do Estado, uma palavra de
ordem comum na esquerda moderna dos EUA; ele quer “devolver” as
principais funções do Estado a entidades “não estatais”. E,
implicitamente, Sharp acredita que um Estado descentralizado produzirá
menos violência. Ele chega a dizer que sua política de ação não violenta
– sua teorização de como a ação não violenta pode ser usada para
derrubar um ditador – pode ser usada de forma mais geral para difundir
(essa é a palavra dele, “difundir”) ou “descentralizar” o poder do
Estado.
O que é revelador sobre isso é que, repetidamente, essa
“descentralização” do Estado é de fato o resultado de revoluções não
violentas que usaram os métodos de Sharp, como as da União Soviética,
Iugoslávia, as Revoluções Coloridas em lugares como Geórgia e Ucrânia.
Isso praticamente se parece com a liberalização econômica, o que
chamamos de “neoliberalismo”.
O que me leva à terceira parte de meu argumento. Acho que Sharp deve
ser entendido como uma espécie de sábio dos movimentos anticomunistas,
desde os estágios finais da Guerra Fria até os anos 2000. Sharp ofereceu
a arte do protesto ao governo dos EUA para fins anticomunistas no
exterior. Afirmo que se você não entender isso, não entenderá Sharp.
Sharp e seus colegas estavam em campo prestando consultoria aos
movimentos secessionistas nos países bálticos. Eles estavam nos países
bálticos e na Rússia consultando ativistas apenas um dia antes da
dissolução da União Soviética. Havia padrões semelhantes na Iugoslávia:
Sharp e a Albert Einstein Institution, que é a organização que ele
fundou para promover a ação não violenta em todo o mundo, treinam
pessoas na Iugoslávia que, por sua vez, treinam pessoas na Geórgia, na
Ucrânia, na Primavera Árabe, na Venezuela. Em muitos casos, a AEI está
trabalhando paralelamente ao National Endowment for Democracy e seus
adjuntos.
Para Sharp, há uma crença afirmativa de que a política dos EUA em
relação à Guerra Fria, interpretada de forma muito ampla, é uma coisa
boa. Ele não se encontra trabalhando acidentalmente com pessoas como
Thomas Schelling, em um centro que também abriga Henry Kissinger e assim
por diante, apenas por acaso, ou porque ele é um vendido ou um idiota.
É porque Sharp pensa: “Concordo com a agenda anticomunista dos EUA,
mas só quero que essa agenda seja promovida por meios não violentos em
vez de meios violentos e, de fato, acho que a ação não violenta fará o
trabalho de derrotar o comunismo com mais eficácia do que a violência”. E
parece que Sharp estava certo. A URSS está morta, os vestígios do
socialismo na Europa Oriental foram em grande parte eliminados por meio
das Revoluções Coloridas, a Iugoslávia foi destruída e assim por diante,
tudo de forma não violenta.
E, surpreendentemente, grande parte da esquerda dos EUA aplaudiu,
mesmo quando esses eventos significam praticamente a destruição do
sistema público de saúde e da moradia social, a destruição dos
sindicatos, a imposição de uma austeridade severa de corte da rede de
segurança social. Precisamos nos conscientizar.
Ao retrocedermos, a carreira completa de Sharp nos diz coisas
importantes sobre a estratégia imperial moderna. Os trabalhadores devem
comemorar quando os Estados Unidos avançam nos interesses da classe
proprietária de forma não violenta? Muitos Sharpianos parecem pensar
assim.
Sharp nos diz muito sobre como o protesto em si pode ser usado, mas
também como pode ser abusado. Com muita frequência, há essa atitude de
que, se virmos pessoas protestando nas ruas, isso é o começo e o fim da
investigação, é uma prova prima facie de que elas são justas e que devem
receber o que quiserem.
BM
O que, acho, estamos vendo um pouco na Venezuela agora. Isso
dificulta para as pessoas que não estão no local, porque em um lugar
como a Venezuela há definitivamente descontentamento com Maduro por
parte dos apoiadores de Chávez, mas também há um movimento de base de
direita contra ele. Essas coisas se misturam e pode ser muito difícil
para quem está de fora entender o que está acontecendo.
MS
Sim, e vemos muito esse padrão em operações de mudança de regime. O
povo venezuelano tem motivos para estar com raiva – embora, para ser
clara, eu ache que muitos dos problemas que Maduro está tentando
administrar não são de sua autoria. O povo norte-americano tem motivos
para estar irritado com nosso governo e, de fato, um número substancial
deles está. Nós ainda nos opomos à interferência internacional em nossa
política interna, e acho que isso é algo que precisa ser ressaltado.
É disso que estamos falando em lugares como a União Soviética e a
Iugoslávia. Não estamos falando apenas de movimentos de pessoas que
querem se libertar da ditadura, estamos falando também de conflitos
geoestratégicos em que os Estados Unidos e seus aliados têm interesses, e
o resultado dos EUA e seus aliados conseguirem o que querem é a
neoliberalização sistemática – austeridade, privatização, criação de
zonas de livre comércio etc. – e, de modo geral, um padrão de vida em
colapso para a pessoa comum.
Embora as pessoas certamente tenham motivos para criticar o regime de
Maduro, o regime de Milosevic, a liderança soviética – essa é uma
questão diferente de “os EUA devem intervir e com que finalidade os EUA
estão intervindo?” Além disso, dizer que “Maduro é um ditador” não é uma
análise.
BM
No artigo, você fala um pouco sobre a definição de violência
de Sharp. Como Sharp definia a violência e como isso influenciava, ou
talvez refletisse, sua filosofia política?
MS
No final da carreira de Sharp, ele chegou a definir formalmente a
violência como a inflição direta de ferimentos, e essa palavra “direta” é
muito importante. Ela implica que a lesão indireta é de alguma forma
não violenta; de certa forma, é naturalizada. Há muitos danos injustos,
porém indiretos, que o “mercado livre” inflige por toda parte. Coisas
como pobreza, exploração – essas são formas indiretas de lesão,
portanto, para Sharp, elas não contam como violência. Isso é
conveniente.
Da mesma forma, as sanções. Para Sharp, as sanções não eram
suficientemente diretas para serem consideradas violência. Na verdade,
ele é um dos primeiros teóricos das sanções. Ele fundou um instituto em
Harvard, dentro do Center for International Affairs, chamado Program on Nonviolent Sanctions in Conflict and Defense, que estuda o uso de sanções.
Isso começou em 1983, bem no início da política externa de “reversão”
de Reagan. Em 1983, ele recebeu esse centro próprio e, no mesmo ano,
também fundou o Albert Einstein Institution, uma ONG voltada
para o público, dedicada a apoiar o uso de ações não violentas em todo o
mundo, especialmente em lutas que supostamente tentam “promover a
democracia”.
Olhando para aquela época, podemos ver agora a virada neoliberal em
casa, mas há também um confronto mais agressivo com o comunismo na forma
de uma política externa de retrocesso. Nesse contexto de retrocesso,
Sharp está promovendo a ideia de sanções. Thomas Schelling, seu mentor
estrategista nuclear, diz que quando o programa de sanções de Sharp foi
fundado, isso foi um reconhecimento formal de Harvard de que esse é um
campo de estudo legítimo. Embora não seja muito conhecido, aparentemente
Sharp tinha um instituto realmente inovador.
BM
Como sua filosofia política ajudou a minar as revoluções que alguns desses movimentos conseguiram realizar?
MS
Gene Sharp às vezes é chamado de Maquiavel da não violência, e acho
que isso é apropriado, mas acho que ele era como Maquiavel ao contrário.
Enquanto Maquiavel estava interessado em questões de como consolidar o
poder, como mantê-lo, como criar consentimento para um regime político,
Sharp está interessado na questão de como dissolver essa vontade comum,
essa lealdade comum, que sustenta todos os governos e, na verdade, todos
os projetos políticos.
Em The Politics of Nonviolent Action (A política da ação não violenta),
a grande obra de três volumes de Sharp, ele delineou um estilo de
combate que chama de “jiu-jítsu político”. Trata-se basicamente de um
sistema de armas, um dispositivo de demolição social, capaz de derrubar
governos de todos os tipos, sejam eles ditatoriais ou democraticamente
eleitos, não importa. A questão é que você ataca as fontes de
legitimidade de um regime; você provoca o regime com retaliações
violentas e expõe a força violenta na qual ele se baseia.
A definição de Estado, de acordo com Max Weber, é uma organização que
detém o monopólio do uso legítimo da força. Portanto, quando houve uma
insurreição secessionista no Báltico, que incluía muitas pessoas que
queriam reafirmar suas relações de propriedade burguesas pré-soviéticas,
era muito previsível que Gorbachev enviasse tanques e tentasse
reprimi-la. Lembre-se de que Abraham Lincoln usou a força para reprimir
um movimento secessionista no sul dos Estados Unidos, outro movimento
secessionista que buscava restabelecer relações de propriedade altamente
reacionárias. Portanto, estou tentando problematizar a história
hegemônica, que é a de que esses movimentos Sharpianos, em virtude de
serem não violentos e se oporem ao “Estado centralizado”, eram todos
progressistas e, por extensão, que alguém como Gorbachev estava agindo
ilegitimamente quando tentou preservar a União, embora fosse isso que a
maioria dos cidadãos soviéticos dissesse que queria. As pesquisas
mostraram que os cidadãos soviéticos queriam uma economia um pouco mais
liberalizada e certamente mais liberdade política, mas não queriam que a
União Soviética fosse totalmente dissolvida.
Portanto, não tenho tanta certeza de que a filosofia política de
Sharp tenha prejudicado uma revolução política em um lugar como o
Báltico. Em vez disso, acho que o uso de Sharp pelo movimento revela sua
filosofia política. Não há nenhuma inconsistência aqui.
Dito isso, acho que os movimentos de esquerda que tentam encaixar
seus objetivos na estrutura de Sharp, que tratam Sharp como o principal
filósofo político moderno, terão problemas rapidamente. Porque, para
Sharp, o vilão é sempre o Estado, e o mocinho é qualquer grupo que
esteja nas ruas levantando os punhos. Sharp não é, de forma alguma, o
único vetor disso; há uma longa tradição anarquista nos EUA com críticas
contundentes ao Estado. Mas acho que a fixação de Sharp em ditadores e
no “Estado centralizado” contribuiu para uma alergia e um estilo
determinista de pensar em relação ao Estado. No esquema de Sharp, o
Estado não é algo pelo qual se deva lutar, não é algo que se deva tentar
controlar. É algo a ser dissolvido e destruído.
Então, e se o seu objetivo for tomar o Estado ou “expandir” o Estado
por meio de algo como o Medicare for All? Você ficará muito confuso. E
se as pessoas que estão levantando os punhos de forma não violenta na
rua, ou fazendo o sit-in, ou fazendo a marcha permitida, e se elas forem
fascistas? Não tenho certeza se a esquerda dos EUA entende que a
incoerência ideológica, a fraqueza lógica, também é uma fraqueza
estratégica. Minha opinião é que, na esquerda norte-americana, há uma
tolerância perigosamente alta para argumentações ruins, desde que se
tenha a posição moral correta.
Também nos deparamos com problemas quando usamos a estrutura de
Sharpian para tentar interpretar as relações internacionais modernas.
Uma parte considerável da esquerda foi treinada para fazer julgamentos
sobre assuntos internacionais com base em quem é um “ditador”. Isso é
tão simplista e tão inadequado. O comportamento ditatorial dos
executivos políticos existe em um espectro e, além disso, se um
território estiver sob ataque, militar, econômico ou qualquer outro, e
se estiver tentando se defender, as relações políticas se tornarão
militarizadas, ou seja, hierárquicas e ditatoriais. Mas, para fins de
argumentação, vamos admitir que o grande problema nos assuntos
internacionais é a presença de ditadores ruins. Portanto, uma
porcentagem radicalmente pequena de uma população destitui o cara de
forma não violenta. E minha pergunta é: ok, e depois? Você derrubou o
regime nojento e corrupto existente – e depois? Repetidamente, pessoas
muito sinceras e bem-intencionadas se inspiram nessa ideia de derrubar
ditadores em todo o mundo, mas não descrevem muito bem o que deve vir
depois e como fazer isso. O que acontece depois que o ditador cai? Qual é
o seu programa afirmativo? Quais são suas ideias sobre como a economia
deve ser organizada e elas são historicamente informadas? Como você
comunica tudo isso publicamente? Essa estratégia foi desenvolvida com
alguma consciência da realidade da luta de classes? Essas são perguntas
que a esquerda precisa fazer a si mesma pelo menos com a mesma
frequência que a pergunta sobre como nos livrarmos de um governo ruim.
Porque se não fizermos um bom trabalho respondendo a essas perguntas e
conseguirmos derrubar o governo existente, é muito provável que o poder
acabe sendo consolidado por pessoas que tenham respostas claras a essas
perguntas e que tenham consolidado suas forças e tenham disciplina
material e ideológica – como vimos, por exemplo, depois da Primavera
Árabe, muitas vezes essas são forças reacionárias.
A implicação das questões que estou levantando aqui não é que devamos
abandonar todo o trabalho de Sharp, ou que devemos extirpar o trabalho
de Sharp dos movimentos sociais. Em vez disso, precisamos ver Sharp em
seu contexto completo e enxergar suas limitações muito importantes,
porque se não o fizermos, há um risco real de nos vermos cercados de
inimigos em um cenário político ainda mais caótico.
BM
Você mencionou a mudança climática anteriormente; sua
investigação sobre Sharp surgiu do seu ativismo climático. Como as
ideias de Sharp influenciaram o movimento pela justiça climática?
MS
Tratarei mais desse assunto na segunda parte do ensaio, que será
publicada em breve – trata-se de como as ideias de Sharp se espalharam e
migraram pela esquerda, como elas aparecem. Uma das coisas que comecei a
ver, e que outros comentaram – e isso não ocorreu apenas no movimento
climático, mas no cenário de protestos dos EUA de forma mais ampla – foi
uma espécie de instrumentalização dos protestos. Quero dizer, elevar o
protesto como um fim em si mesmo, em vez de reconhecê-lo como um meio
para resultados políticos específicos. Essa ideia de que se
protestarmos, coisas boas acontecerão. Se agirmos com retidão, o poder
perceberá e obteremos a justiça e a liberdade que exigimos, seja lá o
que isso signifique. O protesto é elevado muito acima de outras
habilidades, como organização, educação política, trabalho intelectual,
debate, habilidades de formação de alianças, ou seja, diplomacia, etc.
Eu mesmo estou envolvida nisso. Fui ativista do clima na faculdade e é
muito estimulante envolver-se em movimentos de protesto, conectar-se e
protestar nas ruas com outras pessoas que estão justamente indignadas
com a injustiça de nossa situação atual. Mas sempre precisamos ser
claros: o que estamos exigindo? E de quem ou do que estamos exigindo? E
esse é o melhor e mais estratégico uso do tempo e dos recursos
limitados, é informado pela história e pela dinâmica da luta de classes?
E acho que os movimentos intergeracionais são essenciais se quisermos
responder bem a essas perguntas. Não acho que seja coincidência o fato
de que muitos movimentos Sharpianos tenham sido conduzidos por
estudantes universitários urbanos de classe média, jovens com muita
energia, a chamada clareza moral, mas que ainda estão negociando sua
relação com a autoridade, têm poucas ou nenhuma conta para pagar, etc., e
podem ser “provincianos cosmopolitas” em sua visão de mundo. Quando um
movimento é de, por e para os trabalhadores, e inclui tanto a cidade
quanto o campo, as coisas se complicam, como vimos na campanha de
Sanders. “É a economia, estúpido.”
Deixe-me colocar a questão desta forma. Acho que quando você lê
Sharp, fica claro que ele é um intelectual, é uma espécie de filósofo.
Se o considerarmos sem nenhuma das ressalvas limitadoras que estou
oferecendo e não adicionarmos a ele outros intelectuais importantes, a
visão de mundo que teremos é aquela em que os ditadores do Estado
centralizado são ruins; queremos nos livrar deles e o protesto nos ajuda
a fazer isso; e se fizermos isso, a não violência, a paz, a harmonia e a
justiça prevalecerão.
Portanto, estamos operando com essas categorias muito moralistas que
não oferecem grandes especificidades sobre o tipo de mundo que queremos,
os tipos de relações produtivas que queremos e o que seria realmente
necessário para alcançá-las diante de uma oposição extremamente
poderosa.
Isso é perigoso. Os movimentos de protesto são colocados em uma
posição em que podem ser facilmente cooptados, em que podem servir como
uma espécie de aríete e, então, os especialistas neoliberais com as
“boas ideias” aparecem com o conteúdo. Isso é algo que tenho visto e que
me preocupa muito. Porque quando as forças supostamente progressistas
triunfam, mas as condições para as pessoas comuns pioram – bem, isso
está fazendo o trabalho dos fascistas para eles.
Marcie Smith
leciona no departamento de economia do John Jay College of
Criminal Justice, City University of New York. Ela tem um JD da
Faculdade de Direito da Universidade da Carolina do Norte.
é escritor da redação da Jacobin e mora em Toronto, Canada.