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quarta-feira, 17 de abril de 2024

 

Erro ou traição?

– Investigação sobre o fim da URSS
– Livro de Alexandre Ostrovski (Paris, Edições Delga, 2023, 797 p., €33)

Roger Keeran [*]

Capa de 'Erreur ou trahison'.

O poeta palestino Mahmoud Darwish disse que "há mais inspiração e riqueza humana na derrota do que na vitória". Darwish queria dizer que há uma grande poesia na derrota, mas talvez quisesse dizer que as derrotas, mais do que as vitórias, nos obrigam a refletir e a tirar lições. Este livro de Alexandre Ostrovski é uma fonte rica de lições a retirar da derrota do socialismo soviético. Escrito pelo historiador russo da Academia de Ciências de Leninegrado em 2011 e publicado em francês pelas Edições Delga em 2023, Erreur ou Trahison (Erro ou Traição) é o livro mais exaustivo sobre o colapso soviético até hoje publicado.

Ostrovski tem três objectivos:   primeiro, reconstruir os acontecimentos que levaram ao colapso; segundo, determinar se o colapso foi "espontâneo" ou "propositado"; e terceiro, descobrir o papel que os líderes soviéticos desempenharam nos acontecimentos que conduziram ao colapso.

Quanto ao primeiro objetivo, Ostrovski faz um relato minucioso dos acontecimentos desde 1985 até ao colapso soviético em 1991. Quanto ao segundo e terceiro objectivos, Ostrovski defende que o colapso não foi espontâneo nem inevitável, nem resultou de "erros" dos dirigentes. Pelo contrário, o colapso deveu-se às políticas e acções deliberadas de Mikhail Gorbachev e dos seus colaboradores mais próximos, em particular Alexander Yakovlev. Desde o início, estes homens tinham um plano geral para enfraquecer o Partido Comunista Soviético, abandonar a economia socialista planificada e introduzir uma economia de mercado com propriedade privada e um governo parlamentar liberal.

Tendo escrito um livro com Joe Jamison (que usava o pseudónimo de Thomas Kenny) sobre o colapso soviético, publicado em 2010 (um ano antes do livro de Ostrovski), estava ansioso por saber em que pontos os nossos dois livros concordavam e divergiam, e que novas informações Ostrovski, com a vantagem de ter fontes em língua russa, poderá ter descoberto. No que respeita às linhas gerais dos acontecimentos que conduziram ao colapso e à responsabilidade global de Gorbachev e dos seus aliados próximos pelo colapso, os dois livros concordam. Do mesmo modo, concordamos com Ostrovski em que a União Soviética não enfrentou qualquer crise em 1985 e que o colapso não foi inevitável nem espontâneo.

No entanto, existem diferenças. Enquanto nós sublinhamos as raízes das ideias reformistas de Gorbachev em Nikolai Bukharin e Nikita Khrushchev e o papel da segunda economia (mercado negro) no enfraquecimento do socialismo e na preparação de uma base ideológica e material para o oportunismo de Gorbachev, estas ideias não ocupam um lugar importante em Ostrovski. Além disso, por vezes, o desprezo compreensível de Ostrovski por Gorbachev leva-o a ver conspirações (como no incidente de Rust abaixo) que podem ser verdadeiras mas não são apoiadas pelas provas disponíveis. Além disso, enquanto nós atribuímos o crescimento do nacionalismo em algumas repúblicas soviéticas à inépcia de Gorbachev, Ostrovski vê-o como resultado de um esforço calculado de Gorbachev para enfraquecer o Partido Comunista e o Estado.

Com o seu acesso a uma grande variedade de fontes russas, incluindo jornais e diários, actas de reuniões, relatórios e entrevistas, Ostrovski fornece 800 páginas de novos factos e ideias que tornam este livro uma leitura inestimável. Sem tentar relatar toda a nova informação, concentrar-me-ei antes na luz que Ostrovski lança sobre a questão mais desconcertante que envolve o colapso:   como é que Gorbachev conseguiu levar a cabo a sua destruição do Partido, da economia socialista e do Estado soviético multinacional sem ser travado por outros comunistas.

Na primavera de 1985, quando Mikhail Gorbachev se tornou Secretário-Geral, a grande maioria do Politburo, do Comité Central, da comunidade militar e dos serviços secretos e da população em geral ter-se-ia oposto aos planos de Gorbachev e de Yakovlev, se os tivesse conhecido. Gorbachev e os seus aliados admitiram-no mais tarde. Por isso, Gorbachev e Yakovlev só puseram em prática os seus planos revelando-os gradualmente e utilizando sem escrúpulos o engano, a duplicidade, a demagogia e a crueldade para ultrapassar os seus camaradas. Esta é a chave para compreender como foram bem sucedidos.

Gorbachev e Yakovlev compreenderam a importância de preparar o terreno para as suas reformas, assumindo o controlo da ideologia do partido e minando as ideias e políticas comunistas tradicionais. Uma das primeiras medidas de Gorbachev foi nomear Yakovlev para dirigir o Departamento de Propaganda do Comité Central, colocando-o à frente da ideologia do Partido e dos jornais, revistas e outros meios de comunicação social do país. Yakovlev utilizou então uma tática a que, noutro contexto, Mao Tsé Tung chamou "usar a bandeira vermelha para combater a bandeira vermelha". Como Yakovlev disse mais tarde, o seu plano visava "usar a autoridade de Lenine para derrubar Estaline, o estalinismo. E depois, em caso de sucesso, usar Plekhanov e a social-democracia para derrubar Lenine e, finalmente, derrubar a revolução em geral a caminho do liberalismo e do 'socialismo moral'". Seguiu-se a mais amarga das ironias: um ataque a Estaline, o homem que mais do que ninguém construiu o socialismo soviético, serviu como a ponta aguçada da cunha que minou o socialismo.

Ostrovski considera a trapaça de Yakovlev, mas não reconhece que o seu êxito só ocorreu porque Khrushchev havia preparado o caminho, fazendo da condenação de Estaline a ideologia dominante do Partido Comunista. Em 1977, quando leccionava na Universidade de Cornell, recebi um candidato a doutoramento da Universidade Estatal de Moscovo que estava a fazer investigação sobre os Estados Unidos. Um dia, abordei uma discussão sobre os "erros" de Estaline e aquele jovem comunista protestou: "Estaline não cometeu erros. Ele cometeu crimes". O repúdio total de Estaline marcou a ideologia soviética após o discurso de Khrushchev sobre o culto da personalidade no XX Congresso do PCUS, em 1956, e diferia marcadamente dos chineses, que concluíram que Estaline estava 70% certo e 30% errado. Ao atacarem Estaline, Yakovlev e os seus aliados estavam a empurrar uma porta aberta e, ao associarem as suas reformas a um ataque a Estaline, estavam a estigmatizar preventivamente os adversários da reforma como estalinistas.

No início, Gorbachev cultivou o apoio de líderes do Partido honestos e muito respeitados, como N.I. Ryzhkov e Yegor Ligachev, que eram a favor de reformas económicas segundo as linhas propostas anteriormente por Yuri Andropov. Mais tarde, quando se opuseram a medidas para enfraquecer o Partido e o sistema socialista, Gorbachev virou-se contra eles. De um modo geral, Gorbachev e Yakovlev recompensaram e promoveram magistralmente os seus aliados, ao mesmo tempo que despromoviam ou marginalizavam os seus opositores.

Ostrovski mostra como Gorbachev introduziu novas ideias e políticas fora do Partido e, por vezes, junto de líderes estrangeiros, sem as discutir previamente com o Politburo. Além disso, para promover a sua agenda, planeou habilmente alguns acontecimentos e explorou outros de forma oportunista.

No relato de Ostrovski, Gorbachev não surge como um vagabundo provinciano e ingénuo cujas reformas produziram consequências imprevistas e conduziram involuntariamente ao colapso do Partido Comunista, do socialismo e da União Soviética. Em vez disso, segundo Ostrovski, Gorbachev e os seus colaboradores mais próximos sabiam que a União Soviética não estava a enfrentar nenhuma crise iminente e, consequentemente, enfrentar uma crise ou mesmo uma crise iminente não era a verdadeira motivação para o seu programa de glasnost e perestroika. Gorbachev ampliou as preocupações existentes sobre a estagnação da economia soviética e a corrida ao armamento para atingir o seu verdadeiro objetivo, que era transformar o socialismo soviético numa versão de social-democracia.

Ostrovski apresenta provas e argumentos convincentes para cada elo desta cadeia. (Embora até ele admita que ainda não é possível escrever uma história conclusiva do colapso porque alguns documentos continuam indisponíveis). Quanto à questão de saber se o sistema socialista enfrentava uma crise iminente em 1985, os colaboradores próximos de Gorbachev, V. A. Medvedev e G. K. Shakhnazarov, bem como o próprio Gorbachev, admitiram anos mais tarde que essa crise não existia. Em 2008, por exemplo, em resposta a uma pergunta de um entrevistador, Gorbachev afirmou que, sem as suas acções, a União Soviética teria durado anos.

Gorbachev tinha um plano de reformas quando se tornou Secretário-Geral em 1985? Gorbachev não tinha um plano bem elaborado, mas ele e Yakovlev tinham uma ideia geral do que queriam fazer, e criou imediatamente um grupo de trabalho fora da estrutura e da aprovação do Politburo e do Comité Central para desenvolver um plano em segredo. Dirigido pelo omnipresente Alexander Yakovlev, cujas impressões digitais estão em todos os aspectos da glasnost e da perestroika, o grupo de trabalho desenvolveu este plano entre março e junho de 1985. Embora os participantes no grupo de trabalho atestem o plano, o documento em si permanece desconhecido, e Gorbachev nunca apresentou esse plano ao Politburo ou ao Comité Central.

A duplicidade de Gorbachev revelou-se desde o início. Em 11 de março de 1985, quando foi proposto para Secretário-Geral, Gorbachev afirmou:   "Não precisamos de mudar as nossas políticas". No mesmo dia, após a sua aprovação no novo cargo, Gorbachev apelou a "mudanças radicais nos mecanismos produtivos e económicos, bem como na gestão do país". A duplicidade de Gorbachev e do seu círculo íntimo foi abertamente admitida por Yakovlev em 2003. Comentando a abordagem de Gorbachev, Yakovlev disse que era "uma cara de Jano", falando, por um lado, da continuidade da construção do socialismo e, por outro, da reestruturação das condições existentes.

Outro exemplo da duplicidade de Gorbachev dizia respeito às suas primeiras acções em matéria de política externa. Gorbachev estava convencido de que só poderia fazer as reformas internas que desejava reduzindo as despesas militares soviéticas, e só o poderia fazer reduzindo a ameaça do exterior através do cultivo da cooperação entre os líderes europeus e americanos. Gorbachev introduziu assim a ideia de "uma casa comum europeia", a ideia de que a União Soviética, a Europa de Leste e a Europa Ocidental deveriam cooperar para promover a paz, o comércio e, em última análise, a integração económica. Esta ideia aparentemente inócua e visionária implicava, de facto, uma mudança radical na ideologia e na política soviéticas. A integração económica não era possível, por exemplo, enquanto a URSS tivesse uma economia planificada e a Europa Ocidental uma economia de mercado. Alguns foram atraídos pela visão de paz e prosperidade sem se aperceberem de que isso significava o abandono de uma economia socialista planificada. No entanto, Gorbachev discutiu esta ideia com líderes da Europa Ocidental, como François Mitterand, de França, e nos meios de comunicação social soviéticos, antes de a apresentar ao Politburo.

Gorbachev também utilizou a ameaça da "Guerra das Estrelas" como argumento para promover o desanuviamento e fazer concessões unilaterais ao Ocidente. Em março de 1983, o Presidente Ronald Reagan tinha declarado a intenção dos Estados Unidos de construírem um sistema de defesa antimíssil, designado por Iniciativa de Defesa Estratégica (Strategic Defense Initiative, SDI) ou Guerra das Estrelas. Muitos membros das comunidades militar e científica soviéticas pensaram que a Guerra das Estrelas representava uma ameaça fictícia (idle), uma vez que um sistema de defesa a laser não era viável (um juízo que se revelou historicamente correto, uma vez que os EUA nunca construíram um sistema desse tipo). Gorbachev, no entanto, rejeitou esta opinião e argumentou que a Guerra das Estrelas representava uma ameaça real e que combatê-la exigiria uma despesa que a União Soviética não poderia suportar, pelo que era imperativo procurar o desarmamento com o Ocidente, mesmo que isso implicasse que a União Soviética fizesse concessões unilaterais. Foi exatamente isso que aconteceu.

Ostrovski dá muitos outros exemplos de como Gorbachev criou ou explorou os acontecimentos para afastar os opositores do poder e levar por diante as suas reformas. Em maio de 1987, ocorreu um incidente menor quando um pequeno avião Cessna pilotado por um jovem alemão, Matthais Rust, aterrou junto ao Kremlin. Ostrovski argumenta que nenhum avião poderia ter penetrado nas defesas soviéticas sem ser detectado e/ou comunicado sem algum tipo de cooperação dos serviços secretos soviéticos. Ostrovski implica, assim, que só uma conspiração envolvendo Gorbachev, o KGB e os militares, e talvez até os serviços secretos americanos, poderia explicar este incidente. Se Ostrovski estiver correto (embora ainda não tenha surgido nenhum indício a revelar tal conspiração), isso mostraria um nível espantoso de engano. Se Gorbachev engendrou este incidente pode ser discutível, mas é incontestável que ele utilizou esta brecha nas defesas soviéticas como uma razão para afastar alguns dos seus opositores do cargo e substituí-los pelos seus apoiantes. Entre os destituídos encontrava-se o ministro da Defesa S. L. Sokolov. Depois disso, Yakovlev entrou no gabinete de Ligachev, regozijando-se e dizendo jovialmente:   "Olha. As minhas mãos estão cobertas de sangue até aos cotovelos".

No final, os comunistas honestos que queriam melhorar o sistema socialista, mas que se opunham a Gorbachev, enfrentaram enormes obstáculos. Tinham de respeitar as restrições impostas pela sua própria adesão aos princípios comunistas da disciplina e do centralismo democrático, desafiando simultaneamente o líder do partido, que detinha o poder, a influência e o respeito inerentes a essa posição, e que estava disposto a espezinhar as regras, a ideologia, as políticas e a ética comunistas. Yakovlev admitiu que o Partido Comunista só podia ser destruído recorrendo à "disciplina" do Partido e à "confiança" dos comunistas no secretário-geral que o Partido havia inculcado durante anos. Para ter êxito com o programa de reformas, Yakovlev disse que eram necessários recuos e truques. Confessou mais tarde que distorcia muitas vezes as coisas e "falou mais do que uma vez em 'renovar o socialismo', quando sabia muito bem que o caminho seguido levaria à destruição do socialismo".

Uma outra questão no relato de Ostrovski merece ser mencionada. Terá sido Gorbachev bem sucedido porque os serviços secretos americanos desempenharam um papel no colapso soviético? Ostrovski salienta que os diplomatas e os agentes dos serviços secretos americanos ficaram geralmente surpreendidos com o colapso soviético, o que constitui a melhor prova de que o colapso não foi, em primeiro lugar, obra deles, mas um assunto interno. Ostrovski observa, no entanto, que os diplomatas e os agentes dos serviços secretos americanos encorajaram e promoveram as reformas de Gorbachev a cada passo e, mais tarde, alguns ficaram com os louros do colapso. Além disso, Ostrovski discute em profundidade as suspeitas que surgiram sobre as possíveis ligações de Yakovlev à CIA. Essas suspeitas surgiram durante a sua estadia na Universidade de Columbia em 1960 e, mais tarde, durante os anos de Gorbachev. O mais grave é que V. A. Kryuchkov, o chefe do KGB, escreveu nas suas memórias que, a partir de 1989, "começaram a chegar informações extremamente alarmantes que indicavam ligações de Yakovlev aos serviços especiais americanos". Kryuchkov estava tão preocupado que abordou o assunto com Gorbachev, o qual, naturalmente, desviou um inquérito sério sobre o comportamento do seu colaborador mais próximo. Ostrovski sugere que a alegação de Yakovlev de que queria uma investigação para limpar o seu nome era altamente duvidosa e inconsistente com o seu comportamento. No final, Ostrovski afirma que as relações de Yakovlev com os serviços secretos americanos, quaisquer que tenham sido, continuam a ser um aspeto não esclarecido do colapso soviético.

Apesar de Ostrovski fazer uma análise exaustiva da forma como Gorbachev e os seus aliados se safaram com a destruição do socialismo, alguém poderia ainda perguntar:   porque é que comunistas como Ligachev e Ryzhkov não foram suficientemente duros ou perspicazes para ver através das mentiras e dos enganos? Como é que comunistas tão traidores como Gorbachev e Yakovlev conseguiram ascender a posições de poder? O que motivou Gorbachev e Yakovlev a quererem transformar o sistema? (Relativamente a esta última questão, Ostrovski fornece algumas provas de que Gorbachev e Yakovlev receberam ou, pelo menos, esperavam uma recompensa financeira do Ocidente pela sua traição). É claro que uma regressão infinita de porquês pode dificultar qualquer explicação. Estas questões não diminuem o feito de Ostrovski. Sublinham, no entanto, a importância de olhar para além das motivações e acções dos indivíduos, para os problemas sociais, económicos e ideológicos subjacentes (como o crescimento da segunda economia e a persistência do oportunismo) que facilitaram a traição de Gorbachev.

É lamentável que os americanos que queiram seguir a ideia de Darwish e procurar inspiração e lições na derrota soviética não disponham de uma versão em língua inglesa de um dos melhores livros sobre o assunto. Se se tornar disponível em inglês, não deixem de aproveitá-la.

03/Fevereiro/2024

Ver também:
  • O socialismo foi traído
  • O colapso da URSS revisitado
  • [*] Historiador, estado-unidense, autor de O socialismo traído (Ed. Avante!, 2008)

    O original encontra-se em mltoday.com/book-review-error-or-betrayal-an-inquiry-into-the-end-of-the-soviet-union/

    Este artigo encontra-se em resistir.info

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