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quarta-feira, 3 de abril de 2024

 

Goodbye, Žižek!

Žižek, tão contundente ao identitarismo, despediu-lhe por uma porta – a de defesa dos direitos humanos – para fazê-lo entrar por outra – a de defesa da civilização europeia. Permaneceu, portanto, preso ao paradigma do Estado sem a crítica da economia política. Por isso, optou desde sempre pelo pré-marxismo.

Por Douglas Rodrigues Barros

Dentre as frases de Machado de Assis, uma particularmente especial é aquela que diz: “Os adjetivos passam, e os substantivos ficam!”. O mote é autoevidente: os predicados desaparecem e aquilo que essencialmente importa ganha uma temporalidade substancial. Há muitas problematizações na obra de Žižek que irão permanecer e, felizmente, muitas conclusões de suas intervenções que irão desaparecer. Seria erro, porém, tratar os artigos de circunstância, ou suas entrevistas, como meros predicados. Se lida bem, sua obra revela uma coerência lógica com suas intervenções públicas.

Se hoje nos espantamos com sua defesa da Otan ou com suas declarações sobre a militarização das fronteiras europeias – dentre outras vazias polêmicas – é porque, tal como uma mãe cristã que sente a marofa nos dedos do filho, não queríamos sentir o cheiro daquilo que sempre esteve estampado nas suas obras de fôlego. Um hegelianismo que partindo de uma aguda interpretação de Hegel – aliás, uma das poucas interpretações coerentes com o texto hegeliano – acaba sucumbindo ao conservadorismo.

Se Žižek foi de fato um dos grandes responsáveis por recolocar o hegelo-marxismo no radar, sobretudo, no mundo anglófono – mérito gigante num lugar em que o pensamento crítico é censurado de maneira latente – fez isso recolocando algumas tralhas velhas como novidade. A maior tralha de todas se refere à ideia do Estado como síntese dos múltiplos interesses da sociedade civil: uma instância mediadora que possibilita o reequilíbrio do tecido social organizando uma ordem redistributiva coibidora de excessos.

Isso é possível de ser localizado em muitas de suas obras. Desde aquelas voltadas ao debate circunstancial (Vivendo no fim dos tempos, por exemplo) até às suas obras primas (dentre as quais destaco: Menos que nada – um marco na interpretação de Hegel e um livro verdadeiramente instigante). Assim, fica evidente, em muitos momentos de sua produção, que o retorno a Hegel foi uma via de mão única e jamais o levou de volta a Marx.

Alguns insistem na bobagem de afirmar que o Hegel de Žižek é o mesmo de Lacan e que a culpa seria deste último. Erro de quem nem leu Žižek tampouco Lacan, ou, se de fato leu, acabou carente de interpretação. Enquanto para Lacan, o Hegel é kojeviano, para Žižek, há uma leitura que parte de uma tradição eslovena interessantíssima que resolveu abandonar o lugar comum de interpretação da obra hegeliana propagada, sobretudo, pela França.

Para Žižek, a própria divisão interna da consciência hegeliana indica uma clivagem fundamental. Ela já é uma Outra dela mesma e, portanto, seu desejo já é desejo de um Outro – os ecos lacanianos não deixam de fazer aqui sua morada. É essa divisão que possibilita a emergência da busca pela unidade numa tentativa de retorno à identidade perdida. Mas, os ecos não significam um Hegel lacaniano, mas uma leitura de Hegel que presta contas à psicanálise.

Žižek percebe que, antes da psicanálise, para a filosofia hegeliana já estava em jogo a tentativa da consciência fomentar a unidade daquilo que aparece como diferença. Ela (a consciência tal como pensada pelo filósofo alemão) já aparecia colocando tudo ao seu redor como objeto de realização do desejo. Nesse ato desejante, a consciência se põe como uma outra saltando uma relação de excremento: um susto propiciado por aquilo que sobra e repõe o circuito de busca pela unidade dessa consciência que se sabe cindida.

Este talvez seja o ponto mais interessante da leitura de Hegel feita por Žižek: o de ter se mantido fiel ao texto percebendo a abertura radical daquilo que era visto como um sistema fechado e solipsista do Espírito. Uma leitura que capturou a dimensão movente ligada à história do conceito e não repetiu o chão de terra batido da tradição filosófica francesa e alemã acerca da obra de Hegel. Além, é claro, de recolocar a grandeza da Ciência da lógica na ordem das preocupações intelectuais.

Como formula de maneira esclarecedora na excelente obra que é o Sujeito incômodo: “Hegel com frequência também consegue produzir o mais profundo deslocamento especulativo, uma mudança em todo o terreno do pensamento, por meio de uma simples inversão simétrica. A afirmação: ‘o Si é a substância’ não é de forma alguma a ‘a substância é o Si’: a primeira afirma a simples subordinação do Si à Substância (‘Eu me reconheço como pertencendo à minha substância social’), ao passo que a segunda envolve a subjetivação da própria substância” (Žižek, 2016, p. 254). É nessa conclusão que podemos ler Hegel como avant la lettre à psicanálise: aquele que primeiro estabeleceu a relação dinâmica entre o particular e o universal. Isso jamais poderia ter sido enfatizado por Lacan, por exemplo, ou pela tradição francesa que insistiu num Hegel fechado e para quem o Espírito teria se engessado na trama do fim da história.

Mas, então, onde as coisas derrapam? Žižek sempre enfatizou, à maneira do hegelianismo de direita, que as mediações estatais, organizadas a partir de uma alienação pressuposta ao ato deliberativo, são avanços fundamentais. Afinal – chega a afirmar numa entrevista conhecida – “as pessoas não querem decidir!” e ainda acrescenta “Por que a China vai relativamente bem? Precisamente porque dispõe de um sistema efetivo, fora do controle público, que permite decisões rápidas”. Para ele, não basta que o Estado seja forte, mas, muitas vezes a democracia – a exemplo da crise de 2008 – é a causa de empecilhos para uma melhor administração.  

Não deixa de causar estranheza a ideia de um Estado forte – como se ele não fosse uma necessidade do capital – afirmado por um autodenominado comunista. Sim. Žižek lê o Estado com as lentes do início do século XIX. Portando, como um pré-marxista. Com sua erudição e profundo conhecimento sobre a tradição marxista é, contudo, inegável que essa opção não seja senão política. O esloveno sabe muito bem as reticências que Marx tinha em relação ao Estado. Por isso, reafirmo: ele nunca voltou a Marx.

Essa opção não deixa de ecoar o ocaso do “comunismo” do Leste Europeu. Aliás, em inúmeras aparições, Žižek não deixa de expressar a suposta tentativa do assim chamado “socialismo realmente existente” de superar a figura do Estado, chamando atenção para o fracasso de todas elas. O que é notoriamente falso haja vista que o “socialismo num só país” foi a pedra de toque do século XX que buscava superar a condição de atraso se balizando por uma modernização das forças produtivas organizada pelo Estado robusto e dirigente. De modo que, Žižek usa exemplos pontuais na tentativa de uma generalização insustentável diante dos fatos históricos.

Para entender sua opção pelo Estado, talvez, ainda faça sentido pensar na história eslovena. A atual Eslovênia, antes encravada no velho reino da Iugoslávia, foi pivô central na experiência socialista do século XX. Terminada a primeira guerra mundial em 1918, estabeleceu-se um estado provisório oficializado em 1922 cuja administração era a de uma monarquia constitucional parlamentar – nada irônico! Em 1941, a Iugoslávia foi invadida pelos países do Eixo numa guerra de extermínio respondida pela enorme resistência que se formou e saiu vitoriosa. Após a derrota dos exércitos nazistas, a monarquia foi dissolvida pelos comunistas e por seu dirigente Tito.

Josip Broz, ou “Tito”, filho de pai croata e mãe eslovena, tornou-se uma liderança fundamental e sua história é inseparável da Iugoslávia. Seus ecos permanecem no imaginário de Žižek: radicado no movimento operário através do sindicato dos metalúrgicos da Croácia, em 1917, Tito, após se tornar uma liderança dentro do presídio, une-se aos bolcheviques e integra a Guarda Vermelha para combater o Exército Branco.

Em 1918, integra a frente responsável, na Iugoslávia, pelo Partido Comunista russo e retorna para a Liga dos Comunistas para desenvolver a sua influência política no parlamento. A Liga foi banida em 1921, mas seguiu na ilegalidade. Na vida clandestina, dentre os muitos pseudônimos adotados para despistar autoridades, “Tito” foi uma das alcunhas de Broz que seguiu nas suas funções com o PCUS.

Em 1937, se torna, finalmente, o presidente da Liga. Com a invasão alemã, facilitada por húngaros e italianos, Tito organiza a resistência e conclama os judeus a aderirem à luta. Ao resistir e enfrentar os avanços nazistas na região, consagra-se como liderança proletária. Com a conquista popular, é reconhecido pela Aliança enquanto liderança em 1943 e 1944, momento no qual o Exército Vermelho entra na Iugoslávia para auxiliar os partisans na vitória sobre os nazistas. 

No final da Segunda Guerra Mundial, a popularidade de Tito está no auge e, junto ao Partido Comunista, ele dissolve a monarquia tornando-se primeiro-ministro. Nos seus primeiros anos, mantém laços firmes com o Bloco Soviético, permanecendo fiel a Stálin. No entanto, essa postura rapidamente se altera. Em 1947, ele lança seu Plano de Cinco anos focado no desenvolvimento econômico industrial iugoslavo, o que desagrada a nomenclatura soviética.

Os tensionamentos da Guerra Fria se iniciam. A contrapartida estadunidense, diante dos avanços da União Soviética, foi a direta interferência internacional através da Doutrina Truman e do plano Marshall. Para Stálin, essa política não era senão um “suborno aos oponentes comunistas do leste Europeu, particularmente a Tchecoslováquia e a Hungria” que aproxima o Leste de nações como a Inglaterra e a França.

Nesse tenso momento de rearticulações políticas, um cenário delicado se desenvolve na Grécia e Tito, sem consultar Stálin, resolve apoiar os comunistas na guerra civil enviando exércitos iugoslavos para a Albânia. Segundo alguns historiadores, Tito não considerou a fragilidade política estratégica que a Albânia representava neste momento para a União Soviética, uma vez que poderia causar a consolidação da defesa reacionária por parte de nações ocidentais em nome da independência da Albânia.

Mas o fato é que antes Stálin tinha fechado acordo com Churchill para delimitar as esferas de influência e interesse tanto da URSS quanto do Reino Unido – e isso incluía o boicote à independência albanesa sob órbita da Grã-Bretanha. Assistimos, portanto, ao início de uma disputa de hegemonia entre países comunistas. O fator grego se tornou o estopim de um desarranjo nas relações com Moscou. Estopim que foi detonado com os planos de Stálin acerca da Iugoslávia, com a tentativa de construção da Federação Balkan.

Tito acredita que o posicionamento subserviente da Iugoslávia à federação retiraria as especificidades da construção socialista do país. A partir de então, as relações entre a Iugoslávia e a União Soviética se degeneram com tentativas de assassinatos e boicotes que levaram a muitas piadas e a conhecida frase de Tito: “Stálin, pare de mandar pessoas para me matar! Nós já capturamos cinco delas, uma com uma bomba, outra com um rifle… Se você não parar de enviar assassinos, eu enviarei um a Moscou, e te garanto que não haverá um segundo”.

Após a morte de Stálin em 1953, quatro anos depois do nascimento de Žižek, Khrushchev retoma as relações entre Iugoslávia e a União Soviética, que dez anos depois serão enfraquecidas graças à instituição progressiva de autogestão da Iugoslávia que encontrará firme resistência nos dirigentes soviéticos. Já em 1966, por persistir na noção de autogestão como meio de entregar poder aos trabalhadores, Tito verá sua posição no interior do PCUS se deteriorar. Em 1968, vem então a ruptura definitiva selando o futuro dos dois regimes.

Desse ponto em diante, na Iugoslávia, há recuos evidentes em relação à ideia socialista. Desligado de relações com países na órbita de Moscou, o país se volta para um chauvinismo nacionalista que irá degenerar lentamente até a extinção do bloco soviético, anterior à ruptura do bloco iugoslavo. Já em 1990, porém, na Eslovênia, ocorriam as primeiras eleições presidenciais na qual Žižek participou como candidato à presidência pelo Democracia Liberal Eslovena (Liberalna Demokracija Slovenije). Pós-eleições, o país decide sair da federação Iugoslava escapando à guerra sangrenta que se desenvolveria pouco depois.

Com a dissolução da República Socialista da Iugoslávia, em agosto de 1992, assistimos uma das primeiras guerras identitárias que abriria o novo tempo do mundo: a sanguinária guerra da Bósnia. Em nome do nacionalismo étnico se processou uma luta fratricida entre Bósnia, Sérvia, Montenegro e Croácia. Não há dúvidas de que essa guerra levou à luta de Žižek contra toda forma de identitarismo. Afinal, ele esteve muito próximo dos efeitos concretos da prática de extermínio étnico delimitado pela ideia de uma identidade limpa de influências externas.

Infelizmente, essa posição tem se revelado cada vez mais unilateral graças ao contexto ucraniano e tem se enfraquecido à medida que as declarações de Žižek o colocam pari passu com a oficialidade eslovena integrada à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Condenar Putin, para quem se coloca no espectro político de esquerda, sem dúvida, é fundamental, mas disso deduzir o armamento nuclear ucraniano sob alegação de fundamentalismo, “tal como os árabes”, desnuda o obsceno político de sua posição.

Vejamos que há nessa postura algo aquém da análise material dos processos históricos. Isso não deve ser depositado na conta de Hegel, mas de um hegelianismo que abraçou aquilo que dizia combater: um culturalismo enviesado pela ideia “civilização contra a barbárie”. Žižek, tão contundente ao identitarismo, despediu-lhe por uma porta – a de defesa dos direitos humanos – para fazê-lo entrar por outra – a de defesa da civilização europeia. Permaneceu, portanto, preso ao paradigma do Estado sem a crítica da economia política – algo que ele tanto criticou em Badiou. Por isso, optou desde sempre pelo pré-marxismo.   

Marx sempre foi enfático à falta de transcendência do Estado. Surgido de necessidades históricas específicas e organizado a partir da necessidade de reprodução da vida social, o Estado, para Marx, tem uma função determinante na modernidade: consolidar contratos e fronteiras para solidificar o poder dominante da classe burguesa. Esse, aliás, é um ponto de ruptura decisiva de Marx com seu velho mestre: para Hegel, o Estado aparece como uma síntese quando na verdade, para Marx, é tão somente um desdobramento de algo que lhe é anterior: o valor que se generaliza por toda a vida social abrindo espaços para o capital. Trocando em miúdos: o Estado é uma necessidade do capital.

Que “comunistas” tenham esquecido esta velha lição só mostra que o espetáculo revolucionário (a autodenominação e a identidade) se tornou muito mais relevante, nos círculos convertidos, do que a teoria revolucionária. Voltando a Žižek: talvez, seja a partir daí que se vislumbre as raízes dos problemas surgidos no seu posicionamento atual. Problemas que insisto em lembrar: já prefiguram em parte de suas obras. Abandonar as mediações concretas daquilo que forja o Estado foi só uma porta para abandonar as mediações concretas da realidade histórica específica e, por exemplo, fazer insanas apostas no exército europeu como forma de controlar fronteiras contra imigrantes.

E, assim, uma outra volta do parafuso não custa a aparecer: a defesa da identidade europeia. Aquele que muito disse sobre o problema da identidade, de repente, reforça a defesa de uma identidade mediada pelas instituições europeias e seu exército. Como não faz o balanço marxiano do Estado, Žižek fetichiza as instituições europeias como a luz do mundo, seus intelectuais como o sal da terra e sua identidade como a da civilização. Felizmente, porém, os problemas erguidos em algumas de suas obras se tornaram independentes do posicionamento ridículo de seu autor. Triste fim.

Está na hora: Goodbye, Zizek!

Referências bibliográficas
ŽIŽEK, S. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2015.
ŽIŽEK, S. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013.
ŽIŽEK, S. O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 254.

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