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sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Pensamento e Linguagem

Lev Semenovich Vygotsky



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7. Pensamento e linguagem

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Esqueci a palavra que pretendia dizer e o meu pensamento, desencarnado, volta ao reino das sombras (de um poema de Mandelstham)

I

Começámos o nosso estudo com uma tentativa de pôr a nu a relação existente entre o pensamento e a linguagem nos estádios iniciais do desenvolvimento filogenético e ontogenético. Não encontramos nenhuma interdependência específica entre as raízes genéticas do pensamento e da palavra. Tornou-se patente que a relação interna que buscávamos não era um requisito prévio do desenvolvimento histórico da consciência humana, antes era um seu produto.

Nos animais, mesmo naqueles antropóides cuja fala é foneticamente como a fala humana e cujo intelecto se aparenta com o do homem, a linguagem e o pensamento não se encontram interrelacionados. É indubitável que, no desenvolvimento da criança, existe também um período pré-linguístico do pensamento e um período pré-intelectual a fala: o pensamento e a palavra não se encontram relacionados por uma relação primária. No decurso da evolução do pensamento e da fala gera-se uma conexão entre um e outra que se modifica e desenvolve.

Seria errado no entanto encarar o pensamento e a fala como dois processos não relacionados entre si, seja como dois processos paralelos, seja como dois processos que se entrecruzassem em certos momentos e se influenciassem mutuamente duma forma mecânica.

A ausência de uma relação primária não quer dizer que a conexão entre eles só possa formar-se de uma forma mecânica.

A futilidade da maior parte das investigações primitivas devia-se em grande parte ao fato de se pressupor que o pensamento e a palavra eram elementos independentes e isolados e que o pensamento verbal era fruto da sua união externa.

O método de análise baseado nesta concepção estava votado ao fracasso. Buscava explicar as propriedades do pensamento verbal cindindo-o nos elementos que o compunham – a palavra e o pensamento – nenhum dos quais tomado em separado possuiria as propriedades do todo.

Este método não é uma verdadeira análise que nos seja útil para resolver problemas concretos, antes conduz à generalização.

Comparamo-lo à análise da água em hidrogênio e oxigênio – que só pode dar resultado em descobertas aplicáveis a toda a água existente na natureza, desde o Oceano Pacífico até uma gota de água da chuva.

Semelhantemente, a afirmação segundo a qual o pensamento verbal se compõe de processos intelectuais e funções de discurso propriamente ditas aplica-se a todo o pensamento verbal e não explica nenhum dos problemas específicos com que se defronta o estudioso do pensamento verbal.

Tentamos uma nova abordagem do problema e substituímos a análise em elementos pela análise em unidades, cada uma das quais retém, sob uma forma simples, todas as propriedades do todo. Encontramos esta unidade do pensamento verbal no significado da palavra.

O significado duma palavra representa uma amálgama tão estreita de pensamento e linguagem que é difícil dizer se se trata de um fenômeno de pensamento, ou se se trata de um fenômeno de linguagem. Uma palavra sem significado é um som vazio; portanto, o significado é um critério da palavra e um seu componente indispensável. Pareceria portanto que poderia ser encarado como um fenômeno lingüístico. Mas do ponto de vista da psicologia, o significado de cada palavra é uma generalização, um conceito. E, como as generalizações e os conceitos são inegavelmente atos de pensamento, podemos encarar o significado como um fenômeno do pensar. No entanto, daqui não se segue que o pensamento pertença a duas esferas diferentes da vida psíquica.

O significado das palavras só é um fenômeno de pensamento na medida em que é encarnado pela fala e só é um fenômeno lingüístico na medida em que se encontra ligado com o pensamento e por este é iluminado. É um fenômeno do pensamento verbal ou da fala significante – uma união do pensamento e da linguagem.

As nossas investigações experimentais confirmam integralmente esta tese fundamental. Não só provaram que o estudo concreto da gênese do pensamento verbal se tornou possível pelo estudo do significado das palavras como unidade analítica, como levaram também a outra tese que consideramos ser o mais importante resultado do nosso estudo e que decorre imediatamente da primeira: a tese segundo a qual o significado das palavras evolui. Este ponto de vista deve substituir o postulado da imutabilidade dos significados das palavras.

Do ponto de vista das velhas escolas da psicologia, a relação entre a palavra e o significado é uma relação associativa estabelecida através da repetição da percepção simultânea de um certo som e de um certo objeto. Uma palavra solicita no espírito o seu conteúdo, tal como o sobretudo dum amigo nos recorda esse mesmo amigo ou uma casa, os seus habitantes. A associação entre a palavra e o seu significado pode desenvolver-se mais forte ou mais debilmente, pode ser enriquecida pela relacionarão com outros objetos de tipo semelhante, difundir-se por sobre um vasto domínio, Ou tornar-se mais limitada, isto é, pode sofrer transformações quantitativas e externas, mas não pode modificar a sua natureza psicológica. Para que tal acontecesse teria que deixar de ser uma associação.

Desse ponto de vista, qualquer evolução do significado de uma palavra é impossível e inexplicável – conseqüência esta que constitui um handicap tanto para os lingüistas como para os psicólogos. A partir da altura em que se comprometeu com a teoria da associação, a semântica persistiu em considerar o significado da palavra como uma associação entre o som e o conteúdo. Todas as palavras, desde as mais concretas às mais abstratas, surgiam como sendo formadas da mesma maneira, relativamente ao seu significado, parecendo não conter nenhum elemento característico da fala enquanto tal; uma palavra fazia-nos recordar o seu significado tal como um objeto nos recordava outro objeto.

Pouco surpreenderá portanto que a semântica nem sequer pusesse a questão mais ampla da evolução do significado das palavras. Reduzia-se essa evolução às variações nas conexões associativas entre as palavras isoladas e os objetos isolados: uma palavra poderia em determinada altura denotar um objeto passando depois a associar-se com outro, como um sobretudo que, por mudar de proprietário, nos recordasse primeiro uma pessoa e, logo depois, outra.

A lingüística não compreendia que na evolução histórica da linguagem, a própria estrutura do significado e a sua natureza psicológica se transformam também.

Das generalizações primitivas, o pensamento verbal vai-se elevando ao nível de conceitos mais abstratos. Não é apenas o conteúdo de uma palavra que se altera, mas a forma como a realidade é generalizada e refletida numa palavra.

A teoria associativa também não se adequa à explicação do desenvolvimento dos significados das palavras na infância. Também neste aspecto, só pode explicar as alterações externas, puramente quantitativas, das conexões que ligam a palavra e o seu significado, o seu fortalecimento e o seu enriquecimento, mas não as transformações psicológicas e estruturais fundamentais que podem ocorrer e ocorrem no desenvolvimento da linguagem infantil.

Infelizmente, o fato de o associacionismo em geral ter sido abandonado durante um certo lapso de tempo não parece ter afetado a interpretação da palavra e do significado. A escola de Wuerzburg, cujo propósito principal era o de provar a impossibilidade de reduzir o pensamento a um simples jogo de associações e demonstrar a existência de leis específicas que regem a corrente de pensamento, não reviu a teoria associativa da palavra e do significado, nem reconheceu sequer a necessidade de uma tal revisão. Esta escola emancipou o pensamento dos grilhões da sensação e da imagem e das leis da associação e transformou-o num ato puramente espiritual. Mas ao fazê-lo, regrediu para os conceitos pré-científicos de Santo Agostinho e Descartes, acabando por chegar a um idealismo subjetivo extremo. A psicologia do pensamento encaminhava-se para as idéias de Platão, e, ao mesmo tempo, deixava-se a linguagem à mercê da associação. Mesmo após a obra realizada pela escola de Wuerzburg, continuou a considerar-se que a conexão entre a palavra e o seu significado era uma simples relação associativa. Encarava-se a palavra como correlativo externo do pensamento, como seu simples adereço, que não tinha qualquer influência na sua vida interna. O pensamento e a palavra nunca estiveram tão separados como durante o período de Wuerzburg. Na realidade, a destruição da teoria associativa no domínio do pensamento incrementou o seu poderio no domínio da linguagem.

A obra de outros psicólogos veio reforçar ainda mais esta tendência. Selz continuou a investigar o pensamento sem tomar em consideração a relação entre este e a linguagem e chegou à conclusão de que o pensamento produtivo do homem e do chimpanzé eram de natureza idêntica a tal ponto este investigador ignorava a influência das palavras sobre o pensamento.

Até Ach, que levou a cabo um estudo especial do significado das palavras e que tentou superar o associativismo na sua teoria dos conceitos se limitou a pressupor a existência de “tendências determinantes” que entrariam em ação conjuntamente com as associações na formação dos conceitos. Por conseguinte, as conclusões a que chegou não vieram alterar a anterior compreensão do significado das palavras. Ao identificar o conceito com o significado, impedia que se explicasse os desenvolvimentos e as transformações dos conceitos. Uma vez estabelecido, o significado de uma palavra ficava estabelecido para sempre; o seu desenvolvimento encontrava-se completo. Estes eram os mesmos princípios que os psicólogos atacados por Ach defendiam. Para ambos os lados, o ponto de partida da evolução dos conceitos constituía também o seu termo; só havia desacordo no tocante à forma como se iniciava o desenvolvimento da formação da palavra.

Na psicologia gestaltista (Psicologia da Forma), a situação não era muito diferente. Esta escola era ainda mais consistente do que as outras na tentativa de superar o princípio geral do associativismo. Não satisfeita com uma solução parcial do problema, tentou libertar o pensamento e a fala da lei da associação e colocá-los a ambos sob o domínio da lei da gênese de estruturas. Surpreendentemente, nem esta escola – que é a mais progressiva de todas as modernas escolas de psicologia – realizou quaisquer progressos na teoria da linguagem e do pensamento.

Por um lado, manteve a separação completa entre estas duas junções. A luz da teoria gestaltista, a relação entre o pensamento e a palavra aparece como uma simples analogia, uma redução de ambos a um denominador estrutural comum. Encara-se a formação das primeiras palavras com significado por parte das crianças como algo semelhante às operações intelectuais dos chimpanzés nas experiências de Koehler. As palavras entram na estrutura das coisas e adquirem um certo significado funcional, duma forma bastante semelhante àquela como, para o chimpanzé, o pau se torna parte da estrutura de obtenção do fruto e adquire o significado funcional de instrumento. Já não se encara a conexão entre palavra e significado como uma questão de simples associação, mas como uma questão de estrutura. Parece ser um passo em frente, mas se examinarmos mais de perto a nova abordagem, é fácil ver que o passo em frente é um passo em falso, ilusório, e que não saímos ainda do mesmo sítio. Aplica-se o princípio da estrutura a todas as relações entre as coisas, da mesma forma avassaladora como anteriormente se aplicava o princípio da associação. Continua a ser impossível explicar as relações específicas entre palavra e significado, pois à partida continua a considerar-se que em princípio são idênticas a todas as outras relações entre coisas. Os gatos continuam a ser tão pardos na poeira da psicologia gestaltista como nos primitivos nevoeiros do associacionismo universal.

Enquanto Ach procurava superar o associonismo com a “tendência determinante”, a teoria psicológica gestaltista combateu-o com o princípio da estrutura – mantendo no entanto os dois erros fundamentais da velha teoria: o pressuposto da identidade de natureza de todas as conexões e o pressuposto de que os significados das palavras não se alteram. Tanto a antiga como a nova teoria psicológica partem ambas da hipótese de que a evolução do significado de uma palavra termina mal esta emerge. As novas tendências da psicologia produziram progressos em todos os ramos, exceto no estudo do pensamento e da palavra. Neste domínio, os novos princípios parecem-se com os antigos como dois gêmeos.

Se a psicologia gestaltista estagnou no campo da linguagem, deu um grande passo à retaguarda no campo do pensamento. A escola de Wuerzburg, pelo menos, considerava que o pensamento tinha leis próprias, ao passo que a escola gestaltista nega a existência de tais leis. Reduzindo a um denominador estrutural comum as percepções dos animais domésticos, as operações mentais de um chimpanzé, as primeiras palavras significativas das crianças e o pensamento conceptual dos adultos, oblitera toda e qualquer distinção entre a percepção mais elementar e as mais elevadas formas de pensamento.

Esta recensão crítica pode ser resumida como se segue: todas as escolas e tendências psicológicas descuram um ponto fundamental: todo e qualquer pensamento é uma generalização. Assim, estudam a palavra e o significado sem fazerem qualquer referência à evolução. Enquanto estas duas condições persistirem em tendências sucessivas nas tendências posteriores, estas muito pouca relevância terão para o tratamento do problema.

II

A descoberta de que o significado das palavras evolui tira o estudo do pensamento e da linguagem de um beco sem saída. Os significados das palavras passam a ser formações dinâmicas e não já estatísticas, transformam-se à medida que as crianças se desenvolvem e alteram-se também com as várias formas como o pensamento funciona.

Se os significados das palavras se alteram na sua natureza interna, então a relação entre o pensamento e a palavra também se modifica. Para compreender a dinâmica dessa relação, teremos que complementar a abordagem genética do nosso estudo principal com a análise funcional e examinar o papel do significado da palavra no processo de pensamento.

Lev Vygotsky


1896 - 1934
Arquivo Marxista na internet

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