O POÇO
Existiu em tempos idos um homem que acreditava sinceramente que o mundo possuía um outro lado. O indivíduo não era nem analfabeto nem desinformado, bem pelo contrário, os livros eram tantos em casa dele que mal cabíamos, eu e a minha mulher, quando o visitávamos. Com pouca frequência de resto, pois que ele dissertava quase exclusivamente sobre o outro lado do mundo, o que tornava algo enfadonhos os serões.
Um belo dia desapareceu. Encontrámos a casa encerrada quando para lá nos dirigimos à pressa, depois de eu ler uma sms enviada por ele, do seu telemóvel, que dizia simplesmente: «Não me procurem».
A vida continuou e fui esquecendo o amigo, ou quase amigo. Vinte anos passaram, envelheci, agora reflectia mais vezes sobre a certeza elementar de que só tinha uma vida para viver.
Nos inícios de um Outono cada vez mais parecido com os outros, recebi uma carta remetida por alguém que já esquecera. Muito brevemente relatava a história seguinte:
«Sou aquele que ambicionava encontrar o outro lado do mundo. Tinha trinta anos então, tenho hoje cinquenta. Levei comigo apenas o que leva consigo um nómada: uma mochila. Dividi a viagem em etapas de quinhentos quilómetros. Durante a primeira encontrei gentes a fazerem o mesmo que aquelas que eu conhecera na minha terra natal, umas paupérrimas, outras riquíssimas. Na segunda, a diferença era mínima, se bem que melhor distribuída a riqueza e o conforto. Na terceira, fui assaltado. Na quarta, encarcerado. Na quinta, escravizado e sodomizado. Na sexta, receberam-me como mártir, converteram-me a uma religião e enviaram-me à força para uma missão suicida. Logo que pude libertei-me da carga explosiva e percorri mais quinhentos quilómetros. Para sobreviver ensinei cinco anos a fio matemática e literatura a rapazes e raparigas que não queriam saber disso para nada, as raparigas metiam-se comigo, os rapazes metiam-se com elas. Peguei na mochila e calcorreei mais quinhentos quilómetros. Como pouca gente se mostrava generosa e hospitaleira para com um desempregado vagabundo, tive de recorrer a pequenos biscates: aliciaram-me primeiro para um gang de narcotraficantes, a seguir para outro gang, este já internacional, que traficava «carne branca», na realidade, tanto branca como escura. Um ano depois evadi-me, tendo, para isso, de liquidar a tiro dois capangas. Percorri mais quinhentos quilómetros. Fiz-me cantor de jazz num bar de fraca reputação. Abandonei a via artística depois de uma linda mulher por quem me apaixonara me ter roubado o maço de dólares que eu guardava debaixo do colchão. Contudo, nunca desesperei.
Certo dia de primavera, deambulava eu num deserto, deparei-me com dois indivíduos e um poço. Um era muito idoso, o outro, muito jovem. Deixaram-me saciar a sede. Perguntaram-me para onde queria ir. Respondi-lhes: para o outro lado do mundo. Porquê? Questionaram sem surpresa nos rostos tisnados pelo sol. Porque é completamente diferente, para melhor evidentemente! Retorqui com aquela convicção que me conduzira durante anos e milhares de quilómetros. Pois então, disse o mais velho, basta subires aquela montanha e vê-lo-ás do outro lado! Eu nunca o fiz porque esperei demasiado e agora estou velho; este, aqui, ainda é novo demais… Então como sabeis que do outro lado é o outro lado do mundo? Porque acreditamos, dezenas de gerações sucessivas sempre nos garantiram tal facto, e o velho embrulhou umas tâmaras num lenço colorido e deu-mas.
Repousado e saciado, ataquei a montanha. No terceiro dia cheguei ao topo: Olhei para o outro lado. Vi ao longe, na base da montanha, uns pontos escuros sob o sol ardente. Desci quase a correr, um dia e uma noite bastaram-me para chegar quase ao sopé. A um quilómetro de distância os pontos pretos desenhavam-se nitidamente na paisagem.
Foi então que me vi a mim mesmo a conversar com um velho e um jovem, à sombra de um poço.
Eis a minha história. Já não possuo nem meios nem forças para regressar. Fico por aqui, deste lado do mundo, tanto vale aqui como acolá.»
Existiu em tempos idos um homem que acreditava sinceramente que o mundo possuía um outro lado. O indivíduo não era nem analfabeto nem desinformado, bem pelo contrário, os livros eram tantos em casa dele que mal cabíamos, eu e a minha mulher, quando o visitávamos. Com pouca frequência de resto, pois que ele dissertava quase exclusivamente sobre o outro lado do mundo, o que tornava algo enfadonhos os serões.
Um belo dia desapareceu. Encontrámos a casa encerrada quando para lá nos dirigimos à pressa, depois de eu ler uma sms enviada por ele, do seu telemóvel, que dizia simplesmente: «Não me procurem».
A vida continuou e fui esquecendo o amigo, ou quase amigo. Vinte anos passaram, envelheci, agora reflectia mais vezes sobre a certeza elementar de que só tinha uma vida para viver.
Nos inícios de um Outono cada vez mais parecido com os outros, recebi uma carta remetida por alguém que já esquecera. Muito brevemente relatava a história seguinte:
«Sou aquele que ambicionava encontrar o outro lado do mundo. Tinha trinta anos então, tenho hoje cinquenta. Levei comigo apenas o que leva consigo um nómada: uma mochila. Dividi a viagem em etapas de quinhentos quilómetros. Durante a primeira encontrei gentes a fazerem o mesmo que aquelas que eu conhecera na minha terra natal, umas paupérrimas, outras riquíssimas. Na segunda, a diferença era mínima, se bem que melhor distribuída a riqueza e o conforto. Na terceira, fui assaltado. Na quarta, encarcerado. Na quinta, escravizado e sodomizado. Na sexta, receberam-me como mártir, converteram-me a uma religião e enviaram-me à força para uma missão suicida. Logo que pude libertei-me da carga explosiva e percorri mais quinhentos quilómetros. Para sobreviver ensinei cinco anos a fio matemática e literatura a rapazes e raparigas que não queriam saber disso para nada, as raparigas metiam-se comigo, os rapazes metiam-se com elas. Peguei na mochila e calcorreei mais quinhentos quilómetros. Como pouca gente se mostrava generosa e hospitaleira para com um desempregado vagabundo, tive de recorrer a pequenos biscates: aliciaram-me primeiro para um gang de narcotraficantes, a seguir para outro gang, este já internacional, que traficava «carne branca», na realidade, tanto branca como escura. Um ano depois evadi-me, tendo, para isso, de liquidar a tiro dois capangas. Percorri mais quinhentos quilómetros. Fiz-me cantor de jazz num bar de fraca reputação. Abandonei a via artística depois de uma linda mulher por quem me apaixonara me ter roubado o maço de dólares que eu guardava debaixo do colchão. Contudo, nunca desesperei.
Certo dia de primavera, deambulava eu num deserto, deparei-me com dois indivíduos e um poço. Um era muito idoso, o outro, muito jovem. Deixaram-me saciar a sede. Perguntaram-me para onde queria ir. Respondi-lhes: para o outro lado do mundo. Porquê? Questionaram sem surpresa nos rostos tisnados pelo sol. Porque é completamente diferente, para melhor evidentemente! Retorqui com aquela convicção que me conduzira durante anos e milhares de quilómetros. Pois então, disse o mais velho, basta subires aquela montanha e vê-lo-ás do outro lado! Eu nunca o fiz porque esperei demasiado e agora estou velho; este, aqui, ainda é novo demais… Então como sabeis que do outro lado é o outro lado do mundo? Porque acreditamos, dezenas de gerações sucessivas sempre nos garantiram tal facto, e o velho embrulhou umas tâmaras num lenço colorido e deu-mas.
Repousado e saciado, ataquei a montanha. No terceiro dia cheguei ao topo: Olhei para o outro lado. Vi ao longe, na base da montanha, uns pontos escuros sob o sol ardente. Desci quase a correr, um dia e uma noite bastaram-me para chegar quase ao sopé. A um quilómetro de distância os pontos pretos desenhavam-se nitidamente na paisagem.
Foi então que me vi a mim mesmo a conversar com um velho e um jovem, à sombra de um poço.
Eis a minha história. Já não possuo nem meios nem forças para regressar. Fico por aqui, deste lado do mundo, tanto vale aqui como acolá.»