Translate

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Os burros

No tempo em que os animais falavam, um burro dizia para outro:
- De facto, efectivamente, considerando na medida em que, é um supônhamos, realmente somos muito burros!
- Que queres dizer, amigão, somos ainda mais burros do que já somos, é?
- Pois é, mudámos alguma coisa para que tudo fique na mesma! Não é ser burro, hem?
- Hum...realmente, pensando bem...Nunca deixámos de ser burros. Que fazer?
- Beber uma cervejola. Já não me lembro quantas vezes fomos o que somos, tenho a memória curta.
- Pois, com uma memória de caca como é que me hei lembrar quem fui e o que fiz ontem? Vamos mas é emborcar umas imperiais!
- Olé, se não vamos!

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O corpo das palavras

Quando se observa a expressão corporal dos felídeos ou dos canídeos domesticados em que o instinto se sobrepõe ao condicionamento, nos sinais que emitem aquando dos estímulos da fome, dos comportamentos de caça ou de apetite sexual, da cauda levantada, da cauda encolhida em sinal de submissão ou medo, do soprar gutural que lembra os lagartos (idêntico aos de aves domésticas, como a caturra); quando se observam os dentes cerrados, os gritos guturais, os punhos em garra fechados, a mão, pelo conrário, aberta ou ao longo do corpo, as pupilas, os movimentos naturais dos corpos no acto sexual, as reacções de fome ou sede, o ruir das convenções e do auto controlo social, os lapsus, os tiques, a equivocidade das palavras, os olhos a contrariar o que se diz ou os sorrisos amarelos, vejo bem como o instinto está vivo e latente, como a superfície é a profundidade, e como alguma profundidade é sem-fundo.

sábado, 26 de setembro de 2009

NA HORA DA NOSSA MORTE (cont.)

Diário de Marta 2




Fui jantar a casa dos meus pais, acabei por aceitar o convite. Preferia estar sozinha, mas era insuportável atender a mãe ao telemóvel constantemente e as desculpas já soavam a mentiras. Odiava mentir. A mãe também, mas a frontalidade dela era diferente da minha, era incómoda, tutelar, invasora, inoportuna, chegava a ser opressiva, sem respeito, sem compreender a necessidade de isolamento da filha.


Comemos peixe, obrigatório naquela casa. Mastigava com a boca seca pequenas tiras do peixe-espada, lembrando-me do apetite que sempre tivera noutros tempos. Observava o cabelo pintado da mãe, que negava a idade, a sua boca rodeada de rugas abrindo-se e cerrando-se conforme falava e comia. Observava e temia que em qualquer momento a mãe voltasse a falar da Gisela. Percebia nas reticências e insinuações a tentação, lançava-lhe um olhar fixo para a conter. A mãe no falar era desbocada, sempre fora, agora com a velhice acentuava o gosto e o vício. Quando trabalhava fora de casa, era conhecida por esse pendor. Verdade se diga que não era de fofoquices e, por isso, tinha sempre amigas no trabalho, nas pequenas escolas onde leccionou dezenas de anos, os pais das crianças gostavam dela. Era a minha mãe, com os seus defeitos e as suas qualidades melhores que os defeitos. Porém, actualmente, não tenho paciência para ela, para o pai um pouco mais, é reservado, silencioso, discreto. Um casal com quarenta anos de vida comum, completa-se, de outro modo não sobreviveria.


Não quero pensar na minha filha, tão pequena, tão mimosa, morta e enterrada, contudo ela está aqui, ao meu lado, provocando a avô com as suas traquinices, fingindo não querer comer para que ela lhe prometa o que lhe apetecer pedir por brincadeira, um jogo em que a idosa cai sempre na armadilha tecida por uma petiz.


Quando estou para terminar a sobremesa, que como com algum gosto, talvez precise de açúcares, tocam os primeiros acordes da Ode Triunfal no telemóvel. Atendo. É o Rogério. Médico, meu colega no serviço, somos amigos mas ele parece desejar mais do que isso. Não possuo nada para lhe dar, nem desejo, nem ternura. Mesmo os esforços que ele faz para me distrair maçam-me. Desistiu de me convidar para discotecas e outros locais ruidosos, ficou-se pelo convite para cinema, ainda assim com uma condição prévia: que não tenha mortes. Regra difícil de respeitar nos filmes de agora. Tarantino ainda suporto, as mortes são teatrais, coreografadas e as histórias são soberbas e irónicas. O filme errado que eu não devia ter visto, foi «Expiação», baseado no livro homónimo de Ian McEwan, o mesmo escritor que me arrasou com «A criança no tempo». Evito, no entanto nem sempre consigo tão premente é o meu gosto pela leitura, até para me distrair, ocupar-me nas horas infindáveis que passo sozinha, isolada, com o gato e a caturra na gaiola.


Digo ao Rogério que me dói a cabeça, não estou capaz de sair para parte nenhuma, mas ele insiste, a noite está esplêndida, um saltinho a Santa Cruz, ir e voltar, e a mãe que escuta a conversa e acena com a cabeça e murmura «Diz que sim, diz que sim!».


Quinze minutos depois toca a campainha, entra, cumprimenta os meus pais com desenvoltura, traz a abundante cabeleira que já começa a clarear bem penteada, uma camisa de ganga que lhe fica bem, um sorriso radiante. No hospital não é galanteador para as enfermeiras, pelo menos à minha frente, apesar de algumas serem bem atrevidas; porém, há qualquer coisa nele de sofisticado que o torna um pouco pedante, pouco natural. Ou simplesmente não me sinto disponível.


No automóvel dele, estacionados no redondel ao lado da Havaneza, tenta beijar-me ao fim de meia hora de conversa. Recuso. Definitivamente estragou tudo. Definitivamente talvez nem tanto, mas fico de sobreaviso e estabeleço os limites. Nada disso me interessa. Com ele não, e não vejo que haja outro.


Estamos sentados num banco altaneiro, atas a casa onde viveu João de Barros, o escritor que me deu a conhecer Homero quando era miúda, as escadarias na falécia, a praia, o oceano. Um dos pontos de Santa Cruz que mais frequento nas horas de evasão, quando a infelicidade é insuportável. Estou absorta, ele fala mas não entendo o que ele diz, apenas fixo o mar e escuto-o a deslizar sobre as areias. Subitamente um minúsculo ser aparece iluminado pelo luar, saltitando na espuma, recuando e avançando. Estremeço, a brisa torna-se gelada. Apetece-me descer a escadaria aos gritos «Gisela! Gisela!». O braço dele sobre os meus ombros, desperta-me. Gisela não está ali.


No regresso viemos silenciosos. O acto precipitado e algo vulgar dele despertou-me a lembrança desagradável do meu marido. Do meu ex, digo. Não sei por onde anda, não faço nem quero fazer a mínima ideia. Culpo-o pela morte da Gisela, e isso é um facto que não estou nada predisposta a alterar. Odeio-o e não lhe perdoo. Preferia que ele me fosse indiferente, mas tal seria libertá-lo da responsabilidade na tragédia que vitimou a nossa filha. A minha filha. Nunca foi dele: é estéril, levámos dois anos a concluir que a causa cabia-lhe a ele não a mim, um ano inteiro para Sua Ex. se decidir a aceitar a inseminação artificial. Portanto, Gisela era minha, não dele. E por causa dele, morreu.









Na Hora da Nossa Morte

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

NÓMADAS E SEDENTÁRIOS

Primeiamente fomos caçadores e recolectores nómadas, depois sedentarizámo-nos. Somente depois descobrimos a domesticação e selecção das plantas e, a seguir, a domesticação dos animais. As cidades não surgiram daqui, vieram do antes, quando os sedentários as inventaram com pedras e, depois, lama cozida ao sol. A sedentarização veio para ficar, espalhar-se pelo pelo planeta, nuns continentes mais depressa, noutros mais lentamente. As bolsas nómadas foram reduzindo-se.
Tornámo-nos o que somos, sedentários, ao longo de dezenas de milhar de anos. Com a sedentarização criaram-se leis, regulamentos, para defender a propriedade comunal e a privada, dos inimigos externos e internos.
Sedentários insubmissos atravessaram as civilizações. O nomadismo como utopia da liberdade, da diferença.
Esta utopia atravessa as últimas obras de Gilles Deleuze.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

EXPLICAÇÃO

A fotografia sob o título deste blog foi tirada por mim e se ela consegue exprimir universalmente o sentimento que o título designa - «NOSTALGIA» -, independentemente do lugar concreto, é sorte minha. Na realidade, é uma escadaria que conduz à Praia do Guincho, em Santa Cruz, Torres Vedras, lugar carregado de simbolismo para mim. Que a minha NOSTALGIA se transmita àqueles que nunca lá foram, mas sentem e sabem o que significa.

A toupeira da História

Antecipando-me a objecções, claro que se pode dar, e deve, uma mão-cheia de exemplos que contrariam de algum modo as palavras do comentário «A Decisão». Por exemplo: a revolução operada por Darwin (a maior de todos os tempos) que germinou plenamente no século vinte com a Biologia; a segunda maior revolução, as teorias da relatividade de Einstein e, paralelamente, a Física Quântica, a astrofísica, a astroquímica; a terceira grande Revolução, realizada em 1917, na Rússia, cujo impacto marcou todo o século e ainda se faz e fará sentir. E muitos outros exemplos: na emancipação das mulheres, nos costumes, nas tecnologias...Antigas utopias transformaram-se em realidades. Inclusivamente dou mesmo como garantida a perda da maior absoluta pelo PS do Sócrates.
As duas teses não se excluem mutuamente. Creio que são até um exemplo vivo da unidade de contrários. Quem excluir uma, é um optimista; quem excluir a outra, um pessimista.
Tudo que parece sólido se dissolve no ar. Acredito que sob o solo mais duro, a toupeirinha (não a doninha, como erradamente lhe chamei) vai escavando incansável, porque é da sua estricta necessidade escavar. E esta metáfora de Hegel exprime bem as duas teses contrárias.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

(corrijo: «DECISÃO»)

A DECISÂO

Vejo o gato repetir o mesmo comportamento que ficou registado e pronto para ser reactivado. Semelhante mecanismo noto-o no cão da minha vizinha, nas aves de gaiola e fora dela, nos macacos do zoo e nos outros animais que o National Geographique me mostra e me ensina; releio Darwin no duplo centenário do seu nascimento, na etologia e biologia contemporâneas. Vejo-o nos indivíduos humanos, com os nomes de condicionamento, hábito (ou esse habitus mais complexo e alargado, como queria Bourdieu). Vejo-o nos comportamentos colectivos do consumo e nas técnicas que o provocam. Vejo-o na influência dos meios de comunicação de massa, isto é nos noticiários, e nas sondagens. Vejo-o nas reacções dos populares aquando das campanhas eleitorais. A aptidão para o comportamento condicionado já lá está e sempre esteve, quando foi estudado cientificamente, converteu-se numa técnica mais eficiente e lucrativa do que jamais o fora. Esta indústria da política e da cultura é, assim, o traço mais forte dos séculos vinte e vinte e um.
 O problema do livre arbítrio é um pseudo enigma.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Mário Benedetti

De que se ri?



(serei curioso?)



Numa perfeita


foto do jornal


senhor ministro


do impossível






vi enlevado


e eufórico


e perdido de riso


o seu rosto simples






serei curioso


senhor ministro


de que se ri?


de que se ri?






da sua janela


vê-se a praia


mas ignoram-se


os bairros de lata






têm seus filhos


olhos de mando


mas outros têm


o olhar triste






aqui na rua


acontecem coisas


que nem sequer


se podem dizer






os estudantes


e os trabalhadores


põem os pontos


nos ís






por isso digo


senhor ministro


de que se ri?


de que se ri?






O senhor conhece


melhor que ninguém


a lei amarga


de estes países














os senhores são duros


com a nossa gente


por quê com os outros


são todo servis?






porque alienam


o património


enquanto o gringo


nos cobra o triplo?






porque atraiçoam


os senhores e os outros


os bajuladores


e os senis?






por isso digo


senhor ministro


de que se ri?


de que se ri?






aqui na rua


os seus guardas matam


e aqueles que morrem


são gente humilde






e os que ficam


chorando de raiva


por certo pensam


na desforra






algures na prisão


os seus homens fazem


sofrer o homem


e isso não serve






além do mais


o senhor é o mastro


principal de um barco


que vai a pique






serei curioso


senhor ministro


de que se ri?


de que se ri?







quarta-feira, 16 de setembro de 2009

AS FILOSOFIAS DA DIFERENÇA

O conceito de «Diferença» é, porventura, o mais comum na filosofia continental, sobretudo de origem francesa, e, portanto, o mais nuclear. Deve-se particularmente a Foucault, Derrida, Deleuze, e não é de excluir Lyotard. Cada um destes filósfos trabalhou o conceito de maneiras diversas, garantindo a sua própria originalidade em um legado perseguido por legiões de adeptos que tanto se degladiam como se confundem. Tenho para mim que aquilo que mais me aproxima deles é o que tenho chamado «Crítica da Razão Consensual», ainda que a apoie em certos pressupostos bem diferentes. Onde me interrogo e julgo não encontrar resposta satisfatória nesses destacados filósofos (quase todos já falecidos) é sobre o problema incontornável da mudança, isto é, O que é o Novo? Qual a diferença entre determinadas mudanças, umas «superficiais», outras radicais ou substanciais? Se excluem o «negativo» (a negatividade), como, por ex. Gilles Deleuze, como se processa a transformação? Não será o estilo de vida «nómada», a singularidade, a multiplicidade (conceitos caros a Deleuze), uma reposição do anarquismo inconsequente, isto é, fatalmente aristocrático, elitista, individualista, egotista (restaurando o Eu que todos eles apostrofam), narcisista (muito do agrado dos pós-modernistas), numa palavra: «estético»? Que alternativas propõem, Deleuze p. ex. quando classifica a sociedade capitalista como limite de qualquer sociedade?
A Crítica da Razão Consensual (do senso comum, do pensamento único, da Identidade, do Mesmo, do Uno, enfim, do idealismo), segundo a minha fórmula, integra o papel da dialéctica objectiva e concreta, práxica, do negativo ou da Contradição, dessa «doninha» que escava o solo do capitalismo.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Homem que olha o céu

Enquanto passa a estrela fugaz


Junto neste desejo instantâneo

montões de desejos profundos e prioritários

por exemplo que a dor não me apague a raiva

que a alegria não desarme o amor

que os assassinos do povo devorem

seus molares caninos e incisivos

e mordam judiciosamente o próprio fígado

que as grades das prisões

se transformem em açúcar ou se curvem de piedade

e os meus irmãos possam fazer de novo

amor e a revolução

que quando enfrentarmos o implacável espelho

não o amaldiçoemos nem nos amaldiçoemos

que os justos avancem

ainda que imperfeitos e feridos

que avancem obstinados como castores

solidários como abelhas

aguerridos como jaguares

e empunhem todos os seus nãos

para instalar a grande afirmação

que a morte perca a sua asquerosa pontualidade

que quando o coração saia do peito

possa encontrar o caminho de regresso

que a morte perca a sua asquerosa

e brutal pontualidade

mas se chegar pontual não nos agarre

mortos de vergonha

que o ar volte a ser respirável e de todos

e que tu mocinha avances alegre e dolorida

pondo nos teus olhos a alma

e a tua mão na minha mão



e nada mais

porque o céu já está turvo novamente

e sem estrelas

com helicópteros e sem deus.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Mario Benedetti

HOMEM QUE OLHA O CÉU


Enquanto passa a estrela fugaz
Junto neste desejo instantâneo
montões de desejos profundos e prioritários
por exemplo que a dor não me apague a raiva
que a alegria não desarme o amor
que os assassinos do povo devorem
seus molares caninos e incisivos
e mordam judiciosamente o próprio fígado
que as grades das prisões
se transformem em açúcar ou se curvem de piedade
e os meus irmãos possam fazer de novo
amor e a revolução
que quando enfrentarmos o implacável espelho
não o amaldiçoemos nem nos amaldiçoemos
que os justos avancem
ainda que imperfeitos e feridos
que avancem obstinados como castores
solidários como abelhas
aguerridos como jaguares
e empunhem todos os seus nãos
para instalar a grande afirmação
que a morte perca a sua asquerosa pontualidade
que quando o coração saia do peito
possa encontrar o caminho de regresso
que a morte perca a sua asquerosa
e brutal pontualidade
mas se chegar pontual não nos agarre
mortos de vergonha
que o ar volte a ser respirável e de todos
e que tu mocinha avances alegre e dolorida
pondo nos teus olhos a alma
e a tua mão na minha mão

e nada mais
porque o céu já está turvo novamente
e sem estrelas
com helicópteros e sem deus.

Mário Benedetti
HOMBRE QUE MIRA EL CIELO

Mientras pasa la estrella fugaz
acopio en este deseo instantáneo
montones de deseos hondos y prioritarios
por ejemplo que el dolor no me apague la rabia
que la alegría no desarme mi amor
que los asesinos del pueblo se traguen
sus molares caninos e incisivos
y se muerdan juiciosamente el hígado
que los barrotes de las celdas
se vuelvan de azúcar o se curven de piedad
y mis hermanos puedan hacer de nuevo
el amor y revolución
que cuando enfrentemos el implacable espejo
no maldigamos ni nos maldigamos
que los justos avancen
aunque estén imperfectos y heridos
que avancen porfiados como castores
solidarios como abejas
aguerridos como jaguares
y empuñen todos sus noes
para instalar la gran afirmación
que la muerte pierda su asquerosa puntualidad
que cuando el corazón se salga del pecho
pueda encontrar el camino de regreso
que la muerte pierda su asquerosa
y brutal puntualidad
pero si llega puntual no nos agarre
muertos de vergüenza
que el aire vuelva a ser respirable y de todos
y que vos muchachita sigas alegre y dolorida
poniendo en tus ojos el alma
y tu mano en mi mano

y nada más
porque el cielo ya está de nuevo torvo
y sin estrellas
con helicóptero y sin dios.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

AS CEREJAS DA MENINA

«Só como cerejas quando a minha empregada tira os caroços por mim», Carolina Patrocínio, apresentadora de TV e mandatária para a juventude do Partido Socialista, em entrevista à SIC

A boca da empregada Rosália inicia o movimento de sucção. Rosália tem quarenta anos, empregada doméstica desde os quinze, tirou a 3ªclasse da primária que já esqueceu, guarda com uma memória de elefante todos os dias da sua vida, sempre muito parecidos, a governar casas alheias e a cuidar de meninos que não os seus, pois nunca os teve. Conserva os seios fartos, uma boca carnuda e,nos olhos, sob a docilidade obediente, uma indefinida e tenaz tristeza. Faz que engole a cereja, mas não engole: chupa, amolece-a com a língua habilmente de modo a que não amoleça demasiado, trinca-a com pequena mas rápida dentada, solta com a língua o caroço, cospe-o com um único sopro para a palma da mão, extrai da boca a cereja intacta com um guardanapo de papel na mão esquerda. Repete a operação as vezes necessárias até que uma mão cheia não baste. A menina Carolina é insaciável. Sentada em frente do computador, come da mão da empregada. No ecrâ alinha com dificuldade meia dúzia de frases retumbantes para um discurso de campanha.
A Rosália pensa na família que gostaria de ter, a sua, e que não tem: um marido a apalpar-lhe os peitos, a comer-lhe cerejas na sua pessoalíssima boca carnuda e infarta, uma menina no pátio a saltar à corda.
«Ai, credo! Esta estava chupada demais, ó Rosália!». A menina Carolina não quer estragar os dentes alvíssimos, os lábios sensualíssimos, a língua exigentíssima. Quando declamar o discurso de meia dúzia de elogios ao Engenheiro Sócrates e sua excelentíssima governação, sob os holofotes, sob as bandeirolas, desfrutará da glória, com a barriguinha cheia de cerejas cuspidas pela Rosália.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Na Hora da Nossa Morte (novela)

Diário de Carlos. 1

Pensamos que as coisas sucedem porque assim as decidimos, escolhemos, por livre arbítrio. Porém, um dia sem darmos conta do porquê, olhamos à nossa volta e tudo que vemos nada nos pertence, a cidade em que vivemos, trabalhamos, respiramos, não é nossa, nem o país, nem o mundo. Estamos sós. Com a nossa memória.
Calcorreámos bem mais de trinta quilómetros, quarenta anos decorridos a memória atraiçoa, exagera ou minimiza, então, sobretudo, quando somos petizes os percursos parecem-nos incomensuráveis, intermináveis, na verdade, com toda a certeza, aquela viagem a pé por montes e mais montes desde a pequena aldeia portuguesa para o outro lado, a Espanha, Galiza, tornou-se emblemática, o meu pai e eu, só nós dois, a pisar o restolho, a esfolar os sapatos nas lascas aguçadas do granito transmontano, não recordo queixumes, a força que eu tomava como hercúlea do meu pai e a energia indomável do meu corpo e do meu carácter, a bater nos arbustos com uma giesta em flor, agora é sempre a descer, incitava-me a sua voz, severa para outros, doce para mim, agora sempre a subir, e lá íamos de peito feito à aragem seca daquelas terras que deus esquecera. Nunca te contei esta aventura, tantas foram as que não sabes, falávamos de tudo e ficou o mais íntimo por contar, fragmentos de uma vida, da nossa formação, tu contaste-me mais de ti do que eu, de repente a propósito ou sem propósito, relatavas um episódio da tua infância, desse período tinhas gosto em contar, da adolescência bem menos, aqui seleccionavas, racionalizavas, cautelosamente.
Se nos recordássemos de todos os dias, dias e horas e noites sonâmbulas, vigilantes, o filme das nossas vidas apresentava-se inteiro e contínuo, como se bastasse pressionar um telecomando e, mesmo assim, um filme ficcionado. Não possuímos tamanha capacidade. No meu caso esqueci uma boa parte da minha vida. Não apenas o que não me convém lembrar, mas o que me convinha de todo.
Recordo essa viagem de não sei quantas horas quando apertado pelo aguilhão da fome entrámos em Espanha e desembocámos na rua principal da vila galega, para comprar um par de calças, é verdade, para o meu pai me oferecer o meu primeiro par de calças compridas, usávamos sempre calções, fosse verão ou inverno, quando éramos garotinhos, com uma abertura na juntura das nádegas, acredita, é quase do teu tempo, mas tu vivias na grande cidade, ou muito provavelmente não recordas, és mais nova, digo: eras mais nova; pois, foi exactamente isso, umas calças cinzentas, o meu pai só me perguntou «Gostas?» sem que parecesse decidir-se por outras se a minha opinião fosse contrária. Bom homem, bom pai, mas decidido. Exibi-me com o par de calças novo, as primeiras, já o disse, no cinema da cidade de Chaves, todo pinoca, disfarçado de rapaz crescido, o mais sério semblante a condizer, com os meus sete anos a brilhar ingénuos nuns olhos castanhos, a devorar o primeiro filme, «Pinóquio», do Walt Disney e a sair para a rua com o coração a bater forte, a cabeça cheia de fantasias.
Era um embrião do que sou, do que me tornei, um rizoma, o esboço do meu temperamento simultaneamente fantasista e prático. Quando me conheceste o que viste em mim? Para além do físico, quero dizer. Falaste nisso muitas vezes. Disseste «Vi um rapaz decidido, todo prático, excelente nas matemáticas e que me oferecia uns versos inspirados», disseste tu. Dizias tu.
Diário de Carlos. 2

Quando a tua doença se declarou, quando todas as tentativas de cura se esgotavam, uma após outra, os teus cabelos a embranquecerem da noite para o dia, e depois a caírem em farrapos, tu encaraste a morte nos olhos e eu encarei a minha vida, passada e futura, como uma infinita tristeza. Não fui capaz de um único pensamento positivo. Durante a tua doença terminal e durante estes dois anos da tua ausência, nenhuma esperança, nenhuma alegria me visitou. Quase catorze anos de vida em comum, tornaram-nos cúmplices, tão próximos e às vezes tão previsíveis e semelhantes, que todas as minhas fugas hão de ter aí a sua explicação. E as tuas.
Estou aqui, à tua beira. Vejo-te definhar cada dia que passa, em cada visita diária. Abandono o trabalho a meio. Vale-me a antiguidade, que é um posto, e uma equipa solidária. Nos primeiros tempos da eclosão da tua doença choravas muito, comigo e sem mim, vulnerável, impotente para admitires o irremediável, por vezes a esperança nascia no teu ânimo como um clarão, um dia de sol, retomavas os teus projectos com uma vontade que me contagiava, cheguei a convencer-me de que a cura era possível, ter pensamentos positivos, esperança, dizem, cura mais do que os químicos, mas não, contigo não foi possível o milagre da mente.
Estou aqui e observo as pálpebras cerradas dos teus olhos que já foram bonitos, brilhantes, castanhos. Já foram quentes, iluminados pela tua inteligência arguta. Governavas a galeria de artes sem que o Bártolo conseguisse acompanhar a velocidade do teu raciocínio, dos teus argumentos a favor ou contra este ou aquele artista, esta ou aquela obra. Ele entrava com o capital, tu com a tua sagacidade. Gorducho, com rosto de bebé, mas fino e calculista, o Bártolo.
O Gonçalves ao telefone,” Quando é que começamos a pôrra da ponte?”. Um dia destes. Trago-a na cabeça toda acabadinha, mas não sai para o computador, os cálculos estão prontos. Falta a maqueta, pôrra!, pois, ok, está toda na cabeça, falta pouco. Pouco?? Achas pouco??
A palavra «merda» perfila-se prontinha para ser largada. Este gajo tem razão mas não deixa de ser o que é: um enorme chatarrão. Tudo pronto, a horas, é o prestígio da empresa, é o Tribunal de Contas, é o caraças. Tem razão o tipo. A ponte está prontinha, é só sair cá para fora, como Vénus do Oceano. Elegante como Vénus, apetecível como Vénus, provocante, desejosa de ser atravessada, penetrada, com os seus dois arcos inovadores, duas espirais, aparentemente frágil mas bem segura, ao mesmo tempo aberta e fechada, transparente e enigmática. As outras pontes que ajudei a desenhar ficarão no olvido, ultrapassadas por este projecto de uma vida, da minha, talvez eu morra, desapareça, perdurará como um testamento. Se o Gonçalves entretanto não correr comigo. A minha cabeça não consegue produzir outros projectos senão este. Cheia deste, vazia para tudo o mais. Vazia.

Diário de Marta.1

O cheiro da doença e da morte enjoa, como o aroma fétido de um mar morto. Combate aquele veneno insidioso que a invade nestas noites na Urgência. Gisela não anda aqui. Gisela não pode andar aqui. As crianças dormem, ou choram, noutra sala. Gisela esteve lá, não está mais. Não quero deixar-me prender pelas algemas da memória. O turno nunca mais chega ao fim. Os velhos chamam a toda a hora, cheiram mal e queixam-se de tudo. Chegam à beira da morte, trazem o odor da morte, acabam aqui ou noutro lado. Resmungam, tossem, tossem de propósito, arfam como leões solitários e moribundos. Quando pela manhã regressar a casa, Gisela não estará à minha espera. Tem – porque disse tem?-, de ir para a creche, às vezes não a levo, não a levava, saia do turno, ficávamos as duas aconchegadas na cama, a empregada doméstica é que a fazia levantar, a contragosto, ‘Vamos menina! Até lhe faz mal tanta cama! Deixe a mamã descansar, vá!’
Não tenho sono. No tempo da Gisela andava sempre cheia de sono. Agora que precisava de dormir, não durmo. Dormir dois, três dias, sem parar. Reabrir os olhos e escutar a minha filha na sala a fazer traquinices, a meter-se com a empregada, ‘Menina, então? Deixe a Ermelinda trabalhar!’
Não quero pensar nisso, mas penso, o meu corpo pensa, a sua mente não quer. Cerro os olhos, mal recostada numa cadeira de ferro pintada de branco não durmo um minuto sequer. Deixo-me vaguear, evitando fixar-me em imagens dolorosas. Os turnos são intermináveis, um espaço e um tempo de tortura. Quando batem à porta «Doutora, mais um!», levanto-me mecanicamente, observo o paciente, dou as ordens correctas, examino, prescrevo, mas sem vontade própria, como se andasse e agisse por instinto. Esqueço os nomes dos doentes. Escuto as queixas, mas evito as respostas. Não me aproximo. Aproximar-me é envolver-me demasiado. Do corredor, atravancado de camas, vem um choro quase murmurado. Sei de quem é, não atenderei, o que eu tinha de cumprir, já cumpri, não quero que aqueles olhos sofridos a clamar por socorro me acompanhem quando eu regressar a casa, não quero que a morte tenha um rosto.
Pela manhã executo os procedimentos habituais para entregar a vez ao médico que entra ao serviço, coloco o casaco sobre os ombros, não me despeço de ninguém, ouço vagamente despedirem-se de mim, intuo vagamente afecto e respeito nos cumprimentos, aconchegou mais a mim o casaco na manhã fria, dirijo-me ao automóvel e parto.
Não encontro a empregada em casa. É claro, despedi-a há um mês. Não a queria ouvir constantemente a falar na Gisela. Um apartamento vazio é como uma cova. Estendo-me no sofá, já não é o mesmo do tempo em que tinha uma família normal, marido, uma filha, levei tempos infindos a decidir-me permanecer naquela casa, mas como era bem perto do hospital, acabei por resolver-me a remodelá-la, consegui que uma empresa me ficasse com quase tudo em troca de mobílias novas. Tento adormecer. Pensar em coisas boas. Não consigo.
O telemóvel acordou-me. Atendi enquanto olhava para as horas. Dormira sete horas, uma ligeira sensação de fome lembrava-me que não comia uma refeição quente há doze horas pelo menos. «Sim, como é que está, mãe? Diga!». Escutei o discurso incessante dela a admoestar-me por não me alimentar suficientemente, “Assim, a trabalhar tanto e sem comer, que almoçaste? nada, claro, não tinhas nada no frigorífico? Não sabias fornecer-te? Queres uma pizza que eu encomendo? Olha, vem jantar cá, vem!”
Um duche frio para apagar o sonho que o telefonema interrompera. A Gisela na caminha dela a chamar por mim com um sorriso e a boneca preferida na mão… o peito manchado de sangue…

Diário de Carlos.3

Sinto um mau cheiro, a atmosfera está carregada de maus-cheiros. Esta cidade, este país, apodrece. De tanto adiado apodrece. Na indefinição, na indiferença, na estupidez. Cupidez. Pobreza. Avanço e paro, neste trânsito caótico, avanço e paro. Sou um país que avança, faz que avança, e pára. Disfarça-se de rico, desenvolvido, europeu. Sempre adiado. E é o sacana do Gonçalves que não me larga o telemóvel, «O projecto? Quando é que o trazes? Pôrra!». Vai-te lixar, Gonçalves. A minha ponte não se fará às três pancadas. Quero uma ponte tão alvacenta ao sol que irradie a luz como uma tela impressionista, que à noite se ilumine de mil estrelas artificiais. Uma ponte com pés de granito, braços de mármores, cabeça de aço. Quero uma ponte com um jardim suspenso, como na Babilónia. Canteiros com flores de ambos os lados. Com sonoridades: a música de Brukner para quem entra, a de Verdi para quem sai. Não quero apenas pedra e aço: quero madeira, arquivoltas de madeira de carvalho. Uma mistura sábia de passado e de futuro. Tenho tudo na cabeça.
As multidões acotovelam-se como se tivessem um destino. Mas não têm. Ninguém tem aqui, nas ruas, um emprego certo. Dia aos dia os desempregados acumulam-se nas esquinas, nos passeios. A pobreza perdeu a vergonha. Os antigos funcionários de fato e gravata são agora indigentes. Os operários de fato de macaco são agora pedintes. As lojas encerram as portas. Aqui e ali sobram ainda algumas, com a empregada à porta, a fumar com o telemóvel na orelha, a fingir que são muito cortejadas.
As notícias são aterradoras, os esforços do Governo para acalmar são infrutíferos, a propaganda já não resulta, a realidade está nas ruas e nos ecrãs, virtual e real identificam-se, para os jornalistas as más notícias são as boas notícias. Por mais que alguns disfarcem, a soldo do Governo, o alarme está instalado, os pobres são milhões, os quase-pobres são incontáveis. A ameaça do caos e da anarquia insinua-se por entre os interstícios dos poderes difusos, as oposições e os contra-poderes disseminam-se. Revoltas surdas, revoltas ruidosas, manifestações públicas constantes, greves, os empresários - pequenos, médios, grandes - recorrem generalizadamente ao mecanismo do chamado ‘lay-off’, acentuando as contradições do capitalismo: se a regra do Capital é aumentar a jornada de trabalho, agora é diminui-la quando precisam. As encomendas não chegam, as encomendas não se escoam, as dívidas aos fornecedores acumulam-se, os bancos ficam de mãos a abanar.
E quer o Gonçalves a ponte com urgência…antes que o caos o afogue. A fé dele é que o Governo cumpra com as soluções que apregoa para amansar a crise: obras públicas. A verdade é que anda a pedinchar os dinheiros à União. Até para uma ponte de modestas dimensões. Candidata-se a tudo que é programa, mas nem o que lhe dão gasta. A Europa? As notícias do dia são as piores para ela (ou para eles): atentados terroristas abalaram hoje vários países, amanhã chegarão aqui. Atentados sem assinatura, para os quais se inventa imediatamente uma ‘Al-kaida’ que já não existe, se alguma vez existiu, o terrorismo é já interior, europeu, começou nos países mais pobres, do Leste, e já irrompe nas potências do Ocidente, nas praças-fortes, e dos discípulos de Ossama Bin Laden não há vestígios. Que forças estão por detrás não se sabe, provavelmente as polícias, os militares, os grupos da extrema-direita. Não se sabe. Talvez a extrema-direita com a extrema-esquerda, já não seria a primeira vez, é da História.
O lixo amontoa-se. Os trabalhadores estão em greve há dois dias. Cães e gatos vadios esgravatam nos caixotes, de certeza que muitos deles se escapam à fome que os donos lhes dão. Ao cair da noite competem ferozmente com seres humanos, de faces lívidas e esquálidas, fantasmas, monstros de um filme de zombies.
Sim, o sacana do Gonçalves tem razão: é preciso construir a ponte quando antes, que isto está para explodir. Não acredito em paraísos, muito menos naqueles que brotam das ruínas de uma sociedade devastada pela guerra, pela fome, pelo terror. Contudo, a minha ponte é uma utopia. É assim mesmo que eu a quero. Que digam dela que é um sinal de esperança, que, para mim, é um sinal da vontade teimosa que tenho de sobreviver. Altifalantes difundirão permanentemente óperas e sinfonias, palhaços e acrobatas entusiasmarão as crianças que a atravessarem, nos automóveis dos papás ou a pé pela mão deles. Largos passeios permitirão que se passe a pé, para desfrutar do ambiente. A ribeira (porque nem chega a ser rio) há-de correr límpida e cristalina, bandos de patos escolherão aquele habitat acolhedor, nas margens floridas crescerão choupos e olmos.
Sim, é preciso que a ponte se eleve, alvacenta e azul, como a pele e os olhos de uma bela mulher. Com os seus braços sensuais, as suas coxas sedosas, o seu ventre ondulado…A minha ponte é a utopia, e a utopia disfarça-se de mulher.
Depois dela virá o dilúvio. Ela permanecerá.

(cont.)

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Viagens Extraordinárias, 2º e 3º cap., cont.

A máquina do Estado é constituída por uma imperatriz com poucos poderes ( é mais um resquício esbatido do antigo poder da aristocracia, derrotada pelo povo), por um Senado ( utilizo aquelas designações que me parecem mais próximas da verdade) cuja maioria é composta por mulheres, representando as diversas cidades ( única organização administrativa), por tribunais e por um corpo de “vigilantes”, desarmados, que velam pela segurança pública. A imperatriz reside numa casa particular que não se distingue das demais, excepto no facto de se encontrar mais vigiada. Grande e belo é o edifício do Senado, localizado na capital sobre uma formosa colina. Em todo o tempo em que lá estivemos, não chegámos a pôr os olhos em cima da imperatriz, provavelmente por ser muito idosa, recebendo dela apenas alguns recados de circunstância através de mensageiros muito bem engalanados.
Durante o longo período de estagnação que suportaram antes, limitaram-se ao estritamente necessário para sobreviverem; destruída toda a organização antiga, falida a economia, ameaçados pelas epidemias, dispersaram-se pelas zonas costeiras, para evitarem a propagação das doenças, tornando-se pouco a pouco ferozmente individualistas, as mulheres principalmente, visto que dispensam os homens se o quiserem. Agarraram-se às courelas ou aos barcos que sobraram da hecatombe. Deste modo conservam ainda a pequena propriedade, a habitação individual. Quando a ameaça desapareceu e as cidades recomeçaram a erguer-se , decidiram evitar os custos medonhos do modo de vida antigo. Estabeleceram um pacto entre eles, através de grandes concílios, algo a que poderíamos chamar de “contrato”, cujas cláusulas são mais ou menos as seguintes:
“ Art.º 1º - O contrato social que os cidadãos de Alkómos decidiram estabelecer, através de consulta directa, é uma forma de associação que protegerá de todo e qualquer tipo de força a pessoa e os bens de cada associado.
Art.º 2º - A propriedade dos cidadãos deve ser tão pequena e tão fraca quanto possível; o Estado vigiará para que os limites não sejam ultrapassados. Os cidadãos, porém, podem, sempre que o entenderem, colher e recolher em comum os frutos do seu trabalho, mantendo-se porém intacta a propriedade individual. O Estado representa a vontade geral; aquele, todavia, não pode expropriar os bens dos cidadãos, excepto quando algum não respeitar o contrato social que jurou. No caso dos cidadãos se unirem para o fim específico acima definido, não podem utilizar, pela força ou por compra, o trabalho de cidadãos que não pertençam à união específica referida.
Art.º 3º - Ficam estabelecidos pela lei os limites impostos à dimensão das oficinas e à quantidade dos combustíveis que consomem. As oficinas ficam sujeitas ao regime específico das uniões agrícolas e piscatórias, para efeitos de trabalho empregue. A finalidade deste contrato é impedir que haja gente opulenta e gente andrajosa e dominada.
Art.º 4º - O contrato não prevê a necessidade de forças armadas permanentes de qualquer género. É a própria comunidade que se levanta em armas quando necessário e que se constitui como milícia.
Art. 5º - O órgão supremo, o Senado, não admitirá jamais senadores, ou outros cargos, de carácter vitalício. O dito senado, composto por delegados das cidades com mandato de um ano não prorrogável, obriga-se a consultar periodicamente todos os cidadãos através de referendos. Os tribunais deverão punir com prioridade absoluta qualquer senador que transgrida as cláusulas deste contrato. A imperatriz, com direito a sucessão dinástica, não detém poder algum sobre o Senado e os tribunais, cingindo-se aos deveres honoríficos de representar nela o respeito devido às cidadãs do sexo feminino.
Art. º 6º - A administração do Estado não pratica nenhuma confissão religiosa, e a formação de uma crença religiosa particular com poderes políticos, culturais e territoriais, não será permitida.
Art.º 7º - É ao Senado que incumbe escolher o governo e a restante administração do Estado, excepto os tribunais cujos juizes são eleitos pelos cidadãos da cidade em consulta directa. Os senadores são eleitos por sufrágio universal; dos candidatos é eleito aquele que tiver maior número de votos. Os cidadãos para a votação determinam-se, em primeiro lugar, pelo grau de satisfação que lhes causar aquele projecto e aquele candidato, que melhor resistirem às sátiras levadas ao palco no decurso do período de campanha eleitoral consignado pela lei.
Art.º 7º - Não existe coisa alguma intocável pelo teatro satírico, ideias, pessoas, instituições. A sátira é elevada à categoria de modalidade artística suprema, merecendo todo o apoio do Estado, a quem cabe o sustento de autores e actores. O melhor autor será consagrado como herói de Alkómos durante o período consignado entre dois concursos. O herói e os melhores actores, quando morrem, são enterrados na colina do Panteão nacional, em Liskómos.
Art.º 8º - Todo o cidadão que reagir com brutalidade a um sátiro será punido nos termos da lei.
Art.º 9º - Tudo o mais que não for expressamente proibido é permitido, nos termos deste contrato e conforme as consultas directas periódicas aos cidadãos de Alkómos.
Art.º 10º - Este contrato não pode ser revisto no todo ou em parte excepto por vontade expressa das assembleias populares.”


II. A “Ameríndia”


Ao fim de algum tempo resolvemos viajar até à outra banda, à “Ameríndia, ou terra dos “roxos”. A nossa decisão foi compreendida pelos nossos hospedeiros, mas avisaram-nos de alguns cuidados a tomar. Assim sendo, precavemo-nos : a nave-mãe ficou em alerta máximo para nos prestar socorro imediato, com ordens para disparar se necessário.
Partimos numa fria madrugada. A cápsula atravessou vagarosamente as duas margens, sobrevoando numerosas ilhas, a maioria de pequenas dimensões, abrigo temporário de pescadores, excepto uma que possui extensão suficiente para nela habitarem cerca de um milhão de aborígenes, sendo mais de um terço “ameríndios” e o restante “iberos”. Estacionámos por um dia deles, ou seja dois dos nossos ( servia-nos de preâmbulo para o que quer que viéssemos a encontrar no continente). Esse tempo bastou para que nos apercebêssemos das diferenças que começavam a cavar-se entre aqueles povos, ou etnias. Os “iberos” continuavam ali a conduzirem-se como na terra de origem; os outros, pelo contrário, labutavam todo o dia e dividiam-no em períodos para rezas, afluindo em grandes procissões aos templos ; construíam as suas casas comuns sempre viradas na direcção da cidade santa , caminhavam pelas ruas com o livro sagrado na mão, parando constantemente para o lerem em silêncio ou declamarem-no; dedicavam-se principalmente ao comércio, muito embora o dinheiro seja entre eles proibido, excepto as tais fichas que depositam em bancos, emprestam-nas com juros (sobre outras fichas), vendem-nas no mercado negro, onde também especulam sobre tudo e mais alguma coisa. Não usufruímos do mínimo de simpatia, as mulheres escondiam os rostos em espessos véus negros e apenas um ou outro carregador ou moço de fretes, nos prestava alguma atenção disfarçada.
Chegados ao continente, estas características repetiam-se : as “mulheres” vestem-se da cabeça aos pés, sendo as cores escuras as mais comuns, e usam sob os rostos uma espécie de lenços ; apesar disso, muitas exibem três olhos negros muitíssimo belos e os pés nus em sandálias de tiras tornam-nas bastante apetecíveis. Ninguém nos recebeu, nem com honras nem sem elas. Tivemos de nos desenvencilhar sozinhos. O pior, no início porque aconteceriam depois coisas mais graves, foi com o alojamento: nas casas comuns, habitadas por numerosas famílias, nessas não nos deixaram penetrar ; por fim, servimo-nos das nossas tendas portáteis. Os transportes eram insuficientes para uma população que crescia a olhos vistos: atingira já os vinte milhões, partindo de um milhão, num período de apenas trinta anos! A causa desta elevadíssima taxa demográfica encontrava-se numa ruptura com os padrões dos “iberos”: aqui era estritamente proibido o sexo sem reprodução, as mulheres estéreis eram muito mal vistas, e a formação de famílias obrigatória, “conforme a vontade de Deus”, segundo dizem; de facto, não vimos par algum praticar o coito às claras, como na “Ibéria” ; seria absurdamente nas casas comuns? Viemos a descobrir que existiam locais reservados para esse efeito, nos quais os casais, obrigatoriamente casados pelos ritos religiosos, se esforçavam, a gosto ou contragosto, para “oferecerem filhos ao Senhor”. Vimos mulheres serem açoitadas sob a acusação de prostituição, o que significava que as desgraçadas haviam mantido relações extraconjugais.
Despertávamos, nas nossas tendas, geralmente cercados por bandos de garotos que, a princípio receosos, pouco a pouco nos incomodavam deveras, tentando roubar-nos peças do equipamento e até mesmo as próprias tendas. Éramos obrigados a desmontá-las todos os dias ( ou seja, ao fim de cada oito horas, pois conservávamos os horários terrestres: 12 horas diurnas e oito nocturnas, embora a noite deles se seguisse a quarenta horas diurnas das nossas) e a transportá-las connosco para todo o lado. Escondíamos a cápsula em locais diferentes, completamente cerrada, isto é, apenas dois de nós poderiam abri-la utilizando as vozes respectivas. No seu interior guardávamos as armas mais pesadas, levando connosco somente as micro armas de laser, que ocultámos no tacão das botas, assim como micro-comunicadores, disfarçados em botão das roupas. O seguro morreu de velho e foi isto que nos auxiliou.
Nos primeiros dias a população não nos incomodou particularmente, votando-nos mesmo a um certo desprezo, excepto os garotos e as mulheres. Desprezo que parecia disfarçar o medo, mas não por nós.
Vimos edifícios gigantescos de pedra nua, em forma de pirâmides, uns tantos de faces lisas e outros tantos com uma plataforma no topo, para a qual se subia por uma elevadíssima escadaria rude talhada no granito. Vimos torres esguias, de tijolo cru, com mais de cinquenta metros de altura, do cimo das quais se propagavam a toda a hora súplicas, berros e lamentos. Vimos esculturas monumentais, em forma de cone, aí para cima de trinta metros, levantadas sobre tudo que fosse colina, penhasco ou monte. Vimos povoações constituídas por três ou quatro extensos armazéns cobertos de colmo, dos quais saíam cortejos infindáveis de indivíduos que lá pernoitavam, mas vimos também estupendos palácios, às vezes geminados com templos austeros. As mulheres mantinham-se nas proximidades de choupanas paupérrimas, cuidando das proles numerosas, carreando águas em bilhas, lavando as roupas em charcos, cardando a lã, fiando, tecendo, parlando sem cessar, ou interrompendo amiúde para rezar.
Vimos as oficinas de olaria, de metais, de mármores, e muitas outras, pequenas, inumeráveis, onde indivíduos esquálidos seminus trabalhavam bem mais de doze horas, coadjuvados por crianças de ambos os sexos; tudo miserável, primitivo, manual, sujo. Quando passeávamos no litoral acercámo-nos de uma praia, infecta, onde milhares de criaturas desmontavam pedaço por pedaço enormes navios que ali tinham dado à costa; nas enseadas, outras filas, semelhantes a formigas, dedicavam-se aos trabalhos da pesca, puxando os barcos para terra a pulso com cordas ou por meio de juntas de animais poderosos, que classificaríamos de “bois” não fosse terem a forma das nossas baleias mas com patas. Vimos como eram profundas as desigualdades sociais : por exemplo, os “desmontadores” de navios constituíam uma massa de autênticos escravos famélicos, dominados por um punhado de comanditas gordos e déspotas, que os vigiavam do alto das falésias, e os pescadores diferenciavam-se conforme os seus barcos eram puxados a pulso ou por meio das baleias-boi.
Ao quarto dia fomos presos. Caminhávamos por uma viela onde lojistas se amontoavam uns sobre os outros e as pessoas se acotovelavam, éramos obrigados a dispersar-nos, tentando abrir caminho. Cometemos um erro crasso, reconheço. Subitamente cada um de nós foi puxado para dentro das lojas cobertas de lonas e vimo-nos, cada um por si, no meio dos mais variados e indescritíveis objectos: tapetes, roupas, loiça. Pelas traseiras juntaram-nos novamente, na sombra pois que a luz não entrava ali, e enfiaram-nos brutalmente numa carroça que parecia cair aos bocados. Não vimos absolutamente nada do percurso, apenas tentávamos concluir alguma coisa através dos sons. Tínhamos saído da povoação e atravessámos depois durante muito tempo algo que deveria ser uma planície; a seguir, exaustos e atordoados, apercebemo-nos de que a carroça rodava aos tombos num empedrado tosco. Quando estacou, abriram a jaula e empurraram-nos para fora. Vimos então as altas muralhas daquilo que viria a ser a nossa prisão durante duas semanas das nossas.
Os calabouços eram medonhos, húmidos, gelados, imundos, com grades de ferro, os tectos baixos, mesmo para nós, uns buracos na parede a servirem de respiradouro. Os carrascos ( “legionários de Deus” como se auto intitulavam) deixaram-nos conservar a roupa e o calçado, de modo que comunicávamos uns com os outros e sentíamo-nos, apesar de tudo, relativamente seguros, pois que usaríamos as nossas armas ocultas logo que necessitássemos. O que veio acontecer inevitavelmente.
Abandonaram-nos até à noite seguinte sem comer nem beber. Ao fim desse tempo, arrancaram-nos das celas e conduziram-nos aos empurrões através de corredores pavorosos de granito escorrendo humidade, até um amplo espaço abobadado, iluminado por archotes fedorentos. Por detrás de uma mesa estavam postados três indivíduos, todos eles barbudos e com farripas enormes sobre as orelhas pontiagudas e uns chapéus negros em cone. Visivelmente um deles chefiava o trio, era muito alto e magro, a sua voz era pausada e grave, quase amigável, em contraste completo com o brilho metálico, cínico e cruel, dos seus olhos.
Durante horas intermináveis interrogaram-nos, repetindo as perguntas constantemente, sem que nós houvéssemos respondido a alguma, fingindo que não conhecíamos a língua local. Já entendíamos o suficiente, porém, para perceber que andavam sempre à volta do mesmo : “ Quem sois, donde vindes, que sabem os “infiéis” sobre nós, preparam-se para a guerra? Que armas possuem e onde as escondem?”. Intercalavam as perguntas com espancamentos intermitentes ( não fosse o nosso treino físico e mental e sofreríamos imenso), sobre as orelhas, os lábios, as tíbias. Qualquer um de nós esteve à beira de sacar da arma. Todos os demais olhavam para mim e esperavam que ripostasse. A uma ordem seca os guardas conduziram-nos novamente para os calabouços, onde nos esperava uma terrina para cada um contendo uma água suja.
Estávamos a perder a paciência, como é de calcular. Pelo intercomunicador eu avisava de vez em quando para que não agíssemos, que ninguém agisse sem minha autorização, e fui estabelecendo um plano em contacto permanente com os meus camaradas. O sinal para o desencadear das operações seria dado, conforme o combinado, se os torcionários de chapéu em cone nos aplicassem a telepatia, porquanto nessa altura estaríamos em maus lençóis. Muito provavelmente já teriam tentado e se não surtiu efeito dever-se-ia somente à droga amnésica que ingeríramos preventivamente.
Ocupávamos dois calabouços, em cada um deles encontravam-se outros prisioneiros, tanto “iberos” como “ameríndios”. Estes eram de idade indefinida, mas os primeiros aparentavam visivelmente uma idade provecta – os “iberos” podem atingir os duzentos anos, enquanto os outros viviam até aos setenta anos no máximo, a maioria até aos cinquenta. Porque se encontravam presos os “ameríndios”, visto que dos outros era fácil perceber a razão? Soubemo-lo pelos próprios. Rapidamente confiaram em nós e lidavam razoavelmente com os da outra etnia, embora com alguma boa educação convencional. Um deles, que se conduzia como um verdadeiro líder do grupo, um indivíduo inteligente e corajoso que não parecia ter mais de quarenta anos, relatou-nos então que o país era dominado por uma classe sacerdotal que havia tomado o poder um século antes ( o que já sabíamos) por meio de um golpe sangrento, a tal Revolução Santa, com o apoio das massas populares ; chacinaram os opositores e romperam com todas as leis, isto é com os costumes dos “iberos”, em nome da pureza da “Antiga Tradição”, da “Palavra De Deus”, dos “Livros Sagrados”, etc., em suma : a casta sacerdotal passou a perseguir com ódio canino todos os chamados comportamentos “corrompidos”, “libertinos”, ”ibéricos”, “estrangeirados”, etc., etc. Tudo aquilo me fazia lembrar tempos já sofridos pelos terrestres. Bem, se tiveram tanto apoio é porque os iberos não eram bem vindos por outras razões. Das duas uma : ou os ameríndios cobiçavam as terras dos iberos, ou defendiam as suas da cobiça destes. Por outro lado, a descrição, embora muito “ideológica”, correspondia ponto por ponto àquilo que eu sabia estar a acontecer antes de sermos presos aqui : perseguições constantes, castigos corporais por dá aquela palha, trabalho infantil, escravatura de mulheres, haréns para os nababos, miséria geral e profundas desigualdades, império sinistro dos senhores dos templos, recrutamento maciço de jovens para as fileiras do “exército de Deus”, investigações secretas sobre as virtualidades mortíferas dos insectos. A perseguição dos hereges era contumaz, disfarçando mal a ganância de territórios e de riquezas; a concorrência e a cobiça entre os poderosos mascaravam-se com o rigor da ortodoxia e a treta de “povo eleito”. Os “pregadores” encarnavam as piores tradições dos tribunais inquisitoriais; qualquer um podia denunciar o vizinho ou um parente. A guerra religiosa no seu melhor.
Os nossos interlocutores não comungavam dos mesmos “ideais”. Eram operários e intelectuais liberais– os primeiros rebelavam-se contra a brutal exploração de que eram as principais vítimas, os segundos contra o extermínio sistemático da cultura e das liberdades. Os “iberos” estavam condenados por espionagem, os locais por traição a Deus. Aguardavam o dia do enforcamento. Calculámos que alguns deles teriam já denunciado outros camaradas, mas para nós isso pouco importava. De resto as torturas sobre eles deveriam ser necessariamente de provocar pavor. Segundo nos disse Yasser, o “ameríndio” de estatura meã, cara escanhoada, faces magras, sobrancelhas muito negras sobre uns olhos que irradiavam uma inteligência arguta e um carácter audaz e determinado, as torturas mais usuais iam desde o espancamento puro e simples, com tábuas, até ao requinte de lhes cobrirem as plantas dos pés com mel para que as abelhas os ferrassem sem parar; aquele que denunciasse apenas pelo efeito da tortura mais violenta era depois enforcado, um outro que delatasse por decisão própria ganhava um posto de guarda ou “bufo”. Para Yasser, a força da ditadura não assentava exclusivamente nas armas, nem sequer na intoxicação perpetrada pela ideologia, assentava sobretudo na indescritível desigualdade social, na tremenda miséria que açulava como um cão raivoso o carácter cobarde de muitos, infelizmente de muitos homens e mulheres, que não hesitavam em denunciar os parentes, os amigos, os vizinhos, em troca de um emprego ou do cargo cobiçado que o denunciado ocupava, da sua loja, da sua casa, da modesta mobília. A ditadura havia convertido aquele país e aquele povo num inesgotável potencial de delatores. Tive ocasião de contar a Yasser como na minha terra natal e no meu planeta se passaram as mesmas coisas e como era esse comportamento tão vulgar na nossa História; tão vulgar que agora me interrogava, assistindo ao mesmo a tão grande distância, se tal facto se devia ao fraco carácter dos homens ou tão só aos regimes ditatoriais. E ele, que não possuía o conhecimento científico que eu possuo, comparativamente, respondeu com estas palavras que eu não esqueço: “ Meu amigo, se queremos que uma árvore cresça torta batemos nela com um pau, se queremos que uma laranjeira de frutos amargos produza laranjas doces, enxertamo-la!”- Eu somente soube responder-lhe deste modo: “ É bem verdade. Se não queremos uma trepadeira parasita, arrancamo-la pela raiz”.
No dia aprazado resolvemos acabar com aquilo. Já haviam enforcado três dos condenados, no pátio em frente. Obrigaram-nos a assistir em formatura sob uma chuva gelada. Os desgraçados, dois da etnia local e um “ibero”, ficaram ali pendurados como carne no fumeiro. Heroicamente não soltaram lamentos, excepto as rezas que um ofereceu pateticamente a um céu mudo coberto de nuvens negras. Um sacerdote de chapéu em cone abençoou o carrasco e recitou uma ladainha tocando com uma cruz nos capuzes que cobriam as cabeças dos infelizes.
Emiti a ordem ao computador da cápsula para que a fizesse levantar voo e a dirigisse para o local “farejando” o meu sinal de rádio. Levaria cerca de meia hora apenas. Sacámos, a uma ordem minha, as armas de dentro dos tacões das botas, depois de aplicarmos uns valentes empurrões nos guardas. Disparámos com precisão eliminando quase todos. Saltei sobre o sacerdote-chefe que procurava escapar-se, agarrei-o fortemente e chamei dois dos condenados. Entenderam imediatamente as palavras que lhes dirigi : colocaram a corda na garganta do indivíduo e enforcaram-no entre grandes exclamações que significavam :” Viva a liberdade !”. Os guardas escapuliam-se para todos os cantos e recantos do monstruoso cárcere. Fomos eliminando-os tantos quanto pudemos. O terror estava-lhes estampado nas caras roxas, nos três oculares escancarados, fugindo com aquelas indumentárias compridas e escuras a dar-a-dar. Tenho disparado sobre muita coisa viva, durante as muitas viagens de exploração que já fiz até à data, sempre em legítima defesa e in extremis, raramente gostei desse acto, contudo naquela escassa meia hora não pude proibir-me uma certa satisfação por assistir àquele terror e àquela debandada geral : o procedimento cruel daqueles energúmenos fanáticos contra o seu próprio povo merecia o castigo que lhes infligimos, tanto mais justo quanto a ditadura sufocante que impunham não era mais do que um regime de exploração em favor de nababos. E de “santos” crudelíssimos e lúbricos.
Antes de partir reunimos os ex-condenados e transmiti-lhes a seguinte decisão : “ Sabemos perfeitamente o quanto sofrestes e admiramos a vossa coragem altruísta. Essa conduta é aquela que melhor serve os desígnios do universo, com certeza, e no nosso planeta é altamente prestigiada. Entre nós, erguemos monumentos, dedicamos odes, condecoramos homens e mulheres perante milhões de espectadores. Retiramo-nos deste continente e de todos os modos abandonamo-vos à vossa sorte. As nossas leis proíbem-nos expressa e claramente de intervir na organização social e nos regimes políticos dos povos com quem contactamos. Cada um tem o governo que merece. Não tenciono exportar o nosso regime para as galáxias, pois todos os povos são diferentes, cada um deve tratar de si mesmo, e o nosso modelo só poderia ser aceito pelo medo ou por puro servilismo. Dentro de alguns anos poderemos organizar viagens inter galáticas que permitirão, a vós e a muitos outros, conhecer os nossos costumes e o nosso regime. Podereis comparar e escolher. O conhecimento concreto é o triunfo da humanidade qualquer que ela seja. Se apreciais os Alkómos, como alguns de vós o demonstram, pois fazei como eles; se não, escolhei a vossa via. Deixai em paz quem deseja viver em paz. Sois poucos ainda : entrincheirai-vos nesta fortaleza, por conseguinte, forjai armas e guardai-vos dos ataques que hão-de vir. Muito povo virá esconder-se aqui : fazei de cada cidadão um soldado quando a hora for a das armas e um cidadão esclarecido quando for a hora das decisões moderadas e das negociações realistas. Adeus!”








III. A Guerra


Regressámos à “Ibéria”. Ao sobrevoarmos o continente dos “servos de Deus”, os altares gigantescos ao seu triste e severo Pai, vimos procissões sombrias carregando fachos e círios, escoltadas por guardas e um extenso muro contra o qual pobres diabos batiam com os crânios pelados, lamentando-se e suplicando perdão pelos seus pecados.
Na “Ibéria” fomos recebidos entre ovações e larga alegria : haviam tido conhecimento da nossa prisão e afiançaram-nos até que se preparavam para intervir de qualquer modo, tendo enviado, de resto, uma embaixada plenipotenciária para exigirem a nossa libertação.
Fomos obrigados a permanecer muito mais tempo do que eu calculava, porquanto decidimos assistir à reacção dos indígenas contra os sucessivos ataques de que foram alvos da parte dos seus vizinhos. A arma principal destes apresentava-se como sendo o maior número deles e a utilização dos insectos assassinos. Não foi de admirar, portanto, que iniciassem a tentativa de invasão abrindo caminho por meio destes animais. Antes que estes tivessem sido completamente exterminados, ainda fizeram grandes estragos na população: desencadearam-se surtos de misticismo paranóico, de alucinações esquizofrénicas, de pânicos paroxísticos, manipulados imediatamente por gurus ou chefes dementes que brotaram como cogumelos quando a chuva cai.
Numa primeira fase parecia que “Ibéria” se desmoronava, varrida por ventos de pestes e epidemias. Os sobreviventes, porém, souberam inventar engenhosas defesas contra os insectos : protegeram-se com capas rijas dos pés à cabeça, reuniram habilmente os loucos em vastos recintos fechados onde os submeteram a desintoxicações, por meio de antídotos cujo segredo haviam extraído a prisioneiros “ameríndios”. Depois, mobilizaram todas as embarcações velhas ou sem préstimo, e conduziram-nas até ao alto mar, dispuseram-nas em fila de norte a sul, e pegaram-lhes fogo; as embarcações continham do tal antídoto; assim varreram dos ares, fosse pela fumaça fosse pela antídoto, enxames espessos de abelhas, moscas e mosquitos. Ao mesmo tempo, esta táctica auxiliou-os na formidável batalha naval que travaram contra os vizinhos.
Assisti então a batalhas que foram vulgares em tempos recuados do nosso planeta. Navios contra navios, arpões e longas lanças, soldados-marinheiros uns contra os outros, armados com barras de ferro, pedras escaldantes lançadas por fundas, machados, tochas ardentes que inflamavam as velas, os cordames, os mastros. O mar cobriu-se de sangue e madeiros flutuantes, monstros marinhos digladiavam-se sob o comando de uns e outros, estripando-se reciprocamente, combatiam homens, mulheres e jovens quase garotos. Somente na Terra, aquando da última guerra, vi tanta dor e tanto sofrimento: aqui não havia, é certo, o cheiro da pólvora, o fedor abrasador do napalme, o crepitar das armas automáticas, era antes tudo primitivo, rostos esfacelados pelos chuços, aquele ali segurando as tripas com as mãos, os olhos suplicantes, aquela outra fugindo enlouquecida com o cadáver do filhinho agarrado ao peito, um jovem imberbe decapitando um adversário que podia ser seu avó, com um rito de nojo e medo, a catana rubra e gotejante.
Escrevendo, como escrevi, que “tudo ali era primitivo”, interrogo-me se é legítimo distinguir nas formas de matar algumas mais “primitivas” do que outras...quem mata pode, é certo, proceder de forma “cirúrgica”, disparando do ar observando apenas um monitor, ou executar o adversário com um cutelo – quem mata assim pode julgar-se menos assassino -, quem morre, morre na mesma, trucidado, esquartejado, com as tripas ou os miolos ao sol.
Apesar de sofrerem algumas derrotas por causa do número dos adversários, os “iberos”, povo de marinheiros hábeis e astuciosos, esmagaram o inimigo numa batalha final gloriosa : atacaram a frota almirante por uma noite de nevoeiro mais cerrado, utilizando embarcações mais pequenas, extremamente rápidas e fáceis de manobrar, que furaram o bloqueio e esburacaram os cascos dos enormes e pesados navios, apanhados de surpresa. Desbaratados, os sobreviventes tentaram refugiar-se nas suas fortalezas, mas foram recebidos por uma corajosa e acutilante guerrilha de patriotas que os foi dizimando.
Se a guerra continuasse por mais tempo, tanto uns como outros acabariam por inventar armas cada vez mais sofisticadas : calculo mesmo que pouco faltou aos “iberos” para redescobrir a pólvora.
Thuulipa, a ministra, a generala, ela mesma realizara esboços geniais de máquinas e artefactos de guerra. Lutando contra a escassez dos meios e de tempo, logrou dirigir a construção de pontes levadiças movidas por engrenagens, e fortificações que se aproximavam do betão armado, e arpões para os navios disparados por bestas enormes ou catapultas; descobriu inclusivamente o princípio do navio movido a vapor, idealizando um sistema de caldeiras que expeliam o ar aquecido através de tubagens submersas.
A “ministra” da Cultura correspondia grosso modo a um senador da nossa antiga república romana. Esta esplêndida criatura continuou a acompanhar-me sempre, melhor dizendo eu é que a acompanhei no decurso das reuniões, em que ela participou, dos comandos militares. Mulher (se assim posso exprimir-me) de notável inteligência e vontade indomável! Nas horas livres quando fazíamos amor, eu congratulava-me por ter nos braços ( ou melhor: ela é que me tinha nos braços) um ser daquela categoria. É evidente que mantive esta relação por razões diplomáticas. Quem não entendeu assim foi a Beatriz.
Na noite mais difícil dos combates, Thuulipa disse-me então o seguinte:
“ A causa verdadeira, meu amigo, deste antagonismo mortal entre os Alkómores e nós, tu não a sabes mas vou dizer-te qual foi: antes da civilização que ora temos tivemos outra; há milénios atrás havíamos desenvolvido todas as técnicas possíveis e imaginárias, incluindo os rudimentos de viagens espaciais. ( Abri a boca até às orelhas quando escutei estas palavras). Impelidos pela cobiça dos lucros, o saque e a exploração dos nossos vizinhos era uma constante desse sistema. O outro continente foi pura e simplesmente uma colónia nossa, subjugada até à escravatura. Em suma, arribávamos com prendas e armas, impúnhamos monoculturas convenientes, explorávamos a mão de obra, exportávamos as nossas mercadorias ( confeccionadas quantas vezes com as matérias primas saqueadas a eles mesmos) e as nossas bugigangas e retirávamos de lá o nosso dinheiro bem gordo! Fomos nós, aliás, que lhes transmitimos alguns aspectos das suas actuais crenças religiosas. É conveniente esclarecer-se que exportávamos, por meio da mentira ou por meio da força, não somente mercadorias mas também uma determinada cultura, conjuntamente com governos locais fantoches e corruptos. Quando essa civilização terminou aqui, também terminou lá por consequência. Ignoramos a causa. Sobrevivemos na extrema escassez em conjunto vários séculos; no início a independência deles, por seu mérito próprio, redundou em regimes tirânicos e dissolutos, com poucas excepções honrosas; mais tarde conquistámos ambos um clima de relativa paz e harmonia. Até que recentemente, talvez por causa da diferença de ritmo do desenvolvimento, uma casta de sacerdotes tomou o poder na outra Margem, a tal “Revolução Santa” de que eles falam, impôs uma tirania sob o pretexto da “Lei de Deus”, semeou ódios ancestrais contra nós, servindo-se sobretudo da descoberta que fizeram entretanto, não se sabe como, de antigos livros, que julgávamos desaparecidos, contendo relatos das atrocidades que nós lhes havíamos infligido. Aqui tens.”
Somente no fim fechei a boca, tal era o meu espanto. Tudo se esclarecia agora.

A nossa partida transformou-se num acontecimento glorioso, inesquecível. Realizaram-se festejos em todas as grandes cidades. As mulheres, que lá são muito consideradas, juntaram-se em grandes multidões, caóticas e alegres, presenteando-nos com danças e cantares muito belos, comoventes de harmonia e amor pela vida, os jovens mancebos fizeram outro tanto, desfilando pelas larguíssimas avenidas agitando folhas de palma e ramos de oliveira. Em todas as praças tocaram orquestras, entoando o esplêndido hino composto para aquela ocasião e intitulado “ Viva o Prazer!”, ou seja “Ma Zil ! Ma Zil!”. Organizaram em nossa honra um grandioso baile. A alegria era esfuziante para quem no dia anterior tanto havia chorado os seus mortos. As mulheres, autênticas heroínas desta guerra, jovens generalas de peitos ao léu ou matronas robustas e indomáveis, foram quem mais bailou. A “ministra” superava toda a gente, e obrigou-me a dançar levantado do chão nos braços dela. Trazemos connosco inúmeros presentes oferecidos à Terra, simbolizando a vontade de que venha a construir-se um Acordo Universal.
A situação nas “Duas Metades” pareceu-me sustentável a médio prazo. Consultei o nosso especialista em prognósticos que me facultou, após um exame minucioso de todos os dados disponíveis, o seguinte cálculo de desenvolvimento: Enquanto os “ameríndios” se pacificam, ensaiando uma aproximação com a “outra metade” (embora os dois países estejam com a economia de rastos, os “iberos” possuem grandes reservas) através de um processo de democratização que as camadas burguesas mostram apoiar e para o qual determinados sectores da igreja revelam grande capacidade de adaptação, nos “iberos” indiciam-se já os germens da acumulação capitalista, na medida em que a guerra e as suas sequelas provocaram a concentração da propriedade fundiária, a especulação com os bens, a corrupção e o mercado negro, o fortalecimento de uma casta militar e o endurecimento das leis. Os “estrategos”, os chefes militares, detêm uma grossa fatia do poder e opor-se-ão ao Senado. O desenvolvimento das cidades, onde se instalam cada vez mais os artesãos e os comerciantes, conduzirá a que estas se oponham ao campo, atraindo os pequenos proprietários das terras menos férteis e os mais endividados; o aumento do consumo e do comércio implicará a procura de novos mercados, a desigualdade no desenvolvimento das “duas metades” provocará desigualdade nas trocas e tendência crescente para importar matérias-primas de um lado e exportar produtos e capitais para o outro. A constituição política de Alkómos começará a abrir fendas. Por este caminho depressa instaurar-se-á uma economia mercantil florescente. Interrogo-me se tal processo conduzirá ao capitalismo, tal como sucedeu connosco, as condições pareciam reunir-se naquela espécie de acumulação primitiva do capital. Tenho para mim que o capitalismo não se define pelo modo de distribuição (pela existência de um mercado), mas pelo modo de produção. Ora, se as leis fundamentais da física, da química, da biologia, apresentam-se idênticas em toda a parte, sê-lo-ão determinadas leis dos processos sociais? E, por conseguinte, a configuração e a orientação do intelecto assemelhar-se-á em todo o lado? Pelos muitos mundos que percorri depois, procurei uma resposta. Sabendo de antemão que o bem e o mal, o belo e o feio, não são mais do que valores comparativos e infinitamente variáveis. Todavia, assisti a tanto sofrimento, paredes meias com tanta alegria, que já não sei mesmo se não existe um padrão, um denominador comum.
Na realidade o processo político decorreu, desde logo, de uma forma ligeiramente diferente. Durante o mês que ainda lá estacionámos, aconteceram duas coisas decisivas: em primeiro lugar, a “ministra” levou com ela o meu único exemplar de “O Príncipe”, de Maquiavel, aquando de uma das suas visitas discretas; em segundo lugar, pô-lo em prática; ou seja, à questão “Como conservar a paz depois da guerra?”, respondeu do seguinte modo: manobrou o espírito débil da imperatriz, desfiou discursos inflamados no Senado, agitando o espantalho do caos, manipulou uma dúzia de senadores influentes, atraiu para o seu lado um dos cabos-de-guerra mais prestigiados ( ela própria cobrira-se de glória na condução da guerra e na mobilização das massas), reuniu um poderoso exército e lançou-o contra os “senhores da guerra”, isto é, contra os chefes militares que não queriam abandonar as armas e os territórios onde se aquartelavam; derrotou-os um a um, com a mesma astúcia e valentia com que manobrava politicamente; fez-se depois receber pela população em delírio, com uma entrada triunfal em Liskómos, apelou num extraordinário discurso para a “imperiosa unidade nacional”, para o “trabalho em paz”, para o “prestígio do Estado”; conseguiu o apoio, incondicional ou por cobardia, da maior parte dos senadores, fez aprovar novas leis e reformou as instituições no sentido dos interesses da classe dos comerciantes, organizou uma máquina tentacular de organismos e de funcionários públicos, burocratas bem pagos e com autoridade que decapitaram a arrogância dos “príncipes feudais”, colectando impostos e realizando obras, defendendo, pelo menos numa primeira fase, os “municípios” ( dos agricultores, artesãos e comerciantes) contra o arbítrio dos “senhores de caserna”.
Quando levantámos âncora do planeta das “Duas Metades”, deixámo-lo nas mãos férreas de um possante e eficaz Estado, no topo do qual se agigantava a figura fascinante da minha outrora doce “ministra”. Grande parte dos seus dotes e dos seus sucessos dever-se-iam seguramente à sua destreza com a telepatia. Ou seja : adivinhava perfeitamente as fraquezas dos outros, adversários ou apoiantes úteis, satisfazia-lhes as ambições ou antecipava-se às suas manobras. Nunca assisti a tamanho espectáculo de psicologia das multidões.
Reservei para o fim deste relato, uma informação pouco mais do que curiosa para si, nesta fase do meu relatório, e no entanto para mim muito importante, visto que redijo estas linhas muitos anos depois destes acontecimentos. Antes da batalha final entre os dois continentes, numa determinada ocasião em que visitei a ministra nos seus aposentos pessoais, descobri um estranho pergaminho, ou uma cópia do original, guardado numa pequena vitrina, como um relicário. Redigido, obviamente, na língua desse povo, li as seguintes palavras : “ Ó gentes indómitas, despertai da resignação e da morte! A vossa salvação está próxima : quando o céu se romper e dele jorrar a luz de um amanhã solar, ascendereis à Casa Comum!”. Esta mensagem haveria de acompanhar-me no decurso destas viagens extraordinárias. Na primeira vez que me defrontei com ela, não lhe prestei muita atenção, excepto por um desenho que a acompanhava.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Viagens Extraordinárias - 1º capítulo:"O planeta das Duas Metades"

O primeiro planeta que visitámos ( as suas coordenadas, deste e dos que lhe seguiram, já vos foram transmitidas oportunamente ), registámo-lo com o nome provisório de Duas Metades (talvez fosse mais apropriado o de O Mundo Cortado Ao Meio, mas a maioria inclinou-se para o outro nome). Detectámo-lo dois anos-luz antes da nossa aproximação, concluindo através dos dados recolhidos que haveria de ser o primeiro a escalar. Possui três vezes o diâmetro da Terra, um oceano apenas, embora de vastíssimo comprimento pois que divide este mundo em dois continentes, fechando um círculo completo. O continente “Ibéria” ( atribuímos este nome porque se assemelha em certos aspectos à nossa Península Ibérica) é acentuadamente menos povoado que o outro, o qual designámos por “Ameríndio” pelas suas semelhanças com as terras dos nossos antigos ameríndios – aproximadamente dez milhões de indivíduos no primeiro, sendo que o segundo é habitado por cerca de vinte milhões. O clima de “Ibéria” é mais seco do que o “Ameríndio” e, em nenhum deles, se conhece formação e queda acentuada de neve, excepto nos picos das mais elevadas montanhas. Quando, porém, nós fabricámos artificialmente gelo e neve, para os impressionar, eles riram-se, informando que há milénios que transportam neve para as cidades, pois adoram iguarias geladas! De facto, ambas as civilizações, da “Ibéria” e da “Ameríndia”, existem há um milhão e meio de anos. Corrigimos : o planeta é habitado por vida inteligente há dez milhões de anos e por duas etnias, que derivaram de uma única matriz, há nove milhões e meio de anos terrestres: a etnia azul que habita a “Ibéria” e a outra, roxa, que ocupa a “Ameríndia” ; sucederam-se, todavia, diversas civilizações, sempre muito semelhantes entre as duas margens (digamos assim) do oceano Kómos ( como é designado), tendo atingido há um milhão de anos aproximadamente um grau de desenvolvimento tal, que superava largamente o nosso em muitos aspectos! Poucos vestígios desse tempo restam, excepto ruínas cobertas de vegetação silvestre, pois que há quinhentos anos atrás quase todos os habitantes, de ambas as margens, foram dizimados por um cataclismo desconhecido. A seguir a uma profunda estagnação, recuperaram resignadamente uma indústria artesanal, limitada somente à produção do estritamente básico. Nos últimos tempos porém, e foi esta a situação que encontrámos, a vida de ambos os povos tem passado a pautar-se por regras diametralmente opostas.
O “iberos” não fabricam armas, sendo mesmo punido com escravatura todo aquele que as comercialize. Os “iberos” ( que na realidade se designam por Alkómos, o povo – do- mar) vivem em uma dúzia de cidades, e têm como capital uma importante urbe de um milhão de habitantes, Liskómos, ou seja “cidade do mar”; os “ameríndios” ( designados por AlKómor, que traduzimos por povo-do-monte-Kómor, o mais elevado, com cerca de quinze mil metros), pelo contrário, agrupam-se, ou amontoam-se, em miríades de aldeias miseráveis e em duas grandes urbes, com palácios sobre as colinas e bairros populosos e infectos em baixo; as habitações dos “iberos” são individuais, cada indivíduo possui a sua própria casa, não se constituindo em casais estáveis ou famílias; os segundos residem cada vez mais em enormes habitáculos comuns, abandonando gradualmente as suas residências individuais. Os “iberos” envergam indescritíveis vestuários, tal é a sua extrema variedade, no corte e na cor; os “ameríndios”, pelo contrário, tendem cada vez mais a vestir-se por igual, servindo-se em grandes armazéns públicos, onde em lugar de moeda utilizam uma espécie de fichas rudimentares, nas quais as despesas se vão abatendo do montante que elas comportam ( deste modo são perfeitamente vigiados); os “iberos”, pelo contrário, esbanjam dinheiro ( uma espécie de contas de vidro) sem qualquer apego e contabilidade. O povo da “Ameríndia” é profundamente religioso, praticando uma única religião, caracterizada pela crença num Deus que tomam como criador e Rei, do qual aguardam a todo o momento a chegada ao mundo para oferecer-lhes um milhão de anos de felicidade, mas após uma apocalíptica guerra santa; no outro continente, porém, todas as crenças são permitidas, encaradas mais como jogos de imaginação, visto que competem entre si, com grande entusiasmo, pela fábula mais bem conseguida; não é difícil agora perceber, ou começar a perceber, que os “ameríndios” desprezam e odeiam mesmo os indígenas da outra Margem, e durante as primeiras semanas depois que chegámos à terra dos segundos, fomos por estes informados de determinados actividades conspirativas por parte dos “roxos”, que indiciavam preparativos secretos para uma invasão através do oceano– já integrada neste propósito, assistimos à difusão de estranhas doenças ( segundo a opinião dos próprios “iberos”) que passamos a descrever : ataques de melancolia aguda, surtos de atitudes de contemplação apática ( cretinice, julgamos nós, com paragem do fluxo da consciência), indivíduos que, subitamente, pareciam adormecer com a cabeça sobre o umbigo, sem que nada os conseguisse fazer acordar de novo; outros, sem aviso, irrompiam a cantar com os olhos em alvo e as mãos abertas, ou então, rojavam-se no solo e beijavam o pó com aparente delícia, e esforçavam-se por lamber os sapatos dos transeuntes que os olhavam estupefactos; finalmente, e isto é encarado como um dos piores males, um número crescente de “iberos” recusava teimosamente praticar o coito, sob qualquer forma, deambulando completamente tapados; por enquanto, pelo menos no período em que lá estivemos, não se verificava diminuição na vontade e na capacidade de trabalho na generalidade, embora as reivindicações de alguns pela introdução de intervalos sucessivos para “meditar” ( nada que sugerisse rezas) começassem pouco a pouco a produzir prejuízos. Estas doenças, ainda sem carácter epidémico, são causadas por insectos que transportam substâncias tóxicas, de acordo com as últimas investigações conhecidas entre os “iberos” – moscas, abelhas e, sobretudo, mosquitos. As suspeitas conduziam claramente para a responsabilização dos “ameríndios”, na medida em que estes consideram sagrados estes animais, cuidando deles em locais reservados dos seus templos e andando sempre acompanhados por um enxame de moscas ( é claro que os suspeitos negam entretanto veementemente qualquer intenção criminosa, desculpando-se com o facto de os enxames poderem atravessar perfeitamente o oceano; os “iberos” argumentam que tal seria impossível por causa dos violentos ciclones que varrem o mar) ; pelo nosso lado, admitimos sem hesitação alguma que o ódio fanático dos “roxos” esteja a traduzir-se por ataques cada vez mais agressivos, não através de armas convencionais ( que eles não sabem produzir) mas por meio de animais treinados, por exemplo as tais famosas “abelhas de Deus”. Julgamos convictamente que estes insectos, tão bonitos e úteis na nossa terra, estão a ser inoculados com determinadas substâncias tóxicas que inseminam comportamentos anómalos tanto num povo como no outro.
Quando “aterrámos” no planeta ( que entretanto fomos investigando no decurso da aproximação) o que mais nos surpreendeu foi seguramente a organização anatómica dos indígenas: de elevadíssima estatura ( média: dois metros e meio), completamente calvos ( excepto as “fêmeas” que exibem umas trunfas no cocuruto dos belos crânios), dispondo, aliás, de mui rara pilosidade mesmo nos órgãos sexuais, que se localizam na zona do que é em nós o ânus ( este, por sua vez, situa-se na zona dos nossos órgãos genitais, em ambos os sexos, pois as “mulheres” não urinam pelo orifício vaginal mas, antes, pelo “ânus”); as nádegas são à frente, correspondendo ao nosso baixo ventre, os órgãos mamários por cima da vagina, o correspondente à parte superior das nossas nádegas e, embora sejam grandes e munidos de uns longos mamilos, são, todavia, encantadores segundo o nosso ponto de vista. Os aborígenes ( referimo-nos apenas aos Alkómos) praticam o coito deste modo: o “macho” senta-se literalmente sobre o baixo dorso da “fêmea”, a qual se coloca em posição completamente horizontal, e assim permanecem imenso tempo, grande parte do qual em imobilidade quase total, excepto no clímax. Este povo é muitíssimo liberal: amiúde, pelos jardins e parques públicos, ou no espaço relvado em frente das vivendas individuais, topam-se com casais nessas posturas, sem que os outros prestem a mínima atenção, excepto os garotos que desatam a rir sem malícia.
Tendo pousado na faixa litoral da “Ibéria”, fomos recebidos por uma pequena multidão que já nos aguardava ( comunicámos da nave-mãe em órbita e soubemos depois com surpresa natural que haviam recebido as nossas mensagens, não por meio de tecnologias semelhantes às nossas, mas, ó surpresa!, através de pura e simples telepatia!). Servimo-nos de uma das duas cápsulas de que dispomos, deixando em órbita a nave principal, como é de regra, pilotada pelo segundo imediato, John Huizinga. Uma delegação composta por dois “homens”, chefiados, segundo nos pareceu, por uma “mulher”, dirigiu-se-nos com gestos descontraídos e cordiais. Não entendendo a língua local, começámos por utilizar a “linguagem universal” fabricada, como se sabe, pelos nossos especialistas para estas eventualidades; entretanto, os nossos aparelhos “descodificadores” foram analisando a estrutura da linguagem indígena e, rapidamente, podemos passar à comunicação real. A delegação encaminhou-nos tranquilamente para uma esplêndida carruagem, um coche melhor dizendo, atrelada a um par de extraordinários animais apoiados em seis patas cada um, de caudas felpudas enormes e magníficas, ajaezados de ouro e prata. Aliás, o nosso espanto começara logo quando enfrentámos, no solo, a aparência física dos nossos hospedeiros : então a “mulher”, sobretudo esta, deixou-nos uma impressão assaz agradável, apesar da sua elevadíssima estatura, olhando-nos de cima com os seus três olhos imensos e rasgados, as íris muito negras, brilhantes como carvão incandescente, uma estreita faixa de tecido cor de ouro envolvendo-lhe os rins, os longos e rijos mamilos soerguendo-se a cada movimento, as coxas monumentais esbeltas como troncos que, em vez de se adelgaçarem para cima, ganhavam contornos cada vez mais largos, os orifícios anal e vaginal resguardados por uma espécie de biquini todo feito de rendas ( o estilo e a cor variam muito); a voz, que saía de uma boca relativamente pequena cujo lábio superior é mais grosso do que o outro, era deveras melodiosa, assemelhando-se a uma área de Verdi.
Atravessámos uma extensa avenida, ladeada de árvores, do género das faias, altíssimas, onde de quando em vez um casal de namorados nos acenava com tranquila confiança. Separaram-nos, à chegada, cada um numa vivenda ; não encarámos isso como uma ameaça. “Em Roma, sê romano”. Eram casas com tectos bastante altos, de tamanhos muito idênticos, embora de arquitecturas diversificadas ( consoante o gosto de cada um), dispondo de todo o conforto, desde longos divãs forrados a veludo a uma cama de dossel forrada a damasco. Aconselharam-nos a comer nos restaurantes públicos, tecendo destes os mais rasgados elogios; se preferíssemos cozinhar nada faltava naquelas cozinhas, sobretudo peixe, ovos e queijo. O oceano é rico em pescado, principalmente em determinadas espécies muito procuradas, muito semelhantes umas com os nossos polvos e chocos mas de dimensões avultadas e, outras, por exemplo, que lembram vagamente os nossos bacalhaus e atuns ( vimos “atuns” de cinco metros de envergadura!); o oceano é o reino de espécies extremamente agressivas, como iríamos ter oportunidade de verificar, mas igualmente doutras muito dóceis.
Após repousarmos uma noite e um dia reuniram-nos e fomos conduzidos a um dos muitos espaços cívicos de convívio : edifícios amplos de madeira envernizada, com cúpulas elevadas de vidros multicolores, aprazíveis e mui agradáveis à vista, recheados de conforto, divãs de diversos tamanhos, balcões compridíssimos onde os utentes se serviam de bebidas, quadros de cores muito fortes figurando o corpo e o oceano, esculturas por todo o lado. Aquela gente mostrava uma curiosa adoração pelo corpo, isto é, pelas representações do corpo, sendo o nu um tema muito recorrente. Não deparámos nunca, nesse tempo, com multidões compactas, excepto aquela que nos recebeu ou aquela outra que festejou o nosso ulterior e aventuroso regresso da terra dos “ameríndios”, um mês terrestre depois. Naqueles centros escutava-se música, tocada com instrumentos muito curiosos ( fabricados com madeiras preciosas, peles, ossos e tendões de animais, conchas e búzios marinhos, de tamanhos variados - alguns deles , parecidos com as nossas trompas, mediam vários metros de comprimento), toadas muito harmoniosas que provocavam neles e até em nós sensações, tanto de serena quietude como de apetite de dançar, canções alegres ( cujas letras, quando mais tarde as conseguimos entender, eram muito engraçadas, quero dizer pícaras, embora com estilo nem sempre cuidado), cantigas ao desafio que arrebatavam plateias entusiásticas, criação in locu e ao vivo de novas composições ( atracções muito procuradas naquele povo que tão alegre nos pareceu sempre). Apreciavam também muito o teatro satírico e burlesco, ao ar livre em largos anfiteatros.
Convidaram-nos sentar à volta de uma mesa redonda de mármore rosa, ofereceram-nos primeiramente una gelados divinais e, em seguida, fomos vendo e escutando as explicações dos nossos hospedeiros. Aqui e acolá conseguíamos entender que a população trabalhava apenas da parte da manhã todos os dias da semana ( evidentemente que o calendário deles é bem diferente do nosso! Desconhecem, por exemplo, os nossos fins-de-semana, sendo que os dias dividem-se em semanas “úteis” seguidas de semanas de lazer, sempre assim, ininterruptamente; um dia deles corresponde a dois dos nossos ; não fazem férias por ano), ocupando-se na agricultura, na pesca e no artesanato.
Após o nossos almoço ( eles, pelo contrário alimentam-se muitas vezes por dia, transportando sempre alimentos consigo ou servindo-se do que quer que encontrem pelos campos ou nos quintais individuais, onde cada um deseja que os vizinhos apreciem as suas culturas imaginativas) levaram-nos a visitar a província. Várias quadrigas bastante confortáveis rodavam em fila. As estradas não são alcatroadas mas de terra amarela e poeirenta ( nas cidades utilizam a pedra). As pontes são rústicas, de granito e madeira. Os terrenos são divididos por muros baixos de pedra cobertos de silvas, a propriedade é individual mas administrada cooperativamente, a produção é recolhida através de carroças gigantescas puxadas por mulas colossais. Digo que a propriedade é individual no sentido da palavra, ou seja, não é “familiar” como costumamos dizer, visto que aqui não se constituem famílias, nem nucleares nem muito menos alargadas, cada um, “homem” ou “mulher”, possui uma parcela, seja de terra, seja de uma oficina; a comunidade vigia para que esta distribuição, que remonta há um século atrás, se conserve intacta e obrigatória, nem mais nem menos. Determinadas terras aguçaram-me a atenção e tendo-os interrogado responderam-me que pertenciam às vilas, para nelas os seus habitantes pastorearem os seus gados em conjunto.
Não pude resistir ( a temperatura era tão amena, a estrada poeirenta trazia-me lembranças de tempos longínquos...) a observar de esguelha a bunda saliente da minha hospedeira-chefe, os seios mal disfarçados sob uma estreita faixa de seda, a pilosidade rala, as coxas esplêndidas, os pés muito longos mas muito finos, calçando sandálias de tiras, os lábios vermelhos grossos e tão sensuais que me faziam evocar a boca de certas mulheres africanas...Ela respondeu-me com os três olhos incandescentes, sorrindo, como se adivinhasse os meus pensamentos. Nesse instante esqueci-me, como haveria de suceder diversas vezes, que ela era telepata.
As culturas são muito variadas : pomares breves, nas traseiras das habitações, ou extensos campos de trigo, de milho, de arroz em zonas baixas e lacustres. Parámos mais do que uma vez, para admirarmos abóboras, melões e melancias rotundas, cerejas gostosas e pêras, pêssegos nas terras altas e, junto ao litoral, laranjas e limoeiros, enfim abrunhos, uma espécie de ananases minúsculos, aos molhos, saborosos. Via-se pouca gente àquela hora da tarde, labutavam de manhã muito cedo: então a água correndo festivamente pelos regos e canais trazia para as nossas narinas uma frescura bucólica que somente um poeta poderia reproduzir adequadamente. O gado muar pastava pacificamente e corpulentos felinos domésticos corriam atrás de perus do tamanho das nossas vitelos, incapazes de voar.
As estradas litorais ( refiro-me ao oceano, pois que existem também muitos e grandes rios e lagos ; este povo habita quase somente nas zonas ribeirinhas) são deslumbrantes: correndo sobre terra firme ou serpenteando entre as dunas mastodônticas, sem fim, percorrendo todo o círculo longitudinal do planeta, oferecendo constantemente praias espectaculares, providas de marinas e de portos repletos de gente e de mercadorias. Assustámo-nos um pouco quando assistimos, da praia, à emersão de autênticos gigantes do mar, da altura de um prédio de vinte andares, mamíferos de cabeças mui pequenas, quase pueris, num pescoço incrivelmente elevado, com uns tranquilos olhos bovinos fixados em nós... “ Temos de ter muito cuidado com os Brufos quando navegamos!”, disseram-nos, “ E com os Najos! Um pequeno barco pode ficar gravemente danificado se chocar com eles, além dos ferimentos que causa no pobre animal!” ( estes animais marinhos, ou melhor, anfíbios, são compostos de uma cabeça semelhante a um hipopótamo num corpo de cachalote com quatro patas com membranas; são também herbívoros e tanto pastam no fundo oceânico como nos pântanos do litoral; são tão pacíficos que os indígenas levam os seus filhos a passear sobre eles) .
Nos portos maiores recolhem-se navios colossais, embora primitivos comparados com os nossos, tanto de pesca e transporte, como de cruzeiro – os indígenas adoram fazer cruzeiros. São construídos de madeira com velame de tela grossa. Pelas manhãs bem cedo, a azáfama é intensa à chegada do pescado: gritam, barafustam, regateiam, protestam, mas acabam por comprar e todos ficam satisfeitos - há qualquer coisa de pueril naquele povo! E que risadas, que graça semeiam , contando anedotas cujo humor lamentavelmente não captávamos! As cenas que eles adoram representar no dia a dia superam as nossas melhores comédias.
Quase todo o mundo sai à noite. O costume deles de se deitarem tarde e levantarem cedo ia arrasando comigo. Regulavam-se por uma moral absolutamente hedonista. Pareciam haver descoberto o ponto de gravidade entre o código civil e o código natural. Todas as actividades iniciam-se pela madrugada nas semanas úteis- não possuem satélites, giram mais lentamente, e não dividem o tempo como nós: “ficcionam” um período que corresponde a dois anos dos nossos aproximadamente. Os invernos são curtos ( na outra “margem” em lugar deles existe uma época de chuvas abundantes). O divertimento nocturno que eles preferem é um género de ópera : sobre grandes palcos circulares ao ar livre, colocados no centro de uma vasta multidão, desenvolvem cenas do quotidiano, utilizando intercaladamente o canto e o recitativo como se faz em algumas óperas de Mozart. Escutei sopranos e tenores que em nada ficavam a dever aos nossos mais lendários, sendo apenas diferentes os libretos, pois que não abordavam temas como os nossos Rigoletto, Aida ou Otello, os assuntos das nossas óperas oitocentistas em geral eram-lhes completamente alheios. Quando dei a alguns oportunidade de escutarem gravações de óperas célebres, como a de Nabucco, ficaram autenticamente em êxtase, embora as grandes cenas nelas narradas não lhes tocassem particularmente a sensibilidade – não conheciam a escravatura ( em rigor já não se lembravam!), os abusos caprichosos de nobres ociosos ou os tormentos de uma Madame Buterfly...O mais característico naquele povo é uma espécie de adoração que manifestam pelos sentidos, o ouvido particularmente é cultivado com desvelo ( como costumam dizer: “As orelhas também aprendem!”).
Todos se passeiam pelas alamedas arborizadas, emolduradas de bancos de madeira, param aqui e acolá escutando as cantigas ao desafio, as prédicas de oradores inflamados que os admoestam pelos actos considerados mais nocivos à sociedade, ou apelam, com grandes doses de retórica, a produzirem mais filhos ou a diminui-los pelo contrário : não existe povo mais libérrimo, tudo se permite, quem discorda pode exprimi-se à vontade, ali ou nas casas de cultura. Os restaurantes enchem-se ( os indígenas parecem aborrecer-se de comerem sozinhos – embora sejam individualistas com a habitação - e cultivam pouco ou nada o nosso “ar de família”), bebe-se muito, sobretudo uma espécie de sumo ( de ananás, segundo soubemos) alcoólico que nos permite esquecer completamente uma emoção desagradável suscitada durante o dia. Nos relvados, por entre variedades exóticas de faias e ulmeiros, repousavam lavradores, artesãos, pescadores ou marinheiros, casais faziam amor, as “mulheres” com os ventres sobre mantas muito finas que lembravam capulanas, os “homens” como que sentados em cima...aves pululavam nos ramos, bebericando nos lagos artificiais, gatunando pedacinhos de biscoitos de arroz, pardais, pombas e rolas, toutinegras e melros...
As indígenas não pareciam mostrar especial interesse por nós humanos do sexo masculino, deviam achar-nos demasiado pequenos, demasiado frágeis nos nossos fatos militares de verão, demasiado feios com os nossos dois olhos e as nádegas traseiras, embora retribuíssem os cumprimentos e parecessem agradadas com a presença da nossa “ministra”. Ela era, de facto, a responsável principal pelos programas de cultura e lazer públicos, e era muito bela... As indígenas praticam o sexo indiferenciadamente com “eles” e “elas”; os “homens”, para além das suas conterrâneas femininas, namoram os adolescentes ( nos recantos dos jardins encontrávamos amiúde pares de adultos e de efebos, de mãos dadas), como na antiga Grécia.
Este povo possui os mais variados templos de culto para as mais variadas crenças, sejam pequenos edifícios de mármore circulares com cúpulas em forma de funil, de cujo orifício cimeiro sai constantemente um fumo de um azul celeste cheirando a flores silvestres, sejam imponentes construções cobertas cada uma por um terraço horizontal que servia para um jardim suspenso, numa rica paleta de cores e intensamente odorífero. Nestes terraços existam altares ao centro sobre os quais fazem libações e cantam odes muito brejeiras dedicadas aos sátiros. No interior dos primeiros as mulheres prestam culto à divindade do Perfume; nos últimos, homens e mulheres veneram e agradecem às divindades da Primavera. Existem ainda templos dedicados ao Amor, mais exactamente ao Prazer e menos à procriação; aí os amantes confessam o seu amor por alguém a uma matrona muito qualificada, que se esforça por orientá-los nos doces e dolorosos meandros desse sentimento. Apercebi-me, porém, que se praticam muitas outras religiões, digamos populares, nas quais a telepatia é utilizada como instrumento de adivinhação do futuro; nestes locais muito reservados o serviço é bem pago por quem dele necessitar.
Não sei se é pelo facto de serem extremamente individualistas em determinados aspectos, mas o certo é que recusam falar na morte, exorcizam-na de todos os modos, pelo silêncio, pelo esquecimento, ou por complexos mecanismos de sublimação. Os funerais são basto tristes, embora sem carpideiras e ladainhas e procura-se que passem completamente desapercebidos.
Reconduziram-nos às vivendas respectivas. Nessa noite, quando me preparava para me deitar, calmo e quase feliz, tive a grata surpresa de ver entrar pela porta dentro ( não existem fechaduras) a “ministra” da cultura! Tentei imediatamente oferecer-lhe uma bebida ou uma ceia se ela desejasse provar os nossos petiscos, mas ela recusou amavelmente, prometendo que prová-los-ia com certeza muito em breve ; não sou propriamente um ingénuo, por isso rapidamente apercebi-me que outro objectivo a conduzia aos meus aposentos...provavelmente movida pela curiosidade feminina, que parece ser universal. Suspeito que ela descobriu facilmente, por telepatia, que a minha companheira ainda não tinha regressado de uma tertúlia. Em suma, e para encurtar o relato de episódios deste género, mas para que sejam registados – nenhuma informação relevante deve ser omitida – digo que Thuulipa ( assim se chama, assemelhando-se no som à palavra portuguesa “túlipa” e que, na língua local, significa Thuul - o nome da estrela maior- e iipá, que se pode traduzir por “inteligente”)- me envolveu, após uma breve troca de gestos expressivos como se perguntasse se eu me encontrava “disponível”, nos seus longos braços de medusa, acariciou-me com os seis dedos de cada mão, fixou-me com a sua belíssima trindade de olhos negros e atirou-me literalmente, embora com suavidade ágil, para cima do seu dorso. A visão da sua peça de roupa íntima, de rendas sedutoras, foi mais forte do que qualquer resistência que eu pudesse oferecer ( é evidente que “em Roma sê romano”). Foi nessa altura, ou a seguir ao acto, que me espantei ao verificar que “elas” possuem um clitóris pelo qual sai uma substância licorosa e deliciosamente perfumada! Por outras palavras: elas são, quando querem, hermafroditas! Mais um elemento a juntar aos outros que revela como elas dispensam os “homens” sempre que querem, ou seja praticam o coito umas com as outras. Informaram-nos que, todavia, a esmagadora maioria dos filhos são feitos por meio de acasalamentos “normais”.
Para finalizar este episódio devo afirmar que a “ministra” era tão sexi como qualquer das mulheres, humanas ou não, que conheci: qualquer intervalo durante o trabalho servia-lhe para o efeito. Talvez isto explique porque razão elas são visivelmente tão serenas, suaves, autoconfiantes. É essa, pelo menos, a opinião da nossa psico-antropóloga, Sandra Thomas. Adianto a propósito ( apesar das informações detalhadas sobre a conduta da equipa sob o meu comando, seguirem em anexo a este relatório) que a Sandra mostrou-se à altura dos acontecimentos e daquilo que dela, eu e vós, esperaríamos. Aprendeu, por exemplo, os mecanismos da telepatia e a praticá-la com eficácia. Sujeitei-me, como é de norma, às suas sessões de empatia e terapia, aceitei docilmente ser a primeira “vítima” da sua manipulação telepática. Eu próprio exercitei com ela e tenho prosseguido sem ela os meus exercícios durante esta longa viagem de regresso. É perfeitamente possível “lermos” alguns pensamentos, no meu caso talvez os mais óbvios mas, no caso do povo que descrevo, é notavelmente fácil adivinhar os conteúdos das nossas motivações e atitudes. Registo, a título de exemplo, que, numa certa ocasião, podemos evitar uma atitude tresloucada por parte de um dos nossos tripulantes (omito o nome porque o caso foi ultrapassado), quando ele se preparava para ripostar a tiro contra um aborígene que pretendeu “violá-lo”; foi a nossa Sandra que lhe retirou imediatamente a arma. Só lamento que haja sido ela uma das que decidiu residir na “Ibéria”...tanto quanto adivinho julgo conhecer a razão.
(continua)

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.