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sexta-feira, 22 de outubro de 2010

AO FIM DO DIA (peça em quatro actos)

Personagens:

Uma mulher

Um homem

O filho pródigo



1º Acto



Mulher: Ouve só o que diz aqui “O Correio da Manhã”.

Homem: Não leio “O Correio da Manhã».

Mulher: Estás sempre a dizer isso. Mas eu bem te apanho a espreitar para dentro dele.

Homem: Não espreito para dentro de coisa nenhuma.

Mulher: Pois não, não espreitas para a professora que anda a posar nua…pois, pois…

Homem: Nem sei do que falas. E que tal deixares-me ouvir o noticiário?

Mulher: Fazemos o mesmo, António, fazemos o mesmo, tu vês e ouves, eu leio. Repetem-se uns aos outros. Devem ter uma única fonte onde todos vão beber.

Homem: Esse pasquim alimenta-se de produtos tóxicos.

Mulher: Tóxicos ou não, são factos, acontecimentos comuns. De resto, estamos a discutir por teimosia: eu quase nunca leio este jornal…

Homem: Nem esse, nem nenhum. Aos jornais que compro, folheia-os distraidamente enquanto pensas na morte da bezerra, aos telejornais nem sequer os ouves na cozinha.

Mulher: Duplamente enganado: na cozinha temos outro televisor, como devias saber…

Homem: Para as telenovelas.

Mulher: Não é verdade. Oiço as notícias, tu é que não sabes porque só entras na cozinha para cheirar o jantar na panela. E quanto à “morte da bezerra”, é uma expressão muito infeliz para designar os meus pensamentos.

Homem: É uma maneira de falar, nunca na minha vida pensei alguma vez que fosses burra. Eu sei em que pensas constantemente. E era isso que eu queria que deixasse de ser uma obsessão.

Mulher: O nosso filho…o Jorge.

Homem: Já to disse muitas vezes: ele só volta quando souber que um de nós está a morrer, ou já morto e enterrado.

Mulher: Não posso ouvir-te dizer essas coisas horríveis, António! Que pai és tu que desiste de reaver o filho? Que pai?

Homem: Um pai realista. O Jorge abandonou-nos faz agora um ano…um ano!

Mulher: Quando fez vinte anos…

Homem: Exacto. Sem mais nem menos. Ou melhor, depois de fazer todas as tropelias e mais alguma, de ser um mau estudante e um mau filho…

Mulher: Não exageres. Era um miúdo. Devias saber como são os jovens, também foste rapaz e não me consta que tivesses sido um santinho. Além disso, estás a ser muito injusto: o Jorge até foi um aluno razoável, escolheu um bom curso superior e segui-o…

Homem: Abandonou-o a meio. E o curso foi escolhido por ti…

Mulher: Essa é boa! Não me ajudaste a convencê-lo? Fomos realistas, queríamos o bem dele, era um curso com futuro, não uma ilusão que ele perseguia…

Homem: Como todos nós, quando temos dezoito anos.

Mulher: Quererás insinuar que a culpa foi nossa? Ou melhor, que foi só minha?

(Silêncio)

Mulher: Está um fim de tarde bonito…morre o verão, chega o Outono. Como aprecio as folhas cor de cobre das árvores nesta época! Melancolia, há melancolia no ar, como se a vida se despedisse…tanta gente tem o mundo! Nuns sítios agora faz sol, noutros é noite…Nuns, morre-se de fome, noutros, de fartura…Melancolia…Chegam até mim tantas lembranças! O primeiro beijo que me deste…que demos um ao outro, num desvão de escada, já lá vão vinte e cinco anos, não foste muito romântico, apanhaste-me desprevenida…sim, claro, não me fiz rogada, andávamos à deriva depois dos divórcios, trinta e cinco anos de idade cada um, a mesma idade…Vinte e cinco anos já se esfumaram, tão depressa passa o tempo…Não achas que a juventude é a melhor idade?...não falas, não respondes? Eu sei, perguntei-te isso provavelmente uma dúzia de vezes, é natural que nos lembremos dela quanto mais envelhecemos…Pareces indiferente a tudo, às recordações…Será que recordas ou evitas, foges das lembranças como o gato da água escaldada? É a idade, meu querido, é a idade! Quando a nossa relação estava no início, falávamos muito desses tempos anteriores…quando andávamos ambos no mesmo Liceu, colegas sem amizade especial um pelo outro…uma atracção que só chegou mais de vinte e cinco anos depois…porquê? Nunca o saberemos. Cada um seguiu a sua vida, cada um para o seu lado, casámos, não tivemos filhos, divorciámo-nos…e aqui estamos….tu, mergulhado num jornal que já deves ter lido duas vezes, e eu a escutar as folhas a caírem lá fora…melancolia. Lembras-te do professor de português do sétimo ano, baixote, que dava as aulas aos saltinhos pela sala? Sempre desconfiei que ele era medíocre e ridículo, porém conseguia entusiasmar-nos às vezes, sobretudo quando líamos uns para os outros as nossas redacções, pena que naqueles tempos as discussões nas aulas fossem escassas, domesticados que estávamos desde a escola primária. Não dizes nada? Lembras-te das acácias em flor nas avenidas de Lourenço Marques? Claro que te lembras…no fundo, és uma pessoa sensível…Que nos aconteceu, António? Fomos tão felizes! Quando o Jorge nasceu, os primeiros anos da sua meninice…tão traquina, tão esperto…como tudo mudou…Porque foi que ele desapareceu subitamente? Porquê? Que aconteceu nesse dia fatídico? Teve a ver connosco? Duvido, já o víamos irregularmente, desde que se mudara para a residência universitária. Que se passou naquela cabeça? Terá sido manipulado por alguém? Terá sido aquela galdéria com quem andava?

Homem: Lá voltas tu ao Jorge. Não há conversa que não chegue aí. Conhecemos acaso a tipa? Nunca a trouxe cá, mal sabemos quem era…vimo-la uma única vez e depressa.

Mulher: Por isso mesmo. Parece que ele tinha vergonha.

Homem: Se calhar, se calhar foi isso mesmo: vergonha…vergonha por ambos serem toxidependentes…

Mulher: Alto lá, António! Meteste na cabeça que o Jorge era toxicómano! Viste-o drogado?

Homem: Havia no quarto dele sinais mais do que suficientes disso. Quantas vezes fomos à residência e não o encontrámos? Cada vez desaparecia mais, até desaparecer de todo. Sim, acho que ele se envergonhava do seu estado, que não encontrava saída para o vício, talvez tenha começado a endividar-se, a roubar, para alimentar o vício.

Mulher: Horrível! Já eu mesma imaginei tudo isso que dizes, mas não me atrevia a pensá-lo em voz alta…é tão horrível!

(Silêncio)

Homem: (Folheando o jornal) Temos que nos distrair ambos senão damos em malucos. Resiste com coragem, não voltes a ter outra recaída…Foram precisos seis meses para te curares da depressão, não esqueças! Tem fé, ele há-de voltar para nós…nem que seja para nos mostrar o nosso primeiro netinho. Era bom, não era? Tem esperança. As loucuras da juventude hão de passar-lhe como passam as dos outros…tão depressa como passou a nossa juventude.

Mulher: Assim seja…É por causa do natal, já se aproxima a passos largos. Hoje que dia do mês é?

Homem: Dia vinte …de Novembro.

Mulher: É o natal, é…sem o Jorge…mais um natal sem ele.

2º Acto



(A mesma sala. Toca o telemóvel)

Mulher: É o meu! Ah, é a Emília!...Sim, estou…olá, está tudo bem contigo?...sim, cá estamos, curtindo a velhice…pois, pois, estamos ainda novos…sim, a saúde vai indo bem, os achaques do costume…pois, o verão terminou, chega a humidade…é…e o teu marido? Ah, compreendo, assustado com as taquicardias…claro, quem já teve já duas ou três, não admira…Mas diz, conta lá! Percebo na tua voz uma boa notícia…Sim, estou pronta para te ouvir, apre! Já estou a ficar nervosa! Diz lá…O quê? A sério? Não acredito!...Onde?...Tens a certeza que era ele?...Olha que podes ter confundido…já não o vemos vai para um ano…sei lá, podes ter confundido…pois, não foi assim há tanto tempo que ele tivesse de mudar muito…Ai, nem acredito! E como o achaste?...Mais magro?...Não te reconheceu?...ah, sim, não te viu, ou fingiu não ter visto…Andava depressa ou devagar? Como é que estava vestido?...Sim, pois, nada mal…Que notícia, Emília, que notícia! O Jorge! Não estava acompanhado com a galdéria com quem andava?...Pois, eu sei, simpatizavas com ela, eu sei, mas eu não…sempre a vi como uma galdéria…quantas vezes te disse, Emília, que os olhos dela não me enganavam…sim, disse-te isso, uma drogada, enfim, uma toxidependente…via-se naqueles olhos mortiços…Então ele ia sozinho…é bom sinal…Tá, adorei ouvir-te! Vou contar ao António…Beijinho para ti, um abraço para o Zé…e obrigado…fica bem, adeuzinho! (Larga o telemóvel) Ouviste, António? Percebeste?

Homem: Ouvi e não acredito. A Emília é míope, para não dizer que é outra coisa.

Mulher: Chiça, que tu andas mauzinho de todo! A Emília usa lentes de contacto, como eu, e tu usas óculos, ora…Ela deu-me a certeza, a certezinha, de que viu o Jorge…Onde? Na rua, num passeio…sim, devia andar mais gente por aí, sim, e depois? Era caso para ela se enganar? Eu cá acredito. E fico muito feliz! Muito! O Jorge está vivo e nem andava mal vestido…e, sobretudo, anda por cá, pela nossa terra, pela terra dele…Vou experimentar ligar-lhe.

Homem: Ó mulher, já experimentaste quinhentas vezes, já concluímos há um ror de tempo que ele mudou o número, não é por aí que conseguiremos chegar até ele.

Mulher: António, alguma coisa temos de fazer!

Homem: Certo, mas supõe que o encontramos…E se ele nos evitar?...sei lá, se fugir…nem sei que dizer…também estou nervoso como tu…quero vê-lo, mas receio o encontro…

Mulher: Qual receio, qual carapuça! Vamos procurá-lo, os pais não receiam os filhos. Não vai fugir de nós. Até acho que ele se mudou para cá com alguma intenção. Desconfio que o nosso filho anda desorientado, sozinho e precisa de nós.

Homem: Tens razão. Se ele se mudou do buraco onde vivia em qualquer cidade que ignoramos, é porque precisa de nós. Veste um casaco, metemo-nos no carro e passamos a cidade a pente fino. Talvez eu não tenha sido um bom pai, mas tu és uma mulher valente.

Mulher: Vamos então! O teu receio, António, é simples ressentimento, não leves a mal que to diga.

Homem: Será. Uma mãe perdoa mais depressa que um pai.

Mulher: Ou a mulher sabe perdoar porque neste caso não há nada para perdoar.





3º Acto



(Regressam. Despem os casacos. Têm um ar cansado)

Mulher: Vou fazer qualquer coisa para comermos.

Homem: Eu bem que te convidei para comermos lá fora.

Mulher: Depois de tantas voltas fracassadas, não me peças para me sentar num restaurante…E pela noite não sou capaz de andar por essas ruas à procura de um fantasma.

Homem: Bem dito: de um fantasma.

Mulher: não devia ter dito isso. Eu continuo a acreditar que ele anda por cá, tu é que não.

Homem: Mas procurá-lo-ei sempre que tu queiras.

Mulher: Eu sei, António, eu sei. Tenho-te sempre ao meu lado.

4º Acto

(A mesma sala. O homem dormita no sofá. A mulher assiste a qualquer coisa na tv. Som estridente da campainha da porta. O homem desperta com algum alvoroço. A mulher dirige-se à porta e espreita pelo visor)

Mulher: António! António! É o Jorge! O nosso filho!

Homem: (Pondo-se imediatamente de pé) Meu Deus!

Mulher: (Abre a porta, fica especada um instante e, num acto súbito, abraça o indivíduo esquálido, de roupa coçada, que a observa com timidez) Meu filho!

Jorge: Minha mãe!

(O pai aproxima-se e abraçam-se os três)

Homem: (Afastando-se um pouco para observar o filho) Vens com fome! Anda para a cozinha, a tua mãe vai arranjar-nos uma ceia.

Mulher: Talvez lhe apeteça um banhozinho quentinho primeiro, apetece-te meu filho?

Jorge: Ok, pode ser, mãe, pode ser.

Mãe: Então vá, enquanto eu preparo a ceia. Tens tudo no teu quartinho, Jorge, veste o pijama se preferires. Está tudo no mesmo sítio onde o deixaste…Nada mudou, pois não, António?

Homem: Nada mudou. Estava apenas à tua espera.

FIM

Nozes Pires

22 Outubro 2010

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