Intervenção proferida na sessão comemorativa do 25 de Abril, em Abril de 2011, Runa, Torres Vedras
Comemoramos a insurreição militar e popular do dia 25 de Abril de 1974.
Normalmente a comemoração de datas históricas tende a converter-se num acto rotineiro. Uma mera formalidade sem conteúdo. As tradições e os mitos somente conservam a sua vitalidade se actualizarem, nos seus rituais, a vitalidade do acto fundador. Com esta data que ora nos reúne aqui sucede algo de singular: conserva-se nos mais velhos a lembrança e nos mais novos a curiosidade e o respeito. Podemos possuir opiniões diferentes, mas num aspecto, pelo menos em um, estamos de acordo: no valor das liberdades políticas conquistadas nesse acontecimento fundador. Eu direi a minha opinião sobe o passado e o presente. A minha opinião é partilhada por muitos portugueses, contudo muitos outros não pensam do mesmo modo.
Há 35 anos que somos governados pelos mesmos partidos. Dizer-se que quem assim o decidiu foi o povo não é inteiramente verdade, porque o partido mais votado, esse sim, mais votado ( e não duvidamos da legitimidade do voto), coligou-se não poucas vezes com outro ou outros partidos. E se assim fizeram é porque pensavam todos da mesma maneira. Não só os partidos que formaram governos nestes 35 anos foram praticamente os mesmos, como, e por consequência, as estratégias políticas foram similares. E este facto inquestionável é de uma importância crucial. É sobre factos que devemos discutir. Uns tantos são responsáveis pela situação que ora sofremos, outros menos, ou mesmo nada. Qualquer discussão séria e decente deve assentar nesta interrogação: Que políticas foram essas que, fora as hesitações e erros humanos compreensíveis e toleráveis, conduziram o país ao fundo do poço, a uma crise que é das piores que a nossa longa história conheceu?
Foram apenas erros ou incompetências como alguns querem fazer crer? Governos fracos, políticos débeis? Naturalmente que quem assim pensa, propõe governos fortes para executar a mesma política. Oiço e leio este raciocínio e estremeço. Aceito perfeitamente o livre direito de quem assim pensa e, consequentemente, sugere um partido político investido da força de uma maioria absoluta, ou uma coligação de partidos, um governo de “Salvação nacional” como se vai dizendo. É a expressão da liberdade de opinião e a demonstração de quem sem o pluralismo não se respeita a Constituição da República nem as aspirações que explodiram em festa no dia 25 de Abril de 1974. Certamente. Porém, ao designar-se esse partido ou essa coligação, vemos que são os mesmos que nos arrastaram para o atoleiro onde nos encontramos. Talvez a expressão seja forte demais, mas não acerto com outra. Nem se trata de lavar uma mão com a outra, mas de meter ambas as mãos nas mesmíssimas soluções. Dar-me-eis o direito, o direito de expressão que também a mim me assiste, de concluir que teimar no mesmo caminho não é arrepiar caminho.
Dir-me-eis que a situação é grave e exige soluções drásticas. Provavelmente pensareis que não vale a pena agora perder tempo a discutir as causas. Pois bem, não é assim que estou habituado a pensar racionalmente pela minha cabeça. Respondo-vos que concordo convosco sobre a gravidade da situação, no entanto as soluções que os partidos governantes se propõem aplicar não são diferentes entre si, digo mais: são as mesmas mas para pior. Neles o espírito de mudança, de mudar de vida, contido no 25 de Abril, está ausente. Direis que não, eu digo que sim. Direis que não há outra alternativa, eu digo que há. Direis que é inevitável, eu digo que inevitável só a morte por mais tempo que se viva.
Dizer-me –eis que estando falidos temos de pedir emprestado, e se nos emprestam temos de pagar. Pois aí é que bate o ponto: Em primeiro lugar, podíamos ter evitado a tempo e para isto houve quem avisasse; em segundo lugar, podemos enfrentar o problema da dívida pública, pela sua renegociação – incluindo taxas de juro, prazos de dívida e montantes, pela acção combinada na União Europeia com outros países em situações semelhantes; pela diversificação de fontes de financiamento, quer no plano internacional, quer estimulando a poupança interna; pela renegociação ou cessação de contratos das parcerias público-privadas. E isto só para fornecer alguns exemplos. Em terceiro lugar, é preciso que se volte a dizer: não podem ser os mesmos sacrificados a pagar a crise, que, de resto, não a provocaram; todos sabemos que os grandes grupos económicos e a banca a eles associados pagam uma mísera fracção do que deviam pagar se os sacrifícios fossem igualmente distribuídos por todos. Como se pode pregar um “Governo de Salvação Nacional” sem uma verdadeira justiça fiscal e social? Sinceramente não percebo. Sem um corajoso combate à especulação financeira, porquê falar num “governo forte”? Forte contra quem? Quem souber, que responda.
A realidade é que muitos estão mais pobres e alguns estão mais ricos. Grandes riquezas num país empobrecido. Diziam os filósofos antigos que parece existir nos povos uma tendência para a servidão voluntária. Se esta perturbadora sentença for justa, então escolheremos os mesmos para nos aplicarem açoites mais duros, vivendo como plebeus a invejar os príncipes. Será esta a dita “alma lusa”, masoquista, macambúzia e melancólica, que alguns descrevem? Não acredito, não quero acreditar. Existe em nós, como em todos os povos, uma vontade indomável, uma robusta esperança, às vezes aparentemente adormecida, que desperta não se sabe bem quando nem como, uma inteligência colectiva que surpreende os mais cépticos, que nos proíbe, se conhecermos a nossa história e a história universal, de nos classificarmos como povo submisso que não assume os seus direitos.
As eleições, sendo livres, constituem um esteio das democracias. Os partidos políticos, com todos os seus defeitos, são, apesar disso, um elemento vital das democracias. O pluralismo, as liberdades. Mas os direitos também.
Porque é de direitos e deveres que, do fundo, faz emergir a interrogação que vos coloquei no início: o direito a sermos auxiliados na doença, todos por igual, no ensino, na segurança social, nos salários e pensões que nos devem porque trabalhamos ou as pagámos, e o direito à nossa soberania nacional. Se permitirmos que nos tirem isto, seremos mais pobres, mais tristes, mais dependentes e submetidos. Deveres? Sim, falemos dos deveres: do dever de trabalharmos, investirmos e dinamizarmos a actividade económica, de pagarmos na proporção directa daquilo que ganharmos, de estimularmos e defendermos a produção nacional, de diminuirmos o peso das importações e aumentarmos as exportações, mesmo que para isso ou por causa disso belisquemos os interesses das potências estrangeiras. Porque não é delas que chegará a nossa salvação. Mas de nós próprios. É do povo, deste povo onde reside a soberania, e não dos grandes grupos económicos que se preparam para montar a tenda sobre um “governo de salvação nacional”.
À dura realidade se chegou depois de havermos entrado para a União Europeia (primeiro CEE) perdendo com isso mais do que ganhámos, e tal sucedeu porque não se soube defender a produção nacional. Ganhou-se alguma coisa, sem dúvida, mas perderam-se recursos fundamentais para o desenvolvimento independente do país: indústrias, pescas, agricultura, entre outras.
Veio o Euro e ganhou-se alguma coisa, mas perdemos mais do que ganhámos, logo que passou a euforia inicial. Em vez de construirmos alicerces para o edifício do futuro, deixámo-nos cair sob o jugo de um Pacto de Estabilidade que favorecia os países mais ricos e o qual foram eles os primeiros a não cumprir.
Hoje não há comentador que se preze que não lamente o atraso e a dependência do país. E é mesmo curioso constatar que de uma maneira geral, comentadores encartados e partidos políticos descobriram subitamente o que já se sabia há muito tempo: que o país, caído na estagnação e mesmo na recessão, necessita de investir e impulsionar o desenvolvimento, se mais não seja para poder pagar as dívidas.
Para pensar procuro o problema e as condições objectivas e subjectivas que geraram o problema. Por isso pergunto-me se foi correcto o Governo ter enterrado milhões no BPP e BPN e se ter endividado a juros usurários em benefício dos bancos, que intermediaram a dívida pública com dinheiro obtido no BCE a 1% e emprestado ao Estado a 7,8 e 9%. Por causa destas opões e atitudes do Governo e da Banca é que não me surpreendi logo que, quando a coisa deu para o torto, a elite da finança exigiu ao Governo a entrada do FMI, cuja "ajuda" inclui uma fatia específica para a Banca (se calhar para o negócio das privatizações a pataco que aí vem). Disse-o o próprio director-geral do FMI: "O problema de Portugal não é tanto a dívida pública como o financiamento dos bancos e a dívida privada".
De facto, a dívida pública portuguesa (previsão para 2011) corresponde a 97,3% do PIB e é inferior à de países como a Irlanda (107%), Grécia (150,2%), Bélgica (100,5%) ou Itália (120,2%). Mesmo as da França e Alemanha andam, respectivamente, pelos 86,8% e 75,9%.
Já a dívida privada, de que pouco se fala e cujas principais fatias são da Banca e do imobiliário, é de 220% do PIB! É essa dívida que a Comissão Administrativa de FMI, BCE e CE vem agora cobrar a pobres, pensionistas e desempregados.
O meu Partido rejeitou o seu envolvimento no ritual de encontros com a chamada “Troika”, porque o considera uma inaceitável atitude de abdicação e submissão nacional. A coerência tem os seus riscos: ser-se silenciado pela comunicação social, não se ser compreendido por uma parte da opinião pública. Seremos compreendidos pelos espoliados no seu trabalho e nos seus parcos rendimentos. Negoceiem, pois, com a “troika”, se acaso ela vem para negociar coisa alguma, e veremos depois se se confirma ou não o que já é antevisão geral: que o pacote de medidas que nos vão impor é igual ou pior do que o que já estava contido no PEC IV. Veremos quais os portugueses que vão pagar a dívida e para onde vai o empréstimo concedido. Veremos nos próximos anos se a geração “à rasca” continua ou não à “rasca”. Veremos se do Trabalho com direitos, restaurados pelo libertador 25 de Abril, sobram alguns dos poucos que já sobram.
Por mim, aqui, hoje, desta tribuna, reafirmo a frontal rejeição a uma intervenção externa, em si mesmo comprometedora do futuro da vida dos portugueses, do país e das suas perspectivas de desenvolvimento soberano. Reafirmo o direito de sermos informados pelo Governo português do conjunto de dados e elementos sobre a real situação financeira, económica e orçamental do país, os seus concretos compromissos e as disponibilidades e recursos próprios. Informação que só o Governo e as instituições nacionais vocacionadas para o efeito devem dar e não qualquer entidade estrangeira ou supranacional sem legitimidade.
Um resgate da dívida pública somente é admissível se assegurar o crescimento económico e salvaguardar as condições sociais dos trabalhadores. Não pode transferir para estes a responsabilidade e os sacrifícios da crise, medidas que reduzem ainda mais as pensões ou a desvalorização dos salários, nem políticas fiscais injustas, que continuarão a agravar a injustiça na redistribuição da riqueza.
Na União Europeia os trabalhadores portugueses trabalham tanto, ou mesmo mais, do que os outros, não trabalham menos horas, mas mais. Não é aí que se encontra a causa do problema.
Os banqueiros dizem não aguentar mais sacrifícios: pagam cada vez menos impostos, nos lucros de 2011 em relação ao ano anterior, com os mesmos lucros, vão pagar metade do imposto. Receberam nos últimos anos milhares de milhões de euros de apoios e avales do Estado. Foram beneficiados com milhares de milhões de transferência de poupanças dos portugueses quando o Governo degradou de forma brutal a remuneração dos certificados de aforro. Estão a embolsar milhões e milhões de euros com as parcerias público-privadas. Durante meses e anos especulou com a dívida pública.
Depois das experiências da Grécia e da Irlanda a intervenção externa não resolverá os problemas, antes agravará o atraso económico do país. Os banqueiros mandam e o Governo obedece. Iremos esgotar recursos no pagamento de uma dívida monstruosa, em vez de canalizá-los para o crescimento económico. Devíamos concertar com outros países com problemas semelhantes para que existisse uma acção convergente que ponha fim à espiral da especulação e exija a revisão do estatuto e dos objectivos do Banco Central Europeu.
O euro está em crise, mas não fomos nós - nem Portugal, nem os seus trabalhadores - que a provocámos. Também o dólar está em alarmante crise, pondo em grave risco a economia mundial, mas de certeza que não fomos nós que a provocamos.
Termino como comecei: nesta data histórica em que recuperámos a nossa liberdade, devíamos reafirmar que a soberania reside no povo português e somente nele. E quero crer que a sua aspiração mais funda e verdadeira é a um mundo melhor, mais justo e mais solidário. Nesta crença tenho vivido, com esta crença morrerei.
Nozes Pires
Assembleia Municipal
1 comentário:
Deitaste pérolas a surdos. Eles já nem ouvem só lhes resta o olfato da gula.
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