Tal como o annafreudismo, o kleinismo e várias outras correntes externas ou internas à IPA, o lacanismo pertence à constelação freudiana, na medida em que se reconhece na doutrina fundada por Sigmund Freud e se distingue claramente das outras escolas de psicoterapia por sua adesão à psicanálise, ou seja, ao tratamento pela fala como lugar exclusivo do tratamento psíquico, e aos grandes conceitos freudianos fundamentais: o inconsciente, a sexualidade, a transferência, o recalque e a pulsão.
Entretanto, diversamente do annafreudismo, da Ego Psychology e da Self Psychology, o lacanismo não é uma simples corrente, mas uma verdadeira escola. Com efeito, constitui-se como um sistema de pensamento, a partir de um mestre que modificou inteiramente a doutrina e a clínica freudianas, não só forjando novos conceitos, mas também inventando uma técnica original de análise da qual decorreu um tipo de formação didática diferente da do freudismo clássico. Nesse sentido, é comparável ao kleinismo, nascido dez anos antes; na verdade, aparenta-se sobretudo com o próprio freudismo, o qual reivindica em linha direta, à parte os outros comentários, leituras ou interpretações da doutrina vienense.
O lacanismo acha-se, portanto, numa situação excepcional. Lacan foi, com efeito, o único dos grandes intérpretes da doutrina freudiana a efetuar sua leitura não para “ultrapassa-la” ou conserva-la, mas com o objetivo confesso de “retornar literalmente aos textos de Freud”. Por ter surgido desse retorno, o lacanismo é uma espécie de revolução às avessas, não um progresso em relação a um texto original, mas uma “substituição ortodoxa” deste texto.
Assim, o lacanismo situa-se na direção inversa à das outras tendências do freudismo, em especial de todas as suas variações norte-americanas, pejorativamente qualificadas de “psicanálise norte-americana”. Por esse vocábulo, Jacques Lacan e, depois dele, seus discípulos e herdeiros designam o neofreudismo, o annafreudismo e a Ego Psychology. Todas essas correntes remetem, segundo eles, a uma concepção “desviada” da psicanálise, isto é, a doutrina centrada no eu e esquecida do isso, a uma visão adaptativa ou culturalista do indivíduo e da sociedade.
O lacanismo tem em comum com o kleinismo o fato de haver estendido a clínica das neuroses a uma clínica das psicoses, e de ter levado mais longe do que o freudismo clássico a interrogação sobre a relação arcaica com a mãe. Nesse sentido, inscreveu a loucura bem no cerne da subjetividade humana. Mas, ao contrário do kleinismo, perseguiu, sem aboli-la, a interrogação sobre o lugar do pai, a ponto de ver na deficiência simbólica deste a própria origem da psicose. Daí seu interesse pela paranóia, mais do que pela esquizofrenia. Por outro lado, o lacanismo procedeu a uma completa reformulação da metapsicologia freudiana, inventando uma teoria do sujeito (distinto do eu, do ego, do self, etc.), isto é, introduzindo uma filosofia do sujeito e do ser bem no coração do freudismo. Além disso, para pensar o inconsciente, apoiou-se não mais num modelo biológico (darwinista), mas num modelo lingüístico.
Pretendendo-se mais freudiano do que as diferentes correntes do freudismo dos anos cinqüenta, e pretendendo até mesmo expulsa-las em nome de um retorno à pureza originária, o lacanismo ocupa, portanto, um lugar único na história da psicanálise da segunda metade do século XX. Não apenas não é separável, como teoria, da obra original da qual pretende se o comentário, como está condenado a se transformar na própria essência do freudismo cuja bandeira reergue, assimilando-o a uma revolução permanente ou a uma peste subversiva. Donde o seguinte paradoxo: o lacanismo só existe por se constituir historicamente como um freudismo e, mais ainda, como a essência do “verdadeiro” freudismo. Por isso, só pode fundar-se acrescentando o próprio nome de Freud a sua trajetória e suas instituições.
É por isso que, depois de ser expulsa da IPA, lugar supremo da legitimidade freudiana, a corrente lacaniana viu-se obrigada, a partir de 1964, a criar um novo modelo de associação, mais legítimo do que a antiga legitimidade: assim, chamou de escola o que era denominado de sociedade ou associação, para expressar o caráter platônico de sua reformulação, e se apoderou do adjetivo “freudiano”, para deixar bem claro que se pautava no verdadeiro mestre, e não em seus herdeiros.
No plano político, o lacanismo implantou-se maciçamente, exportando o modelo institucional francês, em dois países do continente latino-americano (a Argentina e o Brasil), onde, no entanto, fragmentou-se numa centena de grupos e tendências, e onde coabita com um kleinismo muito poderoso no interior da Federação Psicanalítica da América Latina (FEPAL), ramo latino-americano da IPA. Obteve uma penetração importante na parte francófona do Canadá. Na Europa, o lacanismo conheceu um progresso variável, conforme os diferentes países. Foi na França que se implantou melhor. Na década de 1990, recensearam-se cerca de cinqüenta grupos e escolas, distribuídas pela totalidade do território.
O legitimismo lacaniano é encarnado, na França, por Jacques-Alain Miller, executor testamentário e genro de Jacques Lacan. É ele quem dirige, além disso , a internacional lacaniana, a Association Mondiale de Psychanalyse (AMP).
Fora da França, da Espanha e dos países da América Latina, e especialmente nos países anglófonos (Estados Unidos, Grã-Bretanha, Austrália), o lacanismo pouco se expandiu. Mas, em alguns casos, desenvolveu-se na universidade, nos departamentos de filosofia e literatura, onde a obra de Lacan é ensinada e comentada, independentemente de qualquer formação psicanalítica. É o que acontece em muitas universidades norte-americanas.
Quando começou a se implantar como médico clínico, por volta de 1970, o lacanismo enveredou no mundo inteiro pelo caminho da psicologia clínica, assim se tornando, frente a um freudismo amplamente medicalizado, o instrumento de uma expansão da análise leiga no campo das diversas escolas de psicoterapia e, em alguns casos, até no interior da IPA.
É interessante notar que emergiram correntes separatistas a partir de 1990, tendendo a fazer do lacanismo um movimento externo ao freudismo, embora sem renegar este último. Testemunho disso é, por exemplo, o primeiro dicionário publicado em língua inglesa sobre o assunto, em 1996. Seu título e seu conteúdo dão a entender que existiria uma “psicanálise lacaniana” (coisa que Lacan jamais desejou).
Assim como o kleinismo, o lacanismo gerou um fenômeno de idolatria do mestre fundador, uma hagiografia, um dogmatismo específico e algumas “súmulas” que fazem o inventário de seus conceitos e sua história.
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in Psicanálise Lacaniana (Brasil)