Notas Sobre a Revolução Russa
António Gramsci
29 de Abril de 1917
Primeira Edição: : Il Grido del Popolo, 29 de Abril de 1917.
Fonte: Gramsci, António. Arquivo em espanhol do Marxists Internet Archive, 2000. (Digitalizado em espanhol por Aritz em Setembro de 2000)
Tradução para o português da Galiza: José André Lôpez Gonçâlez. Junho, 2007.
HTML de: Fernando A. S. Araújo, Julho, 2007.
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Porque é que a Revolução russa é uma revolução proletária?
Pola leitura dos jornais, pola leitura do conjunto de notícias que a censura deixa publicar, não se compreende muito bem. Sabemos que a revolução foi feita por proletários (obreiros e soldados), sabemos que existe um comitê de delegados operários que controla o trabalho das entidades administratrivas que foi necessário manter para solução dos assuntos ordinários. Mas, basta que uma revolução seja feita por proletários para ser uma revolução proletária? A guerra é feita também por proletários e não por isso se considera um facto proletário. Para que tal aconteça é necessário, portanto que intervenham outros factores, factores de ordem espiritual. É preciso que o facto revolucionário demonstre ser, além de fenómeno de poder, de fenómeno de costumes, um facto moral. Os jornais burgueses têm insistido sobre o fenómeno do poder, têm-nos dito que o poder da autocracia foi substituído por outra poder, ainda não bem definido e que eles esperam seja o poder burguês. E imediatamente fizeram o paralelismo: Revolução russa, Revolução francesa, concluindo que os factos se assemelham. Mas só superficialmente os factos se assemelham, tal como um acto de violência se assemelha a outro acto de violência e uma destruição se assemelha a outra destruição.
Entretanto, nós estamos convencidos que a Revolução russa é, além dum facto, um acto proletário, que irá desembocar naturalmente no regime socialista. As poucas notícias realmente concretas, não permitem uma demonstração exaustiva. Todavia, temos alguns elementos que nos permitem chegar a esta conclusão.
A Revolução russa não conheceu o jacobinismo. A revolução tinha de liquidar a autocracia; não teve de conquistar a maioria pola violência. O jacobinismo é um fenómeno puramente burguês, que caracteriza a revolução burguesa da França. A burguesia quando fez a revolução não possuía um programa universal; servia interesses particularistas, os interesses da sua classe, e servia-os com uma mentalidade fechada e mesquinha, a dos que tendem a conquistar fins particulares. O facto violento das revoluções burguesas é duplamente violento: destrói a velha ordem e impõe a ordem nova. A burguesia impõe a sua força e as suas idéias não só à casta que dominava antes, mas também ao povo que se prepara para dominar. É um regime autoritário que vem substituir outro regime autoritário.
A Revolução Russa destruiu o autoritarismo e substituiu-o polo sufrágio universal, estendendo-o também às mulheres. Substituiu o autoritarismo pola liberdade, a Constituição pola voz livre da consciência universal. Porque é que os revolucionários russos não são jacobinos, isto é, não substituem a ditadura dum só pola ditadura duma minoria audaciosa e decidida a tudo para fazer triunfar o seu programa? Porque eles têm um ideal que não poder ser só dum pequeno número, pois têm a certeza de que ao interrogarem todo o proletariado a resposta não pode ser dúbia: ela está na consciência de todos e transformar-se-á em decisão irrevogável logo que se possa exprimir num ambiente de liberdade espiritual absoluta, sem que o sufrágio seja pervertido pola intervenção da polícia e pola ameaça da força ou do exílio. O proletariado industrial está preparado para a passagem, mesmo culturalmente; o proletariado agrícola, que conhece as formas tradicionais do comunismo comunal, está também preparado para passar a uma nova forma de sociedade. Os revolucionários socialistas não podem ser jacobinos. Têm hoje na Rússia a missão que controlar os organismos burgueses (a Duma, os Zemtsvos) para evitar que actuem jacobinamente e tornem equívoca a resposta do sufrágio universal e para evitar que o facto violento reverta a favor dos seus interesses.
Os jornais burgueses não deram qualquer importância a este outro facto. Os revolucionários russos abriram os cárceres não só aos presos políticos, mas também aos condenados por delitos comuns. Numa prisão, os condenados por delitos comuns, quando lhes comunicaram que estavam livres, responderam que não tinham o direito de aceitar a liberdade porque tinham de expiar as suas culpas. Em Odessa reuniram-se no pátio da prisão e voluntariamente juraram que iam ser honestos e viver do seu trabalho. Esta notícia tem mais importância para os objectivos da revolução do que a expulsão do czar e dos grão-duques. É que o czar foi também expulso polos burgueses, enquanto para os burgueses estes condenados por delitos comuns foram sempre os adversários da sua ordem, os pérfidos inimigos das suas riquezas, da sua tranqüilidade. A sua libertação tem para nós este significado: a revolução criou na Rússia um novo tipo de comportamento. Não só substituiu o poder polo poder, mas um tipo de comportamento por outro, criou uma nova atmosfera moral, instaurou além da liberdade do corpo a liberdade de espírito. Os revolucionários não tiveram medo de pôr em circulação homens que a justiça burguesa marcara com o selo infame de criminosos, que a ciência burguesa catalogara nos vários tipos de criminosos e delinqüentes. Só numa apaixonada atmosfera social, quando os costumes as atitudes mudam, pode acontecer semelhante cousa. A liberdade faz livres aos homens, alarga o horizonte moral, faz do pior malfeitor em regime autoritário um mártir do dever, um herói da honestidade. Dizem num jornal que numa prisão os malfeitores recusaram a liberdade e elegeram entre eles os seus guardas. Porque é que nunca fizeram isto antes? Porque é que as prisões estavam rodeadas de grandes muros e as janelas com grades? Os que foram libertá-los deviam ser muito diferentes dos juízes dos tribunais e dos carcereiros, e devem ter ouvido aqueles malfeitores palavras muito diferentes das habituais, para que tal transformação se processasse nas suas consciências, para que se tornassem tão livres, a ponto de poderem proferir a segregação à liberdade e impor-se a si próprios, voluntariamente, uma expiação. Devem ter sentido que o mundo mudara, que também eles, os recusados da sociedade, eram qualquer cousa, que também eles, os segregados, podiam escolher.
Este é o fenômeno mais grandioso jamais produzido pola actividade humana. O homem malfeitor comum transformou-se na revolução russa, no homem de Emmanuel Kant, teorizador da moral absoluta, tinha anunciado, o homem que diz: a imensidade do céu para além de mim, o imperativo da minha consciência dentro de mim. É a liberdade dos espíritos, a instauração duma nova consciência moral que estas pequenas notícias nos revelam. É o advento duma ordem nova, que coincide com tudo o que os nossos mestres nos tinham ensinado. E mais uma vez a luz vem do Oriente e irradia sobre o velho mundo ocidental, o qual fica assombrado e não sabe opor-lhe senão as banais e tolas anedotas dos seus escribas venais.
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