PRINCÍPIO ESPERANÇA E A “HERANCA INTACTA DO
MARXISMO” EM ERNST BLOCH
Antonio Rufino Vieira
Professor associado no Departamento de Filosofia
da Universidade Federal da Paraiba
Participante dos GP/CNPq Filosofia da Praxis e Etica e Cidadania.
A utopia faz parte da estrutura histórica do homem: é esta a
mensagem da obra O Princípio Esperança do filósofo marxista alemão
Ernst Bloch (1885-1977), cujos 3 volumes acabam de ser traduzidos para
o português1. Bloch busca demonstrar que o espírito utópico, embora
pareça estar divorciado da realidade presente, vislumbra que o “aqui e
agora” é preocupante; isto é, a utopia deixa margem a uma real crítica do
presente (PE I, 16-20). Ernst Bloch é um pensador da utopia2, como diz
Laënnec Hurbon em seu ensaio sobre Bloch3, sendo considerado como
um dos críticos mais corrosivo da cultura ocidental-cristã.
Nesse sentido, por ser um pensamento essencialmente crítico, a
obra de Bloch permite estabelecer um real diálogo com a Filosofia latinoamericana
sob a ótica ligada à problemática do homem situado; isto é, às
questões político-econômico-tecnológicas. Assim, parece ser possível ler
a obra de Bloch a partir de uma ética material de vida, tal como é
desenvolvida por Enrique Dussel em sua Ética e libertação, “ética crítica
a partir das vítimas (pois) são as vítimas, quando irrompem na história,
que criam o novo”4. Eis aqui o campo fecundo da utopia. Encontrarmos
1 E. BLOCH. O Princípio Esperança. Vol. I (Tradução de Nélio Schneider), Vol II
(Tradução e notas de Werner Fuschs) e Vol. III (Tradução e notas de Nélio Schneider).
Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. UERJ, 2005 - 2006 (O Princípio Esperança foi escrito
durante o exílio no Estados Unidos, no período de 1938 à 1947, sendo revisto em 1953 e
1959, com publicação definitiva em 1959 pela Ed. Suhrkamp Velag de Frankfurt an
Main). Abreviaremos por PE, I; PE, II; PE, III, seguindo-se a respectiva página.
2 Em uma conferência proferida na Universidade de Tübingen, em 1967, dirigindo-se a
estudantes alemães desejosos de se iniciarem nos conceitos elementares de sua filosofia
da utopia, Bloch condensou ao máximo suas teses expressas nos três tomos de O
Princípio Esperança em uma linguagem simples e compreensível para todos: “o lugar, o
topos da utopia e a significação da utopia em geral” (apud A. MUNSTER. Figures de
l’utopie dans la pensée d’Ernst Bloch. Paris: Aubier, 1985, p. 45).
3 L. HURBON. Ernst Bloch, utopie et espérance. Paris: Cerf: 1974 p. 11.
4 E. DUSSEL. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis:
Vozes, 2000, p. 501.
em Bloch, portanto, uma reflexão aberta à realidade latino-americana,
permitindo que, como interlocutor, possamos nos situar quanto à prática
utópica dos que lutam por mudanças qualitativas da sociedade. É preciso,
portanto, que analisemos detalhadamente o conceito de esperança
concreta, pois assim podemos deixar de lado concepções idealistas, onde
o futuro é aguardado sem que o presente seja levado em consideração. A
esperança concreta tem suas raízes antropológicas nas insuficiências
humanas, por exemplo, na fome e no sonho. A fome, como pulsão básica
mais confiável que vida a autopreservação, pode levar à construção
(ideal) de uma sociedade onde a abundância e o bem-estar sejam
constantes para todos os homens (PE, I, 68-70); o sonho, por sua vez,
quando é sonho diurno, de-olhos-abertos, permite ao homem lançar-se
para o futuro, buscando o não existente, mas que poderá existir,
dependendo de seu engajamento para que se torne real (PE, I, 88-114).
O Princípio Esperança é um desafio para a necessidade de uma
recuperação do sentido positivo da utopia, passando desde as denúncias
dos utopistas do Renascimento até a prática político-social dos socialistas
utópicos (ver, especificamente no vol. II do PE, o cap. 36, “Liberdade e
ordem, esboço das utopias sociais”). Segundo a linha de reflexão de
Bloch, a utopia não é algo fantasioso, simples produto da imaginação,
mas possui uma base real, com funções abertas à reestruturação da
sociedade, obrigando a militância do sujeito, engajado em mudanças
concretas, visando à nova sociedade. Assim, a utopia se torna viável à
medida que possui o explícito desejo de ser realizada coletivamente.
Bloch defende que, embora as utopias estejam presentes na vida do
homem em todos os momentos, ela só se realiza plenamente no
marxismo; ali encontramos a base real para serem eliminados os
elementos puramente abstratos da utopia, sendo a única utopia capaz
de superar as profundas contradições do sistema capitalista. É, por isso
que, ao analisar a relação entre marxismo e antecipação concreta, Bloch
afirma que “engajar-se no pensamento do que é justo é uma
determinação que precisa persistir mais do que nunca” (PE, II, 174).
Todavia, são imprescindíveis que existam condições materiais para
a concretização do socialismo como utopia, superando, assim, as atitudes
abstratas por atitudes concreto-revolucionárias. Daí ser necessária uma
análise das possibilidades concretas de realização da revolução
socialista, a qual obriga, pelas funções de consciência antecipante, a um
otimismo militante para a construção do ainda-não-consciente (ver em
PE, I, 115-176, a discussão sobre “a descoberta do ainda-não-consciente”
e a análise sobre “a função utópica”). Bloch demontra que a realização do
ainda-não-consciente só ocorrerá na própria realidade a ser
transformada. Aqui se insere a bem fundamentada análise que Bloch faz
das teses de Marx sobre Feuerbach (PE, I, cap. 19 – “A transformação do
mundo ou as Onze Teses de Marx sobre Feuerbach”, p. 246-282.), onde
destaca, principalmente, a grande relevância dessas Teses para a
compreensão filosófica da práxis revolucionária, pois “a humanidade
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socializada, aliada a uma natureza mediada por ela, significa a
reconstrução do mundo como pátria ou lar” (PE, I, 282) . A interpretação
de Bloch às teses sobre Feuerbach resgata uma tradição marxiana, qual
seja, a questão do humanismo. Daí a necessidade de se compreender o
para quê dessa práxis, que nos leva ao humanismo marxista: somente no
marxismo se visualisam as condições materiais objetivas para a
realização da utopia como humanismo concreto, questão que coroa a
análise blochiana de esperança (PE, III, cap. 55 – “Karl Marx e o espírito
humanitário”).
Bloch tem a coragem de reconhecer a necessidade de se repensar
o marxismo em pontos centrais. Segundo ele, a marcha para a
humanização, para o da Liberdade, exige uma libertação das classes
trabalhadoras, eliminando-se qualquer resquício de alienação. E Bloch é
contundente ao relacionar marxismo e humanismo:
O conceito de valor “humanidade” ainda é perfeitamente mantido por
Marx. (...) A expressão ‘humanismo real’, com que inicia o prefácio de A
sagrada família, é abandonado na Ideologia alemã, em conexão com a
rejeição do último resto da democracia burguesa, com a obtenção do
ponto de vista proletário revolucionário, com a criação do materialismo
histórico dialético. (...) Quanto mais científico o socialismo, tanto mais
concreta é justamente a sua preocupação com o homem como centro, e a
anulação real de sua auto-alienação como alvo (PE, I, 260-261).
Nesta citação encontra-se um dos exemplos comprovadores da
diferença entre a interpretação blochiana e a dos marxistas ortodoxos,
que buscam uma cientificidade, negando, muitas vezes, a validade de
serem levantadas questões sobre o homem e sobre a sociedade socialistahumanista,
prevista por Marx.
O prefácio de O Princípio Esperança (PE, I, 13-28) é verdadeira
síntese do pensamento de Bloch relativamente às questões da utopia e
esperança; ali está presente sua preocupação quanto ao problema de
saber qual o tipo de esperança que o marxismo inspira: de um lado, é
uma leitura científico-dialética da totalidade capitalista; de outro, vai
muito além, apontando para um futuro possível, sem com isso, reduzir-se
a uma visão idealista, numa mera contemplação da realidade existente. O
marxismo, segundo Bloch, é uma teoria que se orienta para a maior
realização humana, ou seja, a transformação qualitativa da sociedade,
vencendo as barreiras da opressão e da alienação.
Algumas condições básicas são necessárias para que essa
esperança não seja mais um termo jogado, ideologicamente, à classe
trabalhadora, visando mantê-la ainda mais dominada pelo capitalismo. A
utilização de um princípio abstrato, qual nova religião, afastaria as
classes trabalhadoras das lutas concretas por uma nova sociedade.
Evitando um tal tipo de interpretação, Bloch afirma que a esperança
concreta só é realizada com a participação da classe trabalhadora,
humanizando a própria sociedade. Já antecipando O Princípio Esperança,
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Bloch escreve no Espírito da Utopia (1918, obra revista em 1923), que “é
penetrando no fenômeno da esperança do futuro que o mundo, no focus
imaginarius, na parte mais escondida e inteligível de nossa subjetividade,
faz sua aparição”5. O privilégio à imaginação, ao subjetivo, o apelo à
vontade do homem pela esperança, possibilia que teses desse nível
possam ser criticadas por um excesso de romantismo e idealismo. A
própria renovação, porém, atuando no marxismo, levanta temas como
subjetividade e futuro, apresentados de uma forma radical.
A nossa época é a primeira a possuir os pressupostos socioeconômicos
para uma teoria do ainda-não-consciente e do que está relacioado a ele no
que-ainda-não veio-a-ser do mundo. O marxismo sobretudo foi o pioneiro
em proporcionar ao mundo um conceito de saber que não tem mais como
referência essencial aquilo que foi ou existiu, mas a tendência do que é
ascendente. Ele introduz o futuro na nossa abordagem teórica e prática
da realidade (PE, I, 141).
Nessa mesma perspectiva, Bloch observa que “Marx investiu mais
de nove décimos de seus escritos na análise crítica do agora, abrindo
relativamente pouco espaço para adjetivações do futuro” (PE, II, 175).
Todavia, ressalta:
Faltam conscientemente as adjetivações propriamente ditas do futuro (...),
e faltam conscientemente pela exata razão de que toda a obra de Marx
serve ao futuro, sim, porque na realidade só pode ser compreendida e
concretizada no horizonte do futuro, mas não como futuro pintado em
cores abstrato-utópicas. Pelo contrário, como futuro que é iluminado de
forma materialista-histórica sob e a partir do passado e da atualidade,
portanto, das tendências atuantes e persistentes, a fim de ser dessa
maneira um futuro conscientemente moldável (PE, II, 175-176).
Críticos já haviam encontrado o caráter utópico do marxismo,
identificando-o como um utopismo abstrato, negativo. Bloch, em sua
tarefa revalorizadora da utopia, atribui, também, tal conceituação ao
marxismo; todavia, numa atitude positiva, pois o fundamental é o futuro,
um futuro que não se realiza por fatalidade, num historicismo vulgar, mas
por uma necessidade histórico-concreta. De um lado, a esperança não é
uma espera passiva, mas se dá através de uma construção, onde o
passado e o presente contribuem para o surgimento do novo; de outro,
exige a participação de todos os homens, engajados no processo
revolucionário. Na texto Direito natural e dignidade humana, de 1960,
Bloch precisa que o marxismo
descobre no ser social do próprio proletariado o processo do qual é
preciso tornar consciente a dialética real para chegar à teoria da prática
revolucionária e, pois, à práxis do ideal revolucionário. O ideal é aqui
5 E. BLOCH. L’esprit de l’utopie. Paris: Gallimard, 1977 (version de 1923, revue et
modifiée), p. 216.
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posto pela tendência, não pela abstração de uma teoria, e retificada pela
práxis da tendência, a níveis mais e mais profundos da realidade.6
Bloch só admite a revolução criada pela imaginação, quando for
posta em prática, retificada, por sua vez, pela práxis (embora o ideal
revolucionário permaneça nesse processo). Quem anima a revolução é a
esperança que o homem tem de um mundo melhor.7 Permanece, assim, o
próprio princípio da necessidade utópica de mudança: a esperança de um
futuro melhor, a nova sociedade. Bloch, ao mencionar o projeto de
esperança, o Novum, guiado pelos princípios fundamentais do marxismo,
apresenta o socialismo, como realização total da Nova Sociedade. Ele
indica limites no pensamento marxiano, quanto à ideais que, embora não
realizados, clamam por realização. A práxis transformadora exige, por
seu turno, uma inspiração obtida, sem dúvida, nesses ideais que, apesar
de não realizados, mantém seu grau de apelo, atraindo principalmente os
ofendidos e oprimidos em busca de justiça, liberdade, solidariedade.
Neste aspecto, a “herança tricolor: liberdade, igualdade e fraternidade” é
mais uma norma do que propriamente um fato histórico, embora se faça
presente aqui e ali, onde haja o processo revolucionário8.
Uma nova questão se impõe, quando se investiga como a esperança
concreta surge, se por um critério puramente subjetivo, ou se por
condições objetivas. A esperança, muito embora tenha um princípio
subjetivo, é fundada na práxis histórica, pois as condições sociais
apontam em direção ao futuro que, imaginando, se torna real a partir da
análise do presente e do passado. Partindo-se, portanto, da idéia de que a
esperança concreta não se esgota em uma realização particular, mas
estimula constantemente a ação do homem que constrói o futuro,
entende-se o porquê do predomínio do espírito utópico sobre o factual.
Não se pode, entretanto, permanecer apenas no aspecto da imaginação,
exigindo-se a sua realização, corrigida, posteriormente, por novas
realizações. Isso indica que a esperança concreta não realizada deixa um
vazio no homem. A esperança aparece nas mínimas atitudes humanas
(mesmo naquelas em que o sujeito, conscientemente, não aceita
mudança): na busca da alimentação, do vestuário, da habitação, do
direito ao trabalho, buscando-se atingir uma sociedade verdadeiramente
humana (questão central da ética material de vida).
A questão que hora se apresenta, um dos problemas fundamentais
do pensamento blochiano, é saber da possibilidade de compreender a
importância do aspecto subjetivo, no movimento objetivo da história. Se a
esperança é o princípio pelo qual o homem supera subjetivamente o
real, ultrapassando-o no momento que permite a tensão para o futuro,
isto não significa afirmá-la como princípio abstrato; embora seja um
6 E. BLOCH. Droit naturel et dignité humaine. Paris: Payot, 1976, p. 201-2.
7 Nesse sentido, Dussel, afirma, com razão, que “Bloch desenvolveu durante toda a vida
o momento crítico positivo do projeto de libertação” (E. DUSSEL, op. cit., p. 457 – grifo
nosso).
8 E. BLOCH. Droit naturel et dignité humaine, p. 158.
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“vivido” subjetivo, o futuro deve ser construído objetivamente sobre
condições históricas. A questão se reveste de complexa dificuldade, pois
implica a relação dialética entre o sujeito e o objeto.9 No caso da
esperança, acrescenta-se um outro problema: compreender como um
estado subjetivo pode relacionar-se com o ainda não acontecido.
Uma das tarefas de Bloch consiste em explicitar o princípio
esperança como um instrumento objetivo para o homem construir um
futuro concreto. Se o futuro ainda-não-é-acontecido, como se esperar
pelo que não é, numa esperança correta? Se, como frisa Bloch, a
esperança por si só não é a garantia para o surgimento do novo, é porque
ela deve ser baseada em um processo transformador, o qual é
identificado como o otimismo militante. Donde se pode inferir que, se o
futuro não é algo que passivamente deve ser esperado, há um elemento
que intervém na esperança, orientando-a: a razão. Na fórmula blochiana:
“a razão não consegue florescer sem a esperança, a esperança não
consegue falar sem a razão; ambas associadas numa unidade marxista”
(PE, III, 453); indica assim, o papel ativo da esperança esperada. A
esperança pelo ainda não-ser implica num engajamento para sua real e
possível concretização, mediado, por conseguinte, por uma ativa e
racional esperança, a docta spes, a “esperança compreendida em
termos dialético-materialistas” (PE, I, 20).
Percebe-se, assim, que a esperança não é um princípio meramente
psicológico, mas uma fundamental determinação da realidade objetiva
em geral.10 Por que aspirar a mudança? Qual a origem desta aspiração?
Como ela se concretiza? Constantemente, existe a referência à esperança
concreta (numa clara oposição à crença cega, passiva) como algo
ontologicamente humano. Segundo Bloch, a esperança encontra-se no
limiar da insatisfação do homem perante a sua condição histórico-social.
É assim, por exemplo, que se pode afirmar, após analisar os limites
humanos, que é muito bom o homem ser imperfeito, diferenciar-se dos
animais por não ser acabado, pois só assim pode fazer algo11.
Esta contradição humana orienta o caminhar do homem: sentir-se
incompleto e, ao mesmo tempo, não saber para onde ir. A insatisfação
consigo mesmo faz com que a pessoa se oriente para o futuro, sem o qual
sua vivência se assemelharia à dos próprios animais. Como já observaram
Marx e Engels, os homens, diferentemente dos animais, produzem os
seus meios de existência, produzindo imediatamente a sua própria vida
material.12 A insuficiência orgânico-humana com que o ato de viver seja
um ato histórico, onde o ontem, o hoje e o amanhã não sejam apenas dias
que ocorrem sem sentido.
9 Veja-se o estudo de Bloch sobre Hegel (de 1949, com versão aumentada em 1962):
Sujet-objet : éclaircissements sur Hegel. Paris: Gallimard, 1977 (especialmente o Cap.
25 “Dialética e esperança”, p. 483 ss).
10 Sobre este tema, ver W. HUDSON. The marxist Philosophy of Ernst Bloch. London:
MacMillan Press , 1983.
11 E. BLOCH. Sujet-objet, p. 483.
12 cf. MARX e ENGELS. A Ideologia Alemã, I. Lisboa: Martins Fontes, p. 19.
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A esperança não é, para Bloch, conceito negativo que nasce do
sentimento da importância humana; ela se manifesta no próprio
movimento do sujeito para o ainda-não-consciente, o “que ainda-não-veioa-
ser”, confrontado com os antagonismos e contradições do presente.
Este confronto confere à esperança a concretude, pois o seu conteúdo só
pode ser encontrado , não em uma transcedência, onde os absurdos o
mundo são explicados, mas nas próprias contradições históricas da
humanidade. O Novum, assim, deixa de ser algo puramente esperado,
numa atitude cômoda de aguardar, mas é buscado com afinco, através do
esforço construtor, por algo que valha realmente a pena fazer: uma
morada digna do homem. É a esperança animando todo e qualquer
movimento social dos oprimidos, pois eles sabem que algo melhor é
possível. Como precisa Bloch, “o que é desejado utopicamente guia todos
os movimentos libertários” (PE, I, 18). A esperança é instrumento
objetivo, ajudando o homem a superar o medo das conseqüências de um
possível ato libertador, além de ajudá-lo a superar a atitude niilista de
negação do mundo.
Como vimos, segundo Bloch, a esperança é algo tipicamente
humano, pois permite que o homem transcenda o real ao superá-lo. Os
limites da esperança encontram-se na própria imperfeição humana.
Assim, aqueles sonhos escapistas tentam resolver uma questão
fundamental para o homem; encontrar uma sociedade onde não haja a
fome. Por outro lado, os sonhos diurnos permitem aspirar,
concretamente, por uma sociedade justa. A esperança, atuando sobre
uma realidade objetiva que virá, permite ao homem uma saída para o
futuro. Bloch deixa claro, porém, que essa saída não ocorrerá
gratuitamente, mas por um processo, onde estejam engajados todos os
militantes, entre eles os filósofos, para a construção do devir. Segundo
ele, os princípios da esperança abrem caminho para a compreensão
ontológica do ainda-não-consciente, permitindo verdadeiras
antecipações do futuro. Para Bloch, “o marxismo foi o único que
promoveu a teoria prática de um mundo melhor, não para esquecer o
mundo presente, como era comum na maioria das utopias sociais
abstratas, mas para transformá-lo em termos dialético-econômicos” (PE,
III, 456).
A análise dos princípios originários da esperança permite-nos
compreender que ela é constitutiva do ser humano, não como uma
espécie de essência abstrata, mas sim acontecendo na prática social
daqueles que buscam modificar o estado de coisa vigente. Assim, a
esperança concreta é fundada na realidade humana, sem, contudo, negar
as contradições que pertencem à própria condição histórica do homem.
Este é o conteúdo ético da utopia.
O marxismo de Bloch é melhor entendido como crítica à tradição
marxista ortodoxa, a qual, em nome da prática revolucionária, degrada,
num esquematismo pragmatista, a imaginação revolucionária; tal atitude
leva a degenerar o marxismo em um dogma, tomando-se o pensamento
7
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de Marx apenas pela metade ao privilegiar um naturalismo cientificista
das “leis da história”. Neste sentido, as mudanças são reduzidas apenas
às dimensões do economicismo. Essa posição acarreta, assim, uma
profunda desvalorização do próprio homem, à medida que ele é reduzido
a mero objeto determinado do processo histórico. Para corrigir esta
distorção da tradição do marxismo, Bloch pretende “reabilitar
radicalmente a utopia como uma categoria fundamental, política e
filosófica”.13 Ele visa, portanto, ao destacar a importância da imaginação
revolucionária, “encontrar a herança intacta” do marxismo14. Como
precisa Raulet, Bloch, ao encontrar o método que permite afirmar uma
“esperança materialista e dialética”, “constitui uma obra prima ao
colocar em vigor a racionalidade marxista” que “é a mais forte campanha
empreendida até os dias de hoje para ultrapassar a racionalidade
dominante”15. Não restam, dúvidas de que sem Bloch o marxismo
contemporâneo estaria bem pobre. Concordando com C. Luzenberger16,
observamos que a filosofia de Bloch é um projeto ambicioso que não se
limita à crítica da ideologia determinista burguesa, mas contribui para
uma verdadeira e própria cosmologia e ontologia utópica de cunho
marxista.
A obra de Bloch pode ser lida, quanto a este aspecto, esperando
nela encontrar, não a “luz” para interpretar a realidade latino-americana,
mas sim um instrumento válido, que auxilie o filósofo a engajar-se mais e
mais na árdua tarefa da humanização da sociedade; na prespectiva da
ética material de vida a “herança tricolor: liberdade, igualdade,
fraternidade” não é apenas um ideal vazio de conteúdo, mas indica o
caminho da libertação: ajudar o homem latino-americano a descobrir as
causas de sua alienação. Como precisa Hurbon “cremos que nas tarefas
urgentes de desconstrução do imperialismo ocidental, a filosofia da
utopia elaborada por Bloch oferece perspectivas favoráveis aos militantes
dos países do Terceiro Mundo que querem romper com o código da
racionalidade ocidental”.17 A abordagem filosófica dos marxistas
heterodoxos, dentre ela a de Bloch, é muito sugestiva para os pensadores
latino-americanos; ela não vem tolher nem limitar as suas “raízes
autóctones”, mas é um instrumento válido, para que eles reflitam
dialéticamente sobre o ainda-não-consciente, sobre o Novo. É essa,
também, a contribuição que se deve procurar na obra blochiana, válida
para a ética material de vida.
13 W. HUDSON , op. cit., p. 49.
14 E. BLOCH. L’esprit de l’utopie, p. 11.
15 G. RAULET. Humanisation de la nature, naturalisation de l’homme : Ernst Bloch ou le
projet d’une autre rationalité. Paris: Klincksieck, 1982 p. 19-20.
16 C. LUZENBERGER. Narrazione e utopia : saggio su Ernst Bloch. Magliano: LER,
2002, p. 147.
17 L.HURBON. Op. cit., p. 136.
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