Barata-Moura – marxista, filósofo e… músico
Por José Paulo Netto.
Na
coluna do mês passado, disse aos meus eventuais leitores algo sobre
Magalhães-Vilhena, o grande exemplo da geração de filósofos marxistas
portugueses que encontrou melhores condições para o seu desenvolvimento
na sequência da Revolução dos Cravos. Retorno de novo a
portugueses, fazendo rápida menção a um dos vários pensadores daquela
geração, para a qual Magalhães-Vilhena é um verdadeiro ícone – a que
talvez apenas se ombreie a figura do matemático e homem de cultura Bento
de Jesus Caraça (1901-1948, outro notável intelectual vinculado ao
Partido Comunista Português/PCP). O pretexto para a coluna deste mês é a
minha revisitação a um livro publicado há quase 40 anos, Totalidade e contradição. Acerca da dialética (Lisboa: Horizonte, 1977; reedição, aumentada e revista: Lisboa: Avante!, 2012), de José Barata-Moura.
No domínio
da cultura, reconhece-se hoje Barata-Moura como um filósofo consagrado.
Consagrado nacional e internacionalmente: tendo sido reitor da
Universidade de Lisboa (1998-2006), em cujo Departamento de Filosofia
leciona como professor catedrático, é membro de respeitadas associações e
academias científico-filosóficas europeias, participa de congressos e
simpósios em todo o mundo (já esteve inclusive entre nós) e tem a seu
crédito substantiva bibliografia.*
Nem mesmo a
sua permanente e ativa militância política foi capaz de travar ou, menos
ainda, impedir a constituição do amplo consenso que respalda aquele
reconhecimento – Barata-Moura não vive somente no gabinete de pesquisas:
é bem provável que, se o meu eventual leitor qualquer dia desses
visitar Lisboa, vá encontrá-lo numa popular “sessão de esclarecimento”
do PCP, numa passeata/comício ou à frente de intervenções políticas de
maior ressonância (em 2010, ele foi o “mandatário nacional” da campanha
do candidato comunista, Francisco Lopes, à Presidência da República).
Em suma: o filósofo, comprometido com a luta pelo socialismo desde
muito jovem, nunca foi um “radical de ocasião”; ao contrário, tipifica
mesmo aquele militante que, num célebre poema de combate, Brecht
caracterizou como imprescindível.
Exímio
conhecedor do idioma alemão, Barata-Moura tem se destacado, igualmente,
como seguro tradutor de Marx-Engels. Já em meados dos anos 1970, ele
passou a compor o “coletivo Avante!” de tradutores, que verteu ao
português, entre outras, as Obras escolhidas de Marx-Engels em três tomos e que, atualmente, está finalizando uma nova tradução d’O capital,
dirigida por ele e Francisco Melo – foram editados, pela Avante!, entre
1990-2012, seis dos oito tomos em que a edição apresentará os três
livros de que se constitui modernamente a obra máxima de Marx).
Deixemos, porém, o presente e voltemos a 1977, voltemos a Totalidade e contradição,
um livrinho de capa verde, com modesta aparência e pouco menos de 200
páginas em tamanho reduzido. Não se está diante de texto leve: a
linguagem é densa e castigada, mas a forma amolda-se com justeza ao
conteúdo que, embora centrado em duas categorias nucleares da dialética
materialista, permite-se excursos de extrema erudição (p. ex., na seção
II do livro, onde o autor esboça elementos para uma história da
dialética, arrancando dos gregos e chegando ao materialismo dialético). O
tratamento daquelas duas categorias nucleares (totalidade e
contradição) supõe, evidente e preliminarmente, uma elaboração – mesmo
que ainda num alto grau de abstração – da dialética, posta já a
diferenciação entre os princípios (o histórico e o sistemático) que
comandam os modos de abordá-la e a distinção entre conceito e categoria
(na seção I, “em jeito de introdução”, os econômicos parágrafos em que
tais diferenciação e distinção se operam são suficientes).
Tal
elaboração faz-se na seção III do livro. Se o meu eventual leitor
suspeita que não se pode, em 30 páginas, cuidar com rigor da
“determinação geral da dialética” (eis o título da seção), posso
garantir-lhe que a suspeição, neste caso, carece de sentido. A argumentação do jovem (no ano da publicação de Totalidade e contradição, o autor, nascido em 1948, ainda não completara 30 anos, mas já exercitava desde antes o seu labor analítico em ensaios como Kant e o conceito de filosofia, de 1972, e Da redução das causas em Aristóteles,
de 1973) Barata-Moura é solidamente fundada. Essencialmente ontológica,
como diria o último Lukács, a concepção de dialética desenvolvida por
Barata-Moura – compreendendo-a simultaneamente como processo objetivo e
como assunção subjetiva (na consciência teórico-filosófica) – dista
anos-luz da vulgarização/divulgação manualesca. É uma concepção na qual
“a dialética encontra-se aberta e fundada numa realidade que está ela
própria em constante movimento, no quadro de um desenvolvimento que não é
caprichoso nem irracional – isto é, no quadro de um desenvolvimento que
é possível conhecer e, em boa medida, dentro de certos limites,
determinar” (p. 108-109). Mais: uma concepção, objetiva e subjetiva, de
dialética colada à práxis transformadora:
“Uma
transformação que a própria verdade do real impõe e que é exigida pela
prática material em que a dialética surgiu sistematicamente e em que
continua a inscrever-se: o movimento operário internacional e a sua luta
pela emancipação que, necessariamente, passa pela abolição do
capitalismo, enquanto forma contemporânea da exploração de uma classe
por outra” (idem).
A referência
da dialética à intervenção prático-política emancipadora não tergiversa
a análise teórico-filosófica que Barata-Moura empreende – antes,
potencializa esta análise, que, na sequência expositiva (seção IV),
aborda a categoria da totalidade e seu fundamento objetivo. O filósofo
pensa a totalidade ontologicamente: ela não se constitui como
“hipostasiação de uma entidade abstrata transcendente ou imanente” (p.
118), nem é um artifício intelectivo para organizar o conhecimento da
realidade: seu “fundamento real” é “o processo histórico no seu conjunto
e desenvolvimento” (p. 119). Dada a sua inequívoca complexidade e
diversidade, tal processo exige a determinação de diferentes níveis de totalização; a diferencialidade do
real exige do pensamento dialético “determinar a qualidade respectiva
das diversas modalidades de diferença que ele [o processo real objetivo]
inegavelmente patenteia” (p. 133). Com efeito, “o real é uma
totalidade, sem dúvida, mas uma totalidade contraditória, nos próprios
termos e elementos em e por que se constitui e desenvolve” (idem).
Daí a
necessidade de perquirir a relação dialética/contradição (objeto da
seção V do livro). Barata-Moura assevera que é, no “contexto de unidade
fundamental do real”, que “a contradição interna assume o seu papel
constitutivo de princípio estrutural do movimento” (p. 139); e, de forma
peremptória: “a contradição se encontra […] no centro de toda a
dialética” (p. 140). São várias as distinções que, nesta seção, o
filósofo desenvolve – citem-se particularmente duas: entre o “polo
dominante” o “polo determinante” da contradição e entre a “contradição
dialética” e a “contradição lógica”. No que toca à contradição
dialética, ele salienta que “há que pensar essencialmente a contradição
no quadro do devir da realidade objetiva”, que é o seu
“horizonte primordial”. E faz uma determinação axial, que reproduzo
devido às suas relevantes implicações: “[…]A dialética que
subjetivamente nos aparece, nomeadamente ao nível do saber, não apenas
se estabelece como reflexo da realidade objetiva, mas faz ela própria
parte integrante dessa mesma realidade, ainda que no plano e no nível
que lhe são específicos. A consciência que reflete o mundo, de uma
maneira adequada ou não, não se encontra ela própria fora ou ao lado ou
paralela ao mundo. Muito pelo contrário, na medida em que encarna num
viver concreto que a sustenta, na medida em que enraíza numa prática
que, em última análise, lhe define verdadeiramente o sentido e a
determina, a consciência encontra-se mergulhada no mundo” (p. 159).
Por estas pequenas amostras, certamente que o leitor percebe que Totalidade e contradição. Acerca da dialética não
é um manual a divulgar a “dialética” em poucas dezenas de páginas ou a
resumi-la facilmente com o recurso mecânico e abstrato a “leis
fundamentais”. É um texto erudito, construído com base na recorrência
sistemática aos clássicos do marxismo (Marx, Engels e Lenin, com o
obrigatório tributo a Hegel), mas sensível à tradição filosófica antiga
(Platão, Aristóteles) e à dos séculos XVII-XVIII (Spinoza e Kant) e
também tangenciando autores do século XX (de G. Gurvitch a K. Popper, de
Mao-Tsé-Tung a Della Volpe). Não é um livro para iniciantes nem para os
já “convertidos” à dialética: supõe algum conhecimento prévio da
problemática nele abordada e interpela quaisquer intelectuais abertos ao
debate da ontologia e da epistemologia.
Lido (ou
relido) à distância de quase quatro décadas, ele chama a atenção por
duas razões: a primeira é a sua solidez teórico-filosófica, que então
tornava Barata-Moura uma promessa intelectual. A segunda é, para aqueles
que acompanharam a trajetória do autor, a constatação de que a plena
realização daquela promessa se concretizou num desenvolvimento que,
visto do presente para o passado, revela que ali já estavam postas as
dimensões básicas da rica e sistemática reflexão que Barata-Moura
ampliaria nos muitos anos seguintes. De fato, a meu juízo, em Totalidade e contradição encontra-se o projeto intelectual de toda a vida de Barata-Moura.
Uma
observação final: na segunda metade da década de 1970, minha filha
divertia-se, em Lisboa, com uma curiosa canção infantil (“Fungagá da
bicharada”). Em 2009, estudante de pós-graduação em Berlim, assistiu lá a
uma conferência de Barata-Moura, impressionou-se vivamente e, viajando
pela memória, surpreendeu-se: era o compositor-cantor que alegrou os
seus mais tenros anos. É isto mesmo, meu caro leitor: quem tem a rara
vocação para estudar Hegel e Marx possui também a sensibilidade
necessária para tocar a alma das crianças. A propósito, quando
Barata-Moura ainda era reitor da mais importante universidade
portuguesa, o seu cancioneiro infantil foi reeditado em DVD (Obra infantil completa, 2004) – e ele alegra, hoje, a vida dos meus netos.
NOTAS
* São
inúmeros os títulos (livros, ensaios, conferências) de Barata-Moura; eis
apenas alguns dos que me parecem mais destacáveis: Ideologia e prática,
1978; Para uma crítica da “filosofia dos valores”, 1982; Da
representação à “práxis”, 1986; Materialismo e subjetividade. Estudos em
torno de Marx, 1997; Estudos de filosofia portuguesa, 1998; O outro
Kant, 2007; Estudos sobre a ontologia de Hegel. Ser, verdade,
contradição, 2010; Sobre Lenin e a filosofia. A reivindicação de uma
ontologia materialista dialética com projeto, 2010; Filosofia em O
capital. Uma aproximação, 2013.
in Blogue da BoiTempo
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