A polícia política e a tortura em Portugal, entre 1933 e 1974 LIVROS PUBLICADOS Irene Pimentel
Resumo
Embora
a polícia política já tivesse sido criada anteriormente em Portugal e a
violência já fosse uma das características da atuação desta e de outras
forças policiais, foi a partir do regime de Salazar, chegado à chefia
do governo em 1932, e em particular desde 1933, com a criação da Polícia
de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), que a Ditadura portuguesa -
Estado Novo -, se muniu verdadeiramente desse instrumento para vigiar,
reprimir e neutralizar os seus principais adversários políticos. Entre
os seus principais métodos de atuação, contaram-se desde sempre a
detenção política preventiva, para “investigar” através da tortura os
presos políticos portugueses. A partir de 1945, com a derrota dos
nazi-fascistas, na II Guerra Mundial, a PVDE mudou de nome para Polícia
Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), modificando-se também
progressivamente os seus métodos de tortura. Com o início e o desenrolar
da guerra-fria, a PIDE foi aprendendo novos métodos “coercivos”, mais
eficazes e “científicos”, nomeadamente no âmbito da NATO e através dos
seus contactos com serviços secretos internacionais, em particular
franceses e norte-americanos. Com a mudança de nome para Direção-Geral
de Segurança (DGS), em 1969, continuaram as torturas, redobrando de
violência à medida que a Ditadura se sentia acossada, quer nas colónias
em guerra, quer na chamada metrópole, onde aumentava o número dos seus
opositores. É a caracterização da tortura levada a cabo pela
PVDE/PIDE/DGS, bem como da evolução dos métodos violentos utilizados ao
longo dos anos em Portugal pela polícia política que se propõe aqui
levar a cabo.
Palavras chave: PVDE, PIDE, DGS, tortura, preso político
1. A criação de uma polícia política
Em
1932, António de Oliveira Salazar foi nomeado Presidente do novo
Ministério e o seu novo ministro do Interior, Albino dos Reis, tornou
público, em 24 de Janeiro de 1933, que a Secção de Vigilância Política e
Social (SVPS) da PIP se iria transformar num corpo
policial autónomo. Tratava-se da Polícia de Defesa Política e Social
(PDPS, D. nº 22 151), chefiada por Rodrigo Vieira de Castro, um
magistrado civil, cujos objetivos eram reprimir
internamente os desvios “políticos e sociais”. Alguns meses depois, em
24 de Junho, desgastado e não merecendo a confiança dos «Rapazes da
Ditadura», Albino dos Reis demitir-se-ia, arrastando a sua saída também a
de Rodrigo Vieira de Castro, permanecendo a direção dessa
polícia a cargo do capitão Rosa Mendes, até à criação da Polícia de
Vigilância e Defesa do Estado (PVDE). Criada, em 29 de Agosto de 1933,
pelo DL n.º 22 992, em resultado da fusão entre a PDPS e a
PIP, a PVDE tinha como principal função a repressão do comunismo,
designadamente no que tocava as ligações entre elementos portugueses e
agitadores estrangeiros.Estruturada em duas secções – de Defesa Política
e Social e Internacional -, a PVDE absorveu o pessoal da PDPS, mas, ao
contrário desta, foi dirigida por um militar, o capitão Agostinho
Lourenço, ex-chefe da PIP. A maior parte dos dirigentes da PVDE eram
oficiais das Forças Armadas e, em particular, do Exército. Estavam neste
caso, o próprio diretor, o capitão na reserva, Agostinho Lourenço, e o
seu braço direito, o tenente, depois capitão, José Ernesto do Vale
Catela, secretário-geral da PVDE entre 1933 e 1945, os quais tinham sido
antes, respetivamente, diretor e subdiretor
da Polícia Internacional Portuguesa (PIP). Às suas funções de prevenção e
repressão dos crimes de natureza política e social, bem como de
vigilância das fronteiras, da emigração e dos estrangeiros, a PVDE ficou
ainda, a partir de Junho de 1934, com competências prisionais, ao ser
formada no seu seio, uma Secção de Presos Políticos e Sociais (DL n.º 23
995, de 12 de Junho).
Álvaro
Cunhal contou que, na primeira vez em que foi preso pela PVDE, nesses
anos trinta do século XX, foi colocado, algemado, no meio de uma roda de
agentes, que o espancaram a murro e pontapé, com cavalo-marinho.
Depois, descalçaram-lhe os sapatos e deram-lhe
violentas pancadas nas plantas dos pés. Quando o levantaram,
obrigaram-no a marchar sobre os pés feridos, ao mesmo tempo que voltaram
a espancá-lo pelo primitivo processo. Isto repetiu-se por numerosas
vezes, até que perdeu os sentidos (PIDE/DGS, pr. 15786 SR). Era desta
forma que a PVDE e posteriormente, nos seus primeiros anos, a PIDE
“interrogava” os detidos políticos, aos quais também submetia à
“estátua”. Na posição de imobilidade total, de pé, o inchaço dos pés, as
dores por todo o corpo e o peso da cabeça não tardavam. Quando o preso
se deixava cair, os pontapés atingiam-no em todas as partes do corpo.
Posteriormente, o “método de eleição” da PIDE viria a ser a
tortura do “sono”, embora os espancamentos, com matracas nunca tivessem
sido abandonados, ao longo dos anos, especialmente nos casos dos presos
mais indefesos socialmente ou contra os suspeitos de ações armadas.
2. Da PVDE à PIDE
Com
a derrota dos nazi-fascistas, em Maio de 1945, Salazar e o seu regime
tentaram “limpar” os nomes das suas instituições demasiado conotadas com
os regimes alemão e italiano. Entre outros decretos promulgados nesse
ano, o DL n.º 35 046, de 22 de Outubro, substituiu a PVDE pela Polícia
Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), atribuindo a esta pela
primeira um quadro oficial de 547 funcionários (todos na Metrópole - no
Ultramar não havia então PIDE). Ficavam no âmbito da sua atuação, em
matéria de repressão criminal, as infrações praticadas por
estrangeiros, relacionadas com a sua entrada ou permanência em
território nacional, os crimes de emigração clandestina e aliciamento
ilícito de emigrantes, bem como os “crimes” contra a segurança exterior e
interior do Estado.
O
diploma que criou esta polícia manteve o arbítrio da sua antecessora,
cobrindo-o, no entanto, com o manto da legalidade. Enquanto a PVDE podia
manter quase indefinidamente um detido em prisão preventiva, a PIDE
ficou com a faculdade de determinação e manutenção desta, “apenas” por
três meses, mas prorrogáveis por mais dois períodos de 45 dias, cada. No
entanto, o sistema de fiscalização era estritamente administrativo,
pois, a partir de 1945, um membro do governo - o ministro do Interior -
podia passar a prolongar esse prazo máximo de duração. Por outro lado,
após 1945, a situação do arguido detido era ainda agravada pela
inexistência de prazos de prisão preventiva depois da formação da culpa,
confundindo-se esta com a duração do próprio processo, até ao trânsito
da decisão.
A
longa “vida” da PIDE/DGS, entre 1945 e 1974, pode ser dividida em
quatro períodos. No primeiro, entre 1945 e 1953, a legislação foi
completada, nos dois anos seguintes, por outros «diplomas, um dos quais
(DL 35 830, de 27 de Agosto de 1946) atribuiu competência igual à de
todos os funcionários superiores da administração pública, aos
subinspetores, chefes de brigada e chefes de postos e delegações. A PIDE
ficou ainda, em 1947, com a possibilidade de aplicar «medidas de
segurança», aos condenados por crimes contra a segurança do Estado, aos
quais o governo também passava a poder fixar residência ou expulsar do
País (DL n.º 36 387, de 1 de Julho).
O
poder da PIDE foi ainda reforçado, em 1949, com a criação do Conselho
de Segurança Pública (CSP, DL n.º 37 447, de 13 de Junho), segundo o
qual as «medidas de segurança» foram transformadas em medidas de prisão
«em estabelecimento adequado», de um a três anos, ficando a PIDE com a
faculdade de propor a sua aplicação e prorrogação. Com o diploma de
1949, o Estado Novo procedeu à “desjudicialização” completa do controlo
das atividades subversivas, através da criação da figura de
«vigilância especial», aplicável pelo CSP, a qual tinha competência
para impor, a indivíduos condenados por crimes contra a segurança
Estado, um regime de limitações da liberdade ação, substituindo-se assim
ao tribunal, na aplicação de uma medida idêntica à de liberdade vigiada.
3. Espancamentos e tortura da “estátua”
Os
espancamentos – muito utilizados no tempo da PVDE - nunca cessaram,
depois, a partir de 1945, nomeadamente, perpetrados sobre elementos das
classes sociais mais baixas e funcionários do PCP. Por exemplo, o
assalariado rural Bento Quaresma, de Vale do Vargo, preso em 1952,
ouviu, a meio do seu interrogatório, o inspector Gouveia exclamar, para
os agentes: «Que maneiras são estas de interrogar um comunista?» e, para
mostrar como era, «bateu em cheio no nariz do detido» (Albuquerque,
2003; p. 578). Evidentemente que os funcionários do PCP eram
particularmente torturados, não só para serem neutralizados como para
prestarem informações. Ao funcionário comunista Rogério de Carvalho, o
director da delegação de Coimbra, José Barreto Sachetti disse que iria
ser submetido «a tratamento especial para funcionários» e o facto é que
foi, depois, barbaramente agredido durante trinta horas (PIDE/DGS, pr.
90 GT: 65 e 84).
No
entanto, a partir de 1945, os espancamentos passaram a ser menos
frequentes que a “estátua”, a qual foi também sendo substituída
gradualmente, pela tortura do “sono”, embora aquelas duas modalidades de
nunca cessassem e voltassem mesmo a ser usados pela DGS, no final do
regime. Detido novamente em 1947, Francisco Miguel foi submetido,
durante 30 dias e noites, em 3 etapas, à “estátua” e ao “sono” (48 Anos…,
1974: 67-69). A atitude do PCP relativamente à estátua não foi sempre a
mesma. Por exemplo, em 1949, Jaime Serra foi mantido, durante oito
dias, na “estátua” (Medina, 2001: 109 e 110), mas o mesmo não aconteceu a
Carlos Aboim Inglês, que se recusou a essa tortura, atirando-se para o
chão, pelo que foi espancado (Medina, 1999: 129). Sobre a «estátua», há
um documento da própria PIDE, onde se alude à sua utilização.
Numa
segunda fase, entre 1954 e 1960, a história da PIDE foi marcada pelo
endurecimento repressivo, num período de guerra-fria, a nível
internacional, e de «anos de chumbo» para a oposição ao regime, a nível
interno. Nesses anos cinquenta, em que a oposição ao regime esteve
dividida e o PCP isolado, a PIDE pôde virar-se quase exclusivamente
contra este partido. Em 1954, o DL n.º 39 749, de 9 de Agosto, criou um
quadro de funcionários dessa polícia nas colónias, além de que foram
atribuídas funções de juiz, desde ao director, como ao chefe de brigada
na instrução preparatória dos processos e relativamente à manutenção da
prisão preventiva. Através desse diploma de a PIDE ficou ainda com a
possibilidade de propor a aplicação de medidas de segurança – posterior
ao cumprimento da pena -, e vigiar os indivíduos a elas sujeitos,
cabendo, porém, ao ministro da Justiça, a superintendência da execução
das penas e dessas medidas(MAI, cx 116: ordem de serviço 221/54).
Lembre-se
que a PIDE podia, em teoria, prender sem julgamento e controlo
judicial, até um ano e seis meses, embora, na prática, ela não
precisasse de recorrer a esse «bónus», pois soltava, ao fim de 180 dias,
e acto contínuo tornava a prender por mais 180 dias. Depois, em 1956,
um diploma agravou o regime das medidas de segurança, posteriores ao
julgamento, permitindo-as por períodos indeterminados de 6 meses a 3
anos, prorrogáveis por 3 períodos sucessivos de 3 anos, mesmo nos casos
de presos absolvidos. Entretanto, o capitão António das Neves Graça, que
dirigia a PIDE, desde a passagem à reforma do anterior director,
capitão Agostinho Lourenço, passou a chefiar efectivamente essa polícia,
desde 27 de Novembro de 1956.
Em
1957, setenta e dois advogados, entre os quais Abranches Ferrão,
solicitaram, um inquérito às mortes de dois presos e a maus-tratos
exercidos sobre outros, na delegação da PIDE do Porto. O ministro da
Justiça designou então, para inquirir sobre essas acusações, o juiz
António Alexandre Soares Tomé, da comarca de Vinhais, que ouviu presos,
advogados de Defesa e elementos da PIDE do Porto e de Coimbra. Entre os
presos, testemunharam sobre as violências exercidas sobre eles, os
jovens Fernando Miguel Bernardes, Artur Oliveira de Almeida, Diniz
Miranda, Pedro Ramos de Almeida, José Augusto Baptista Lopes e Seabra
(AHM, 4.ª Juízo, proc, 142/76, 7/12/76; 3, 48-55). Evidentemente, o
relatório desse juiz foi arquivado durante todo o período da Ditadura,
em Portugal.
4. A tortura do “sono”
Se
a “estátua” implicava o “sono”, esta última tortura, que nem sempre
implicava a “estátua”, foi o meio de tortura mais utilizado pela
PIDE/DGS e temido pelos presos políticos. A “estátua” foi sendo
progressivamente abandonada, até porque, como se viu, o preso podia
recusar-se a “fazê-la”, além de que era um meio de tortura, que esgotava
o detido de forma demasiado rápida. Já impedir alguém de dormir tornava
o sofrimento era mais longo, dado que um preso, “apenas” no “sono”,
“aguentava” mais tempo do que, na “estátua”. Por isso, se assistiu a
presos que estiveram durante mais de duas semanas no “sono”, o que era
impossível na “estátua”. No seu relatório de prisão, de 1958, Joaquim
Carreira («Dias») contou ter sido agredido a soco e pontapé e, mais
tarde, sujeito a onze dias de “sono”, dos quais nove dias seguidos de
pé, só com um intervalo de oito horas (PIDE/DGS, pr. 53 GT: 51).
Noutro
relatório, sobre a sua segunda prisão, nesse ano, Alcino Ferreira
referiu que a PIDE estava então a usar, tanto as «amabilidades», como o
as «violências». Este detido acrescentou que a «polícia considera e com
razão que desmoralizar o preso é meio caminho andado para o fazer falar»
e que a PIDE estava a utilizar o que os americanos chamavam de
«interrogatório seguido»: vários investigadores revezavam-se, para não o
deixar dormir, insistindo no mesmo ou mesmos pontos, muitas vezes
aparentemente insignificantes, para levar os presos a serem alvo de
crises de nervos. Quando todos os outros processos se malogravam, a PIDE
insistia para que o preso ficasse de pé.
Em
1961, Octávio Pato foi sujeito à privação do sono, durante onze dias e
noites, de uma vez, e sete dias e, noutra, com um pequeno intervalo de
dois ou três dias. Contou que, para impedirem o preso de dormir, os
agentes da PIDE, que se revezavam cada quatro horas, batiam com uma
moeda no vidro da janela. Uma vez, caiu redondamente no chão, «como um
pau», o que era uma situação muito perigosa, pois que se batesse com a
cabeça na ponta duma secretária, poderia «ter morte imediata». Ora,
segundo conta Pato, a polícia não estava interessada na morte do preso,
pois o que lhe interessava era que ele «traísse, denunciasse e ficasse
liquidado politicamente» e, por isso, mais tarde, esses cantos e
esquinas foram protegidos. A Pato, os agentes disseram que ele «tinha
batido o recorde» e «tinha prestado um mau serviço ao Partido ao ter
mostrado à polícia que era possível estar tantos dias sem dormir»
(Medina, 1999: 189-195).
5. O isolamento
Além
de utilizar as torturas da “estátua” ou/e o “sono”, a PIDE usava ainda a
incomunicabilidade, que não era, aliás, das provas menos duras, como
disseram muitos presos. No geral, esta durava à volta de três meses,
embora pudesse ir até aos seis meses, com proibição de livros, revistas e
correspondência. Depois, ainda que com o nome de «isolamento contínuo»,
a incomunicabilidade prolongava-se em Caxias (PIDE/DGS, pr. 6 GT: 26).
Convém especificar, que, no regime prisional português, a
«incomunicabilidade» se distinguia do «isolamento contínuo». Em 1959, o
advogado Abranches Ferrão, escreveu, ao diretor da PIDE, lembrando que,
segundo a Reforma Prisional, apenas, no período de incomunicabilidade,
que durava cinco dias, no máximo, o detido não podia receber visitas. Em
resposta, a PIDE citou o mesmo diploma, segundo o qual, «aos atos de
instrução contraditória poderão assistir o Ministério Público, o
arguido, o seu defensor e o advogado dos assistentes», mas «o juiz pode
denegar a faculdade a que se reporta este artigo na medida em que se
considere incompatível com o êxito ou finalidade das diligências»
(PIDE/DGS, pr. 368/59, vol.2: 231-33). Álvaro
Cunhal afirmou, com conhecimento de causa, que a «incomunicabilidade»
«era a pior de todas as torturas». Lembre-se que este esteve
incomunicável durante onze anos, nove deles na Penitenciária de Lisboa e
depois em Peniche, tendo estado, durante os primeiros catorze meses,
numa cela, sem direito a passeios, livros, nem jornais, de manhã, tarde,
dia e noite, jogando xadrez consigo próprio, em peças esculpidas com
miga de pão (AOS/CP/PC -37). Ainda sobre o isolamento prisional, veja-se
a descrição de J. A da Silva Marques, que o considerou «bastante mais
difícil de suportar que um espancamento», e, embora menos doloroso que a
“estátua”, «muito mais abalador que a mera violência física». Veja-se
como relatou a sua própria experiência:
«Sozinho
numa cela, sem visibilidade para o exterior, sem nada para fazer, sem
ninguém para conversar, sem nada para ler, sem nada para escrever, sem
horas, sem dias, atravessando as intermináveis horas dos dias e das
noites, o preso no “isolamento” é verdadeiramente um homem só. Sem tempo
e sem espaço, retirado da vida. Como se tivesse sido metido num buraco,
e o mundo continuasse a rodar, passando-lhe por cima ou ao lado. Antes
entre inimigos. Uma reação significativa era a dos presos em
“isolamento” chamados a interrogatório. Como se ansiava dia a dia essa
chamada. Ir a interrogatório era como que ir ver o que se passava “lá
fora”. Um regresso ao mundo. E quando se ouvia no corredor os passos da
brigada que vinha buscar um preso para interrogatório, e ela se dirigia
para a cela ao lado, sentia-se uma amargurada mistura de alívio e
frustração. A “sorte” de não ter ido, de não suportar provavelmente
novos vexames ou violências; e o não ter tido a “sorte” de ir, de ir “lá
fora”» (Marques, 1976: 111-114). Um
aspeto que parece, e é seguramente, menor, mas é relatado por muitos
presos, é o facto de terem sido sujeitos, pela PIDE, a calúnias, ameaças
e chantagem com a família. A um preso, sujeito às maiores violências, o
que mais o chocou foi o facto de o ameaçarem de ser condenado como
«vadio». Muitos outros membros e funcionários do PCP relataram as
calúnias que a PIDE fazia a esse partido e aos seus dirigentes, e as de
tipo pessoal, relativamente a companheiras ou companheiros. No entanto,
as chantagens com familiares, nomeadamente com os filhos, foram
sobretudo utilizadas pela PIDE com as mulheres presas. Segundo
contou Albertina Diogo, detida em 1960, uma das coisas que mais a
chocou, na PIDE, foi o facto de, um dia, quando era levada para os
interrogatórios, terem aberto uma porta de uma sala, onde estavam, à sua
espera, os seus dois filhos que viviam com a avó desde os vinte meses
de idade (Melo, 1975 199-203). Os interrogatórios das funcionárias,
dirigentes e militantes do PCP presas variaram ao longo dos anos e foram
diferentes e específicos, relativamente aos dos homens. Por exemplo,
para as humilhar e insultar, a PIDE utilizava o facto de serem solteiras
e terem vivido na companhia de vários funcionários do PCP em casas
clandestinas, como aconteceu com Georgette Ferreira (Melo, 1975: 67-69).
Outra característica, terrível, de algumas detenções de mulheres, foi o
facto de terem sido detidas com os filhos pequenos. Casimira da
Conceição Silva Martins foi presa, quando estava grávida e, quando o
filho nasceu, , na maternidade Alfredo da Costa, a polícia quis obrigar
Casimira a registá-lo com o nome do marido, embora o pai biológico fosse
outro. Ela recusou e, depois do parto, voltou com o bebé a uma cela na
cadeia, onde ele esteve durante dois anos, com falta de assistência
médica, de sol e de recreio, o que lhe originou uma avitaminose. «De
cada vez que o carcereiro abria a porta da cela ele gatinhava muito
depressa para se escapulir para fora», segundo contou (Melo, 1975:
60-61).Outro caso passou-se com Colélia Maria Alves Fernandes, presa em
Agosto de 1962 e isolada numa cela, com os dois filhos, por não ter
ninguém a quem os deixar no exterior, e sobre a qual os inspetores
Tinoco e Jaime Gomes da Silva exerceram chantagem, ameaçando que eles
seriam internados num orfanato (AHM, 4.ª Juizo, pr. 28/80, vol. 1 : 57
). As inúmeras cartas que escreveu aos diretores da PIDE e de Caxias,
para atenuar as péssimas condições de vida dos filhos são reveladoras de
quão dura era a situação de uma mãe com crianças, na cadeia política. O
filho foi o primeiro a sair, em 25 de Agosto de 1963, para casa de
familiares que nunca tinha visto antes, seguindo-se-lhe, em Novembro, a
filha.
6. De Neves Graça a Silva Pais
O
capitão António Neves Graça foi substituído na chefia da PIDE, em 26 de
Fevereiro de 1960, pelo coronel de Cavalaria Homero de Matos, antes na
GNR. Em 12 de Julho, sugeriu, num relatório, enviado a Salazar, a
transformação da PIDE numa polícia «secreta» exclusivamente de
Informações, que não se apresentasse «como órgão burocrático do Estado,
com a sua ordem de batalha publicada no Diário do Governo» (AOS/CO/IN-
16, p. 4). Em 1961, iniciou-se a guerra colonial, em Angola, e o DL n.º
43 582, de 4 de Abril, previu a criação de subdelegações e postos de
fronteira e de vigilância em Angola e Moçambique e distribuiu o pessoal
da metrópole e do Ultramar por um quadro único, colocando a PIDE, «em
relação ao ultramar, tal como se encontravam as forças armadas», tal
como tinha proposto Homero de Matos. Esse
ano de 1961 foi, porém, o último de Homero de Matos, à frente da PIDE,
tendo provavelmente a sua saída estado ainda relacionado com o facto de
os seus projetos de remodelação da PIDE serem recusados pelo corpo de
inspetores, que os consideraram atentatórios da sua autonomia,
nomeadamente a sua sugestão de subordinação da PIDE, ao ministério da
Defesa Nacional. Foi substituído na direção da PIDE, pelo major Fernando
da Silva Pais, provido no cargo em 6 de Abril de 1962. Este último, tal
como anteriormente Agostinho Lourenço, despachava diretamente com
Salazar, revelando bem que dependia, deste último, a aceitação das suas
propostas de remodelação da polícia política. Quando esteve preso, após o
25 de Abril de 1974, Silva Pais afirmaria que nunca tinha atuado por
iniciativa própria, mas sempre sob tutela do vários ministros do
Interior, acrescentando ainda que se encontrava com Salazar e, depois,
com Marcelo Caetano, todas as semanas, para receber instruções (O Jornal, de
30/1/1981).Com a substituição de Homero de Matos, pelo major Silva
Pais, na direção da PIDE, em 1962, foi reforçada a componente
informativa desta polícia. Agostinho Barbieri Cardoso, que muitos
consideraram como o verdadeiro chefe da polícia política, regressou à
PIDE, Álvaro Pereira de Carvalho foi nomeado diretor dos Serviços de
Informação, que foram então reorganizados, e José Barreto Sacchetti
ficou a dirigir os Serviços de Investigação. Silva Pais reformou os
Serviços Centrais de Informação e tentando transformar a PIDE numa
organização de Intelligence. Ao justificar, após 1974, a sua estadia na
PIDE/DGS, Fernando da Silva Pais mencionou ter sugerido então, ao
ministro do Interior, que a instrução dos processos passasse para a PJ,
de modo a que a PIDE/DGS reforçasse o seu sistema informativo e para que
aquela polícia partilhasse com esta a má vontade e o ódio que a
população só votava à polícia política (Diário Popular, 3/4/76: 25). Diga-se
que esta ideia terá sido veiculada, junto do ministro do Interior, por
iniciativa do diretor da 2.ª Divisão, dos Serviços de Informação da
PIDE/DGS, reformada por Álvaro Pereira de Carvalho. Integravam a 2.ª
Divisão os Centros de Informações - nacionais, CI (1), e estrangeiras e
ultramarinas, CI (2) -, o Gabinete Técnico (GT), o Gabinete de Cifra, o
Arquivo Geral de Processos e as Brigadas Especiais de Vigilância. Nessa
Divisão de Informação, foram então introduzidos, na PIDE, «métodos
“modernos”, na sua maioria importados dos estágios na CIA» e aprendidos
com os Renseignements Généraux franceses (Delgado, 1995:165-168). Após a
chegada de Fernando Silva Pais e o regresso de Agostinho Barbieri
Cardoso, a 1.ª Divisão desta polícia, dos serviços de Investigação – que
levavam a cabo os interrogatórios e a instrução dos processos dos
presos -, passou a ser chefiada por José Barreto Sacchetti, transferido
de Coimbra para Lisboa (AHM, pr, 928, 20/3/75, vol. 6: 227-229).
7. A generalização das torturas às mulheres e o aumento da violência em 1965
Alda
Nogueira, funcionária do PCP, presa em 1959, contou que, «por sistema, a
Polícia ainda não batia nas mulheres nem as obrigava à tortura do
sono». De qualquer forma, pode-se dizer que as torturas infligidas às
mulheres, pela PIDE, começaram verdadeiramente, em final de 1960, com as
detenções da Albertina Diogo e de Fernanda Paiva Tomás e
generalizaram-se, depois, com as mulheres do Couço (Melo, 1975:180-184).
Ou seja, quando de mulheres de rebeldes, a PIDE as passou a considerar
como mulheres rebeldes. Maria
Albertina Ferreira Diogo, companheira de Guilherme da Costa Carvalho,
detida em 14 de Novembro de 1960, relatou as violências a que foi
sujeita, quando esteve, em interrogatórios, entre uma segunda-feira e o
sábado seguinte. Ao quarto dia, as agentes da PIDE, Madalena e Odete,
deram-lhe tanta pancada, que lhe lesaram um ouvido para sempre. As duas
empurraram-na de encontro às paredes e, como ela protestasse,
atiraram-se a ela, deixando-a «toda marcada, muito congestionada e a
deitar sangue por uma mão». No quinto dia de tortura, sem poder dormir e
de pé, incharam-lhe as pernas e os pés o que a obrigou a estar descalça
a partir daí, seguindo-se «um mal-estar contínuo, agravado por fortes
tonturas» e vómitos (Melo, 1975: 199-203). Quanto
a Fernanda Paiva Tomás, funcionária do PCP, presa uma segunda vez em
1961, foi uma das primeiras mulheres a ser torturada segundo o padrão da
tortura aplicado aos presos do sexo masculino. Ela própria contou ter
tido uma primeira experiência de 80 horas consecutivas sem dormir. Além
de referir as violências sofridas, Fernanda Paiva Tomás relatou o caso
de seis camponesas do Couço, submetidas a estas mesmas torturas durante
3, 4 e mais dias algumas mais do que uma vez e agredidas por agentes da
PIDE que desceram às mais vis insolências (PIDE/DGS, pr. 25 GT).
Também Aida Magro relatou que as primeiras mulheres a serem torturadas
pela PIDE foram Maria da Conceição Figueiredo, Maria Custódia Chibante,
Maria Guilhermina Galveias, Maria Madalena Henriques e Olímpia Brás,
todas do Couço, que sofreram a “estátua” e o “sono”, durante cinco dias e
noites, em 1962 (Freitas, Diário de Lisboa, 14/8/1974). No
entanto, embora se tivessem generalizado, em 27 de Abril desse ano, com
a prisão de mulheres do Couço, outras duas presas, também desta
localidade, foram torturadas anteriormente. Um panfleto do PCP deu conta
que a camponesa do Couço, Cesaltina Maria Feliciano, presa em 15 de
Dezembro de 1960 (Melo, 1975: 206-207), tinha sido «completamente
despida e colocada numa sala cheia de pides que ora a espancavam
brutalmente, ora a insultavam da maneira mais baixa tomando atitudes
humilhantes à sua dignidade de mulher» (Boa Hora, pr. 16827/62: 449). Por
seu turno, Maria Rosa Viseu, operária agrícola do Couço, detida em 19
de Janeiro de1961, foi interrogada pelas duas “pides” Madalena e Odete,
que a encheram de bofetadas. Quando começou a vomitar, tiraram-lhe a
cadeira e puseram-na a fazer estátua, com os braços elevados à altura
dos ombros, no meio da sala. Ficou assim durante horas, com “pides”,
homens e mulheres a entrarem, até à segunda noite, em que Madalena e a
colega voltaram à sala, «sempre à porrada», sem a deixarem ir à casa de
banho. Pelas três horas da manhã, como nada dissesse, levaram-na a uma
sala, onde lhe colocaram «uma espécie de capacete em metal na cabeça,
com duas lâmpadas, uma branca outra vermelha», dirigidas para os olhos.
Levaram-na outra vez para a sala anterior, «toda suja de sangue por
baixo, já toda ferida», e as agentes saíram, para darem entrada a
homens. A “estátua” e o “sono” continuaram durante quatro dias e, já não
se aguentando de pé, Rosa Viseu caiu ao chão. Mais tarde, ameaçaram-na
de a despir, no meio de insultos, e entraram agentes, que lhe levantaram
a roupa. Os interrogatórios continuaram ainda por mais um dia (Melo,
1975, 210-213).
Em
1962, Maria Galveias contou que esteve onze dias «de interrogação» e,
depois, mais seis dias e noites, enquanto Maria Madalena Henriques ficou
sessenta e seis horas sem dormir e a ser espancada, ficando com o nariz
torto e o corpo cheio de nódoas negras (Godinho, 1998: 400-401).
Olímpia Brás relatou ter sido colocada, numa sala, mas, como, ao fim de
um tempo, ela permanecesse calada, vieram as agentes Madalena e
Assunção, que começaram a espancá-la, até o seu braço esquerdo ficar
completamente negro. Ao fim três noites, foi despida, às mãos das
agentes Assunção e Madalena, que lhe bateu, com um cassetête, no
peito esquerdo. ais tarde, teve de ser levada ao Instituto de Oncologia,
na Palhavã, onde uma médica lhe disse que precisava de ser operada
(Melo, 1975: 169-173). Maria
Custódia Chibante, outra mulher do Couço, esteve, na sala de torturas,
vigiada pela agente Odete, que a esbofeteou. A seguir, entrou a agente
Assunção, que espancou Custódia, durante toda a noite, apenas parando
durante pequenos intervalos, para descansar. Levantava a saia da presa e
espancava-a com o «cassetête», a pontos de deixar Maria Chibante negra,
da cintura até à curva da perna, sem quase ver do olho esquerdo. A
presa foi, de seguida, colocada de “estátua” no meio da sala e entrou a
agente Madalena, que a espancou na nuca. Ao fim de setenta e cinco horas
sem dormir, como não conseguisse suster-se em pé, os interrogatórios
continuaram, com ela sentada e, finalmente, ao verem que não se
recompunha, resolveram levá-la para Caxias, em braços (Dossier P.I.D.E., 1974:155-157). Madalena
das Dores Oliveira – a “pide” “Leninha” -, chefe de brigada durante
doze anos, seria levada a tribunal, após 1974, sendo acusada, por Maria
da Conceição Figueiredo, uma das detidas no Couço, de a ter esbofeteado,
esfregado a boca e o nariz com um cassetête e espancado
brutalmente, deixando-lhe «o corpo todo negro e inchado». Segundo
Mariana Janeiro, «com as mulheres mães presas», Madalena «arrancava-lhes
os filhos e jogava com eles, para as fazer falar», criando-lhes, assim,
«a arrepiante e monstruosa angústia de verem os seus filhos em risco de
serem torturados, caso não delatassem» (Diário Popular, 23/7/1977: 5). A
tortura com conotações sexuais foi aplicada a alguns homens e mulheres
do Couço. Várias detidas relataram que era habitual, na situação de
tensão máxima nos interrogatórios, surgir-lhes o fluxo menstrual e a
PIDE não as deixara então recorrer a qualquer protecção, obrigando-as a
limpá-lo com a própria roupa. Maria Galveias contou que, ao fim de onze
dias e onze noites, a levaram para o forte de Caxias, «toda a cheirar
mal, toda urinada», pois não a deixaram lavar (Godinho: 1998: 407). A
proibição de recorrer a qualquer higiene, proibindo aos presos de se
lavarem, foi utilizada sobre os presos, para humilhá-los e provocar,
neles, aquela distanciação relativamente à humanidade comum com o
torturador. Esse
efeito também era conseguido, por outro lado, com o desnudamento dos
presos. Um dos presos do Couço, Jerónimo Bom, mencionou que a agente
Madalena e outra o despiram totalmente, chamando-lhe nomes e mexendo-o
«em todo o lado», para lhe arrasar os nervos, «para rebentar com tudo».
Quanto a Domingos Catarino, relatou, com a mesma coragem de Jerónimo
Bom, que lhe retiraram o cinto e como estava magro, as calças
caíram-lhe: «mandaram-me
lá para uma casa de banho aberta, e depois meteram-me uma mulher.
Aquilo eram mulheres preparadas, mulheres pides. (…) Depois eu não fui
capaz de fazer nada. Enervado, envergonhado por não estar habituado
àquilo» (Godinho, 1998: 405). Um
dos presos que mais tempo esteve na tortura do “sono” foi o engenheiro
Álvaro Veiga de Oliveira, detido, em 20 de Dezembro de 1965, que contou
as brutalidades a que foi sujeito (PIDE/DGS, pr. 3671/59 SR: 61).
Torturado durante 37 dias, esteve, primeiro, 17 dias na “estátua”, só se
podendo sentar nos curtos períodos das refeições, enquanto era
espancado, ‘inclusive com um cassetête eléctrico». Depois de o
deixarem dormir uma noite, certamente para evitar que morresse, voltou a
ser submetido à tortura do sono por dois períodos de dez dias, até que
entrou em coma. Ficou «com as orelhas inchadas, o canal auditivo
completamente tapado e insensibilizado a ponto de não sentir qualquer
dor quando me davam injecções nas orelhas» e, numa ocasião, puseram-lhe a
mão num cano de água a ferver, mas nada sentiu, de tão insensível que
já estava. O subdiretor Sachetti, que disse que os 17 dias de estátua
eram um “novo recorde”, e o inspetor Tinoco apareciam, cerca das quatro
da madrugada, «aparentemente vindos de “boîtes”» (Público, 22/4/94: 8-9). Em
1965, começaram a ser presos membros da FAP/CMLP. Estes, como mais
tarde os presos Acção Revolucionária Armada (ARA), Liga de Unidade e
Acção Revolucionária (LUAR) e das Brigadas Revolucionárias (BR) foram
vítimas da mais selvagem violência, tanto física como psicológica. À
privação do sono, juntava-se, sobretudo a partir do final dos anos
sessenta, o funcionamento de altifalantes, com vozes e gritos de horror,
choros e confissões (Dossier P.I.D.E., 1974: 8, 19). Detida em
21 de Abril de 1965, no Montijo, Maria da Conceição Matos seguiu nessa
noite para a sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, onde a
submeteram, no terceiro andar, à tortura do “sono” e a avisaram que «não
ia à casa de banho», enquanto não falasse. E assim aconteceu (Visão,
21/4/94). Mais tarde, Conceição Matos contou a sua experiência. Começou
por relatar que, numa sala, onde estavam duas agentes femininas, Odete e
Mariete, não a deixaram ir à casa do banho, pelo que acabou por se
«agachar a um canto», mas «entraram na sala, de repelão, o Tinoco e o
Serras» e levantou-se imediatamente. Veja-se a continuação do relato de
Conceição Matos «O
Tinoco avisou-me de que se sujasse a sala teria de a limpar com a minha
roupa. Foram-me despindo aos poucos e tentaram obrigar-me a limpar a
porcaria com a minha roupa. Opus-me terminantemente e tiveram eles que
ensopar os excrementos e a urina na minha roupa. O Tinoco provocava-me
da forma mais soez, ofendendo-me na minha dignidade de mulher. Eu já
estava em combinação.» Finalmente entraram diversos “pides” e a agente
Madalena foi «despindo peça por peça» a sua roupa, até que Maria da
Conceição Matos ficou nua, quando estava sozinha com a Madalena, que
imediatamente se atirou a ela, espancando-a brutalmente, à bofetada e ao
pontapé. Ao mesmo tempo, o agente Serra dava-lhe socos, no queixo, para
a obrigar a manter a cabeça levantada, erguia-a pelos sovacos e
atirava-a com toda a força para cima de uma cadeira, repetindo várias
vezes. Quando, outro agente lhe apresentou um papel, para que assinasse,
Conceição Matos recusou, gritando, mas o «último não» ficou «na
garganta sufocada». Perdeu a respiração e tiveram de lhe bater muito na
cara para que pudesse respirar (Melo, 1975: 260-264).
8. O recrudescimento da tortura, no final do regime
Entre
1962 e 1968, terceiro período na vida da PIDE, a legislação referente a
esta polícia esteve virada para a necessidade de lidar com a guerra
colonial e para o aumento dos seus funcionários. Lembre-se que, entre
1954, quando tinha sido formado um quadro do Ultramar, e 1968, a PIDE
passara de 755 para 3.202 (1187 no continente) funcionários. Em 1967,
Silva Pais enviou a Salazar um novo projeto de decreto-lei, a sugerir
novo aumento do quadro geral da PIDE, na sequência do qual essa polícia
passou a ter 3.202 funcionários - efetivos - (1.187 na Continente e
Ilhas e 2.015 no Ultramar, dos quais 28 no Estado da Índia!) (DL n.º 48
794, 16/12/68, e DL n.º 48 999, 30/4/69). Como
se sabe, com o acidente incapacitante sofrido por Salazar, em Agosto de
1968, este foi substituído pelo Presidente da República, Américo Tomás,
por Marcello Caetano, novo presidente do Conselho de Ministros. Pouco
depois, começou o quarto período da vida da polícia política. Num livro
escrito em pleno “marcelismo” Hermínio Martins afirmaria que, se, no
passado, «a severidade do tratamento era proporcional à posição social e
à ideologia (os operários comunistas eram os tratados da pior maneira),
nos últimos anos do regime teria sobrevindo «uma aparente igualização»
(Martins, 1986: 43). Com o decreto-lei n.º 49 401 de 19 de Novembro de
1969, Marcello Caetano, extinguiu a PIDE e criou a Direção Geral de
Segurança (DGS), que continuou, sob tutela do ministério do Interior,
exceto nas colónias ultramarinas, onde a tutela pertencia ao ministro do
Ultramar. A
partir de final dos anos sessenta, as torturas aumentaram, à medida que
o regime entrava em estertor, devido ao arrastamento sem fim à vista da
guerra colonial, contra a qual cada vez mais elementos da população,
nomeadamente os jovens, estavam crescentemente em oposição, e devido ao
surgimento das ações armadas contra o regime. Foi então que a duração da
tortura do “sono” atingiu limites indescritíveis, de mais de duas
semanas consecutivas e a “estátua” e os espancamentos foram novamente
utilizados recorrentemente, até contra elementos, apenas acusados de
distribuição de propaganda “subversiva”.No estertor do regime, outros
homens e outras mulheres, acusados de pertencerem a diversas
organizações foram presos e conheceram a crescente selvajaria e a
violência da DGS. Terrível foi o caso de José Pedro Soares, preso em 1
de Junho de 1971, que sofreu um total de vinte e um dias e noites sem
poder dormir. A primeira «“sessão” teve a duração ininterrupta de seis
dias e seis noites». Sofreu então o primeiro espancamento, de que lhe
resultaram ferimentos no nariz e no olho direito e, em seguida,
obrigaram-no a permanecer de pé, durante três dias e noites
consecutivas, e como «se tivesse recusado a comer enquanto fosse
torturado, quiseram-lhe introduzir um tubo no estômago para
alimentação». O agente «Ricardo Graça» - nome falso do agente António
Pereira Coelho -, que se fez passageiramente de “bom”, foi o mesmo que,
nos interrogatórios seguintes, teve um dos comportamentos dos mais
brutais. Dormiu
em Caxias, da noite de 8 para 9 de Junho, mas, às 16.30 horas, voltou a
sofrer mais seis dias e seis noites sem dormir, com períodos vários,
sem cadeira para se sentar. Ao terceiro dia, os espancamentos
recomeçaram e prosseguiram até 15 de Julho, dia em que voltou para
Caxias, terminada a segunda fase do “interrogatório”. No dia 24, o
diretor da cadeia, acompanhado de dois agentes empunhando matracas de
borracha, que começaram logo a bater no preso, deixando-o com a cabeça
partida, com o pescoço tumefacto, e os braços inchados, com nódoas
negras e sangue a jorrar pelo nariz. Após nova estada em Caxias, iria
começar o último, mais prolongado período de sofrimento a que o preso
José Pedro Soares esteve sujeito. De novo, os agentes revezaram-se, de
três em três horas, para não deixarem o preso dormir e repetiram-se as
cenas de pontapés e socos, alternados com beliscões e a obrigação de
manter a posição de sentido com os braços levantados à altura dos ombro. Nada
vez que os baixava, os agentes procuravam atingir com pontapés, ficando
o preso «com os braços em estado de não poder sequer fechar as mãos».
Passados alguns dias entrou o agente «Ricardo Graça», com outro grupo, e
mandou o preso arregaçar as calças. Depois, puxou de um cavalo-marinho e
começou a chicoteá-lo brutalmente. Por fim, foi forçado a deitar-se no
chão mantendo as pernas levantadas a um palmo do chão, sendo chicoteado
quando os pés baixavam. Não aguentando mais, «levantou-se rapidamente
sendo novamente espancado até que alguém gritou: “Já chega”».
Posteriormente voltou a ser chicoteado pelo agente «Ricardo Graça» e por
mais dois agentes, com um chicote de tiras de cabedal entrançado. De
mistura com o que se descreveu, houve ainda escarros na cara, ofensas
pessoais e à família, horas de “estátua” e caprichos vários dos agentes
encarregados de sustentar a vigília (PIDE. A História da Repressão, 1979: 112-116). Outro terrível caso passou-se com Júlio Lopes Freire (Público, 17/4/04:
15), preso em 30 de Junho de 1971, que permaneceu, numa cela em Caxias,
até 19 de Julho, dia em que, após a visita com a família, se iniciaram
os interrogatórios. Ou seja, só foi interrogado (torturado) dezanove
dias depois da detenção, pormenor que é muito importante, pois deita por
terra a justificação da polícia, segundo a qual torturava, para obter
informações sobre atentados, que possibilitariam o salvamento de
inocentes. No segundo dia de interrogatório, entrou, na sala, o agente
Joaquim dos Santos Costa, que, por volta das 21 horas, sem lhe fazer
qualquer pergunta, puxou de um chicote e espancou-o com raiva,
acompanhando a agressão de joelhadas nos músculos das pernas. No
terceiro dia de manhã, Santos Costa espancou-o a murro e pontapé,
intercalando a pancada, com ameaças de morte. Na noite de 21 de Julho,
entrou, aos gritos, na sala de interrogatórios, um agente com, que, de
braço dado com o preso, começou a andar às voltas na sala, em passo
acelerado. De cada vez que o preso tentava parar, o agente dava-lhe uma
cotovelada no estômago ou no peito. A noite de 21 para 22 de Julho foi
uma das piores e, no dia seguinte, foi espancado, ora «pelo Santos
Costa, ora pelo pide pequeno». Na noite de 23 para 24, Freire começou a
ver bichos enormes, e «coisas horríveis», e a ouvir gritos, de uma
gravação cujo som era emitido por dois altifalantes disfarçadamente
colocados em duas paredes da cela. Por volta das 5 horas da manhã,
virou-se a um dos agentes, quando se sentiu agarrado pelas costas por
quatro deles, que o espancaram interminavelmente. Voltou para Caxias, na
noite de dia 27 voltou para Caxias, depois de nove dias e oito noites
consecutivas sem dormir (Dossier P.I.D.E., 1974: 115-119). A
DGS viria, depois, a ser reorganizada em 1972, com o fim de prover à
segurança exterior e interior do Estado, continuando com os mesmos
poderes (DL n.º 368/72, de 30/9/72). A violência aumentou ainda mais.
Nos últimos anos do regime, nem só os membros do PCP eram alvo de
terríveis torturas, como se viu, com alguns católicos acusados de
pertencer à LUAR e às BR. A terceira vez que o arquiteto Nuno Teotónio
Pereira, preso em 1973, foi torturado, até desmaiar, com espancamentos,
chicotadas nas pernas e com a tortura do “sono” (Medina, 1999: 170-172).
Cada vez que desmaiava, era acordado, com água e pontapés, obrigado a
levantar-se e espancado em todo o corpo. Durante cinco dias e cinco
noites, este “tratamento” foi acompanhado com a “tortura do sono”, sendo
Teotónio Pereira totalmente impedido de fechar olhos. Nas últimas 24
horas, perdeu a noção do dia e da noite, ouviu gritos de presos e teve
alucinações auditivas (Sempre Fixe, 17/8/74). Luís
Moita foi preso em 27 de Novembro de 1973, pouco depois das 7.30 hora
e, pelas 10 horas, foi levado diretamente para uma sala de
interrogatórios do reduto sul de Caxias, onde quatro agentes o
espancaram com matracas. Após a sessão de fotografias, foi levado
novamente para a sala, onde os agentes se atiraram, de calcanhares, para
cima dos seus pés, dando-lhe pontapés nas pernas, bofetadas e murros.
Enviado para o reduto norte de Caxias, foi visto por um médico, que lhe
receitou um forte antibiótico, para prevenir eventuais infecções. A meio
da tarde foi novamente chamado para uma sala do reduto sul, onde foi
sujeito ao segundo espancamento, totalmente descontrolado e muito mais
violento, por seis agentes com matracas. Quando estava por terra,
meteram-lhe a matraca na boca e espezinharam-lhe a cara, só parando,
quando Luís Moita gritou que se sentia muito mal. Levado
para o reduto norte, passada a hora do jantar de dia 29, já se
preparava para dormir, quando o foram buscar e começou então «a tortura
do sono, numa altura em que não tinha posição possível para o corpo e em
que sentia dores intensas, sobretudo nos braços, nas pernas e na região
lombar». Na noite do dia 30 tornou a ser espancado por um agente, com a
matraca de aço em espiral. Esteve durante seis dias e noites seguidos
na mesma sala de interrogatório, sem nunca poder lavar-se, ficando num
estado de imensa prostração. Além destes seis dias, voltou à sala de
interrogatório mais dez vezes, numa média de seis horas de cada vez (PIDE. A História da Repressão, 1979: 125-129, 146-150). Na
sua segunda prisão, ocorrida em Maio de 1973, José Lamego, acusado de
pertencer ao MRPP, foi sujeito a espancamentos e a dois períodos de
tortura do “sono”, respetivamente de sete e seis dias e noites, treze no
total. Foi ainda preso uma terceira vez, em Coimbra, já em finais de
Janeiro de 1974, tendo então sido sujeito a um período de dezasseis dias
e noites ininterruptos, de tortura do “sono”, que depois foram
acrescidos de mais sete e, posteriormente, de mais três dias e noites.
Na “estátua”, Lamego esteve durante seis dias, ficando com os pés
transformados «numas bolas enormes, a pele ficava muito fina e sensível e
as unhas das mãos sangravam» (Medina, 2001:132, 135-136).
A tortura como método de “investigação” e provas da sua utilização
À
semelhança de todas as polícias políticas das ditaduras, a PIDE não
necessitava de ser muito aperfeiçoada nas tarefas de informação e de
investigação. Tinha desde logo a sua vida amplamente facilitada pela
utilização de uma ampla rede de informadores, controlados pelos serviços
de Informação, bem como pelo recurso à interceção postal e a escuta
telefónica. Quantos aos métodos de “investigação” e instrução dos
processos, a PIDE/DGS, utilizou processos violentos e os chamados
interrogatórios “contínuos” – eufemismo para o “sono” e a “estátua” e os
espancamentos -, na sede da PIDE, ou, mais tarde, no reduto sul de
Caxias. Em Portugal, além dos espancamentos, foi sobretudo utilizada a
tortura «científica» da privação, em parte aprendida com a CIA: a
privação de movimento, ou “estátua”, a privação de dormir, ou tortura do
“sono” e a privação de contactos com o exterior, ou isolamento. Estas
“modalidades” de tortura, reveladoras de que a polícia tinha todo o
tempo do mundo, foram a negação do próprio argumento de que os «safanões
a tempo» eram dados para salvar inocentes, de atos «terroristas»,
conforme tinha dito Salazar, em 1932. Ao «fazer falar» o preso, a
PIDE/DGS pretendia não só obter informações, destruir as suas
convicções, isolá-lo do seu grupo de pertença, bem como obrigá-lo a agir
contra si próprio e contra os seus valores. Além de «fazer falar», a
tortura pretende também fazer com que o torturado oiça a voz do poder e
perceba que está nas suas mãos. Diga-se que, ao longo dos anos, a PIDE
foi aperfeiçoando os seus métodos de “interrogatório contínuo”, que
tiveram, aliás, grande eficácia. Mas
a tortura também serve para «fazer calar», ao constituir um aviso, para
silenciar toda a oposição, e uma ameaça para aterrorizar e desmobilizar
a população, com o simples rumor da existência da violência. No Estado
Novo, a utilização da tortura foi negada, mas a ameaça da sua existência
permaneceu sempre no “ar”, falada à boca pequena, enquanto instrumento
para aterrorizar e desmobilizar. Nesse sentido, embora utilizando a
técnica do eufemismo, a PIDE não deixou de fazer constar, à boca pequena
que elas existiam, para travar veleidades de prevaricação “subversiva”.
Há também que ter em conta que o tratamento da PIDE foi diverso,
consoante a classe social a que pertencia o preso e a organização a que
pertencia. O estertor do regime foi, como se viu, acompanhado por uma
maior repressão e um aumento da violência policial, que coincidiram com a
multiplicação dos problemas enfrentados pelo regime. Pode-se dizer que
Portugal parecia então uma “panela de pressão» pronta a explodir, por si
própria, ou com ajuda. Embora
não haja um único documento no arquivo da PIDE/DGS – pelo menos, de que
se tenha conhecimento – que prove a utilização de tortura, muitos dados
e depoimentos revelam o seu uso. Por outro lado, no processo dos
Serviços de Justiça da Comissão de Extinção da PIDE/DGS, referente ao
ex-chefe de brigada Joaquim dos Santos Costa, há uma lista escrita à
máquina, onde consta a palavra «Torturas», podendo-se aí ler os dias, os
presos e os respetivos agentes, de piquete, nas escalas para impedi-los
de dormir (AHM, pc. 90/7: 38-39). Nos dias imediatos ao 25 de Abril de
1974, alguns agentes subalternos da PIDE/DGS, presos, reconheceram as
violências praticadas por essa polícia.
O
ex-agente António Dias da Fonseca confirmou a existência de «ordens
superiores para determinados presos políticos não serem autorizados a
dormir, permanecendo em salas ou gabinetes da Investigação», onde se
revezavam «os funcionários na vigilância de tais presos» (AHM, prc.
15/81; 220-224, 227; pc. 118/76, vol. 2; 125). Também o
ex-agente Garcia Estêvão disse não poder «garantir que os detidos não
fossem objeto de maus-tratos», referindo nomeadamente Tinoco como «muito
capaz de um tratamento mais violento com os detidos». Por seu turno, o
ex-subinspetor Farinha dos Santos afirmou que, num dado período, pôde
assistir ao «serviço especial», tendo verificado «serem usados
interrogatórios prolongados para obrigar os detidos a confessar as suas
actividades». Nos gabinetes, onde os agentes «faziam investigação dia e
noite, em turnos de quatro horas», os detidos eram interrogados,
«segundo questionários elaborados pelos investigadores» Abílio Pires,
Rodrigues Martins, Adelino Tinoco, Rego, Rosa Casaco, Francisco
Fernandes e Pedro de Oliveira, que eram, depois, chamados, quando os
detidos «queriam confessar» (AHM, pc. 4/80, vol. 1: 128, 173-176). Também
o agente de 1.ª classe Luís Cardoso assegurou ter «a certeza moral de
que são verdadeiras em pelo menos noventa por cento as declarações dos
ex-presos políticos, sobre torturas sofridas nas cadeias e
interrogatórios da PIDE/DGS». Segundo ele, existia, em Caxias, um grupo
de «agentes “disponíveis” que faziam os turnos de vigia à tortura do
sono dos presos políticos, para que não dormissem, em escalas feitas
pelo agente Joaquim Valente Fialho» (Vasco, Cardoso,1998: 167- 172).
Quanto aos elementos mais graduados e aos dirigentes da PIDE/DGS, todos
eles negaram a existência de torturas, nos interrogatórios, embora, por
exemplo, o ex-inspetor Óscar Cardoso não tivesse negado que «algumas
vezes e contra as instruções», os presos «levassem um calor» e que «se
tivesse de recorrer a processos menos elegantes» (Oliveira Santos, 2000;
49).
10.
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