O colapso da democracia no Brasil
"Sob a presidência de Michel Temer, o regime político brasileiro perde o direito de ser chamado de 'democrático', mesmo na compreensão menos exigente da palavra."
Por Luis Felipe Miguel.
A derrota de
17 de abril, na Câmara dos Deputados, foi mais do que a sentença de
morte para o governo Dilma Rousseff, o triunfo do banditismo político ou
a desmoralização final da elite parlamentar brasileira. Representou o
término da ilusão de que o sistema político em vigor no país pode
receber o título de “democracia”.
“Democracia”
é um conceito em disputa. À esquerda, costumamos exigir um regime que
conceda maior autoridade efetiva às pessoas comuns, que realize de
maneira mais plena o ideal normativo da igualdade política. Também
entendemos que há um vínculo forte entre as condições materiais de vida e
a possibilidade de ação política efetiva. E questionamos o insulamento
das práticas democráticas a um espaço social restrito, observando como
não há democracia efetiva se não são desafiadas as hierarquias presentes
nos locais de trabalho ou na esfera doméstica. Em suma, tendemos a
colocar aspas ou adjetivos na democracia (limitada, restrita, formal)
que vigora na maior parte do mundo ocidental.
Para o
pensamento mais conservador, tais limites são inevitáveis ou mesmo
necessários. A democracia é sobretudo um procedimento de legitimação da
autoridade política, por meio do voto popular. Em algumas narrativas,
como a de Anthony Downs, a necessidade de obtenção da maioria eleitoral
garante automaticamente que os mandatários serão fiéis cumpridores da
vontade popular. Em outras, como a de Giovanni Sartori, o modelo permite
que a elite política controle o governo com competência sem se
independentizar do restante da sociedade. E em outras ainda, como a de
Joseph Schumpeter, tudo não passa de um ritual desprovido de outro
significado além da obtenção do consentimento dos governados e,
portanto, da redução dos custos da dominação.
Mesmo nessa
visão minimalista, a democracia exige isso: o consentimento dos
governados por meio do voto. Podemos partir disso e querer mais ou
julgar que esse procedimento esgota a possibilidade da própria
democracia, mas ele está sempre presente. É isso que está sendo
abandonado no Brasil. O impedimento da presidente da República, sem
crime de responsabilidade claramente identificado, em afronta aberta às
regras estabelecidas, marca a ruptura do entendimento de que o voto é o
único meio legítimo de alcançar o poder. Foi violado um dos requisitos
básicos que um autor liberal, Robert Dahl, apresentou para a democracia
eleitoral, o princípio da intercambialidade, que, na prática, significa que nenhum grupo ou indivíduo tem poder de veto sobre a maioria gerada nas urnas.
Em suma: sob
a presidência de Michel Temer, o regime político brasileiro perde o
direito de ser chamado de “democrático”, mesmo na compreensão menos
exigente da palavra.
O que a
conjuntura brasileira ilumina é o fato de que, mesmo limitada e indigna
de seus ideais normativos mais elevados, a democracia incomoda às
classes dominantes. Afinal, se o consentimento da maioria se torna
condição para o exercício do poder, pode ser que o interesse dessa
maioria se faça ouvir também.
Os governos
do PT foram muito ciosos dos limites que esse arranjo institucional
impunha. Entenderam que era necessário muito cuidado ao mexer com os
privilégios dos grupos mais poderosos; na verdade, eles deveriam ser
acomodados, não afrontados. A elite política tradicional foi toda
incorporada ao projeto de poder petista, que loteou generosamente o
Estado brasileiro. O capital financeiro manteve lucros crescentes. O
dinheiro público cevou as grandes corporações, seja pelo investimento
maciço em obras, seja por meio dos bancos estatais dedicados ao
fortalecimento dos nossos capitalistas. Como garantia de suas “intenções
sérias”, o PT no poder trabalhou ativamente para desmobilizar os
movimentos sociais que poderiam pressionar por transformações mais
profundas.
Ainda assim, algum limite foi ultrapassado, talvez porque o que o PT buscou promover foi uma acomodação,
isto é, suas lideranças e suas bases precisariam ser incorporadas, de
alguma forma. Mas a tolerância das classes dominantes brasileiras em
relação à democracia formal parece ir muito pouco além da concessão do
sufrágio universal. O povo até pode votar, vá lá, mas que os tomadores
de decisão levem em conta minimamente os interesses das classes
populares já é motivo para escândalo. É possível identificar, então, um
componente material e outro “simbólico” para a inconformidade com os
governos petistas. A redução da miséria afeta uma vulnerabilidade social
que é funcional para largos setores do capital. O quanto a pujança do
“agronegócio”, por exemplo, não depende da oferta de mão de obra
pauperizada no campo brasileiro? Uma redução continuada da miséria
colocaria em risco tal situação. E já atingia as classes médias – que se
tornaram a massa de manobra da direita –, privadas do trabalho
doméstico a preço vil de que sempre desfrutaram no país.
O outro
componente, que chamei de “simbólico”, não é, na verdade, desprovido de
materialidade. Os anos petistas foram acompanhados por uma sensação de
que hierarquias seculares estavam sob ameaça. As mulheres, os gays,
lésbicas e travestis, os negros, as periferias: grupos em posição
subalterna passaram a reivindicar cada vez mais o direito de falar com
sua própria voz, a questionar sua exclusão de determinados espaços, a
reagir à violência estrutural que os atinge. Políticas de governo
apoiaram tais movimentos, desde as cotas nas universidades até o
financiamento para a produção audiovisual dos subalternos. Os
privilegiados perderam a sensação de que sua superioridade social era
natural, logo inconteste; e perderam também a exclusividade na ocupação
de posições de prestígio.
Para eles, o
risco da democracia é esse: ela abre uma brecha para que se ouçam vozes
silenciadas, para que o jogo das elites seja bagunçado. E, como o
direito de voto e a norma formal da igualdade política obtêm grande
força normativa, reverter a democracia é tarefa custosa. O golpe
político, no Brasil, foi desferido a jato. Mas sua preparação levou
anos, com o trabalho de deslegitimação dos governos eleitos, levado a
cabo pela mídia, pelos institutos privados destinados à disputa
ideológica e pelos movimentos “Astroturf” (como MBL ou Revoltados On
Line) que, como está cada vez mais comprovado, foram financiados e
treinados por fundações estadunidenses.* Ainda assim, o desgaste é
grande e são necessárias concessões, como mostra a recente imolação do
deputado Eduardo Cunha diante da opinião pública.
Para nós, o
risco é outro. A competição eleitoral, à qual se resume muitas vezes o
componente democrático das sociedades liberais, funciona como uma
espécie de buraco negro da disputa política, engolindo tudo o que existe
à sua volta.
Nós sabemos
que as condições da disputa eleitoral são adversas, dado o poder do
dinheiro e da mídia e a inércia das hierarquias sociais. Sabemos, desde
ao menos da obra de Pierre Bourdieu, que o campo político filtra as
formas de discurso e ação, privilegiando as que se afastam daquelas
próprias dos grupos dominados. Sabemos também, a partir da obra de Nicos
Poulantzas, que o aparelho de Estado é programado para resistir a
mudanças, deslocando o poder de veto de um de seus componentes para
outro – por exemplo, do executivo para o legislativo, de uma casa do
Congresso para outra, depois para o judiciário, enfim para as forças
armadas – conforme necessário. Ainda assim, a cada quatro anos todas as
energias e esperanças se concentram nas eleições.
A disputa
eleitoral funciona, muitas vezes, como solução para reconstruir a
dominação ameaçada por práticas contestatórias. A crise de legitimidade
da Argentina em 2001, aquela do bordão que se vayan todos, deságua nas eleições de 2003. Muitos grupos envolvidos em ações políticas populares inovadoras, como asambleas barriales ou cortes de ruta,
passam a privilegiar a disputa eleitoral. Elege-se um presidente
reformista, Néstor Kirchner; uma dúzia de anos depois, com a vitória de
um projeto reacionário, não há mais quase nada da capacidade de
resistência nas ruas que se via antes. Ou o caso da Espanha, em que a
opção por transformar um movimento cidadão num partido eleitoral já
mostra seus efeitos. A eleição promove a ilusão de que o conflito
político se resolve num único dia e que, pelo mandato popular, se
alcança algo, o “poder”, que, uma vez conquistado, permite que todos os
problemas sejam solucionados.
Nunca dá
certo, mas continuamos tentando. Dessa vez deu mal, mas quem sabe da
próxima… De fato, no século XVIII o velho Montesquieu já dizia que as
eleições devem ser frequentes, para que o povo nunca perca a esperança
de, um dia, escolher governantes que não sejam corruptos.
O sufrágio
universal deslegitima simbolicamente formas mais ofensivas e eficazes de
pressão das classes populares, como já anotava Albert Hirschman. E a
democracia, ao se realizar em determinadas instituições, cristaliza uma
forma de dominação. Com frequência, o pressuposto tácito da discussão é a
ideia de que democracia e dominação são antípodas. Onde há democracia
não pode haver dominação; logo, se estamos discutindo no contexto de um
ordenamento político democrático, a categoria “dominação” se torna
inútil. Mas qualquer institucionalidade institui seu próprio regime de
dominação. Afinal, “relações democráticas ainda são relações de poder e
como tal são continuamente recriadas”, como disse Barbara Cruikshank.
Isto porque não falamos de uma democracia em abstrato, mas de regimes
concretos, que organizam formas de distribuição de poder, de atribuição
de direitos e de regulação da intervenção política. São “tecnologias da
cidadania”, que constituem e regulam comportamentos e que indicam que,
como qualquer outra forma de governo, “a democracia tanto permite quanto
constrange as possibilidades da ação política” – para ficar novamente
com Cruikshank.
Esta
institucionalidade concreta se manifesta numa sociedade também concreta,
com suas assimetrias no controle de recursos. A ordem democrática não
anula a efetividade da dominação que se estabelece em espaços
considerados pré-políticos, como o mundo do trabalho e a esfera
doméstica; pelo contrário, há uma forte tendência a que essas formas de
dominação estejam espelhadas no âmbito da política. E se espelham também
nos pressupostos que constroem a institucionalidade vigente.
Temer, na
presidência, empossado definitivamente e com o beneplácito do Supremo
Tribunal Federal, avançará o mais rápido que puder na agenda de
retrocesso que se deseja impor ao país – entrega das estatais, avanço do
fundamentalismo, retirada de direitos trabalhistas, criminalização do pensamento crítico,
recuo da legislação ambiental, arbitrariedade escancarada da força
policial, cortes nas políticas sociais, tributação regressiva. Quando
chegar 2018, provavelmente teremos eleições, como previsto. Talvez até
ganhe um candidato mais à esquerda, dada a incompetência crônica da
direita brasileira para produzir uma opção viável. Parecerá que a
democracia está restaurada. Mas o retrocesso desses anos não será
apagado. E a tutela dos poderosos sobre a vontade expressa nas urnas
terá sido reafirmada com enorme clareza.
Essa é a
armadilha da democracia limitada que temos. Parece que a luta política
deve ser sempre canalizada para as eleições. Mas se há algo que os
últimos acontecimentos deixam claro é que não há transformação possível
sem investimento na luta extra-institucional. O Estado capitalista não é
neutro, nem sua lei, nem seus aparelhos. A pressão pela mudança pode
até ingressar nele, introduzindo contradições, mas só tem condições de
triunfar se estiver fortemente ancorada do lado de fora.
* Nos Estados Unidos, movimentos de cidadãos organizados localmente são chamados de “grassroots”,
raízes de relva. Com frequência crescente, tais movimentos são, na
verdade, criados por interesses privados, que desejam aparecer
disfarçados no debate público – a indústria do tabaco produziu as
“associações dos direitos dos fumantes”, por exemplo. Os falsos
“grassroots” foram apelidados de “Astroturf”, em referência à marca
pioneira de grama sintética.
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