Entrevista com Juan Vanldés Paz
O Socialismo não pode adiar a democracia prometida
Carolina García Salas y Fernando Luis Rojas
09.May.16 :: Outros autores
«As
experiencias reais do socialismo histórico têm em comum a sua opção não
capitalista; produziram sociedades não capitalistas que, em termos
clássicos, dificilmente poderão ser classificadas como socialistas. Por
sua vez, a maior parte das experiências conhecidas iniciaram meio século
depois, no mínimo, uma «transição» para o capitalismo; foi este o caso
do socialismo na Europa de Leste, incluindo o socialismo soviético».Que conceitos e práticas devem caraterizar o novo modelo socialista? Como distingui-lo do atual? Quais são os espaços de autonomia de uma sociedade civil socialista? Como teria de funcionar o sistema político?
São perguntas hoje debatidas em Cuba, sendo que são várias as respostas e muitos os receios, interna e externamente.
Este texto de Juan Valdés Paz não é apenas uma análise da situação, hoje, da Revolução Cubana, é também a defesa dos caminhos para o seu aprofundamento, num novo tempo, que tem de ser inclusivo, pois, «a pretensão de que todos vamos pensar e atuar de igual modo era, de per si, não apenas uma consigna burocrática, mas bastante pouco socialista, além de mentirosa, porque não refletia a realidade.»
Carolina García Salas (CGS): O que distingue o socialismo existente em Cuba do que se necessita?
Juan Valdés Paz (JVP) : Esta interrogação leva implícita uma discussão prévia, que pode ser uma primeira pergunta, o que vamos entender por socialismo, porque nesta altura já não é um termo suficientemente preciso ou partilhado, nem podemos ter a certeza que todos os interlocutores entendem a mesma coisa.
Não é demais recordar que, na aceção clássica, o socialismo é um período de transição para o comunismo. Há uma proposta de sociedade a que se chama comunista, e o socialismo é uma transição entre a sociedade capitalista historicamente existente e que se propõe como alternativa. Nos clássicos o socialismo é um período de transição com traços universais.
Todos sabemos que nas experiências históricas de socialismo esse período foi uma coisa muito mais complicada que o que se sobre-entendia por socialismo na formulação dos clássicos, pois estes supunham que essa transição para o comunismo sobreviria nos países capitalistas mais desenvolvidos. Ao não suceder assim, essa agenda ficou marcada pela necessidade de concluir ou alcançar os níveis de desenvolvimento das forças produtivas que as sociedades que iniciavam esta experiência não possuíam, e esta circunstância tornou o processo muito mais complexo.
Esse foi o primeiro problema, uma das premissas da proposta clássica não se verificou; a segunda premissa era que o socialismo chegaria como um sistema mundial, isto é, as grandes sociedades capitalistas desenvolvidas transitariam para fórmulas socialistas e facilitariam o processo das restantes, que as seguiriam. Como o sistema internacional não se movimentou para experiências desse tipo, desde então fica de pé a pergunta de se é possível o socialismo num só país, num quadro apenas de estados nacionais, quendo o mundo não se move nesse sentido e continua dominada por relações capitalistas. Esse foi o primeiro grande debate com que se defrontou a experiência soviética.
A terceira foi a noção temporal de transição. Na formulação clássica, este seria um período histórico mais ou menos curto, em virtude das premissas materiais dadas, para usar a linguagem dos clássicos, mas uma vez que estas não existiam, o socialismo parecia estender-se no tempo e o comunismo aparecia cada vez mais distante. Portanto, o que temos tido são experiências para sociedades não capitalistas, mas onde o comunismo se vai convertendo numa noção utópica, que serve para orientar o sentido da transição, mas sempre como uma alternativa muito longínqua. A realidade histórica e a que se nos impôs, como a todos, é uma indefinida sociedade de «transição».
O outro problema não tem já a ver com os clássicos, tem tudo a ver com o socialismo real.
A transição deu lugar a um tipo de sociedade que em todas as experiências, da soviética à chinesa, terminam sendo outro tipo de sociedade; não transitam mas convertem-se numa distinta, onde algumas das premissas que os clássicos previam e inclusive os revolucionários esperavam, não se verificaram.
Por exemplo, a extinção do Estado. Lenine disse em O estado e a revolução, que depois de algum tempo este se «extinguirá»; mas as experiências históricas foram de socialismos de Estado, sociedades ordenadas e promovidas pelo Estado, a partir do poder político estatal, a discussão que cabe é a de onde é que elas foram mais ou menos estatizadas.
Conclusão. As experiencias reais do socialismo histórico têm em comum a sua opção não capitalista; produziram sociedades não capitalistas que, em termos clássicos, dificilmente poderão ser classificadas como socialistas. Por sua vez, a maior parte das experiências conhecidas iniciaram meio século depois, no mínimo, uma «transição» para o capitalismo; foi este o caso do socialismo na Europa de Leste, incluindo o socialismo soviético. De todas aquelas apenas sobrevivem os casos da Coreia do Norte, Vietname, Laos e China.
CGS: O que é que têm em comum as experiências sobreviventes?
JVP: No fundamental assumem-se como «socialistas», o seu programa político continua comprometido com o socialismo, mas todas se declararam de «caraterísticas próprias». Têm um projeto socialista, querem superar o capitalismo, ainda que tenham de utilizar as suas instituições para o seu próprio desenvolvimento, e todas o estão a fazer, cada uma a seu modo: os chineses, os vietnamitas, os coreanos – nem falar – e finalmente nós, que cada vez mais nos reconhecemos nesses traços próprios. Este é o ponto, quando falamos do «nosso socialismo», se não dizemos «socialismo cubano» já não se sabe do que estamos a falar.
A outra observação é que em todos os casos, um fator muito importante na sobrevivência destas experiências é a questão nacional. No dos chineses, o tema da libertação da agressão e ocupação pelas grandes potências, a recuperação da unidade nacional, os fatores etnográfico-culturais, etc., tiveram e têm um papel fundamental. Falamos de uma cultura de quatro mil anos perante um Ocidente de apenas cinco séculos; isto é, as caraterísticas próprias do seu socialismo estão determinadas e aludem à sua identidade cultural e nacional.
O mesmo acontece com o Vietname, que acabou de se unificar e de concluir a colonização apenas há cinco décadas, tem de resistir à China na fronteira norte e aos Estados Unidos no Pacífico, por isso também a questão da independência e identidade nacionais são uma componente muito forte. Não vou comentar a Coreia – porque é impossível –, mas esta lógica também é válida para nós. Se fizermos a história do socialismo cubano, veremos que os anos sessenta estão marcados, entre outras coisas, pela intenção de construir um socialismo nacional de caraterísticas próprias, ainda que não empregássemos essa terminologia. Isso não resultou porque não era economicamente viável, e passámos a uma transição socialista que tomava em conta a experiência internacional do socialismo, a dos partidos «irmãos» e no final o modelo soviético. Readequámos a nossa transição socialista inspirando-nos nesse modelo que naquele momento se confundia com o universal. Depois andámos aos tombos e agora, que não há modelo universal, não sei se por opção se porque não nos resta outro remédio, voltamos a cair na necessidade de elaborar uma versão do socialismo nacional.
Por que razão recalco isto? Porque acredito que quando o vemos na perspetiva de características próprias, quando se pretende a construção de um socialismo adequado à história e à cultura nacional, então, sobrepõem-se dois projetos: o da nação e o da sociedade.
Para o projeto da nação está claro quais são os desafios, o inimigo principal, a situação geopolítica, etc. Vê-lo a partir daí, separadamente, pode sugerir-nos maiores ou menores aberturas, enconchamentos, exposições, cuidados, delimitação das nossas relações e nível de integração regional. Assim, havia que refletir sobre que tipo de sociedade e que discurso hegemónico é necessário para garantir o projeto da nação, porque este necessita de uma nação que o realize; e aí aparece o projeto de sociedade.
Aí, segundo a minha maneira de responder á pergunta, temos que criar a nossa proposta de socialismo nacional que não temos desenvolvido. Temos de considerar as exigências do projeto de nação como invariáveis, e as do projeto de sociedade socialista como variáveis. Isto é, podemos assumir uma transição mais acelerada, mais lenta, mais dura, mais branda, com mais ou com menos elementos do capitalismo; podemos flexibilizar o projeto de sociedade em função dos desafios internacionais a que estamos submetidos, por sermos pequenos, porque o mundo é «grande e alheio»; podemos considerar ser mais flexíveis no projeto de sociedade e mais duros no projeto de nação. É nessa perspetiva que eu me coloco.
Sob o nome de socialismo não temos apenas uma experiência inscrita numa tradição comunista, como temos também uma tradição social-democrata, inclusive mais extensa, com mais sociedades envolvidas que nas pró-comunistas.
Por isso também teríamos que ver – porque pode ser um risco, uma tentação, ou uma confusão – se nos movemos para uma estratégia social-democrata acreditando que estamos assumindo a outra. Isto é, que sejamos tão flexíveis que acabe por não importar a cor do gato desde que cace ratos; que não importe que tipo de Estado ou que tipo de economia desde que seja eficiente. Aí temos o modelo nórdico, que cada vez se degrada mais, mas continua a ser o êxito paradigmático da social-democracia. Não foi por acaso que todas as experiências socialistas europeias que transitaram ao capitalismo declararam que iam ser «nórdicas». E aqui também podemos encontrar esses discursos, no máximo, é a uma sociedade capitalista com um welfare state ou estado de bem-estar, com uma política social mais ou menos ampla.
Fernando Luis Rojas (FLR): Ficou claro que a transição socialista é um processo tão complexo que constantemente põe em crise a sua formação clássica, se partimos dessa análise crítica das experiências mundiais e da própria. Como define o que Cuba necessita?
JVP: Vou referir-me ao desejável. A necessidade é uma categoria que dá conta de restrições internas e constrições externas que não se podem superar. Assim, não vou deter-me aí porque é óbvio que teríamos que fazer uma adequação a essas condições. O que importa é não ficar aí mas definir as metas do projeto.
Não vejo que tenhamos uma ideia clara de qual é o socialismo possível. Não o debatemos. Há críticas tácitas ao que temos, pois quando se propõem reformas pode-se inferir que se está a dar conta de qualquer coisa que era defeituosa, insuficiente ou ineficaz.
Muito bem, diga-se: «vamos para o socialismo», mas como já não está claro o que é que se coloca sob esse termo, então é mais confuso definir que haveria que continuar o socialismo real cubano, dando conta do nosso projeto de nação, das nossas circunstâncias, da nossa própria história, dos nossos êxitos, e o que é que havia que mudar. Esse balanço não está feito nem sequer no Partido. Em última instância corresponder-lhe-ia que na sua condição de «vanguarda organizada», de «dirigente superior da sociedade e do Estado» tivesse feito essa discussão. A minha perceção é que não está feita e, não dizendo que não a fará, suspeito que não a farão. E acredito que, sobre isso, continuamos a movimentarmo-nos num certo mar de confusões.
Sobre as insatisfações do socialismo real há bastante consenso, não é preciso que os académicos se pronunciem. Fez-se um debate público nos anos 90, voltou-se a fazer em 2007 e em 2011. Com as opiniões da população, as suas questões, problemas e as propostas; há uma agenda que a direção do país tem e não a devolveu. A população produziu-a e a opinião pública construiu-a de maneira mais ou menos fundamentada, mas é certo que são eles que não têm claro qual é a sua própria agenda. A direção do país sim, suponho que tem essa informação.
È importante ter em conta essa agenda, porque é a base do consenso, visto que não só temos que produzir uma boa ideia de sociedade, como temos que acompanhar qualquer proposta dela, com um nível de consenso que garanta o apoio das grandes maiorias do país.
Como chegámos até aqui? Temos tido muita sorte, temos passado muitas necessidades, temos enfrentado neste meio século um enorme número de desafios, e a Revolução sobreviveu nas piores circunstâncias com base do consenso, até á débacle do Período Especial.
Então, o tipo de sociedade que vamos construir implica – melhor ou pior desenhada – o consenso, portanto, o debate. Isto interroga-nos sobre o que temos pela frente, quais são as oportunidades e os cenários previstos para se construirem esses consensos.
Se mal não recordo, fomos convocados para discutir um novo modelo económico; não sei se é sob estes mesmos termos que se vai apresentar a discussão, mas foi para isso que fomos convocados. Depois voltaram a convocar-nos para, e cito: «Elaborar os conceitos fundamentais do socialismo nas novas condições históricas», que é uma forma de dizer o novo modelo de socialismo. Depois convocaram-nos a participar numa eventual reforma constitucional. Três cenários muito complexos onde se supõe que vão concorrer todas as correntes ideológico-políticas, as que acreditamos que existem e as que desconhecemos.
Mais do que uma resposta, o que eu tenho são outras perguntas. Creio que o socialismo real que trazemos tem muitas deficiências e é necessário fazer-lhe profundas alterações no sistema económico, político-ideológico, civil, comunicacional e cultural. Por isso me parecia que as convocatórias tinham um sentido de totalidade que permitia considerar que todas estas dimensões iam estar colocadas a um livre exame, – pensava eu – e ir a debate público.
FLR: Que outras transformações substantivas requere o socialismo cubano?
JVP: Para começar há que acabar com a identidade de socialismo e Estado. A nossa é uma república socialista que tem um Estado, mas a república não é o Estado. Portanto, o primeiro problema que enfrentamos, creio, é como desestabilizar o socialismo cubano; a favor do seu debilitamento, de estabelecer domínios privados? Não, em função de mais autogoverno e mais autogestão. Há que desenvolver as formas autogestionárias de todo o tipo – cooperativas, associativas, comunalistas, etc. – e há que desenvolver as formas de autogoverno, o que sugere uma enorme descentralização do atual modelo de Estado e de Administração Pública que temos.
E o segundo grande problema é o que vou chamar, de forma poética, um maior alcance – eu diria notável – do seu desenvolvimento democrático. Temos neste sentido enormes deficits, que foram legitimados como restrições impostas pelo confronto com os Estados Unidos. Mas o socialismo não pode adiar indefinidamente a democracia que prometeu.
Recordo Rosa Luxemburgo a dizer que o socialismo garantiria a «democracia plena»; a palavra plena sugeria algo melhor que a democracia liberal e é, seguramente, um campo de discussão se as distintas experiências de socialismo histórico conseguiram um maior desenvolvimento democrático.
Mas esse é o nosso problema, não porque esse seja o nosso problema devido à normalização das relações com os Estados Unidos e que ela nos imponha determinadas aberturas ou porque queiramos parecer um pouco mais liberais que o que éramos. Não. Porque é a promessa do socialismo. Com gringos ou sem gringos, de costas voltadas ou abraçados, o socialismo prometeu ao povo uma democracia plena. Não digo que tudo isto esteja ali ao voltar da esquina, por isso falo de desenvolvimento democrático, tem que ser um processo evidente, continuado, imparável.
CGS: O próprio conceito de democracia e o modo como se assume a partir de Cuba é um tema sujeito a constante debate e contradições. Neste sentido, quais são os desafios?
JVP: Sim, por trás do termo democracia há uma larga discussão sobre como o vamos a entender, mas convencionalmente o que temos para expressar essa democracia é um subsistema de representação e a pergunta de se: são suficientes os mecanismos de que dispõe a sociedade cubana nos sistemas político, económico, civil, ideológico-cultural na esfera comunicacional, para representar as suas bases? Está a população bem representada? Há que dizer que temos sérios deficits sobre isso. Volto ao termo de Luxemburgo, plena, a nossa meta deve ser alcançar a representação plena. Mas, quão distantes estamos da plenitude e o que fazemos para chegar até ela?
A segunda dimensão deste tema, ainda que haja muitas sob o enviesamento de democracia, está em o discurso oficial ter dito que a nossa é mais democracia que a outra – a liberal – porque é «participativa». Mas cada vez que uma pessoa toma lugar num qualquer fórum, seja de académicos ou de vizinhos, todas as pessoas tendem rapidamente a dizer que há muita participação para a mobilização, o apoio e a execução, enquanto para tudo o resto, particularmente a tomada de decisões, é bastante limitada. Então, essa é também uma agenda incompleta.
Creio que um dos grandes desafios que temos pela frente para superar a sociedade atual, é o de colocarmos não somente reformas económicas, mas reformas em todas as esferas, que deem lugar a um maior desenvolvimento democrático. Também não se pode ignorar os desafios reais com que nos defrontamos, os temas de segurança, os planos, a estratégia do soft power que os EUA adotam connosco. Continuaremos sempre com inúmeras ameaças ao projeto de nação e a sociedade tem de dar resposta a isso. Seguramente temos que assumir algum nível de restrições, mas é importante, primeiro, que as reconheçamos publicamente; e depois que as consensualizemos.
CGS: No discurso político reitera-se muito uma frase que apelida o tipo de socialismo que se constrói em Cuba como «próspero e sustentável». Como concebe a prosperidade e a sustentabilidade no nosso contexto?
JVP: O poder político cria frases e palavras de ordem. Sempre o fará. O que se passa é que depois a política tem que hegemonizar a palavra de ordem, tem que criar uma cultura que a converta no consentimento da sociedade, de modo que esta aceda a ela, a entenda, a incorpore na sua linguagem. Aí está o problema, não discutimos a palavra de ordem; entrega-la à população e não a submetes a debate, não permites que se consciencialize, não educas para o seu exame livre. Se o povo o tivesse discutido, se as ciências sociais cubanas tivessem debatido que vamos entender por prosperidade ou sustentabilidade, em que consiste, como se expressa, quanto abarca, poderíamos tentar o seu esclarecimento. Então, a palavra de ordem pode ser criada em dez minutos num gabinete, inclusive pode ser o centro de muitos discursos, mas o quid é se essa consigna se vai converter em cultura de massas.
«Próspero», por que temos de discuti-lo? Vou dar um exemplo: hoje em dia diferentes correntes ideológico-políticas utilizam o mesmo termo; para o neoliberalismo a prosperidade consiste no crescimento incessante da economia, do Produto Interno Bruto (PIB), o que se vê claramente; uma tendência mais social-democrata diria que não, há que procurar com que a economia cresça e que haja também uma repartição dos rendimentos; Uma mais de esquerda pensa numa redistribuição muito grande do excedente e uma de direita pensa numa distribuição limitada, simplesmente aos setores mais vulneráveis; mas em qualquer dos casos a prosperidade implica também a redistribuição do excedente económico que se atinge com o crescimento. Nós, os socialistas e os comunistas, passámos meio século, ou mais, a discutir o que íamos entender por prosperidade. Tínhamos falado de justiça social, de qualidade de vida e outros termos que a esquerda histórica utilizou para a explicar. Uma pessoa podia dizer «justiça total», outro a «igualdade». Enfim, há uma enorme quantidade de conceitos associados. Por que temos de subverter o capitalismo? Porque este não pode garantir nem a prosperidade nem a sustentabilidade.
Eu creio que faz falta voltar a debater, para nos inteirarmos se todos compreendemos a mesma coisa. E aqui voltamos ao ponto anterior, de que não debatendo não há clareza. Mas existe uma cultura de esquerda, uma cultura revolucionária, que polemizou nesses termos, colocou um esclarecimento do que se devia entender por prosperidade, por que se esta é para todos, aí estamos a falar do socialismo. Pode ser que essa seja a intenção tácita, o que entendem os políticos que lançaram essa fórmula, mas não chega, há que constituir uma cultura, há que convertê-la em ideia hegemónica, em ideal.
Essa fórmula tem uma estratégia? É tão geral que já define o socialismo com as caraterísticas próprias que queremos? Se é tão ambiciosa, o primeiro desafio é que seja hegemónica, que a imensa maioria dos cubanos a queiramos, o que supõe, novamente, o debate, a sua «concetualização», que os nossos «intelectuais orgânicos» a fundamentem, a expliquem, etc..
Estamos, desde sempre, perante o ABC do marxismo, Gramsci incluído. Creio que esse tipo de consigna ou fórmula, o pior que tem é que é muito abstrata, falta à direção política explicitar o que entende por ela, para ver se estamos de acordo; e, finalmente, não retoma a proposta cultural da esquerda. Por nos termos colocado nela não creio que tivéssemos utilizado essas expressões, mas outras, como a de Martí, de «justiça plena». Para o dizer em poucas palavras teria sido melhor para nós o programa martiano. E o grande desafio, volto um pouco ao ponto anterior, não é apenas produzir o debate, mas que os resultados desse debate voltem ou deem lugar a um discurso hegemónico. Creio que foi muito atrevido, objetivo, justo e político que Raúl Castro nos seus primeiros discursos recusasse o unanimismo. Toda a gente sabe que em sociedade alguma há unanimidade. A pretensão de que todos vamos pensar e atuar de igual modo era, de per si, não apenas uma consigna burocrática, mas bastante pouco socialista, além de mentirosa, porque não refletia a realidade. Então, foi muito importante reconhecer que não há unanimidade, que há diferenças; porque coloca ao político o desafio de tratar com essas diferenças, de as administrar, de fazer propostas e desenvolver estratégias que as incluam.
Ora bem, depois de se reconhecerem as diferenças, não avançámos mais, nem sequer no sector intelectual. Aceitámo-las, mas não nos dedicámos a identificá-las, explicitá-las. Os cientistas sociais sim, esses deram conta, por exemplo, que sob o impacto do Período Especial, as estratégias de saída da crise e as reformas em curso estavam a impor na sociedade cubana um padrão de maior desigualdade. Isto é, está mais ou menos claro que somos cada vez mais desiguais em termos económicos, posicionais, de oportunidades, etc.. Esse pode ser um custo inevitável, são processos perfeitamente observáveis e podem se descritos. Mas temos uma maior obscuridade nas diferenças político-sociais, também sabemos que as há, mas avançámos menos, talvez porque as ciências políticas foram sempre, «o patinho feio» das ciências sociais cubanas. Não nos demos conta que há correntes político-sociais diferentes e que inclusive, não é só no espaço da sociedade onde obviamente deve existir algum nível de oposição sistémica, mas que também existem no seio da Revolução, no sector da população que apoia a Revolução. Há diferenças, algumas observáveis, outras de autoidentidade.
CGS: É possível classificar essas diferentes correntes políticas?
JVP: Não são puras, estão muito confusas e por vezes os próprios sujeitos sociais não estão totalmente conscientes dos seus posicionamentos e propostas que, por observador distante, seriam classificados, como mais social-democrata, social-liberal, soviética, guevarista, socialista crítico, etc. Num trabalho recente classifiquei algumas correntes sociopolíticas, não de forma abstrata mas face aos Alinhamentos [N. do T.: documento que esteve em discussão por toda a população], para falar da estratégia das reformas em curso. A uma chamei-lhe convencional, que é uma mistura de muitas coisas, um pouco como foi a Revolução cubana; também lá está a guevarista; a outra chamo-lhe socialista crítica, isto é, os que criticam o socialismo real cubano a partir de uma posição de esquerda, por ser estatista, e reclamam que seja mais socializante, que seja mais autogestionário, que desenvolva mais o autogoverno; esta corrente inclui as propostas libertárias e comunalistas, que aposta, por centrar localmente a organização social, etc.. E estão mais claras as correntes social-democratas e as social-liberais às quais já me referi; nestas duas a influência chinesa e diferente, mas está presente como referência às suas reformas.
Quando digo que há que construir consensos, debater e ser inclusivos não é uma coisa abstrata, não estou a falar de indivíduos demográficos, mas de pessoas comprometidas com algumas destas correntes ou com uma combinação delas, porque nem todos racionalizam exatamente o que estão a pensar. Por outro lado, as atitudes ou os posicionamentos que derivam destas correntes são transversais a toda a sociedade cubana, e não se pode dizer que a burocracia está permeada por uma destas e os intelectuais por uma outra. Aceitando a transversalidade, o curioso e o complexo está nas perguntas que compete a um politólogo ou a um sociólogo fazer; por exemplo, quais destas correntes predominam na burocracia cubana? E utilizando melhor o plural, nas burocracias, que presença têm estas correntes na burocracia estatal, na económica, na partidária, na militar, na administração pública? E no resto do funcionalismo? E entre os dirigentes?
Isto é, creio que aceitar as diferenças é assumir que há correntes, posicionamentos distintos, eventualmente comportamentos, e que estes são transversais a toda a estrutura social e que temos que os interrogar.
Portanto, não só no discurso em sentido retórico, mas em todas as ideias que se promovam, tem de se dar conta dessa diversidade, têm que ser colocados recursos hegemónicos de alguma complexidade, porque se dirigem a uma população que tem uma escolaridade média de dez anos, que tem um milhão de licenciados e queremos resolver o problema dizendo-lhe apenas que a Revolução deve ser «próspera e sustentável»? É com essas consignas que vamos reconstruir a hegemonia?
FLR: Há assuntos que foram polémicos desde a própria formulação clássica do socialismo, a sua problematização pública dentro do contexto cubano também foi muito escassa. Que conceitos e práticas sobre a propriedade, os meios de produção e o mercado devem caraterizar o novo modelo?
JVP: O tema da propriedade está para além da economia, essa é a primeira coisa que temos de ter em conta. A propriedade é uma categoria social, tal como a possessão; ainda que as duas tenham normativas jurídicas, o quid é que sociologicamente são duas condições distintas das pessoas em relação aos bens sociais.
Assim, a propriedade é um tema que devia tratar-se de uma maneira muito mais política. Tudo o que temos sobre isso é a sua taxonomia, a sua descrição restrita: o que a Constituição de 76 aceitava como propriedade; as que a reforma de 92 aceitou como formas de propriedade; e seguramente, agora que estamos a discutir uma reforma constitucional, as que se enumeram de forma ampliada e inclusiva num novo texto.
Uma abordagem sistémica ajuda-nos a tratar melhor muitos destes problemas, porque esta perspetiva não exclui que um dado componente de um sistema o seja igualmente de outro. De forma que a propriedade é um componente do sistema jurídico, do político, do económico e do civil, e deve ser abordado em toda a sua complexidade.
Quando se fala de propriedade, a expressão alude a que um sujeito tem determinados direitos domínicos, de domínio sobre um objeto, mas estes são sempre limitados. Os primeiros que os formularam conceptualmente foram os romanos, que os estabeleceram quase ilimitados. A sociedade histórica evoluiu ponde-lhes condições, restrições. Em Cuba, por exemplo, a república anterior – pré-revolucionária, primeira república, república liberal, etc. – avançou até impor ao direito de propriedade o conceito de utilidade social. Essa era a grande conquista da Revolução Mexicana, depois da Constituição de Weimar e depois do constitucionalismo moderno. Nós fomos dos primeiros a incorporar no texto constitucional que a propriedade tinha uma função social.
As revoluções e experiências socialistas deram a essa função social da propriedade uma dimensão maior e, de facto, limitaram os seus direitos domínicos. Eu creio que é essa a discussão, quais são estes direitos domínicos? Para que fique claro que o Estado vai restringi-los em função dos interesses da sociedade. De maneira que o sujeito interessado possa dizer «os meus direitos estão delimitados, restringidos ou regulados, mas estes». Tem que se explicitar as diferentes formas de propriedade pública, mista, cooperativa, privada, social – que é uma invenção nossa para a propriedade das entidades civis – e pessoal. Então, não basta enunciar as formas de propriedade, mas há que enunciar os direitos domínicos que se vão admitir a cada uma. Por que me parece importante esta perspetiva do problema? Primeiro porque temos uma história de arbitrariedade da Administração estatal face aos direitos domínicos dos proprietários. Ela costuma restringir mais ou menos e, de acordo com o que lhe convenha, tira, põe, imobiliza. De maneira que em nome da Revolução, eventualmente se terão violentado alguns direitos de propriedade.
Naturalmente, há a propriedade económica que é um componente de qualquer modelo que queiramos implementar; isto é, a propriedade participa do sistema económico e também de outros. Eu creio que terão que ser definidas as formas de propriedade que se aceitam, tal como as formas de possessão que serão admitidas no modelo económico.
O tema dos direitos domínicos que vamos conceder às distintas formas de propriedade, sobretudo a económica, é o primeiro numa adequada relação entre os interesses privados e os sociais ou comuns, ou dito de outra forma, é o terreno primário onde se dirime a maior ou menor conciliação entre os interesses privados e os representados pelo Estado socialista. O maior desafio não é o económico mas o político. Não se trata apenas de criar um sector não estatal, cooperativo ou misto. Como vamos fazer a articulação para que todos esses novos agentes económicos entendam que eles têm o seu espaço, o seu lugar, e estão protegidos debaixo da ordem socialista? Há que defini-lo, sob pena de o sector se torne desde o primeiro dia como antissocialista; porque muitos vão considerar que o socialismo é uma limitação e que o estado socialista apenas existe para lançar impostos, não lhe oferece um negócio grossista, tem mil inspetores corruptos etc..
O tema político desse modelo económico diverso é sobre quantos deles estão interessados, ou vão participar, na proposta socialista, de se o socialismo os inclui, em que os beneficia, em que os protege, porque deverão estar interessados nele.
Nós temos na nossa história um exemplo muito específico, que é como a Revolução manteve um sector privado camponês, tendo ligado os camponeses ao modelo socialista de tal maneira que se sentiam seguros e beneficiados com essa articulação. Agora estão menos, há um mercado livre e há interesses privados, a obsessão pelo lucro pode perturbar o comportamento de muitos, mas é o exemplo de um sector privado que estava engrenado aos mecanismos socializadores. O camponês era um dos sujeitos beneficiados pela Revolução, que lhe deu a terra, reconhecia-o como cidadão, fazia-o participar de todos os bens públicos que o socialismo oferecia, saúde, educação, cultura, desporto, etc.. E porque não quereria ser privado e socialista? Agora, o desafio é que estes sectores podem não encontrar articulação, inclusive chegar a acumular recursos que lhes permitam financiar a sua desarticulação, pagar um professor extra, um desporto extra, um serviço médico extra, uma oferta de bens extra, podem sair da oferta social e não necessitarem do sector público para nada.
Muitos companheiros colocaram a discussão do modelo económico a seco, sem debater qual é a articulação, qual é o modelo social e político, o sociopolítico que lhe serve de contrapartida e o integra. Não se toma nota dos efeitos, dos impactos que vai criar o modelo económico; por exemplo, uma maior desigualdade, para a qual não temos proposta inclusiva nem políticas para a reverter.
CGS: O processo de «normalização» de relações entre Cuba e os Estados Unidos, exigirá em algum momento a reestruturação de algumas políticas da Revolução, como o livre acesso à cultura e ao conhecimento? O que é que se passará com a propriedade sobre os bens culturais? Neste sentido, quais são os desafios do socialismo cubano?
JVP: Nós temos tido políticas sociais baseadas num mundo que já não existe; dito de outra maneira, baseadas num mundo que perdeu a partida. Há que esperar de novo pelas condições de uma revolução mundial; entretanto, o mundo em que nos inserimos é de regras privadas, capitalistas, de ganancia, de reconhecimento do lucro.
Efetivamente, abrir-nos ao mundo significa cairmos num campo onde as regras são determinadas por outros. O socialismo cubano – nos termos da sua consigna – para ser sustentável tem que ser capaz de produzir uma economia viável nas condições da economia mundial, e esse é o desafio que está em aberto. Imagino que a nossa inserção será uma combinação de acordos políticos com capacidades de competitividade nalgum nicho de mercado internacional, ainda que, se tivermos o melhor produto possa acontecer que o invólucro em que o vendamos torne a oferta quase inoperante.
Agora, necessitamos de normalizar as nossas relações com os Estados Unidos embora saibamos que normalizar é outra maneira de chamar uma «guerra-fria» que é para nós permanente. Necessitamos de tornar viável a economia, as vantagens do mercado norte-americano, o mais próximo, o maior do mundo, possuidor de tecnologias de ponta, uma clara fonte de investimento. Teremos que administrar essas vantagens e adequarmo-nos, de alguma maneira, a essas novas condições.
Ir além do diálogo, porque os Estados Unidos nos vão exigir o copyright, tal como o farão todos os outros. Isto é, para o desprezarmos temos que sair do mundo ou ter um mundo próprio. Nós temos pregado a liberdade dos bens culturais, bens para o povo; não temos reconhecido as políticas de copyright, publicamos os bens de todo o mundo; mas em boa medida isto só durará até que aceitemos as regras do jogo.
Não se trata apenas de reconhecermos o copyright aos Estados Unidos e eles reconhecerem-no a nós, mas da sociedade cubana o reconhecer aos seus produtores e criadores; aí entramos também noutra dimensão. Isso e milhões de problemas trazidos pela abertura se vão colocar, e por isso é tão importante, mais que as discussões pontuais de tais contradições que se geram com a normalização ou pela reclamação do investimento internacional, compreender integralmente todos os desafios que haverá que administrar.
Supõe-se que a direção política, que o governo cubano, que a opinião pública vela todo o tempo pelos nossos interesses. Necessitamos precisamente de um Estado forte para que haja um ator que expresse os interesses nacionais nessas discussões, não um ator descomprometido mas sob o controlo social, que se sente à mesa, agarre os acordos interestatais, intergovernamentais, esteja nos espaços multilaterais, etc.. Necessitamos um Estado, logo um funcionalismo e um corpo dirigente capaz de administrar as contradições e defender os interesses nacionais. E faz falta uma regulação da sociedade baseada numa informação aberta e debate público. Mas se a garantia da defesa dos nossos interesses vai depender de boas intenções que adjudicamos aos funcionários, ou da suposta sabedoria de um ou outro dirigente, então sim, colocamo-nos num cenário de risco.
FLR: Que princípios poderão definir essa regulação na construção do socialismo?
JVP: Nas noções do marxismo clássico, que além do mais recolhia toda a tradição socialista anterior, quando trataram os conflitos sociais a primeira coisa que disseram foi sobre a regulação, a necessidade de o Estado, o governo, regular o comportamento de determinados agentes sociais em favor de outros. Essa é a ideia essencial do socialismo, que se ia regular, que se ia incrementar as regulações sobre o comportamento social. No início estas emanariam do Estado, noutro momento teriam o consenso social e, finalmente, a própria sociedade se autorregularia cada vez mais, através da autogestão e do autogoverno.
Se não criámos uma cultura paralela em que a sociedade cubana – o projeto de nação e que coadjuva – é uma sociedade regulada pelo Estado, e em muitos momentos, e cada vez mais, pela própria sociedade; se não introduzimos essa noção, as pessoas vão pensar que se está a entrar num modelo económico liberal de concorrência que, inclusive, já não existe; isto é, estariam a pensar como os liberais do século XVIII num mercado perfeito, onde supostamente todos os agentes concorriam e ganhavam. Isso há algum tempo que não existe na realidade nem na teoria económica, mas tende a ser um traço espontâneo da produção mercantil simples, a ideia de uma sociedade aberta, competitiva e com o ideal de não serem restringidos nem regulados.
Há que criar uma cultura de que o socialismo supõe a regulação. Regulação arbitrária? Não. Regulações consensuais? Sim. Baseadas na democracia, seja por representação, porque os órgãos que ditaram essa regulação são representativos, seja porque a população participou diretamente nessa regulação.
O socialismo não é propriedade pública, ainda que necessite da propriedade pública para regular o sistema económico. O socialismo não é proibições, mas regulações. A planificação é para regular, não para tornar impossível a vida nem para dizer que «não te cabe a ti.»
Há que instaurar um discurso hegemónico sobre a ordem da sociedade que construímos, e sobre a sociedade regulada que se autorregula; o que implica que regula os interesses particulares em função do interesse comum. Isto já leva a uma discussão sobre ao que é que vamos chamar particular e a que vamos chamar comum, porque muitas das coisas que passam por regulações estatais supõem-se que estiveram em função do bem comum, o que é discutível. Isto é, cada regulação também implica um debate, uma discussão, um consenso, um procedimento democrático para a estabelecer e controlar. O tema da democracia plena no socialismo acompanha todos os cenários. Em última instância, como vamos assumir os perigos de uma abertura económica? Com mais democracia.
FLR: No contexto cubano, alguns dos mais complexos debates sobre a democracia estiveram estreitamente ligados ao tema da sociedade civil. Quais são as características e espaços próprios de uma democracia socialista?
JVP: Para os clássicos do liberalismo a sociedade civil era a sociedade, e esta necessitava de direitos para se defender do Estado. A sociedade teve que delegar a sua soberania a troco da ordem; o Estado é o Leviatão, o grande monstro, este Leviatão ameaça a sociedade, agride-a, constringe-a, e esta necessita de direitos civis e políticos para restringir o Estado. Esse é o núcleo duro e progressista do pensamento liberal.
Com o tempo a «sociedade civil» passou a ser uma dimensão da sociedade real, que cria subsociedades e participa num espaço económico, civil, político, etc., e estes estão conformados por instituições. A sociedade é uma, mas é habitada por instituições que ela criou em diferentes situações. Por outro lado, considera-se que estes cenários. Por outro lado, se considerarmos que esses cenários ou esferas são em si mesmos sistemas de instituições – jurídicas, políticas, económicas ou civis, etc. – tudo fica concetualmente mais claro. Mas na realidade, o que se passa na sociedade civil são formas associadas, portanto, institucionais. Há um grupo de instituições a que chamamos civis, como há as económicas e políticas. Inclusive, no pensamento liberal original, a sociedade civil que estava à frente do Estado incluía tanto as associações económicas como as não económicas, porque ambas eram agredidas, ambas reclamavam direitos e espaços ao Estado.
Com a evolução do próprio capitalismo as instituições económicas tenderam a criarem-se num espaço próprio e, inclusive, as outras instituições civis têm que se defender das económicas, desses outros estados privados; o consumidor privado tem que se defender das associações económicas privadas – empresas, corporações, etc., e do mercado.
A grande herança da Revolução Francesa é o conceito de cidadania. A República é a ordem de toda a sociedade, cada uma das esferas está subordinada ao interesse soberano da República. A República é o povo; a Constituição disse: «A soberania reside no povo»; portanto, a soberania do povo verifica-se numa República e esta concede-a a um grupo de instituições políticas, económicas ou outras; e supõe-se que todas elas estejam atravessadas pelos direitos dos cidadãos. A República tem que definir e defender os direitos dos cidadãos em cada uma das esferas, incluída a família, para que não se reproduzam relações de subordinação, de exploração, e nenhuma das ordens, esferas ou sistemas institucionais da sociedade.
A nossa sociedade civil é um grupo heterogéneo de instituições, tem uma definição um pouco negativam mais do que dizer o que ela é, ficou por dizer o que ela não é: não são as instituições políticas, não são as instituições económicas, é o que resta, a família, as igrejas, as associações civis de interesses, non profit, as organizações de massas. Seja dito que tampouco estudámos suficientemente o que quer que seja a sociedade civil cubana, não estudámos o problema que o socialismo tem com a sociedade civil, o avanço do Estado sobre o seu espaço, o seu desamparo.
O primeiro seria recordar que tivemos uma sociedade civil ocupada pela burguesia e marcada por relações capitalistas, que foi profundamente modificada pela Revolução. Como em todas as demais esferas, tinha que se recriar a esfera civil, mas recriar não quer dizer extingui-la nem deitá-la abaixo. Os povoadores, os membros de uma sociedade, os cidadãos de uma polis, também querem e necessitam para expressar os seus interesses de se associar e de serem representados através de associações ou instituições civis, o socialismo tinha que ter cuidado, tinha de as ter desenvolvido.
Há uma história da sociedade civil cubana em que não me vou deter. A nós agrada-nos muito dizer que ela é conformada pelas organizações de massas, que são todas ONGs, inclusive reconhecidas como tal na Constituição; que temos quatro mil associações civis, uma Lei das Associações, etc., e que para se associar há que fazê-lo dentro dessa legalidade. Mas o que a sociedade reclama é que essa sociedade civil que temos – as organizações de massas, as associações, as igrejas, famílias – é insuficiente para a representar, necessita de maior capacidade e liberdade de associação. E isso acarreta um perigo, porque isso é o mesmo que quer o inimigo, que sabe que a esfera que constrangimos é a que eles querem ampliar; que onde eles mais poderiam influenciar é precisamente sobre a esfera civil que é onde se expressam mais os interesses particulares.
No discurso liberal a economia privada faz parte da sociedade civil; a primeira coisa que temos de esclarecer-nos e esclarecer a sociedade que as organizações económicas não fazem parte da sociedade civil, mas da económica, mas que as duas são formadas por cidadãos, de forma que há que respeitar os seus direitos em ambos os casos, em todos os casos.
A minha perceção é que a sociedade que temos é mais que insuficiente, mas não dúvida que o maior problema é que não há clareza qual e como ela deve acompanhar os nossos projetos; há que avançar numa conceção revolucionária da sociedade civil.
Um ponto importante é o lugar que as instituições e agentes culturais vão ali ter. Estes são instituições, personagens civis, económicos, públicos, e podem ser um e o outro; mas aí também temos um problema pelo perigo que setores intelectuais reclamem liberdade de associação e de organização para fins económicos, num caso, e representação civil no outro, e não o façam sob o espírito socialista. Em todas as esferas temos que assegurar a hegemonia da cultura socialista, ou teremos perdido; A oposição e a dissensão tendem a agrupar-se precisamente onde a hegemonia socialista é mais débil.
Nós temos que auscultar, ouvir, assegurar-nos por ter uma proposta de desenho, uma estratégia para cada uma das esferas, não basta dizer que são ou não são revolucionárias, há que examinar como e porquê se inserem no projeto de nação e na sociedade.
Não é demais reiterar que este é o primeiro terreno – além de declarado – desse desafio a que chamamos o «processo de normalização de relações com os Estados Unidos, local de origem onde se faz política aberta para a sociedade civil. Não basta reagir com o orçamento adequada à ameaça que este processo implica, mas devemos ter uma resposta um pouco mais elaborada, porque se esse pode ser um espaço propício para a política imperial, por que não o pode ser para nós? Não temos política para isso? Temos apenas restrições? Eu creio que será uma das coisas a superar neste socialismo sustentável de que falamos.
FLR: É impossível falar de democracia, de construção de consenso, de sociedade civil sem passar pelos desafios diretos do sistema político. Como deveria funcionar um sistema político renovado?
JVP: No caso do sistema político cubano, há três coisas sobre as quais queria chamar a atenção. Primeiro, sobre uma ordem institucional que pressupõe, como todas as ordens, relações hierárquicas. Em socialismo, sobretudo no período de transição, cito Mao: «A política está no posto de comando», de forma que o papel das instituições políticas no conjunto da sociedade é determinante para garantir uma transição, um movimento, uma orientação socialista. Pode haver muitas circunstâncias que imponham determinados ziguezagues nesse processo, mas é suposto que «a política é quem garante a evolução da sociedade cubana, a sua orientação. Não porque os políticos sejam superdotados, podem sê-lo ou não, mas porque a sociedade delegou neles a sua representação, porque é a instância política onde estamos representados, a responsável pelo curso, a condução ou a orientação do projeto socialista.
Esse sistema político tem instituições representativas, os poderes reúnem-se num órgão representativo, a sociedade representa-se nesses órgãos e, além disso, dispõe de mecanismos para os renovar, suplantar, etc.. O desenho institucional do sistema estabelece que todas as decisões sejam colegiais. De maneira que se pode e deve aperfeiçoar tudo isso, e que se supõe que o sistema politico não é apenas regido por uma delegação moral, mas que também dispõe de dispositivos para que a sociedade se represente adequadamente nele próprio. Isso é o que está normalizado.
Inclusive, falando de aperfeiçoamento, o próprio presidente Raúl Castro mencionou a necessidade depor um limite aos mandatos, sobretudo no primeiro nível de direção, e eu acrescentaria, que se podem pôr regras de incompatibilidade de cargos, de interesses, de declaração patrimonial antes de ocupar um cargo, etc.. Por fim, o próprio regime político burguês para poder funcionar sob as suas próprias contradições e perante a pressão democrática das massas, teve que autolimitar-se, teve que estabelecer uma multiplicidade de regras. Por exemplo, a limitação é uma conquista popular precisamente para evitar maus governos, porque ninguém faz regras para os bons.
Então, há um conjunto de normas – e devem ser acrescentadas outras – que formalizam a representação. Essas regras são muitas e mais claras no sistema político, estão mais confusas no económico. Isto quer dizer que o critério de representação da sociedade tem problemas e deficits em todos os campos. E a nível político, que está no posto de comando, as exigências da representação, obviamente, devem ser muito maiores.
Um segundo problema é que o conjunto das instituições que conformam cada sistema ou subsistema da sociedade devem estar normalizados e, de facto, muitos deles estão-no profusamente.
Como anteriormente te comentei, num dos meus últimos trabalhos falo da ordem institucional que se presume surgirá, o que está mais ou menos explícito no processo de reformas, o que se reclama mas não está explicitado. Aí identifico as correntes políticas e faço uma história institucional de Cuba; caraterizo e aponto nove períodos e declaro que todos eles, inclusive aquele em que estamos, estão atravessados por um grupo de contradições que devem ser superadas aos fins socialistas. Faço também esta proposta para que se discorde dela e provocar o debate, para que se pensem e se consensualizem estratégias.
A primeira das contradições que identifico é um desvio da norma institucional, pintaram um pássaro que não voa. Podia dar milhões de exemplos, mas julgo que não é preciso. Talvez o mais ostensivo de todos seja o da Assembleia Nacional, que se supõe conduzir o país, ter todos os poderes constitucionais, fácticos e legislativos, e que como diz a própria lei, a primeira coisa que faz quando reúne em sessão é pôr em discussão, não aprovar mecanicamente sem debate, a decisão tomada pelo Conselho de Estado. Isso é o que está na letra, mas uma pessoa tem a sensação que a Assembleia realmente existente não se é conduzida assim, nem dirige o país, nem toma todas as decisões, nem põe em discussão as demais decisões, nem prestam contas os poderes públicos. Quer dizer, a uma pessoa parece que o sistema político desenhado não é o que está em funcionamento. Inclusive, por cada lei aprovada há cinco ou seis Decretos-lei do Conselho de Estado; há uma funcionalidade mini da Assembleia e uma funcionalidade supra do Conselho de Estado. Ninguém tem claro a prestação de contas do Governo à Assembleia, porque o Presidente do Conselho de Estado é também o do Conselho de Ministros. Como vão fazer exigências a si mesmos? Há problemas de desenho e de funcionalidade, e tudo isso se expressa como um desvio da normativa institucional.
Nalguns períodos o desvio da norma foi monumental – na segunda metade dos anos 60, na Batalha das Ideias – quando quase são criados governos paralelos. Quer isto dizer que o primeiro problema que temos é que há um certo grau de desvio; e de como o estreitamos ou o suprimimos. Visto que uma das funções da política no posto de comando seria essa: zelar pela norma institucional.
Uma segunda contradição é que tudo isso passa pelo famoso problema descentralização/centralização. Todo o socialismo fala de descentralizar, porque para que haja autogoverno, para que haja participação. O desenho institucional tem que ser o mais descentralizado possível. Se há mais poderes e recursos na Nação ou na Província que no Município, este último será sempre nada. Para haver participação é necessário haver uma dimensão, uma escala, um espaço local, relações; e nele têm de estar situadas uma grande parte das decisões e dos recursos, para que se possam assegurar uma quantidade dos problemas da vida comum, sobretudo da vida quotidiana.
Há também um problema de desenho. O nosso, em todas as instituições, é incrivelmente centralizado. As organizações de massas são nacionais e verticais; as restantes organizações civis têm, por lei, caráter nacional e único. Não tenho que insistir em quão centralizado está o Estado. No sistema económico, a reforma empresarial em vez de criar empresas mais desagregadas, o que tem feito é agregar mais empresas, criou corporações e as chamadas OSDE [1]. Isto é, os modelos são altamente centralizados e o funcionamento real é ainda mais desviado, com o que a representação se torna inútil e a participação não passa de música celestial. Como participar se toda a estrutura em que em que se está é altamente centralizada, se o estilo de direção é altamente vertical? Naturalmente, a consequência disto é outro problema que está inventariado, a chamada burocratização.
Qual é a promessa socialista? A representação, a participação, o autogoverno, a socialização, mas o que vemos no socialismo real e no nosso são as tendências burocráticas de todas as estruturas e todas as instituições tendem a burocratizar-se.
Mas repara bem, burocratizar-se não é só burocratismo. O burocratismo é uma cultura que apoia uma prática perversa, a prática burocrática; a burocracia o funcionalismo é um supernumerário, é «muita gente». Mas um só dirigente pode ser burocrático, quando toma decisões discricionárias e a sociedade não pode, não tem controlo sobre elas. Então, porque é que as instituições tendem a ser burocráticas. Porque as decisões tomadas não têm controlo social suficiente.
A última contradição tem a ver com a primeira resposta que te dei:; prometemos um socialismo autogestionário e o que temos na realidade é um socialismo de Estado. Ao ponto de haver uma cultura instalada muito forte a que chamei convencional, para a qual o socialismo é o Estado surgido com a Revolução, o que é estatal, é socialista. A Revolução é o Estado, é o revolucionário, é revolucionário o que o Estado te dá; «não está com a Revolução» o que esteja fora do Estado. Essa é a ideologia constituída e, naturalmente, é o berço de ouro do burocratismo.
CGS: Mas também mencionou que o socialismo necessita de um Estado forte. Como conseguir o equilíbrio?
JVP: Exatamente, é muito complexo, precisamos desestatizar a favor de uma maior socialização, mas também necessitamos de um Estado forte, há que poder discernir. Dito de outra maneira, a nação precisa de um Estado forte e sociedade de uma crescente socialização.
O que é que a prática demonstrou? Que o Estado a favor da Revolução, por e para ela – demos-lhe esse crédito – estabeleceu uma sociedade tão regulada, tão cheia de proibições – cumprindo aquele apotegma de que em socialismo o que não está permito é proibido – e agora levamos uma temporada de desregulações e não acontecem os males de que nos resguardavam. Por exemplo, acabamos de descobrir que podíamos estabelecer uma política migratória diferente, alternativa; que não havia que regular a vida das pessoas dessa maneira; e que ainda é discutível porque ainda há tantas regulações. Mas o que torna isto uma questão, o que importa é que nos temos movimentado num sentido, digamos, mais socialista, mais a favor das liberdades cidadãs.
Quando uma regulação limita uma liberdade cidadã temos um problema, tem que haver razões muito poderosas, muito circunstanciais e muito submetidas ao consenso da população para restringir ou regular uma liberdade cidadã. A liberdade de movimento é um direito humano, uma liberdade consagrada na Constituição, assim era na de 40 e faltou na de 76. A sua desregulação é uma das coisas que há que atribuir ao atual processo de reformas e aplaudir que se tenham introduzido outras que se mostravam não só abusivas como desnecessárias.
Vou dar um exemplo. Quando proibimos um mercado livre de habitação supostamente fazíamo-lo a favor do socialismo da igualdade, para que ninguém se apoderasse, por razões circunstanciais, de uma habitação melhor que outro, etc., todas razões que se podem arguir, estando eu a pôr-me do lado do político, do decisor. Bom, passam os anos, mudam as tensões, desregulam e: a) toda a população está feliz com isso e que se tenha criado um mercado de habitações; b) volta-se a reproduzir uma concentração das melhores habitações nas mãos dos setores mais abastados da sociedade. Isso é certo. As regulações provocam problemas e a desregulação também os originam. Mas porque é que ainda que beneficiem minorias todas as pessoas os aplaudem? Porque é um tema de direitos, todos sentem que ganharam ou recuperaram liberdade.
Eu creio que esta é uma leitura que temos que fazer, qual é o mundo, o universo das regulações e restrições de liberdades cidadãs que não são necessárias, que criam mais problemas politico-ideológicos do que aqueles que resolvem, que foram criados no imaginário de uma sociedade que nunca existiu e que se viesse a existir, as pessoas teriam que a querer, não se poderia impô-la por decreto.
Um dos argumentos para tantas restrições era o cenário do perigo em que sempre estávamos, mas a verdade é que chegaram os anos 90 do século passado e estivemos mais em perigo que nunca; começámos a desregular e não se passou nada.
Devemos aproveitar a oportunidade de irmos fazer uma reforma constitucional ou instaurar uma nova – mais parece este último caso – para delimitar as proibições. Num caso e noutro, a Constituição tem que ser a fonte do ordenamento real da sociedade, tem que ser a instituição jurídica que realmente regule. A Constituição é aprovada pelos cidadãos, é uma expressão da soberania popular, é um dos poucos atos nos quais a população não entrega a soberania, mas exerce-a.
A sociedade tem que se reger, absolutamente, até que se reforme novamente, por essa Constituição, e tem que haver mecanismos que garantam a sua aplicação; que todos os cidadãos e todas as instituições possam reclamar junto de outros pela sua violação. Se em algum momento for necessário limitar as garantias constitucionais, já não é por ela regida. Esta é uma das coisas que há que resolver e definir na próxima convocatória. Dizer que garantimos a Constituição é dizermos que garantimos os direitos dos cidadãos.
Há tempos que nós somos signatários de vários documentos internacionais onde os direitos dos cidadãos se equiparam com todos os direitos humanos. Nós defendemos que não há apenas os três grupos de direitos aprovados, civis, políticos e económico-sociais, mas que se promovam e reconheçam direitos culturais, direitos da natureza ou outros. Estamos envolvidos em todas as propostas de ampliação dos direitos humanos, estamos comprometidos com essa categoria e, além disso, dizemos que todos os direitos têm igual hierarquia, que são interdependentes e invioláveis. Temos um posicionamento, mas a nossa Constituição não reconhece essas mesmas ideias, não as inclui, não explicitou que o âmbito dos cidadãos é o âmbito dos direitos humanos. Há que prepararmo-nos para isso, criar essa cultura. Os direitos não são os que dá o Estado, são direitos originários que a comunidade mundial reconheceu. Nós, a nível nacional enriquecemos o fundo de direitos humanos com as nossas próprias propostas, e isso está muito correto, mas toma atenção que a figura do cidadão está sempre a aparecer e temos sempre de a resgatar. O que no discurso oficial é o povo, na Constituição e no direito é o cidadão, com os seus múltiplos papéis.
Nós temos uma batalha terminológica. Há uma quantidade de termos que nasceram e criaram as revoluções, as que fundaram o regime burguês ou as que criaram outras experiências, as que amamentaram alguns como democracia, cidadania, igualdade, soberania, fraternidade, etc.. Toda esta terminologia foi criada pelas revoluções e nós deixámo-la roubar, e o discurso liberal dominante do capitalismo guardou-as para si. Então dá-se o paradoxo de quem fala de cidadãos é Obama, não nós; e pelo contrário, preocupa-nos quando alguém emprega o termo, vemo-lo como ave rara «e este o que traz». Dizemos que o que existe é povo, mas a realidade é que povo é o conjunto dos cidadãos. O depositário dos direitos humanos é a pessoa e esta vive numa polis, numa República, é um cidadão. Vamos usar as categorias como são. É o cidadão o que quer e constrói o socialismo, não é o socialismo que inventa o cidadão.
Pode ser que num dado momento da história uma vanguarda política ou intelectual tenha propostas; estas não são senão ideias enquanto a cidadania não as acolha e respalde. Pode antecipar-se a consciência cidadã, atuar sobre a cultura dominante, promover outra cultura hegemónica, definir um projeto de nação e de sociedade diferentes mas, no final, essas ideias só têm futuro se tiverem sido acolhidos pelos cidadãos e se estes também as converterem em projeto. É por isso que aqui, ao fim de meio século, é de cidadãos que estamos a falar.
CGS: Neste meio século os cidadãos cubanos socializaram em contextos muito diferentes que determinaram os seus imaginários e conceções sobre o socialismo. Como legitimá-lo aqui e agora?
JVP: Há que tornar explícitas quais são as premissas socialistas, quais são as do processo de reformas, porque atualmente o cenário desenvolve-se como se o processo socialista estivesse garantido na vontade político-moral dos dirigentes históricos e em alguma palavra solta, mas não o está na do todo de forma clara; pareceria que a vanguarda é a depositária dessa garantia.
Entre outras coisas estamos na véspera de uma sucessão política, de uma renovação geracional, e de novos desafios. De facto, há que reformular o modelo socialista, o modelo económico e a ordem constitucional. Qual é o curso socialista dessa transição de que tanto se falou? É necessário que na cultura dominante isso esteja claro, há que falar de socialismo, há que identificar que coisa é e será o socialismo cubano.
Quando Fidel declarou o caráter socialista da Revolução em abril de 1961 fez um inventário das conquistas que já se tinham alcançado e disse ao povo: «isto é o socialismo». Este regime sociopolítico estava amaldiçoado e havia na população cubana uma cultura hegemónica anticomunista, mas naquele momento o socialismo foi definido pelas suas premissas concretas e reais, pelos seus êxitos, os que havia concretizado e os que prometia. Agora, de um momento para o outro, parece que todos os defeitos, insuficiências e problemas que temos, são os do socialismo; incluso chega um momento em que se transforma num termo desqualificador. Parece-me que esse é um campo muito importante, onde há que fazer a luta ideológica-política, porque o que agora está em jogo é o carater socialista da Revolução cubana.
E a Revolução cubana é um facto, é uma história, está a transitar por novos cenários e se o que está agora em discussão é o seu caráter socialista, então há que explicitá-lo, tem que se fazer uma discussão, há que reconstruir uma cultura. Na sociedade estão a coexistir seis gerações políticas identificáveis e provavelmente há uma sétima em formação. As três primeiras viveram melhor que os seus pais, a quarta viveu igual aos seus pais e as duas últimas pior; o gap geracional é um facto Nós temos que cultivar as novas gerações no socialismo; tal como a alguns setores das velhas gerações, atualmente atravessadas por fortes sentimentos de frustração, renúncia e cansaço. Essa é a verdadeira batalha de ideias, a que há que fazer pelo socialismo, que está sempre em construção: estás a prometer uma sociedade que ainda não existe, está-se em trânsito para ela, e há sempre insuficiências que apontar.
Até ao Período Especial, a ideologia dominante era que o destino de todos, o meu em particular, o da minha família, estava ligado ao da nação; ela era a locomotiva, tirava de todos, se o país progredia todos progredíamos. O que é que sucedeu? O comboio parou, não anda ou está a retroceder. Agora há muitos que dizem: «Eu não posso salvar o país, mas posso salvar-me a mim.» Um setor importante da sociedade começou a passar para estratégias individuais. Então eram de sobrevivência mas agora são de ascensão social. Não obstante, ainda há um grupo maioritário da população que não progredirá se o país não progredir.
Naquele momento era o projeto socialista o que permitia realizar a nação, a que conseguia sobrepor-se ao adverso ambiente internacional nem resistir à agressão sem o socialismo. Quer dizer, eramos socialistas para realizarmos um projeto de nação. Por isso, insisto em que na realidade não temos um projeto, mas dois que se completam.
En aquel momento era el proyecto socialista el que permitía realizar a la nación, la que no lograría sobreponerse al adverso entorno internacional ni resistir a la agresión, sin el socialismo. Es decir, éramos socialistas para realizar el proyecto de nación. Por eso insisto en que en realidad no tenemos un proyecto, sino dos que se complementan.
Nota do Tradutor:
[1] Em meados de 2015 promoveram-se algumas transformações no sistema empresarial cubano com o objetivo convergente, foi o que então se disse, de dotar o tecido empresarial cubano de «mais autonomia e capacidade – como indicava o alinhamento dois – com vista a maiores níveis de eficiência e produtividade. Foram, então, criados três níveis organizativos de empresas: Organizações Superiores de Direção Empresarial (OSDE), empresas e Unidades Empresariais de Base (UEB)
* Juan Valdés Paz, investigador e Prof. Universitário, Prémio Nacional de Ciências Sociais e Humanas, é assessor da prestigiada revista Temas, onde participa.
Esta entrevista publicada em 15 de abril de 2016 na revista Temas:
http://www.temas.cult.cu/content/el-socialismo-no-puede-posponer-la-democracia-que-ha-prometido
Tradução de José Paulo Gascão
Juan Valdés Paz (JVP) : Esta interrogação leva implícita uma discussão prévia, que pode ser uma primeira pergunta, o que vamos entender por socialismo, porque nesta altura já não é um termo suficientemente preciso ou partilhado, nem podemos ter a certeza que todos os interlocutores entendem a mesma coisa.
Não é demais recordar que, na aceção clássica, o socialismo é um período de transição para o comunismo. Há uma proposta de sociedade a que se chama comunista, e o socialismo é uma transição entre a sociedade capitalista historicamente existente e que se propõe como alternativa. Nos clássicos o socialismo é um período de transição com traços universais.
Todos sabemos que nas experiências históricas de socialismo esse período foi uma coisa muito mais complicada que o que se sobre-entendia por socialismo na formulação dos clássicos, pois estes supunham que essa transição para o comunismo sobreviria nos países capitalistas mais desenvolvidos. Ao não suceder assim, essa agenda ficou marcada pela necessidade de concluir ou alcançar os níveis de desenvolvimento das forças produtivas que as sociedades que iniciavam esta experiência não possuíam, e esta circunstância tornou o processo muito mais complexo.
Esse foi o primeiro problema, uma das premissas da proposta clássica não se verificou; a segunda premissa era que o socialismo chegaria como um sistema mundial, isto é, as grandes sociedades capitalistas desenvolvidas transitariam para fórmulas socialistas e facilitariam o processo das restantes, que as seguiriam. Como o sistema internacional não se movimentou para experiências desse tipo, desde então fica de pé a pergunta de se é possível o socialismo num só país, num quadro apenas de estados nacionais, quendo o mundo não se move nesse sentido e continua dominada por relações capitalistas. Esse foi o primeiro grande debate com que se defrontou a experiência soviética.
A terceira foi a noção temporal de transição. Na formulação clássica, este seria um período histórico mais ou menos curto, em virtude das premissas materiais dadas, para usar a linguagem dos clássicos, mas uma vez que estas não existiam, o socialismo parecia estender-se no tempo e o comunismo aparecia cada vez mais distante. Portanto, o que temos tido são experiências para sociedades não capitalistas, mas onde o comunismo se vai convertendo numa noção utópica, que serve para orientar o sentido da transição, mas sempre como uma alternativa muito longínqua. A realidade histórica e a que se nos impôs, como a todos, é uma indefinida sociedade de «transição».
O outro problema não tem já a ver com os clássicos, tem tudo a ver com o socialismo real.
A transição deu lugar a um tipo de sociedade que em todas as experiências, da soviética à chinesa, terminam sendo outro tipo de sociedade; não transitam mas convertem-se numa distinta, onde algumas das premissas que os clássicos previam e inclusive os revolucionários esperavam, não se verificaram.
Por exemplo, a extinção do Estado. Lenine disse em O estado e a revolução, que depois de algum tempo este se «extinguirá»; mas as experiências históricas foram de socialismos de Estado, sociedades ordenadas e promovidas pelo Estado, a partir do poder político estatal, a discussão que cabe é a de onde é que elas foram mais ou menos estatizadas.
Conclusão. As experiencias reais do socialismo histórico têm em comum a sua opção não capitalista; produziram sociedades não capitalistas que, em termos clássicos, dificilmente poderão ser classificadas como socialistas. Por sua vez, a maior parte das experiências conhecidas iniciaram meio século depois, no mínimo, uma «transição» para o capitalismo; foi este o caso do socialismo na Europa de Leste, incluindo o socialismo soviético. De todas aquelas apenas sobrevivem os casos da Coreia do Norte, Vietname, Laos e China.
CGS: O que é que têm em comum as experiências sobreviventes?
JVP: No fundamental assumem-se como «socialistas», o seu programa político continua comprometido com o socialismo, mas todas se declararam de «caraterísticas próprias». Têm um projeto socialista, querem superar o capitalismo, ainda que tenham de utilizar as suas instituições para o seu próprio desenvolvimento, e todas o estão a fazer, cada uma a seu modo: os chineses, os vietnamitas, os coreanos – nem falar – e finalmente nós, que cada vez mais nos reconhecemos nesses traços próprios. Este é o ponto, quando falamos do «nosso socialismo», se não dizemos «socialismo cubano» já não se sabe do que estamos a falar.
A outra observação é que em todos os casos, um fator muito importante na sobrevivência destas experiências é a questão nacional. No dos chineses, o tema da libertação da agressão e ocupação pelas grandes potências, a recuperação da unidade nacional, os fatores etnográfico-culturais, etc., tiveram e têm um papel fundamental. Falamos de uma cultura de quatro mil anos perante um Ocidente de apenas cinco séculos; isto é, as caraterísticas próprias do seu socialismo estão determinadas e aludem à sua identidade cultural e nacional.
O mesmo acontece com o Vietname, que acabou de se unificar e de concluir a colonização apenas há cinco décadas, tem de resistir à China na fronteira norte e aos Estados Unidos no Pacífico, por isso também a questão da independência e identidade nacionais são uma componente muito forte. Não vou comentar a Coreia – porque é impossível –, mas esta lógica também é válida para nós. Se fizermos a história do socialismo cubano, veremos que os anos sessenta estão marcados, entre outras coisas, pela intenção de construir um socialismo nacional de caraterísticas próprias, ainda que não empregássemos essa terminologia. Isso não resultou porque não era economicamente viável, e passámos a uma transição socialista que tomava em conta a experiência internacional do socialismo, a dos partidos «irmãos» e no final o modelo soviético. Readequámos a nossa transição socialista inspirando-nos nesse modelo que naquele momento se confundia com o universal. Depois andámos aos tombos e agora, que não há modelo universal, não sei se por opção se porque não nos resta outro remédio, voltamos a cair na necessidade de elaborar uma versão do socialismo nacional.
Por que razão recalco isto? Porque acredito que quando o vemos na perspetiva de características próprias, quando se pretende a construção de um socialismo adequado à história e à cultura nacional, então, sobrepõem-se dois projetos: o da nação e o da sociedade.
Para o projeto da nação está claro quais são os desafios, o inimigo principal, a situação geopolítica, etc. Vê-lo a partir daí, separadamente, pode sugerir-nos maiores ou menores aberturas, enconchamentos, exposições, cuidados, delimitação das nossas relações e nível de integração regional. Assim, havia que refletir sobre que tipo de sociedade e que discurso hegemónico é necessário para garantir o projeto da nação, porque este necessita de uma nação que o realize; e aí aparece o projeto de sociedade.
Aí, segundo a minha maneira de responder á pergunta, temos que criar a nossa proposta de socialismo nacional que não temos desenvolvido. Temos de considerar as exigências do projeto de nação como invariáveis, e as do projeto de sociedade socialista como variáveis. Isto é, podemos assumir uma transição mais acelerada, mais lenta, mais dura, mais branda, com mais ou com menos elementos do capitalismo; podemos flexibilizar o projeto de sociedade em função dos desafios internacionais a que estamos submetidos, por sermos pequenos, porque o mundo é «grande e alheio»; podemos considerar ser mais flexíveis no projeto de sociedade e mais duros no projeto de nação. É nessa perspetiva que eu me coloco.
Sob o nome de socialismo não temos apenas uma experiência inscrita numa tradição comunista, como temos também uma tradição social-democrata, inclusive mais extensa, com mais sociedades envolvidas que nas pró-comunistas.
Por isso também teríamos que ver – porque pode ser um risco, uma tentação, ou uma confusão – se nos movemos para uma estratégia social-democrata acreditando que estamos assumindo a outra. Isto é, que sejamos tão flexíveis que acabe por não importar a cor do gato desde que cace ratos; que não importe que tipo de Estado ou que tipo de economia desde que seja eficiente. Aí temos o modelo nórdico, que cada vez se degrada mais, mas continua a ser o êxito paradigmático da social-democracia. Não foi por acaso que todas as experiências socialistas europeias que transitaram ao capitalismo declararam que iam ser «nórdicas». E aqui também podemos encontrar esses discursos, no máximo, é a uma sociedade capitalista com um welfare state ou estado de bem-estar, com uma política social mais ou menos ampla.
Fernando Luis Rojas (FLR): Ficou claro que a transição socialista é um processo tão complexo que constantemente põe em crise a sua formação clássica, se partimos dessa análise crítica das experiências mundiais e da própria. Como define o que Cuba necessita?
JVP: Vou referir-me ao desejável. A necessidade é uma categoria que dá conta de restrições internas e constrições externas que não se podem superar. Assim, não vou deter-me aí porque é óbvio que teríamos que fazer uma adequação a essas condições. O que importa é não ficar aí mas definir as metas do projeto.
Não vejo que tenhamos uma ideia clara de qual é o socialismo possível. Não o debatemos. Há críticas tácitas ao que temos, pois quando se propõem reformas pode-se inferir que se está a dar conta de qualquer coisa que era defeituosa, insuficiente ou ineficaz.
Muito bem, diga-se: «vamos para o socialismo», mas como já não está claro o que é que se coloca sob esse termo, então é mais confuso definir que haveria que continuar o socialismo real cubano, dando conta do nosso projeto de nação, das nossas circunstâncias, da nossa própria história, dos nossos êxitos, e o que é que havia que mudar. Esse balanço não está feito nem sequer no Partido. Em última instância corresponder-lhe-ia que na sua condição de «vanguarda organizada», de «dirigente superior da sociedade e do Estado» tivesse feito essa discussão. A minha perceção é que não está feita e, não dizendo que não a fará, suspeito que não a farão. E acredito que, sobre isso, continuamos a movimentarmo-nos num certo mar de confusões.
Sobre as insatisfações do socialismo real há bastante consenso, não é preciso que os académicos se pronunciem. Fez-se um debate público nos anos 90, voltou-se a fazer em 2007 e em 2011. Com as opiniões da população, as suas questões, problemas e as propostas; há uma agenda que a direção do país tem e não a devolveu. A população produziu-a e a opinião pública construiu-a de maneira mais ou menos fundamentada, mas é certo que são eles que não têm claro qual é a sua própria agenda. A direção do país sim, suponho que tem essa informação.
È importante ter em conta essa agenda, porque é a base do consenso, visto que não só temos que produzir uma boa ideia de sociedade, como temos que acompanhar qualquer proposta dela, com um nível de consenso que garanta o apoio das grandes maiorias do país.
Como chegámos até aqui? Temos tido muita sorte, temos passado muitas necessidades, temos enfrentado neste meio século um enorme número de desafios, e a Revolução sobreviveu nas piores circunstâncias com base do consenso, até á débacle do Período Especial.
Então, o tipo de sociedade que vamos construir implica – melhor ou pior desenhada – o consenso, portanto, o debate. Isto interroga-nos sobre o que temos pela frente, quais são as oportunidades e os cenários previstos para se construirem esses consensos.
Se mal não recordo, fomos convocados para discutir um novo modelo económico; não sei se é sob estes mesmos termos que se vai apresentar a discussão, mas foi para isso que fomos convocados. Depois voltaram a convocar-nos para, e cito: «Elaborar os conceitos fundamentais do socialismo nas novas condições históricas», que é uma forma de dizer o novo modelo de socialismo. Depois convocaram-nos a participar numa eventual reforma constitucional. Três cenários muito complexos onde se supõe que vão concorrer todas as correntes ideológico-políticas, as que acreditamos que existem e as que desconhecemos.
Mais do que uma resposta, o que eu tenho são outras perguntas. Creio que o socialismo real que trazemos tem muitas deficiências e é necessário fazer-lhe profundas alterações no sistema económico, político-ideológico, civil, comunicacional e cultural. Por isso me parecia que as convocatórias tinham um sentido de totalidade que permitia considerar que todas estas dimensões iam estar colocadas a um livre exame, – pensava eu – e ir a debate público.
FLR: Que outras transformações substantivas requere o socialismo cubano?
JVP: Para começar há que acabar com a identidade de socialismo e Estado. A nossa é uma república socialista que tem um Estado, mas a república não é o Estado. Portanto, o primeiro problema que enfrentamos, creio, é como desestabilizar o socialismo cubano; a favor do seu debilitamento, de estabelecer domínios privados? Não, em função de mais autogoverno e mais autogestão. Há que desenvolver as formas autogestionárias de todo o tipo – cooperativas, associativas, comunalistas, etc. – e há que desenvolver as formas de autogoverno, o que sugere uma enorme descentralização do atual modelo de Estado e de Administração Pública que temos.
E o segundo grande problema é o que vou chamar, de forma poética, um maior alcance – eu diria notável – do seu desenvolvimento democrático. Temos neste sentido enormes deficits, que foram legitimados como restrições impostas pelo confronto com os Estados Unidos. Mas o socialismo não pode adiar indefinidamente a democracia que prometeu.
Recordo Rosa Luxemburgo a dizer que o socialismo garantiria a «democracia plena»; a palavra plena sugeria algo melhor que a democracia liberal e é, seguramente, um campo de discussão se as distintas experiências de socialismo histórico conseguiram um maior desenvolvimento democrático.
Mas esse é o nosso problema, não porque esse seja o nosso problema devido à normalização das relações com os Estados Unidos e que ela nos imponha determinadas aberturas ou porque queiramos parecer um pouco mais liberais que o que éramos. Não. Porque é a promessa do socialismo. Com gringos ou sem gringos, de costas voltadas ou abraçados, o socialismo prometeu ao povo uma democracia plena. Não digo que tudo isto esteja ali ao voltar da esquina, por isso falo de desenvolvimento democrático, tem que ser um processo evidente, continuado, imparável.
CGS: O próprio conceito de democracia e o modo como se assume a partir de Cuba é um tema sujeito a constante debate e contradições. Neste sentido, quais são os desafios?
JVP: Sim, por trás do termo democracia há uma larga discussão sobre como o vamos a entender, mas convencionalmente o que temos para expressar essa democracia é um subsistema de representação e a pergunta de se: são suficientes os mecanismos de que dispõe a sociedade cubana nos sistemas político, económico, civil, ideológico-cultural na esfera comunicacional, para representar as suas bases? Está a população bem representada? Há que dizer que temos sérios deficits sobre isso. Volto ao termo de Luxemburgo, plena, a nossa meta deve ser alcançar a representação plena. Mas, quão distantes estamos da plenitude e o que fazemos para chegar até ela?
A segunda dimensão deste tema, ainda que haja muitas sob o enviesamento de democracia, está em o discurso oficial ter dito que a nossa é mais democracia que a outra – a liberal – porque é «participativa». Mas cada vez que uma pessoa toma lugar num qualquer fórum, seja de académicos ou de vizinhos, todas as pessoas tendem rapidamente a dizer que há muita participação para a mobilização, o apoio e a execução, enquanto para tudo o resto, particularmente a tomada de decisões, é bastante limitada. Então, essa é também uma agenda incompleta.
Creio que um dos grandes desafios que temos pela frente para superar a sociedade atual, é o de colocarmos não somente reformas económicas, mas reformas em todas as esferas, que deem lugar a um maior desenvolvimento democrático. Também não se pode ignorar os desafios reais com que nos defrontamos, os temas de segurança, os planos, a estratégia do soft power que os EUA adotam connosco. Continuaremos sempre com inúmeras ameaças ao projeto de nação e a sociedade tem de dar resposta a isso. Seguramente temos que assumir algum nível de restrições, mas é importante, primeiro, que as reconheçamos publicamente; e depois que as consensualizemos.
CGS: No discurso político reitera-se muito uma frase que apelida o tipo de socialismo que se constrói em Cuba como «próspero e sustentável». Como concebe a prosperidade e a sustentabilidade no nosso contexto?
JVP: O poder político cria frases e palavras de ordem. Sempre o fará. O que se passa é que depois a política tem que hegemonizar a palavra de ordem, tem que criar uma cultura que a converta no consentimento da sociedade, de modo que esta aceda a ela, a entenda, a incorpore na sua linguagem. Aí está o problema, não discutimos a palavra de ordem; entrega-la à população e não a submetes a debate, não permites que se consciencialize, não educas para o seu exame livre. Se o povo o tivesse discutido, se as ciências sociais cubanas tivessem debatido que vamos entender por prosperidade ou sustentabilidade, em que consiste, como se expressa, quanto abarca, poderíamos tentar o seu esclarecimento. Então, a palavra de ordem pode ser criada em dez minutos num gabinete, inclusive pode ser o centro de muitos discursos, mas o quid é se essa consigna se vai converter em cultura de massas.
«Próspero», por que temos de discuti-lo? Vou dar um exemplo: hoje em dia diferentes correntes ideológico-políticas utilizam o mesmo termo; para o neoliberalismo a prosperidade consiste no crescimento incessante da economia, do Produto Interno Bruto (PIB), o que se vê claramente; uma tendência mais social-democrata diria que não, há que procurar com que a economia cresça e que haja também uma repartição dos rendimentos; Uma mais de esquerda pensa numa redistribuição muito grande do excedente e uma de direita pensa numa distribuição limitada, simplesmente aos setores mais vulneráveis; mas em qualquer dos casos a prosperidade implica também a redistribuição do excedente económico que se atinge com o crescimento. Nós, os socialistas e os comunistas, passámos meio século, ou mais, a discutir o que íamos entender por prosperidade. Tínhamos falado de justiça social, de qualidade de vida e outros termos que a esquerda histórica utilizou para a explicar. Uma pessoa podia dizer «justiça total», outro a «igualdade». Enfim, há uma enorme quantidade de conceitos associados. Por que temos de subverter o capitalismo? Porque este não pode garantir nem a prosperidade nem a sustentabilidade.
Eu creio que faz falta voltar a debater, para nos inteirarmos se todos compreendemos a mesma coisa. E aqui voltamos ao ponto anterior, de que não debatendo não há clareza. Mas existe uma cultura de esquerda, uma cultura revolucionária, que polemizou nesses termos, colocou um esclarecimento do que se devia entender por prosperidade, por que se esta é para todos, aí estamos a falar do socialismo. Pode ser que essa seja a intenção tácita, o que entendem os políticos que lançaram essa fórmula, mas não chega, há que constituir uma cultura, há que convertê-la em ideia hegemónica, em ideal.
Essa fórmula tem uma estratégia? É tão geral que já define o socialismo com as caraterísticas próprias que queremos? Se é tão ambiciosa, o primeiro desafio é que seja hegemónica, que a imensa maioria dos cubanos a queiramos, o que supõe, novamente, o debate, a sua «concetualização», que os nossos «intelectuais orgânicos» a fundamentem, a expliquem, etc..
Estamos, desde sempre, perante o ABC do marxismo, Gramsci incluído. Creio que esse tipo de consigna ou fórmula, o pior que tem é que é muito abstrata, falta à direção política explicitar o que entende por ela, para ver se estamos de acordo; e, finalmente, não retoma a proposta cultural da esquerda. Por nos termos colocado nela não creio que tivéssemos utilizado essas expressões, mas outras, como a de Martí, de «justiça plena». Para o dizer em poucas palavras teria sido melhor para nós o programa martiano. E o grande desafio, volto um pouco ao ponto anterior, não é apenas produzir o debate, mas que os resultados desse debate voltem ou deem lugar a um discurso hegemónico. Creio que foi muito atrevido, objetivo, justo e político que Raúl Castro nos seus primeiros discursos recusasse o unanimismo. Toda a gente sabe que em sociedade alguma há unanimidade. A pretensão de que todos vamos pensar e atuar de igual modo era, de per si, não apenas uma consigna burocrática, mas bastante pouco socialista, além de mentirosa, porque não refletia a realidade. Então, foi muito importante reconhecer que não há unanimidade, que há diferenças; porque coloca ao político o desafio de tratar com essas diferenças, de as administrar, de fazer propostas e desenvolver estratégias que as incluam.
Ora bem, depois de se reconhecerem as diferenças, não avançámos mais, nem sequer no sector intelectual. Aceitámo-las, mas não nos dedicámos a identificá-las, explicitá-las. Os cientistas sociais sim, esses deram conta, por exemplo, que sob o impacto do Período Especial, as estratégias de saída da crise e as reformas em curso estavam a impor na sociedade cubana um padrão de maior desigualdade. Isto é, está mais ou menos claro que somos cada vez mais desiguais em termos económicos, posicionais, de oportunidades, etc.. Esse pode ser um custo inevitável, são processos perfeitamente observáveis e podem se descritos. Mas temos uma maior obscuridade nas diferenças político-sociais, também sabemos que as há, mas avançámos menos, talvez porque as ciências políticas foram sempre, «o patinho feio» das ciências sociais cubanas. Não nos demos conta que há correntes político-sociais diferentes e que inclusive, não é só no espaço da sociedade onde obviamente deve existir algum nível de oposição sistémica, mas que também existem no seio da Revolução, no sector da população que apoia a Revolução. Há diferenças, algumas observáveis, outras de autoidentidade.
CGS: É possível classificar essas diferentes correntes políticas?
JVP: Não são puras, estão muito confusas e por vezes os próprios sujeitos sociais não estão totalmente conscientes dos seus posicionamentos e propostas que, por observador distante, seriam classificados, como mais social-democrata, social-liberal, soviética, guevarista, socialista crítico, etc. Num trabalho recente classifiquei algumas correntes sociopolíticas, não de forma abstrata mas face aos Alinhamentos [N. do T.: documento que esteve em discussão por toda a população], para falar da estratégia das reformas em curso. A uma chamei-lhe convencional, que é uma mistura de muitas coisas, um pouco como foi a Revolução cubana; também lá está a guevarista; a outra chamo-lhe socialista crítica, isto é, os que criticam o socialismo real cubano a partir de uma posição de esquerda, por ser estatista, e reclamam que seja mais socializante, que seja mais autogestionário, que desenvolva mais o autogoverno; esta corrente inclui as propostas libertárias e comunalistas, que aposta, por centrar localmente a organização social, etc.. E estão mais claras as correntes social-democratas e as social-liberais às quais já me referi; nestas duas a influência chinesa e diferente, mas está presente como referência às suas reformas.
Quando digo que há que construir consensos, debater e ser inclusivos não é uma coisa abstrata, não estou a falar de indivíduos demográficos, mas de pessoas comprometidas com algumas destas correntes ou com uma combinação delas, porque nem todos racionalizam exatamente o que estão a pensar. Por outro lado, as atitudes ou os posicionamentos que derivam destas correntes são transversais a toda a sociedade cubana, e não se pode dizer que a burocracia está permeada por uma destas e os intelectuais por uma outra. Aceitando a transversalidade, o curioso e o complexo está nas perguntas que compete a um politólogo ou a um sociólogo fazer; por exemplo, quais destas correntes predominam na burocracia cubana? E utilizando melhor o plural, nas burocracias, que presença têm estas correntes na burocracia estatal, na económica, na partidária, na militar, na administração pública? E no resto do funcionalismo? E entre os dirigentes?
Isto é, creio que aceitar as diferenças é assumir que há correntes, posicionamentos distintos, eventualmente comportamentos, e que estes são transversais a toda a estrutura social e que temos que os interrogar.
Portanto, não só no discurso em sentido retórico, mas em todas as ideias que se promovam, tem de se dar conta dessa diversidade, têm que ser colocados recursos hegemónicos de alguma complexidade, porque se dirigem a uma população que tem uma escolaridade média de dez anos, que tem um milhão de licenciados e queremos resolver o problema dizendo-lhe apenas que a Revolução deve ser «próspera e sustentável»? É com essas consignas que vamos reconstruir a hegemonia?
FLR: Há assuntos que foram polémicos desde a própria formulação clássica do socialismo, a sua problematização pública dentro do contexto cubano também foi muito escassa. Que conceitos e práticas sobre a propriedade, os meios de produção e o mercado devem caraterizar o novo modelo?
JVP: O tema da propriedade está para além da economia, essa é a primeira coisa que temos de ter em conta. A propriedade é uma categoria social, tal como a possessão; ainda que as duas tenham normativas jurídicas, o quid é que sociologicamente são duas condições distintas das pessoas em relação aos bens sociais.
Assim, a propriedade é um tema que devia tratar-se de uma maneira muito mais política. Tudo o que temos sobre isso é a sua taxonomia, a sua descrição restrita: o que a Constituição de 76 aceitava como propriedade; as que a reforma de 92 aceitou como formas de propriedade; e seguramente, agora que estamos a discutir uma reforma constitucional, as que se enumeram de forma ampliada e inclusiva num novo texto.
Uma abordagem sistémica ajuda-nos a tratar melhor muitos destes problemas, porque esta perspetiva não exclui que um dado componente de um sistema o seja igualmente de outro. De forma que a propriedade é um componente do sistema jurídico, do político, do económico e do civil, e deve ser abordado em toda a sua complexidade.
Quando se fala de propriedade, a expressão alude a que um sujeito tem determinados direitos domínicos, de domínio sobre um objeto, mas estes são sempre limitados. Os primeiros que os formularam conceptualmente foram os romanos, que os estabeleceram quase ilimitados. A sociedade histórica evoluiu ponde-lhes condições, restrições. Em Cuba, por exemplo, a república anterior – pré-revolucionária, primeira república, república liberal, etc. – avançou até impor ao direito de propriedade o conceito de utilidade social. Essa era a grande conquista da Revolução Mexicana, depois da Constituição de Weimar e depois do constitucionalismo moderno. Nós fomos dos primeiros a incorporar no texto constitucional que a propriedade tinha uma função social.
As revoluções e experiências socialistas deram a essa função social da propriedade uma dimensão maior e, de facto, limitaram os seus direitos domínicos. Eu creio que é essa a discussão, quais são estes direitos domínicos? Para que fique claro que o Estado vai restringi-los em função dos interesses da sociedade. De maneira que o sujeito interessado possa dizer «os meus direitos estão delimitados, restringidos ou regulados, mas estes». Tem que se explicitar as diferentes formas de propriedade pública, mista, cooperativa, privada, social – que é uma invenção nossa para a propriedade das entidades civis – e pessoal. Então, não basta enunciar as formas de propriedade, mas há que enunciar os direitos domínicos que se vão admitir a cada uma. Por que me parece importante esta perspetiva do problema? Primeiro porque temos uma história de arbitrariedade da Administração estatal face aos direitos domínicos dos proprietários. Ela costuma restringir mais ou menos e, de acordo com o que lhe convenha, tira, põe, imobiliza. De maneira que em nome da Revolução, eventualmente se terão violentado alguns direitos de propriedade.
Naturalmente, há a propriedade económica que é um componente de qualquer modelo que queiramos implementar; isto é, a propriedade participa do sistema económico e também de outros. Eu creio que terão que ser definidas as formas de propriedade que se aceitam, tal como as formas de possessão que serão admitidas no modelo económico.
O tema dos direitos domínicos que vamos conceder às distintas formas de propriedade, sobretudo a económica, é o primeiro numa adequada relação entre os interesses privados e os sociais ou comuns, ou dito de outra forma, é o terreno primário onde se dirime a maior ou menor conciliação entre os interesses privados e os representados pelo Estado socialista. O maior desafio não é o económico mas o político. Não se trata apenas de criar um sector não estatal, cooperativo ou misto. Como vamos fazer a articulação para que todos esses novos agentes económicos entendam que eles têm o seu espaço, o seu lugar, e estão protegidos debaixo da ordem socialista? Há que defini-lo, sob pena de o sector se torne desde o primeiro dia como antissocialista; porque muitos vão considerar que o socialismo é uma limitação e que o estado socialista apenas existe para lançar impostos, não lhe oferece um negócio grossista, tem mil inspetores corruptos etc..
O tema político desse modelo económico diverso é sobre quantos deles estão interessados, ou vão participar, na proposta socialista, de se o socialismo os inclui, em que os beneficia, em que os protege, porque deverão estar interessados nele.
Nós temos na nossa história um exemplo muito específico, que é como a Revolução manteve um sector privado camponês, tendo ligado os camponeses ao modelo socialista de tal maneira que se sentiam seguros e beneficiados com essa articulação. Agora estão menos, há um mercado livre e há interesses privados, a obsessão pelo lucro pode perturbar o comportamento de muitos, mas é o exemplo de um sector privado que estava engrenado aos mecanismos socializadores. O camponês era um dos sujeitos beneficiados pela Revolução, que lhe deu a terra, reconhecia-o como cidadão, fazia-o participar de todos os bens públicos que o socialismo oferecia, saúde, educação, cultura, desporto, etc.. E porque não quereria ser privado e socialista? Agora, o desafio é que estes sectores podem não encontrar articulação, inclusive chegar a acumular recursos que lhes permitam financiar a sua desarticulação, pagar um professor extra, um desporto extra, um serviço médico extra, uma oferta de bens extra, podem sair da oferta social e não necessitarem do sector público para nada.
Muitos companheiros colocaram a discussão do modelo económico a seco, sem debater qual é a articulação, qual é o modelo social e político, o sociopolítico que lhe serve de contrapartida e o integra. Não se toma nota dos efeitos, dos impactos que vai criar o modelo económico; por exemplo, uma maior desigualdade, para a qual não temos proposta inclusiva nem políticas para a reverter.
CGS: O processo de «normalização» de relações entre Cuba e os Estados Unidos, exigirá em algum momento a reestruturação de algumas políticas da Revolução, como o livre acesso à cultura e ao conhecimento? O que é que se passará com a propriedade sobre os bens culturais? Neste sentido, quais são os desafios do socialismo cubano?
JVP: Nós temos tido políticas sociais baseadas num mundo que já não existe; dito de outra maneira, baseadas num mundo que perdeu a partida. Há que esperar de novo pelas condições de uma revolução mundial; entretanto, o mundo em que nos inserimos é de regras privadas, capitalistas, de ganancia, de reconhecimento do lucro.
Efetivamente, abrir-nos ao mundo significa cairmos num campo onde as regras são determinadas por outros. O socialismo cubano – nos termos da sua consigna – para ser sustentável tem que ser capaz de produzir uma economia viável nas condições da economia mundial, e esse é o desafio que está em aberto. Imagino que a nossa inserção será uma combinação de acordos políticos com capacidades de competitividade nalgum nicho de mercado internacional, ainda que, se tivermos o melhor produto possa acontecer que o invólucro em que o vendamos torne a oferta quase inoperante.
Agora, necessitamos de normalizar as nossas relações com os Estados Unidos embora saibamos que normalizar é outra maneira de chamar uma «guerra-fria» que é para nós permanente. Necessitamos de tornar viável a economia, as vantagens do mercado norte-americano, o mais próximo, o maior do mundo, possuidor de tecnologias de ponta, uma clara fonte de investimento. Teremos que administrar essas vantagens e adequarmo-nos, de alguma maneira, a essas novas condições.
Ir além do diálogo, porque os Estados Unidos nos vão exigir o copyright, tal como o farão todos os outros. Isto é, para o desprezarmos temos que sair do mundo ou ter um mundo próprio. Nós temos pregado a liberdade dos bens culturais, bens para o povo; não temos reconhecido as políticas de copyright, publicamos os bens de todo o mundo; mas em boa medida isto só durará até que aceitemos as regras do jogo.
Não se trata apenas de reconhecermos o copyright aos Estados Unidos e eles reconhecerem-no a nós, mas da sociedade cubana o reconhecer aos seus produtores e criadores; aí entramos também noutra dimensão. Isso e milhões de problemas trazidos pela abertura se vão colocar, e por isso é tão importante, mais que as discussões pontuais de tais contradições que se geram com a normalização ou pela reclamação do investimento internacional, compreender integralmente todos os desafios que haverá que administrar.
Supõe-se que a direção política, que o governo cubano, que a opinião pública vela todo o tempo pelos nossos interesses. Necessitamos precisamente de um Estado forte para que haja um ator que expresse os interesses nacionais nessas discussões, não um ator descomprometido mas sob o controlo social, que se sente à mesa, agarre os acordos interestatais, intergovernamentais, esteja nos espaços multilaterais, etc.. Necessitamos um Estado, logo um funcionalismo e um corpo dirigente capaz de administrar as contradições e defender os interesses nacionais. E faz falta uma regulação da sociedade baseada numa informação aberta e debate público. Mas se a garantia da defesa dos nossos interesses vai depender de boas intenções que adjudicamos aos funcionários, ou da suposta sabedoria de um ou outro dirigente, então sim, colocamo-nos num cenário de risco.
FLR: Que princípios poderão definir essa regulação na construção do socialismo?
JVP: Nas noções do marxismo clássico, que além do mais recolhia toda a tradição socialista anterior, quando trataram os conflitos sociais a primeira coisa que disseram foi sobre a regulação, a necessidade de o Estado, o governo, regular o comportamento de determinados agentes sociais em favor de outros. Essa é a ideia essencial do socialismo, que se ia regular, que se ia incrementar as regulações sobre o comportamento social. No início estas emanariam do Estado, noutro momento teriam o consenso social e, finalmente, a própria sociedade se autorregularia cada vez mais, através da autogestão e do autogoverno.
Se não criámos uma cultura paralela em que a sociedade cubana – o projeto de nação e que coadjuva – é uma sociedade regulada pelo Estado, e em muitos momentos, e cada vez mais, pela própria sociedade; se não introduzimos essa noção, as pessoas vão pensar que se está a entrar num modelo económico liberal de concorrência que, inclusive, já não existe; isto é, estariam a pensar como os liberais do século XVIII num mercado perfeito, onde supostamente todos os agentes concorriam e ganhavam. Isso há algum tempo que não existe na realidade nem na teoria económica, mas tende a ser um traço espontâneo da produção mercantil simples, a ideia de uma sociedade aberta, competitiva e com o ideal de não serem restringidos nem regulados.
Há que criar uma cultura de que o socialismo supõe a regulação. Regulação arbitrária? Não. Regulações consensuais? Sim. Baseadas na democracia, seja por representação, porque os órgãos que ditaram essa regulação são representativos, seja porque a população participou diretamente nessa regulação.
O socialismo não é propriedade pública, ainda que necessite da propriedade pública para regular o sistema económico. O socialismo não é proibições, mas regulações. A planificação é para regular, não para tornar impossível a vida nem para dizer que «não te cabe a ti.»
Há que instaurar um discurso hegemónico sobre a ordem da sociedade que construímos, e sobre a sociedade regulada que se autorregula; o que implica que regula os interesses particulares em função do interesse comum. Isto já leva a uma discussão sobre ao que é que vamos chamar particular e a que vamos chamar comum, porque muitas das coisas que passam por regulações estatais supõem-se que estiveram em função do bem comum, o que é discutível. Isto é, cada regulação também implica um debate, uma discussão, um consenso, um procedimento democrático para a estabelecer e controlar. O tema da democracia plena no socialismo acompanha todos os cenários. Em última instância, como vamos assumir os perigos de uma abertura económica? Com mais democracia.
FLR: No contexto cubano, alguns dos mais complexos debates sobre a democracia estiveram estreitamente ligados ao tema da sociedade civil. Quais são as características e espaços próprios de uma democracia socialista?
JVP: Para os clássicos do liberalismo a sociedade civil era a sociedade, e esta necessitava de direitos para se defender do Estado. A sociedade teve que delegar a sua soberania a troco da ordem; o Estado é o Leviatão, o grande monstro, este Leviatão ameaça a sociedade, agride-a, constringe-a, e esta necessita de direitos civis e políticos para restringir o Estado. Esse é o núcleo duro e progressista do pensamento liberal.
Com o tempo a «sociedade civil» passou a ser uma dimensão da sociedade real, que cria subsociedades e participa num espaço económico, civil, político, etc., e estes estão conformados por instituições. A sociedade é uma, mas é habitada por instituições que ela criou em diferentes situações. Por outro lado, considera-se que estes cenários. Por outro lado, se considerarmos que esses cenários ou esferas são em si mesmos sistemas de instituições – jurídicas, políticas, económicas ou civis, etc. – tudo fica concetualmente mais claro. Mas na realidade, o que se passa na sociedade civil são formas associadas, portanto, institucionais. Há um grupo de instituições a que chamamos civis, como há as económicas e políticas. Inclusive, no pensamento liberal original, a sociedade civil que estava à frente do Estado incluía tanto as associações económicas como as não económicas, porque ambas eram agredidas, ambas reclamavam direitos e espaços ao Estado.
Com a evolução do próprio capitalismo as instituições económicas tenderam a criarem-se num espaço próprio e, inclusive, as outras instituições civis têm que se defender das económicas, desses outros estados privados; o consumidor privado tem que se defender das associações económicas privadas – empresas, corporações, etc., e do mercado.
A grande herança da Revolução Francesa é o conceito de cidadania. A República é a ordem de toda a sociedade, cada uma das esferas está subordinada ao interesse soberano da República. A República é o povo; a Constituição disse: «A soberania reside no povo»; portanto, a soberania do povo verifica-se numa República e esta concede-a a um grupo de instituições políticas, económicas ou outras; e supõe-se que todas elas estejam atravessadas pelos direitos dos cidadãos. A República tem que definir e defender os direitos dos cidadãos em cada uma das esferas, incluída a família, para que não se reproduzam relações de subordinação, de exploração, e nenhuma das ordens, esferas ou sistemas institucionais da sociedade.
A nossa sociedade civil é um grupo heterogéneo de instituições, tem uma definição um pouco negativam mais do que dizer o que ela é, ficou por dizer o que ela não é: não são as instituições políticas, não são as instituições económicas, é o que resta, a família, as igrejas, as associações civis de interesses, non profit, as organizações de massas. Seja dito que tampouco estudámos suficientemente o que quer que seja a sociedade civil cubana, não estudámos o problema que o socialismo tem com a sociedade civil, o avanço do Estado sobre o seu espaço, o seu desamparo.
O primeiro seria recordar que tivemos uma sociedade civil ocupada pela burguesia e marcada por relações capitalistas, que foi profundamente modificada pela Revolução. Como em todas as demais esferas, tinha que se recriar a esfera civil, mas recriar não quer dizer extingui-la nem deitá-la abaixo. Os povoadores, os membros de uma sociedade, os cidadãos de uma polis, também querem e necessitam para expressar os seus interesses de se associar e de serem representados através de associações ou instituições civis, o socialismo tinha que ter cuidado, tinha de as ter desenvolvido.
Há uma história da sociedade civil cubana em que não me vou deter. A nós agrada-nos muito dizer que ela é conformada pelas organizações de massas, que são todas ONGs, inclusive reconhecidas como tal na Constituição; que temos quatro mil associações civis, uma Lei das Associações, etc., e que para se associar há que fazê-lo dentro dessa legalidade. Mas o que a sociedade reclama é que essa sociedade civil que temos – as organizações de massas, as associações, as igrejas, famílias – é insuficiente para a representar, necessita de maior capacidade e liberdade de associação. E isso acarreta um perigo, porque isso é o mesmo que quer o inimigo, que sabe que a esfera que constrangimos é a que eles querem ampliar; que onde eles mais poderiam influenciar é precisamente sobre a esfera civil que é onde se expressam mais os interesses particulares.
No discurso liberal a economia privada faz parte da sociedade civil; a primeira coisa que temos de esclarecer-nos e esclarecer a sociedade que as organizações económicas não fazem parte da sociedade civil, mas da económica, mas que as duas são formadas por cidadãos, de forma que há que respeitar os seus direitos em ambos os casos, em todos os casos.
A minha perceção é que a sociedade que temos é mais que insuficiente, mas não dúvida que o maior problema é que não há clareza qual e como ela deve acompanhar os nossos projetos; há que avançar numa conceção revolucionária da sociedade civil.
Um ponto importante é o lugar que as instituições e agentes culturais vão ali ter. Estes são instituições, personagens civis, económicos, públicos, e podem ser um e o outro; mas aí também temos um problema pelo perigo que setores intelectuais reclamem liberdade de associação e de organização para fins económicos, num caso, e representação civil no outro, e não o façam sob o espírito socialista. Em todas as esferas temos que assegurar a hegemonia da cultura socialista, ou teremos perdido; A oposição e a dissensão tendem a agrupar-se precisamente onde a hegemonia socialista é mais débil.
Nós temos que auscultar, ouvir, assegurar-nos por ter uma proposta de desenho, uma estratégia para cada uma das esferas, não basta dizer que são ou não são revolucionárias, há que examinar como e porquê se inserem no projeto de nação e na sociedade.
Não é demais reiterar que este é o primeiro terreno – além de declarado – desse desafio a que chamamos o «processo de normalização de relações com os Estados Unidos, local de origem onde se faz política aberta para a sociedade civil. Não basta reagir com o orçamento adequada à ameaça que este processo implica, mas devemos ter uma resposta um pouco mais elaborada, porque se esse pode ser um espaço propício para a política imperial, por que não o pode ser para nós? Não temos política para isso? Temos apenas restrições? Eu creio que será uma das coisas a superar neste socialismo sustentável de que falamos.
FLR: É impossível falar de democracia, de construção de consenso, de sociedade civil sem passar pelos desafios diretos do sistema político. Como deveria funcionar um sistema político renovado?
JVP: No caso do sistema político cubano, há três coisas sobre as quais queria chamar a atenção. Primeiro, sobre uma ordem institucional que pressupõe, como todas as ordens, relações hierárquicas. Em socialismo, sobretudo no período de transição, cito Mao: «A política está no posto de comando», de forma que o papel das instituições políticas no conjunto da sociedade é determinante para garantir uma transição, um movimento, uma orientação socialista. Pode haver muitas circunstâncias que imponham determinados ziguezagues nesse processo, mas é suposto que «a política é quem garante a evolução da sociedade cubana, a sua orientação. Não porque os políticos sejam superdotados, podem sê-lo ou não, mas porque a sociedade delegou neles a sua representação, porque é a instância política onde estamos representados, a responsável pelo curso, a condução ou a orientação do projeto socialista.
Esse sistema político tem instituições representativas, os poderes reúnem-se num órgão representativo, a sociedade representa-se nesses órgãos e, além disso, dispõe de mecanismos para os renovar, suplantar, etc.. O desenho institucional do sistema estabelece que todas as decisões sejam colegiais. De maneira que se pode e deve aperfeiçoar tudo isso, e que se supõe que o sistema politico não é apenas regido por uma delegação moral, mas que também dispõe de dispositivos para que a sociedade se represente adequadamente nele próprio. Isso é o que está normalizado.
Inclusive, falando de aperfeiçoamento, o próprio presidente Raúl Castro mencionou a necessidade depor um limite aos mandatos, sobretudo no primeiro nível de direção, e eu acrescentaria, que se podem pôr regras de incompatibilidade de cargos, de interesses, de declaração patrimonial antes de ocupar um cargo, etc.. Por fim, o próprio regime político burguês para poder funcionar sob as suas próprias contradições e perante a pressão democrática das massas, teve que autolimitar-se, teve que estabelecer uma multiplicidade de regras. Por exemplo, a limitação é uma conquista popular precisamente para evitar maus governos, porque ninguém faz regras para os bons.
Então, há um conjunto de normas – e devem ser acrescentadas outras – que formalizam a representação. Essas regras são muitas e mais claras no sistema político, estão mais confusas no económico. Isto quer dizer que o critério de representação da sociedade tem problemas e deficits em todos os campos. E a nível político, que está no posto de comando, as exigências da representação, obviamente, devem ser muito maiores.
Um segundo problema é que o conjunto das instituições que conformam cada sistema ou subsistema da sociedade devem estar normalizados e, de facto, muitos deles estão-no profusamente.
Como anteriormente te comentei, num dos meus últimos trabalhos falo da ordem institucional que se presume surgirá, o que está mais ou menos explícito no processo de reformas, o que se reclama mas não está explicitado. Aí identifico as correntes políticas e faço uma história institucional de Cuba; caraterizo e aponto nove períodos e declaro que todos eles, inclusive aquele em que estamos, estão atravessados por um grupo de contradições que devem ser superadas aos fins socialistas. Faço também esta proposta para que se discorde dela e provocar o debate, para que se pensem e se consensualizem estratégias.
A primeira das contradições que identifico é um desvio da norma institucional, pintaram um pássaro que não voa. Podia dar milhões de exemplos, mas julgo que não é preciso. Talvez o mais ostensivo de todos seja o da Assembleia Nacional, que se supõe conduzir o país, ter todos os poderes constitucionais, fácticos e legislativos, e que como diz a própria lei, a primeira coisa que faz quando reúne em sessão é pôr em discussão, não aprovar mecanicamente sem debate, a decisão tomada pelo Conselho de Estado. Isso é o que está na letra, mas uma pessoa tem a sensação que a Assembleia realmente existente não se é conduzida assim, nem dirige o país, nem toma todas as decisões, nem põe em discussão as demais decisões, nem prestam contas os poderes públicos. Quer dizer, a uma pessoa parece que o sistema político desenhado não é o que está em funcionamento. Inclusive, por cada lei aprovada há cinco ou seis Decretos-lei do Conselho de Estado; há uma funcionalidade mini da Assembleia e uma funcionalidade supra do Conselho de Estado. Ninguém tem claro a prestação de contas do Governo à Assembleia, porque o Presidente do Conselho de Estado é também o do Conselho de Ministros. Como vão fazer exigências a si mesmos? Há problemas de desenho e de funcionalidade, e tudo isso se expressa como um desvio da normativa institucional.
Nalguns períodos o desvio da norma foi monumental – na segunda metade dos anos 60, na Batalha das Ideias – quando quase são criados governos paralelos. Quer isto dizer que o primeiro problema que temos é que há um certo grau de desvio; e de como o estreitamos ou o suprimimos. Visto que uma das funções da política no posto de comando seria essa: zelar pela norma institucional.
Uma segunda contradição é que tudo isso passa pelo famoso problema descentralização/centralização. Todo o socialismo fala de descentralizar, porque para que haja autogoverno, para que haja participação. O desenho institucional tem que ser o mais descentralizado possível. Se há mais poderes e recursos na Nação ou na Província que no Município, este último será sempre nada. Para haver participação é necessário haver uma dimensão, uma escala, um espaço local, relações; e nele têm de estar situadas uma grande parte das decisões e dos recursos, para que se possam assegurar uma quantidade dos problemas da vida comum, sobretudo da vida quotidiana.
Há também um problema de desenho. O nosso, em todas as instituições, é incrivelmente centralizado. As organizações de massas são nacionais e verticais; as restantes organizações civis têm, por lei, caráter nacional e único. Não tenho que insistir em quão centralizado está o Estado. No sistema económico, a reforma empresarial em vez de criar empresas mais desagregadas, o que tem feito é agregar mais empresas, criou corporações e as chamadas OSDE [1]. Isto é, os modelos são altamente centralizados e o funcionamento real é ainda mais desviado, com o que a representação se torna inútil e a participação não passa de música celestial. Como participar se toda a estrutura em que em que se está é altamente centralizada, se o estilo de direção é altamente vertical? Naturalmente, a consequência disto é outro problema que está inventariado, a chamada burocratização.
Qual é a promessa socialista? A representação, a participação, o autogoverno, a socialização, mas o que vemos no socialismo real e no nosso são as tendências burocráticas de todas as estruturas e todas as instituições tendem a burocratizar-se.
Mas repara bem, burocratizar-se não é só burocratismo. O burocratismo é uma cultura que apoia uma prática perversa, a prática burocrática; a burocracia o funcionalismo é um supernumerário, é «muita gente». Mas um só dirigente pode ser burocrático, quando toma decisões discricionárias e a sociedade não pode, não tem controlo sobre elas. Então, porque é que as instituições tendem a ser burocráticas. Porque as decisões tomadas não têm controlo social suficiente.
A última contradição tem a ver com a primeira resposta que te dei:; prometemos um socialismo autogestionário e o que temos na realidade é um socialismo de Estado. Ao ponto de haver uma cultura instalada muito forte a que chamei convencional, para a qual o socialismo é o Estado surgido com a Revolução, o que é estatal, é socialista. A Revolução é o Estado, é o revolucionário, é revolucionário o que o Estado te dá; «não está com a Revolução» o que esteja fora do Estado. Essa é a ideologia constituída e, naturalmente, é o berço de ouro do burocratismo.
CGS: Mas também mencionou que o socialismo necessita de um Estado forte. Como conseguir o equilíbrio?
JVP: Exatamente, é muito complexo, precisamos desestatizar a favor de uma maior socialização, mas também necessitamos de um Estado forte, há que poder discernir. Dito de outra maneira, a nação precisa de um Estado forte e sociedade de uma crescente socialização.
O que é que a prática demonstrou? Que o Estado a favor da Revolução, por e para ela – demos-lhe esse crédito – estabeleceu uma sociedade tão regulada, tão cheia de proibições – cumprindo aquele apotegma de que em socialismo o que não está permito é proibido – e agora levamos uma temporada de desregulações e não acontecem os males de que nos resguardavam. Por exemplo, acabamos de descobrir que podíamos estabelecer uma política migratória diferente, alternativa; que não havia que regular a vida das pessoas dessa maneira; e que ainda é discutível porque ainda há tantas regulações. Mas o que torna isto uma questão, o que importa é que nos temos movimentado num sentido, digamos, mais socialista, mais a favor das liberdades cidadãs.
Quando uma regulação limita uma liberdade cidadã temos um problema, tem que haver razões muito poderosas, muito circunstanciais e muito submetidas ao consenso da população para restringir ou regular uma liberdade cidadã. A liberdade de movimento é um direito humano, uma liberdade consagrada na Constituição, assim era na de 40 e faltou na de 76. A sua desregulação é uma das coisas que há que atribuir ao atual processo de reformas e aplaudir que se tenham introduzido outras que se mostravam não só abusivas como desnecessárias.
Vou dar um exemplo. Quando proibimos um mercado livre de habitação supostamente fazíamo-lo a favor do socialismo da igualdade, para que ninguém se apoderasse, por razões circunstanciais, de uma habitação melhor que outro, etc., todas razões que se podem arguir, estando eu a pôr-me do lado do político, do decisor. Bom, passam os anos, mudam as tensões, desregulam e: a) toda a população está feliz com isso e que se tenha criado um mercado de habitações; b) volta-se a reproduzir uma concentração das melhores habitações nas mãos dos setores mais abastados da sociedade. Isso é certo. As regulações provocam problemas e a desregulação também os originam. Mas porque é que ainda que beneficiem minorias todas as pessoas os aplaudem? Porque é um tema de direitos, todos sentem que ganharam ou recuperaram liberdade.
Eu creio que esta é uma leitura que temos que fazer, qual é o mundo, o universo das regulações e restrições de liberdades cidadãs que não são necessárias, que criam mais problemas politico-ideológicos do que aqueles que resolvem, que foram criados no imaginário de uma sociedade que nunca existiu e que se viesse a existir, as pessoas teriam que a querer, não se poderia impô-la por decreto.
Um dos argumentos para tantas restrições era o cenário do perigo em que sempre estávamos, mas a verdade é que chegaram os anos 90 do século passado e estivemos mais em perigo que nunca; começámos a desregular e não se passou nada.
Devemos aproveitar a oportunidade de irmos fazer uma reforma constitucional ou instaurar uma nova – mais parece este último caso – para delimitar as proibições. Num caso e noutro, a Constituição tem que ser a fonte do ordenamento real da sociedade, tem que ser a instituição jurídica que realmente regule. A Constituição é aprovada pelos cidadãos, é uma expressão da soberania popular, é um dos poucos atos nos quais a população não entrega a soberania, mas exerce-a.
A sociedade tem que se reger, absolutamente, até que se reforme novamente, por essa Constituição, e tem que haver mecanismos que garantam a sua aplicação; que todos os cidadãos e todas as instituições possam reclamar junto de outros pela sua violação. Se em algum momento for necessário limitar as garantias constitucionais, já não é por ela regida. Esta é uma das coisas que há que resolver e definir na próxima convocatória. Dizer que garantimos a Constituição é dizermos que garantimos os direitos dos cidadãos.
Há tempos que nós somos signatários de vários documentos internacionais onde os direitos dos cidadãos se equiparam com todos os direitos humanos. Nós defendemos que não há apenas os três grupos de direitos aprovados, civis, políticos e económico-sociais, mas que se promovam e reconheçam direitos culturais, direitos da natureza ou outros. Estamos envolvidos em todas as propostas de ampliação dos direitos humanos, estamos comprometidos com essa categoria e, além disso, dizemos que todos os direitos têm igual hierarquia, que são interdependentes e invioláveis. Temos um posicionamento, mas a nossa Constituição não reconhece essas mesmas ideias, não as inclui, não explicitou que o âmbito dos cidadãos é o âmbito dos direitos humanos. Há que prepararmo-nos para isso, criar essa cultura. Os direitos não são os que dá o Estado, são direitos originários que a comunidade mundial reconheceu. Nós, a nível nacional enriquecemos o fundo de direitos humanos com as nossas próprias propostas, e isso está muito correto, mas toma atenção que a figura do cidadão está sempre a aparecer e temos sempre de a resgatar. O que no discurso oficial é o povo, na Constituição e no direito é o cidadão, com os seus múltiplos papéis.
Nós temos uma batalha terminológica. Há uma quantidade de termos que nasceram e criaram as revoluções, as que fundaram o regime burguês ou as que criaram outras experiências, as que amamentaram alguns como democracia, cidadania, igualdade, soberania, fraternidade, etc.. Toda esta terminologia foi criada pelas revoluções e nós deixámo-la roubar, e o discurso liberal dominante do capitalismo guardou-as para si. Então dá-se o paradoxo de quem fala de cidadãos é Obama, não nós; e pelo contrário, preocupa-nos quando alguém emprega o termo, vemo-lo como ave rara «e este o que traz». Dizemos que o que existe é povo, mas a realidade é que povo é o conjunto dos cidadãos. O depositário dos direitos humanos é a pessoa e esta vive numa polis, numa República, é um cidadão. Vamos usar as categorias como são. É o cidadão o que quer e constrói o socialismo, não é o socialismo que inventa o cidadão.
Pode ser que num dado momento da história uma vanguarda política ou intelectual tenha propostas; estas não são senão ideias enquanto a cidadania não as acolha e respalde. Pode antecipar-se a consciência cidadã, atuar sobre a cultura dominante, promover outra cultura hegemónica, definir um projeto de nação e de sociedade diferentes mas, no final, essas ideias só têm futuro se tiverem sido acolhidos pelos cidadãos e se estes também as converterem em projeto. É por isso que aqui, ao fim de meio século, é de cidadãos que estamos a falar.
CGS: Neste meio século os cidadãos cubanos socializaram em contextos muito diferentes que determinaram os seus imaginários e conceções sobre o socialismo. Como legitimá-lo aqui e agora?
JVP: Há que tornar explícitas quais são as premissas socialistas, quais são as do processo de reformas, porque atualmente o cenário desenvolve-se como se o processo socialista estivesse garantido na vontade político-moral dos dirigentes históricos e em alguma palavra solta, mas não o está na do todo de forma clara; pareceria que a vanguarda é a depositária dessa garantia.
Entre outras coisas estamos na véspera de uma sucessão política, de uma renovação geracional, e de novos desafios. De facto, há que reformular o modelo socialista, o modelo económico e a ordem constitucional. Qual é o curso socialista dessa transição de que tanto se falou? É necessário que na cultura dominante isso esteja claro, há que falar de socialismo, há que identificar que coisa é e será o socialismo cubano.
Quando Fidel declarou o caráter socialista da Revolução em abril de 1961 fez um inventário das conquistas que já se tinham alcançado e disse ao povo: «isto é o socialismo». Este regime sociopolítico estava amaldiçoado e havia na população cubana uma cultura hegemónica anticomunista, mas naquele momento o socialismo foi definido pelas suas premissas concretas e reais, pelos seus êxitos, os que havia concretizado e os que prometia. Agora, de um momento para o outro, parece que todos os defeitos, insuficiências e problemas que temos, são os do socialismo; incluso chega um momento em que se transforma num termo desqualificador. Parece-me que esse é um campo muito importante, onde há que fazer a luta ideológica-política, porque o que agora está em jogo é o carater socialista da Revolução cubana.
E a Revolução cubana é um facto, é uma história, está a transitar por novos cenários e se o que está agora em discussão é o seu caráter socialista, então há que explicitá-lo, tem que se fazer uma discussão, há que reconstruir uma cultura. Na sociedade estão a coexistir seis gerações políticas identificáveis e provavelmente há uma sétima em formação. As três primeiras viveram melhor que os seus pais, a quarta viveu igual aos seus pais e as duas últimas pior; o gap geracional é um facto Nós temos que cultivar as novas gerações no socialismo; tal como a alguns setores das velhas gerações, atualmente atravessadas por fortes sentimentos de frustração, renúncia e cansaço. Essa é a verdadeira batalha de ideias, a que há que fazer pelo socialismo, que está sempre em construção: estás a prometer uma sociedade que ainda não existe, está-se em trânsito para ela, e há sempre insuficiências que apontar.
Até ao Período Especial, a ideologia dominante era que o destino de todos, o meu em particular, o da minha família, estava ligado ao da nação; ela era a locomotiva, tirava de todos, se o país progredia todos progredíamos. O que é que sucedeu? O comboio parou, não anda ou está a retroceder. Agora há muitos que dizem: «Eu não posso salvar o país, mas posso salvar-me a mim.» Um setor importante da sociedade começou a passar para estratégias individuais. Então eram de sobrevivência mas agora são de ascensão social. Não obstante, ainda há um grupo maioritário da população que não progredirá se o país não progredir.
Naquele momento era o projeto socialista o que permitia realizar a nação, a que conseguia sobrepor-se ao adverso ambiente internacional nem resistir à agressão sem o socialismo. Quer dizer, eramos socialistas para realizarmos um projeto de nação. Por isso, insisto em que na realidade não temos um projeto, mas dois que se completam.
En aquel momento era el proyecto socialista el que permitía realizar a la nación, la que no lograría sobreponerse al adverso entorno internacional ni resistir a la agresión, sin el socialismo. Es decir, éramos socialistas para realizar el proyecto de nación. Por eso insisto en que en realidad no tenemos un proyecto, sino dos que se complementan.
Nota do Tradutor:
[1] Em meados de 2015 promoveram-se algumas transformações no sistema empresarial cubano com o objetivo convergente, foi o que então se disse, de dotar o tecido empresarial cubano de «mais autonomia e capacidade – como indicava o alinhamento dois – com vista a maiores níveis de eficiência e produtividade. Foram, então, criados três níveis organizativos de empresas: Organizações Superiores de Direção Empresarial (OSDE), empresas e Unidades Empresariais de Base (UEB)
* Juan Valdés Paz, investigador e Prof. Universitário, Prémio Nacional de Ciências Sociais e Humanas, é assessor da prestigiada revista Temas, onde participa.
Esta entrevista publicada em 15 de abril de 2016 na revista Temas:
http://www.temas.cult.cu/content/el-socialismo-no-puede-posponer-la-democracia-que-ha-prometido
Tradução de José Paulo Gascão
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