O usurpador e o caminho da usurpação
Mauro Iasi*
31.May.16 :: Outros autores
O
mais preocupante na presente crise política brasileira não foi tanto as
degradantes e circenses votações da Câmara de Deputados e do Senado
brasileiros, mas sim a ação do governo e dos partidos que participaram
no poder, desde a primeira eleição de Lula da Silva, na organização e
mobilização da classe trabalhadora.Por isso se torna natural uma conclusão de Mauro Iasi: «Depois de transformar a democracia numa abstração que não faz sentido para boa parte de nossa classe, não se pode esperar que as pessoas se mobilizem para defendê-la».
Como também não faz sentido que a classe trabalhadora, particularmente o seu destacamento operário, seja mobilizada como massas, povo ou cidadãos…, se eles não tiverem sido antes organizados como classe trabalhadora, como classe operária.
“Por parte do conspirador, não há senão medo, inveja e a suspeita da punição, que o atormenta”
Nicolau Maquiavel
Temos no governo um usurpador, mas devemos nos indagar sobre a natureza dessa usurpação. Para um marxista o caráter de um governo se mede pelos interesses de classe que representa, por vezes direta e claramente, por vezes mediados e ofuscados por formas que dificultam a percepção do caráter de classe envolvido.
No caso particular que analisamos, nossa tarefa fica facilitada pelo fato que as medidas anunciadas não procuram disfarçar sua intencionalidade. Seja nos termos expressos no projeto do PMDB, batizado de Ponte para o Futuro, seja na forma apresentada pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, como Agenda Brasil, seja nos inúmeros projetos que tramitam no Congresso, cerca de 56 proposituras, e que encontrão um rito aligeirado para serem implementadas, tudo indica claramente uma linha inequívoca que aponta para a brutalidade do ajuste necessário ao capital, o ataque aos direitos dos trabalhadores e o retrocesso social e cultural.
Em linhas gerais podemos indicar três eixos fundamentais: o ajuste econômico manifesto nas medidas ditas de “austeridade”, medidas no campo dos valores e relativas à ofensiva moralista/obscurantista e medidas jurídico-políticas de garantia da ordem.
No campo da austeridade vemos os cortes orçamentários nas áreas sociais, as criticas à dimensão de políticas públicas como o bolsa família, propostas de diminuição e descaracterização do SUS, privatização do ensino em todos os níveis – do ensino básico ao superior - , mais uma reforma da previdência, diminuição de ministérios, flexibilização ou extinção das licenças ambientais, o famigerado PL 257 que em nome de regularizar a relação e as dívidas dos Estados e municípios coloca condicionantes para acertar as contas que vão desde o congelamento de salários e estancamento das carreiras, corte brutais de gastos até programas de demissão voluntária que tornarão letra morta a estabilidade no emprego dos funcionários públicos em todos os níveis.
A ofensiva obscurantista se expressa, também, nestas medidas chamadas de “austeridade”, como é o caso do fechamento do Ministério da Cultura e outras pastas, no retrocesso na pauta dos Quilombolas e nações indígenas, no desmonte do SUS. No entanto, é em algumas iniciativas que se apresenta de forma mais clara, como no Estatuto da Família em tramitação, nas diferentes iniciativas de restrição do debate de gênero, da pauta LGBT e do livre direito de opinião no ato educativo, tal como se expressa nas diferentes leis da mordaça no âmbito municipal, como as chamadas iniciativas da Escola sem Partido ou o que denominam de “ideologia de gênero” e que iniciativas similares no Congresso Nacional.
Ocorre que os segmentos dominantes que usurparam o poder executivo através de manobras jurídicas, paramentares e midiáticas de caráter casuístico, oportunista, contornando o próprio marco legal e constitucional, sabem que a dramaticidade de tais medidas provocará reações, sendo necessárias medidas legais de contenção e garantia da lei e da ordem. Neste âmbito o Estado burguês parece estar bem aparelhado, não apenas com instrumentos jurídicos e dispositivos judiciários, mas com aparatos de repressão dispostos a serem utilizados.
O caráter de classe da usurpação parece evidente. Trata-se de encontrar a forma adequada de impor, mais rápida e profundamente, os “ajustes” necessários ao bom andamento da acumulação de capitais, ao mesmo tempo em que se produz um acerto de contas político e ideológico que legitime perante a sociedade tais medidas, não pelo seu evidente caráter particular, mas por sua suposta universalidade: “salvar o Brasil”. Mas do que o Brasil precisa ser salvo?
O discurso ideológico dos usurpadores procura se legitimar com o discurso que o país precisa ser salvo de um governo “desastroso” e “irresponsável” que, colocando em risco a economia, jogou a nação no caos. Talvez o discurso mais significativo na bacia de impropérios que marcou as falas no Senado da República por ocasião da aceitação do processo de impedimento da Presidente, tenha sido de um Senador do PTB de Pernambuco que a pretexto de defender o governo Dilma fez uma fala muito bem articulada argumentando os motivos pelo qual não se poderia acusar a presidente de “irresponsabilidade fiscal”. Diante de um certo incômodo dos governistas, o senador deslindou um rosário de iniciativas que vão desde os cortes no orçamento, medidas de saneamento financeiro, reforma na previdência, contenção de gastos, tudo isso sem deixar de incentivar o agronegócio, as indústrias, o comércio exportador e os bancos, medidas, muitas vezes, nas palavras do parlamentar, que não se preocuparam em ferir interesses de aposentados, de categorias profissionais e do funcionalismo público.
Quando olhamos as medidas apontadas na pauta reacionária do usurpador que o ocupa o Palácio do Planalto, vemos com preocupação que o governo que foi afastado, em todos os níveis, aplainou o terreno para o retrocesso. As negociações com Renan e sua Agenda Brasil, já haviam avançado muito no ataque as licenças ambientais, aos quilombolas, indígenas e atingidos por barragens, em nome de criar as condições para retomar o “crescimento econômico”, o volume de cortes já implementado sucateava a ponta de inviabilizar, por exemplo, as universidades, e garroteavam fortemente as políticas na área da saúde, da educação, da assistência. O risco evidente de privatização e mercantilização do ensino já está indicado claramente no Plano Nacional de Educação, por exemplo, quando indica que o fundo público pode ser direcionado para financiar tanto a educação pública como a privada.
A ameaça de regularizar as terceirizações, inclusive em atividades fins, não é uma novidade em várias esferas, mas destacamos a área da saúde. Destacando que devemos ser contra a terceirização em todos os níveis, lembramos que quando uma OS implementa um CAPS, no corpo da eufemisticamente chamada parceria público-privada para operar ações no SUS, contrata médicos, psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais pela CLT. Ora, estes profissionais desempenham atividades “meios” ou “fim” no ato dos atendimentos realizados. Para não deixarmos o campo da saúde, o que significa exatamente a EBSERH imposta goela abaixo nas universidades?
No âmbito do chamado retrocesso de valores as coisas não são melhores. O governo interrompido flertou perigosamente com o obscurantismo, cedeu por várias vezes para não provocar a suscetibilidade fundamentalista, seja no campo da pauta LGBT, seja no campo mais geral dos valores, até mesmo na necessária defesa do caráter laico do Estado. As imagens da presidente implorando voto no Templo de Salomão, monumento do atraso moral e do precário senso estético, aceitando a carta das “mulheres evangélicas” de olho nos votos do segmento e do apoio da bancada evangélica, são a indicação de concessões muito maiores que viriam a ocorrer.
Mesmo no campo dos meios repressivos e jurídicos o terreno foi amplamente aplainado pelo governo interrompido, seja pela manutenção injustificável de dispositivos legais, como a famigerada Lei de Segurança Nacional, como a criação de novos como a Portaria Normativa de dezembro de 2013 que dispõe sobre as Operações de garantia da Lei e da Ordem, e, mais claramente, na atual Lei Antiterrorismo.
Neste ponto a usurpação adquire forma paradoxal. Por que interromper um governo que em tudo cedia às exigências dos segmentos conservadores? Na verdade as camadas dominantes dividiram-se quando a isso. Até o final de 2015 havia claramente uma alinhamento das frações de classe da burguesia monopolista em nome da “estabilidade” e uma direção clara de enfraquecer o governo para derrotá-lo em 2018. O que mudou de lá para cá é o fato que a direita, parlamentar e social, pressentiu o momento difícil do governo e decidiu partir para o ataque. O desencadear do processo de impeachment no qual o destempero de Cunha é elemento chave, precipitou a situação de instabilidade que culminou no alinhamento da burguesia no direção da interrupção do mandato de Dilma e o fim do ciclo petista no governo.
Este é o elemento que torna complexa a conjuntura. Para o bom funcionamento da equação usurpadora era necessário legitimar o ato. No entanto, como para sua execução seria necessário torcer a legalidade, uma vez que parece evidente não ter ocorrido o chamado crime de responsabilidade, a linha adotado foi da legitimidade de substituir um governo que perdeu o apoio parlamentar e social, por um novo que garantiria a estabilidade necessária.
Todo conspirador, já dizia Maquiavel, precisa fazer crer que o afastamento do governante irá satisfazer desejos e anseios do povo, uma vez que a própria ação conspirativa que culmina na usurpação do poder é por sua natureza vista como odiosa pelo povo fazendo com que, nas palavras do florentino, “as dificuldades com que os conspiradores teriam que lutar seriam infinitas”. Era imprescindível criar um clima de insatisfação e oposição em amplos segmentos da população contra o governo e isso foi produzido pela combinação de ações judiciais e midiáticas que foram eficientes em colar no governo a pecha da corrupção, do desmando e da incompetência. Como é próprio da lógica do preconceito, foi funcional atribuir estes estigmas à condição de “esquerda” e tirar dos esgotos da luta política o anticomunismo e a ameaça à família, a moral, à pátria como pretexto para a ação usurpadora.
A condição do “conspirador” implica em mais dificuldades do que a posição de governo para empreender seus objetivos. O governo tem recursos de poder consideráveis que haviam se demonstrado eficientes, desde o poder de nomear cargos, negociar verbas, oferecer apoio político eleitoral, assim como um recurso que não devemos menosprezar que é a “legitimidade” do voto. Colocamos entre aspas o termo legitimidade porque não consideramos que nas condições em que se dão as eleições no Brasil podemos pressupor, sem maiores considerações, que o voto implica em legitimação. Uma disputa onde um candidato dispõem com a generosa doação de empreiteiras, bancos, planos de saúde, do agronegócio, ente outros, de R$ 381 milhões para gastar, quase 12 minutos de tempo de televisão, contra outros que não chegaram à R$ 40 mil de contribuições militantes e tendo 45 segundos na TV (depois da minireforma de 2015 este tempo cairá para 17 segundos), possa ser base para qualquer coisa que possa ser chamada de legítima.
Seja como for, o cargo reúne recursos consideráveis que somados à um respaldo popular, lembremos que o nível de valoração positiva do governo em anos anteriores beirou a casa dos 80%, torna difícil a vida dos conspiradores. Era preciso reverter um por um estes recursos. A ofensiva midiática, as manifestações de rua, as ações judiciais, o corroer da base de sustentação, fizeram este trabalho.
Este foi o papel da direita e ela o desempenhou com eficiência. No entanto, o fato do governo, nos termos da governabilidade pelo alto escolhida, insistentemente se empenhar em mostrar-se responsável perante aqueles a quem devia sua governabilidade (as alianças políticas no parlamento e o pacto com a burguesia em pró do “crescimento econômico”), através das inúmeras medidas das quais aqui enumeramos apenas algumas, solapou o principal recurso do governo interrompido: o apoio popular.
É verdade que segmentos da esquerda, generosamente, movem seus recursos contra a direita usurpadora, mas há uma diferença entre mover segmentos sociais pontuais, bases de partidos, sindicatos e movimentos sociais e ter o apoio dos trabalhadores como classe e a possibilidade de ampliar este apoio para bases de massa. O problema é que isso não é passível de ser mobilizado agora como forma única de reação ao ataque institucional que a direita operou com habilidade.
O próprio Maquiavel afirmava que não se deve cair só por crer que poderá encontrar quem te levante, pois isso não acontece. E explica:
“Aqueles que possuíram, por muitos anos, seus principados, para depois perdê-los, não acusem a sorte, mas sim a própria ignávia (negligência): porque não tendo nunca nas boas épocas pensado e que os tempos poderiam mudar (e é comum nos homens não se preocupar, na bonança, com as tempestades), quando vieram tempos adversos, pensaram em fugir e não defender-se e esperam que as populações fatigadas da insolência dos vencedores os chamassem novamente”.
Isso só pode ter algum sentido quando tudo mais falha. Será este o nosso caso? A frase de Lula, empenhando suas esperanças em um racha no PMDB que permitiria recompor a base da governabilidade revertendo o impedimento ou criando as condições para uma volta ao governo em 2018 parece indicar este caminho. Nos parece um caminho muito ruim.
A usurpação foi facilitada pela negligência. As massas, em especial os trabalhadores não se movem na defesa de abstrações. Esperam que saiam às ruas na defesa da “democracia” ou do “Estado de Direito” é uma ilusão. Como já afirmei, a democracia não morre apenas por manobras palacianas e parlamentares, por meio de contorcionismos e oportunismos legais. A democracia agoniza quando um pedreiro é seqüestrado, torturado, assassinado e seu corpo escondido, como o corpo de Amarildo. A democracia agoniza com seu corpo arrastado por uma viatura, como o corpo de Claudia. A democracia morre em cada jovem negro que engrossa a lista dos famigerados autos de resistência. A justiça definha quando Rafael Braga continua preso por portar um desinfetante e militantes são processados por se manifestar contra as fraudulentas obras da Copa do Mundo da FIFA. A democracia morre com cada casa que cai na Vila Autódromo, em cada comunidade indígena atacada por pistoleiros, em cada cidade arrasada pela lama das mineradoras ou a sanha de empreiteiras. Depois de transformar a democracia numa abstração que não faz sentido para boa parte de nossa classe, não se pode esperar que as pessoas se mobilizem para defendê-la.
As medidas empreendidas pelos usurpadores e que já haviam começado pelo governo interrompido atacam alguns dos elementos mais essenciais à vida, não na abstração de “direitos”, mas nas condições de nossa existência. Na casa para morar, na terra em que precisamos plantar, no alimento que sacia a fome, no tratamento que salva a vida, na escola que alimenta o espírito e a consciência, no trabalho, no transporte. Os jovens que ocupam as escolas, os companheiros nas ocupações urbanas e rurais, as fábricas ocupadas, artistas que ocupam o falecido Ministério da Cultura, nos mostram um caminho para substanciar a democracia, rechea-la de carne real, cor e cheiro.
Quando deixar de ser um fantasma de terno e gravata, quando beijar a boca dos oprimidos, quando marchar ao nosso lado, andar de ônibus, morar na periferia, quando sofrer da violência da cidade e do trabalho, quando suar nosso suor, sangrar nosso sangue e chorar as nossas lágrimas, quando arrancar a venda dos olhos e empunhar a espada na direção dos opressores… quem sabe, haverão muitos na defesa da democracia e os usurpadores não poderão mais se esconder sob seu manto de noite e de arbítrio.
“Somente são bons, certos e duradouros
os meios de defesa que dependem de ti mesmo
e do teu valor”
Maquiavel
* Mauro Iasi é membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB)
in O Diário info
Nicolau Maquiavel
Temos no governo um usurpador, mas devemos nos indagar sobre a natureza dessa usurpação. Para um marxista o caráter de um governo se mede pelos interesses de classe que representa, por vezes direta e claramente, por vezes mediados e ofuscados por formas que dificultam a percepção do caráter de classe envolvido.
No caso particular que analisamos, nossa tarefa fica facilitada pelo fato que as medidas anunciadas não procuram disfarçar sua intencionalidade. Seja nos termos expressos no projeto do PMDB, batizado de Ponte para o Futuro, seja na forma apresentada pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, como Agenda Brasil, seja nos inúmeros projetos que tramitam no Congresso, cerca de 56 proposituras, e que encontrão um rito aligeirado para serem implementadas, tudo indica claramente uma linha inequívoca que aponta para a brutalidade do ajuste necessário ao capital, o ataque aos direitos dos trabalhadores e o retrocesso social e cultural.
Em linhas gerais podemos indicar três eixos fundamentais: o ajuste econômico manifesto nas medidas ditas de “austeridade”, medidas no campo dos valores e relativas à ofensiva moralista/obscurantista e medidas jurídico-políticas de garantia da ordem.
No campo da austeridade vemos os cortes orçamentários nas áreas sociais, as criticas à dimensão de políticas públicas como o bolsa família, propostas de diminuição e descaracterização do SUS, privatização do ensino em todos os níveis – do ensino básico ao superior - , mais uma reforma da previdência, diminuição de ministérios, flexibilização ou extinção das licenças ambientais, o famigerado PL 257 que em nome de regularizar a relação e as dívidas dos Estados e municípios coloca condicionantes para acertar as contas que vão desde o congelamento de salários e estancamento das carreiras, corte brutais de gastos até programas de demissão voluntária que tornarão letra morta a estabilidade no emprego dos funcionários públicos em todos os níveis.
A ofensiva obscurantista se expressa, também, nestas medidas chamadas de “austeridade”, como é o caso do fechamento do Ministério da Cultura e outras pastas, no retrocesso na pauta dos Quilombolas e nações indígenas, no desmonte do SUS. No entanto, é em algumas iniciativas que se apresenta de forma mais clara, como no Estatuto da Família em tramitação, nas diferentes iniciativas de restrição do debate de gênero, da pauta LGBT e do livre direito de opinião no ato educativo, tal como se expressa nas diferentes leis da mordaça no âmbito municipal, como as chamadas iniciativas da Escola sem Partido ou o que denominam de “ideologia de gênero” e que iniciativas similares no Congresso Nacional.
Ocorre que os segmentos dominantes que usurparam o poder executivo através de manobras jurídicas, paramentares e midiáticas de caráter casuístico, oportunista, contornando o próprio marco legal e constitucional, sabem que a dramaticidade de tais medidas provocará reações, sendo necessárias medidas legais de contenção e garantia da lei e da ordem. Neste âmbito o Estado burguês parece estar bem aparelhado, não apenas com instrumentos jurídicos e dispositivos judiciários, mas com aparatos de repressão dispostos a serem utilizados.
O caráter de classe da usurpação parece evidente. Trata-se de encontrar a forma adequada de impor, mais rápida e profundamente, os “ajustes” necessários ao bom andamento da acumulação de capitais, ao mesmo tempo em que se produz um acerto de contas político e ideológico que legitime perante a sociedade tais medidas, não pelo seu evidente caráter particular, mas por sua suposta universalidade: “salvar o Brasil”. Mas do que o Brasil precisa ser salvo?
O discurso ideológico dos usurpadores procura se legitimar com o discurso que o país precisa ser salvo de um governo “desastroso” e “irresponsável” que, colocando em risco a economia, jogou a nação no caos. Talvez o discurso mais significativo na bacia de impropérios que marcou as falas no Senado da República por ocasião da aceitação do processo de impedimento da Presidente, tenha sido de um Senador do PTB de Pernambuco que a pretexto de defender o governo Dilma fez uma fala muito bem articulada argumentando os motivos pelo qual não se poderia acusar a presidente de “irresponsabilidade fiscal”. Diante de um certo incômodo dos governistas, o senador deslindou um rosário de iniciativas que vão desde os cortes no orçamento, medidas de saneamento financeiro, reforma na previdência, contenção de gastos, tudo isso sem deixar de incentivar o agronegócio, as indústrias, o comércio exportador e os bancos, medidas, muitas vezes, nas palavras do parlamentar, que não se preocuparam em ferir interesses de aposentados, de categorias profissionais e do funcionalismo público.
Quando olhamos as medidas apontadas na pauta reacionária do usurpador que o ocupa o Palácio do Planalto, vemos com preocupação que o governo que foi afastado, em todos os níveis, aplainou o terreno para o retrocesso. As negociações com Renan e sua Agenda Brasil, já haviam avançado muito no ataque as licenças ambientais, aos quilombolas, indígenas e atingidos por barragens, em nome de criar as condições para retomar o “crescimento econômico”, o volume de cortes já implementado sucateava a ponta de inviabilizar, por exemplo, as universidades, e garroteavam fortemente as políticas na área da saúde, da educação, da assistência. O risco evidente de privatização e mercantilização do ensino já está indicado claramente no Plano Nacional de Educação, por exemplo, quando indica que o fundo público pode ser direcionado para financiar tanto a educação pública como a privada.
A ameaça de regularizar as terceirizações, inclusive em atividades fins, não é uma novidade em várias esferas, mas destacamos a área da saúde. Destacando que devemos ser contra a terceirização em todos os níveis, lembramos que quando uma OS implementa um CAPS, no corpo da eufemisticamente chamada parceria público-privada para operar ações no SUS, contrata médicos, psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais pela CLT. Ora, estes profissionais desempenham atividades “meios” ou “fim” no ato dos atendimentos realizados. Para não deixarmos o campo da saúde, o que significa exatamente a EBSERH imposta goela abaixo nas universidades?
No âmbito do chamado retrocesso de valores as coisas não são melhores. O governo interrompido flertou perigosamente com o obscurantismo, cedeu por várias vezes para não provocar a suscetibilidade fundamentalista, seja no campo da pauta LGBT, seja no campo mais geral dos valores, até mesmo na necessária defesa do caráter laico do Estado. As imagens da presidente implorando voto no Templo de Salomão, monumento do atraso moral e do precário senso estético, aceitando a carta das “mulheres evangélicas” de olho nos votos do segmento e do apoio da bancada evangélica, são a indicação de concessões muito maiores que viriam a ocorrer.
Mesmo no campo dos meios repressivos e jurídicos o terreno foi amplamente aplainado pelo governo interrompido, seja pela manutenção injustificável de dispositivos legais, como a famigerada Lei de Segurança Nacional, como a criação de novos como a Portaria Normativa de dezembro de 2013 que dispõe sobre as Operações de garantia da Lei e da Ordem, e, mais claramente, na atual Lei Antiterrorismo.
Neste ponto a usurpação adquire forma paradoxal. Por que interromper um governo que em tudo cedia às exigências dos segmentos conservadores? Na verdade as camadas dominantes dividiram-se quando a isso. Até o final de 2015 havia claramente uma alinhamento das frações de classe da burguesia monopolista em nome da “estabilidade” e uma direção clara de enfraquecer o governo para derrotá-lo em 2018. O que mudou de lá para cá é o fato que a direita, parlamentar e social, pressentiu o momento difícil do governo e decidiu partir para o ataque. O desencadear do processo de impeachment no qual o destempero de Cunha é elemento chave, precipitou a situação de instabilidade que culminou no alinhamento da burguesia no direção da interrupção do mandato de Dilma e o fim do ciclo petista no governo.
Este é o elemento que torna complexa a conjuntura. Para o bom funcionamento da equação usurpadora era necessário legitimar o ato. No entanto, como para sua execução seria necessário torcer a legalidade, uma vez que parece evidente não ter ocorrido o chamado crime de responsabilidade, a linha adotado foi da legitimidade de substituir um governo que perdeu o apoio parlamentar e social, por um novo que garantiria a estabilidade necessária.
Todo conspirador, já dizia Maquiavel, precisa fazer crer que o afastamento do governante irá satisfazer desejos e anseios do povo, uma vez que a própria ação conspirativa que culmina na usurpação do poder é por sua natureza vista como odiosa pelo povo fazendo com que, nas palavras do florentino, “as dificuldades com que os conspiradores teriam que lutar seriam infinitas”. Era imprescindível criar um clima de insatisfação e oposição em amplos segmentos da população contra o governo e isso foi produzido pela combinação de ações judiciais e midiáticas que foram eficientes em colar no governo a pecha da corrupção, do desmando e da incompetência. Como é próprio da lógica do preconceito, foi funcional atribuir estes estigmas à condição de “esquerda” e tirar dos esgotos da luta política o anticomunismo e a ameaça à família, a moral, à pátria como pretexto para a ação usurpadora.
A condição do “conspirador” implica em mais dificuldades do que a posição de governo para empreender seus objetivos. O governo tem recursos de poder consideráveis que haviam se demonstrado eficientes, desde o poder de nomear cargos, negociar verbas, oferecer apoio político eleitoral, assim como um recurso que não devemos menosprezar que é a “legitimidade” do voto. Colocamos entre aspas o termo legitimidade porque não consideramos que nas condições em que se dão as eleições no Brasil podemos pressupor, sem maiores considerações, que o voto implica em legitimação. Uma disputa onde um candidato dispõem com a generosa doação de empreiteiras, bancos, planos de saúde, do agronegócio, ente outros, de R$ 381 milhões para gastar, quase 12 minutos de tempo de televisão, contra outros que não chegaram à R$ 40 mil de contribuições militantes e tendo 45 segundos na TV (depois da minireforma de 2015 este tempo cairá para 17 segundos), possa ser base para qualquer coisa que possa ser chamada de legítima.
Seja como for, o cargo reúne recursos consideráveis que somados à um respaldo popular, lembremos que o nível de valoração positiva do governo em anos anteriores beirou a casa dos 80%, torna difícil a vida dos conspiradores. Era preciso reverter um por um estes recursos. A ofensiva midiática, as manifestações de rua, as ações judiciais, o corroer da base de sustentação, fizeram este trabalho.
Este foi o papel da direita e ela o desempenhou com eficiência. No entanto, o fato do governo, nos termos da governabilidade pelo alto escolhida, insistentemente se empenhar em mostrar-se responsável perante aqueles a quem devia sua governabilidade (as alianças políticas no parlamento e o pacto com a burguesia em pró do “crescimento econômico”), através das inúmeras medidas das quais aqui enumeramos apenas algumas, solapou o principal recurso do governo interrompido: o apoio popular.
É verdade que segmentos da esquerda, generosamente, movem seus recursos contra a direita usurpadora, mas há uma diferença entre mover segmentos sociais pontuais, bases de partidos, sindicatos e movimentos sociais e ter o apoio dos trabalhadores como classe e a possibilidade de ampliar este apoio para bases de massa. O problema é que isso não é passível de ser mobilizado agora como forma única de reação ao ataque institucional que a direita operou com habilidade.
O próprio Maquiavel afirmava que não se deve cair só por crer que poderá encontrar quem te levante, pois isso não acontece. E explica:
“Aqueles que possuíram, por muitos anos, seus principados, para depois perdê-los, não acusem a sorte, mas sim a própria ignávia (negligência): porque não tendo nunca nas boas épocas pensado e que os tempos poderiam mudar (e é comum nos homens não se preocupar, na bonança, com as tempestades), quando vieram tempos adversos, pensaram em fugir e não defender-se e esperam que as populações fatigadas da insolência dos vencedores os chamassem novamente”.
Isso só pode ter algum sentido quando tudo mais falha. Será este o nosso caso? A frase de Lula, empenhando suas esperanças em um racha no PMDB que permitiria recompor a base da governabilidade revertendo o impedimento ou criando as condições para uma volta ao governo em 2018 parece indicar este caminho. Nos parece um caminho muito ruim.
A usurpação foi facilitada pela negligência. As massas, em especial os trabalhadores não se movem na defesa de abstrações. Esperam que saiam às ruas na defesa da “democracia” ou do “Estado de Direito” é uma ilusão. Como já afirmei, a democracia não morre apenas por manobras palacianas e parlamentares, por meio de contorcionismos e oportunismos legais. A democracia agoniza quando um pedreiro é seqüestrado, torturado, assassinado e seu corpo escondido, como o corpo de Amarildo. A democracia agoniza com seu corpo arrastado por uma viatura, como o corpo de Claudia. A democracia morre em cada jovem negro que engrossa a lista dos famigerados autos de resistência. A justiça definha quando Rafael Braga continua preso por portar um desinfetante e militantes são processados por se manifestar contra as fraudulentas obras da Copa do Mundo da FIFA. A democracia morre com cada casa que cai na Vila Autódromo, em cada comunidade indígena atacada por pistoleiros, em cada cidade arrasada pela lama das mineradoras ou a sanha de empreiteiras. Depois de transformar a democracia numa abstração que não faz sentido para boa parte de nossa classe, não se pode esperar que as pessoas se mobilizem para defendê-la.
As medidas empreendidas pelos usurpadores e que já haviam começado pelo governo interrompido atacam alguns dos elementos mais essenciais à vida, não na abstração de “direitos”, mas nas condições de nossa existência. Na casa para morar, na terra em que precisamos plantar, no alimento que sacia a fome, no tratamento que salva a vida, na escola que alimenta o espírito e a consciência, no trabalho, no transporte. Os jovens que ocupam as escolas, os companheiros nas ocupações urbanas e rurais, as fábricas ocupadas, artistas que ocupam o falecido Ministério da Cultura, nos mostram um caminho para substanciar a democracia, rechea-la de carne real, cor e cheiro.
Quando deixar de ser um fantasma de terno e gravata, quando beijar a boca dos oprimidos, quando marchar ao nosso lado, andar de ônibus, morar na periferia, quando sofrer da violência da cidade e do trabalho, quando suar nosso suor, sangrar nosso sangue e chorar as nossas lágrimas, quando arrancar a venda dos olhos e empunhar a espada na direção dos opressores… quem sabe, haverão muitos na defesa da democracia e os usurpadores não poderão mais se esconder sob seu manto de noite e de arbítrio.
“Somente são bons, certos e duradouros
os meios de defesa que dependem de ti mesmo
e do teu valor”
Maquiavel
* Mauro Iasi é membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB)
in O Diário info
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