Cem horas com Fidel
Confira o texto de Ignácio Ramonet para a apresentação da biografia de Fidel Castro, escrita a quatro mãos com o próprio comandante-em-chefe!
“Cem
horas com Fidel” é o título da apresentação escrita por Ignácio Ramonet à
biografia de Fidel que ele escreveu a quatro-mãos com o próprio
comandante-em-chefe. Fidel Castro: biografia a duas vozes foi
lançado em 2006 pela Boitempo após uma dura batalha para conseguir os
direitos de publicação no Brasil, pois os agentes espanhóis haviam
recebido proposta de uma grande editora local. O fator decisivo foi
quando o próprio Fidel, por intervenção direta de Emir Sader e de Ignácio Ramonet,
tomou posição e disse aos agentes que no Brasil o livro deveria sair
pela Boitempo. E assim foi feito. Nossa edição, que teve sua tiragem
completamente esgotada e já está em processo de reimpressão, tem
prefácio de Fernando Morais e tradução de Emir Sader. Confira, abaixo, a
apresentação completa, escrita por Ignácio Ramonet.
“O volume de informações contidas nesta obra faz com que Fidel Castro: biografia a duas vozes deixe de ser apenas um livro que se lê numa sentada para se converter em uma referência permanente para quem quiser entender melhor a história desse homem, Fidel Castro, e de sua Revolução Cubana. Este é, sem dúvida, um livro indispensável.” – Fernando Morais
Por Ignácio Ramonet.
Eram duas da madrugada e conversávamos
havia horas em seu escritório particular. Um cômodo austero, amplo, de
teto alto, com largas janelas cobertas por cortinas claras que dão para
um grande terraço do qual se pode avistar uma avenida principal em
Havana. Ao fundo, uma imensa biblioteca e uma longa e maciça mesa de
trabalho repleta de livros e documentos. Tudo muito ordenado. Dispostos
em prateleiras ou sobre mesinhas de cada lado de um sofá, uma figura de
bronze e um busto do “apóstolo” José Martí, e também uma estátua de
Simón Bolívar, outra de Sucre e um busto de Abraham Lincoln. Em um
canto, feita de arame, uma escultura de Quixote montado no Rocinante. E,
nas paredes, além de um grande retrato a óleo de Camilo Cienfuegos, um
de seus principais lugar-tenentes na Sierra Maestra, apenas três outros
quadros: uma carta autografada de Bolívar, uma foto com dedicatória de
Hemingway exibindo um enorme peixe-espada (“Ao Dr. Fidel Castro, que
pegue um como este no poço de Cojímar. Com a amizade de Ernest
Hemingway”) e uma fotografia de seu pai, Dom Ángel, após regressar de
sua longínqua Galícia por volta de 1895…
Sentado diante de mim, alto, corpulento,
de barbas quase brancas, em seu impecável uniforme verde-oliva de
sempre, sem qualquer sinal de cansaço apesar da hora avançada, Fidel
respondia com calma. Às vezes em voz tão baixa, quase sussurrada, que
mal dava para ouvir. Estávamos no final de janeiro de 2003 e começava a
primeira série de nossas longas conversas que me fariam regressar a Cuba
várias vezes nos meses seguintes, até dezembro de 2005.
A ideia desse diálogo havia surgido um
ano antes, em fevereiro de 2002. Eu havia ido a Havana para dar uma
conferência na Feira do Livro. Lá estava também Joseph Stiglitz, prêmio
Nobel de Economia de 2001. Fidel apresentou-o dizendo: “É economista e
norte-americano, mas é o mais radical que já vi. A seu lado, eu sou um
moderado”. Pusemo-nos a conversar sobre a globalização liberal e sobre o
Fórum Social Mundial de Porto Alegre, do qual eu acabara de chegar.
Fidel quis saber tudo, os temas em debate, os seminários, os
participantes, as perspectivas… Expressou sua admiração pelo movimento
altermundialista: “Emergiu uma nova geração de rebeldes, muitos deles
norte-americanos, que se valem de novas formas e métodos distintos de
protestar, e que estão fazendo os donos do mundo tremer. As idéias são
mais importantes que as armas. Tirando a violência, todos os argumentos
devem ser empregados para enfrentar a globalização”.
Como sempre, as ideias saíam de Fidel aos
borbotões. Tinha uma visão mundial. Analisava a globalização, suas
consequências e a maneira de enfrentá-las com argumentos de uma
modernidade e de uma astúcia que punham em relevo as qualidades que
muitos biógrafos nele sublinharam: seu senso de estratégia, sua
capacidade de avaliar uma situação concreta e sua rapidez de análise.
Tudo isso acrescido de uma experiência acumulada em tantos anos de
governo, de resistência e de combate.
Ao escutá-lo falar, pareceu-me injusto
que as novas gerações não conhecessem melhor sua trajetória e que,
vítimas inconscientes da constante propaganda contra Cuba, tantos amigos
comprometidos com o movimento altermundialista, sobretudo os mais
jovens, na Europa, considerem-nos às vezes apenas um homem da Guerra
Fria, um dirigente de uma etapa superada da história contemporânea e que
pouco pode contribuir para as lutas do século XXI.
Para muitos, no seio mesmo da esquerda, o
regime de Havana suscita hoje incertezas, críticas e oposições. Ainda
que a Revolução Cubana continue a despertar entusiasmos, trata-se de um
tema que fragmenta e divide. Fica cada vez mais difícil encontrar
alguém, a favor ou contra Cuba, que, na hora de fazer um balanço, dê uma
opinião serena e desapaixonada.
Eu acabava de publicar um pequeno livro
de conversas com o subcomandante Marcos, o herói romântico e galáctico
dos zapatistas mexicanos, e sabia que Fidel o havia lido e se
interessado por ele. Propus então ao comandante cubano fazer algo
parecido, mas de maior amplitude. Ele não havia escrito suas memórias, e
é quase certo que, por falta de tempo, nunca o faça. Seria então um
tipo de “biografia a duas vozes”, um testamento político, um balanço de
sua vida feito por ele mesmo ao chegar quase aos oitenta anos, e depois
de mais de meio século daquele ataque ao quartel Moncada de Santiago de
Cuba, em 1953, onde, em certa medida, começou sua epopeia pública.
Poucos homens conheceram a glória de
entrar vivos na história e na lenda. Fidel é um deles. É o último
“monstro sagrado” da política internacional. Pertence a essa geração de
insurgentes míticos – Nelson Mandela, Ho Chi Minh, Patrice Lumumba,
Amílcar Cabral, Che Guevara, Carlos Marighela, Camilo Torres, Turcios
Lima, Mehdi Ben Barka – que, perseguindo um ideal de justiça,
lançaram-se nos, anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, à ação
política com a ambição e a esperança de mudar um mundo de desigualdades e
discriminações, marcado pelo início da guerra fria entre a União
Soviética e os Estados Unidos. Como milhares de intelectuais e
progressistas em todo o mundo, e entre eles até os mais inteligentes,
essa geração pensava com sinceridade que o comunismo anunciava um
esplêndido porvir, e que a injustiça, o racismo e a pobreza poderiam ser
extirpados da face da Terra em menos de uma década.
Naquela época, no Vietnã, na Argélia, em
Guiné-Bissau, em mais de meio planeta, sublevavam-se os povos oprimidos.
A humanidade ainda estava, em grande parte, submetida à infâmia da
colonização. Quase toda a África e boa porção da Ásia continuavam
dominadas e avassaladas pelos velhos impérios ocidentais. Enquanto as
nações da América Latina, em tese independentes havia século e meio,
permaneciam exploradas por minorias privilegiadas e freqüentemente
subjugadas por ditadores cruéis (Batista em Cuba, Trujillo na República
Dominicana, Duvalier no Haiti, Somoza na Nicarágua, Stroessner no
Paraguai…), amparados por Washington.
Fidel escutou minha proposta com um leve
sorriso, em tom alegre. Encarou-me com olhos penetrantes e maliciosos e
me perguntou com ironia: “Você quer mesmo perder seu tempo conversando
comigo? Não tem coisas mais importantes a fazer?”. Claro que eu lhe
respondi que não. Dezenas de jornalistas do mundo, dentre os quais os
mais célebres, levam anos esperando a oportunidade de conversar com ele.
Para um jornalista profissional, qual trabalho mais importante pode
haver que entrevistar uma das personalidades históricas mais
significativas da segunda metade do século XX e deste que já se inicia?
Fidel Castro não é por acaso o chefe de Estado que mais tempo está exercendo seu cargo? Já lidou com nada menos que dez
presidentes norte-americanos (Eisenhower, Kennedy, Johnson, Nixon,
Ford, Carter, Reagan, Bush pai, Clinton e Bush filho). Manteve relações
com alguns dos principais líderes que marcaram a marcha mundial depois
de 1945 (Nehru, Nasser, Tito, Kruschev, Olof Palme, Ben Bella,
Boumediene, Arafat, Indira Gandhi, Salvador Allende, Brejnev, Gorbachev,
Mitterrand, Jiang Zemin, João Paulo II, o rei Juan Carlos etc.). E
conheceu alguns dos principais intelectuais e artistas do nosso tempo
(Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Ernest Hemingway, Graham Greene,
Arthur Miller, Pablo Neruda, Jorge Amado, Oswaldo Guayasamín, Henri
Cartier-Bresson, Julio Cortázar, José Saramago, Gabriel García Márquez,
Eduardo Galeano, Oliver Stone, Noam Chomski e muitíssimos outros).
Sob sua direção, seu pequeno país (de pouco mais de 100 mil km2
e 11 milhões de habitantes) pôde conduzir uma política de grande vigor
em escala mundial, disputando até um braço-de-ferro com os Estados
Unidos, cujos dirigentes não conseguiram derrubá-lo, eliminá-lo, ou
sequer modificar o rumo da Revolução Cubana.
A Terceira Guerra Mundial esteve a ponto
de eclodir em outubro de 1962 por causa da atitude do governo
norte-americano, que protestava contra a instalação de mísseis nucleares
soviéticos em Cuba, cuja função era, sobretudo, impedir um novo
desembarque como o de 1961 em Praia Girón (baía dos Porcos), realizado
desta vez diretamente pelas Forças Armadas norte-americanas com a
intenção de derrubar o regime cubano.
Há mais de quarenta anos Washington impõe
a Cuba um devastador embargo comercial (reforçado nos anos 1990 pelas
leis Helms-Burton e Torricelli), que obstrui seu desenvolvimento
econômico normal e contribui para agravar a difícil situação econômica,
com conseqüências trágicas para seus habitantes. Os Estados Unidos levam
adiante, além disso, uma guerra ideológica e midiática permanente
contra Havana por intermédio das potentes Rádio Martí e TV Martí,
instaladas na Flórida para inundar a ilha de propaganda, como nos piores
tempos da Guerra Fria.
Por outro lado, várias organizações
terroristas hostis ao regime cubano – Alpha 66 e Omega 7, entre outras –
têm sede em Miami, onde possuem campos de treinamento e de onde,
incessantemente, enviam à ilha comandos armados para cometer atentados,
com a cumplicidade passiva das autoridades norte-americanas. Cuba é um
dos países que mais vítimas teve (acima de 3 mil) e que mais sofreu com o
terrorismo nos últimos quarenta anos.
Apesar dos tão persistentes ataques por
parte dos Estados Unidos, incluindo muitas tentativas contra sua vida,
Fidel declarou, depois das odiosas agressões de 11 de setembro de 2001
contra Nova York e Washington: “Nenhuma dessas circunstâncias jamais nos
levou a deixar de sentir uma profunda dor pelos ataques terroristas de
11 de setembro contra o povo norte-americano. Dissemos que, quaisquer
que sejam nossas relações com o governo de Washington, daqui nunca sairá
alguém para cometer um ato de terrorismo nos Estados Unidos”. E
sublinhou: “Que me cortem uma das mãos se alguém encontrar aqui uma
única frase dita com o propósito de rebaixar o povo norte-americano.
Seríamos uma espécie de fanáticos ignorantes se puséssemos a culpa no
povo norte-americano pelas diferenças entre ambos os governos”.
Como reação às constantes agressões
vindas de fora, o regime preconiza plenamente no interior do país a
união. Mantém o princípio do partido único e tende a punir com
severidade as discrepâncias, aplicando à sua maneira o velho lema de
Santo Ignacio de Loyola: “Em uma fortaleza sitiada, toda dissidência é
traição”. Por isso, os relatórios anuais da Anistia Internacional
criticam a atitude das autoridades em matéria de liberdades (liberdade
de expressão, liberdade de opinião, liberdades políticas) e recordam
que, em Cuba, há dezenas de “presos de opinião”.
Qualquer que seja a causa, trata-se de
uma situação que não se justifica. Como tampouco se justifica a
aplicação da pena de morte, atualmente suprimida na maioria dos países
desenvolvidos (com as notáveis exceções de Estados Unidos e Japão). Um
democrata não pode considerar normal a existência de presos de opinião e
a manutenção da pena capital.
Esses relatórios críticos da Anistia não
constatam, no entanto, casos de tortura física em Cuba, de
“desaparições”, de assassinatos políticos ou de manifestações reprimidas
com violência pela força pública. Tampouco se constatou um único
levantamento popular contra o regime. Nem mesmo um caso em 46 anos de
revolução. Enquanto em alguns Estados próximos considerados
“democráticos” – Guatemala, Honduras, República Dominicana, até o
México, sem falar da Colômbia, por exemplo –, sindicalistas, opositores,
jornalistas, sacerdotes, prefeitos, líderes da sociedade civil
continuam sendo impunemente assassinados, sem que esses crimes habituais
suscitem comoção na mídia internacional.
A isso seria necessário acrescentar a
violação permanente dos direitos econômicos, sociais e culturais de
milhões de cidadãos nesses Estados e na maioria dos países pobres do
mundo: a escandalosa mortalidade infantil, o analfabetismo, os sem-teto,
os sem-trabalho, os sem-cuidados sanitários, os mendigos, as crianças
de rua, as favelas, a droga, a criminalidade e toda sorte de
delinquência… Fenômenos desconhecidos ou quase inexistentes em Cuba.
Assim como é inexistente o culto oficial à
personalidade. Ainda que a imagem de Fidel esteja muito presente na
imprensa, na televisão e nas ruas, não existe retrato oficial, nem
estátua, nem moeda, nem rua, nem prédio, nem monumento com o nome de
Fidel Castro ou de algum dos líderes vivos da Revolução.
Apesar da incessante fustigação externa,
esse pequeno país, apegado à sua soberania, obteve resultados inegáveis
em matéria de desenvolvimento humano: abolição do racismo, emancipação
da mulher, erradicação do analfabetismo, redução drástica da mortalidade
infantil, elevação do nível cultural geral… Em questão de educação, de
saúde, de pesquisa médica e de esportes, Cuba alcançou níveis que situam
o país no grupo das nações mais eficientes.
A propósito da cultura, que outro país
desse tamanho possui tantos e tão bons escritores, tantos e tão bons
pintores, tantos e tão bons músicos, diretores de cinema, poetas,
autores de cartazes, bailarinos, atores, escultores…? A esse respeito, a
Revolução estimulou uma suntuosa “idade de ouro” artística.
A diplomacia cubana continua sendo uma
das mais ativas do mundo. Seu regime, nos anos 1960 e 1970, apoiou as
guerrilhas em muitos países da América Central (El Salvador, Guatemala,
Nicarágua) e do Sul (Colômbia, Venezuela, Bolívia, Argentina). Suas
Forças Armadas, projetadas para o outro lado do mundo, participaram em
campanhas militares de grande envergadura, em particular nas guerras da
Etiópia e de Angola. Sua intervenção neste último país terminou com a
derrota das divisões de elite da República da África do Sul, o que
acelerou de forma indiscutível a queda do regime racista do apartheid.
A Revolução Cubana, da qual Fidel Castro é
inspirador e líder carismático, continua sendo, graças a seus sucessos e
apesar de suas evidentes carências (dificuldades econômicas, gigantesca
incompetência burocrática, corrupção em pequena escala generalizada,
penúria, apagões, escassez de transportes, racionamento, dureza da vida
cotidiana, restrições de certas liberdades), uma referência importante
para milhões de deserdados do planeta. Aqui ou ali, na América Latina e
em outras partes do mundo, mulheres e homens protestam, lutam e às vezes
morrem tentando alcançar objetivos sociais como alguns dos logrados
pelo modelo cubano.
O que acontecerá quando, por causas
naturais, o presidente cubano desaparecer? É obvio que haverá mudanças,
uma vez que nada na estrutura do poder (nem no Estado, nem no partido,
nem nas Forças Armadas) possui sua autoridade. Uma autoridade que lhe
confere sua quádrupla qualidade de fundador do Estado, de teórico da
Revolução, de chefe militar vitorioso e de condutor, há 46 anos, da
política de Cuba.
Alguns analistas prevêem que, como
ocorreu no Leste europeu após a queda do muro de Berlim, o regime atual
seria destituído rapidamente. Estão equivocados. É muito pouco provável
que assistamos em Cuba a uma transição semelhante à da Europa Oriental,
onde um sistema imposto de fora e detestado por uma parte importante da
população desmoronou em pouquíssimo tempo.
Ainda que os adversários de Fidel Castro
não reconheçam, a lealdade da maioria dos cubanos à Revolução é uma
realidade política. E se trata de uma lealdade fundamentada num
nacionalismo que, ao contrário do ocorrido nos países comunistas do
Leste europeu, tem suas raízes na resistência histórica contra as
pretensões anexionistas ou imperialistas dos Estados Unidos.
Gostem ou não os seus detratores, Fidel
tem um lugar reservado no panteão mundial consagrado às figuras que com
mais empenho lutaram pela justiça social e que mais solidariedade
prestaram aos oprimidos da Terra.
Por todas essas razões – às que vieram
acrescentar-se, em março e abril de 2003, meu desacordo com a detenção
de cerca de setenta dissidentes não-violentos e o fuzilamento de três
seqüestradores de uma embarcação –, parecia-me inconcebível que um
dirigente dessa envergadura, criticado de forma tão feroz por numerosos
meios de comunicação ocidentais, não oferecesse sua versão pessoal, seu
próprio testemunho direto sobre os grandes combates que marcaram sua
existência e sobre as lutas em que permanece envolvido.
Fidel, que costuma pronunciar tantos
discursos, deu poucas entrevistas em sua vida. E só foram publicadas
quatro conversas longas com ele em cinqüenta anos. De Gianni Miná
(duas), de Frei Betto e de Tomás Borge. Depois de quase um ano de
espera, ele disse que aceitava minha proposta e que manteria comigo sua
quinta longa conversa, que acabou sendo, ao final, a mais extensa e
completa de todas as que concedeu.
Preparei-me a fundo, como para uma
maratona. Li e reli dezenas de livros, artigos e relatórios. Consultei
muitos amigos, melhores conhecedores do complexo itinerário da Revolução
Cubana, os quais me sugeriram questões, temas e críticas. A eles as
perguntas deste livro-conversa devem suas principais qualidades.
Antes de nos sentarmos para trabalhar na
quietude, na penumbra e no silêncio de seu escritório particular – já
que uma parte das entrevistas era filmada para um documentário –, quis
conhecer um pouco melhor, de perto, o personagem, descobri-lo em suas
atividades diárias, em seu manejo dos assuntos cotidianos. Porque até
então eu só havia conversado com ele em circunstâncias breves e muito
precisas, durante reportagens na ilha ou em minha participação em algum
congresso ou evento, como a já mencionada Feira do Livro de Havana.
Ele aceitou a ideia e me convidou a
acompanhá-lo durante vários dias em diversos itinerários, tanto por Cuba
(Santiago, Holguin, Havana) como pelo exterior (Equador). Em carro, em
avião, andando, almoçando ou jantando, conversamos sobre as notícias do
dia, suas experiências passadas, suas preocupações presentes… sobre
todos os temas imagináveis, mas sem gravador. Em seguida eu reconstruía
os diálogos, de memória, nos meus cadernos.
Descobri assim um Fidel cordial, quase
tímido, bem educado e muito cavalheiro, que escuta com interesse seus
interlocutores e fala com simplicidade, sem afetação. Com maneiras e
gestos de uma cortesia à moda antiga, está sempre atento aos demais, em
particular a seus colaboradores, a suas escoltas, e nunca muda o tom de
suas palavras. Nunca o ouvi dar uma ordem. Mas exerce uma autoridade
absoluta à sua volta. Por sua marcante personalidade. Onde ele estiver,
só se ouve uma voz: a sua. É quem toma todas as decisões, pequenas ou
grandes. Ainda que consulte as autoridades políticas que dirigem o
partido e o Estado e se mostre muito respeitoso e formal em relação a
elas, em última instância cabem a ele as decisões. Não há ninguém, desde
a morte de Che Guevara, no círculo de poder em que transita, que tenha
um calibre intelectual próximo ao seu. Nesse sentido, dá a impressão de
ser um homem solitário. Sem amigo íntimo nem companheiro intelectual de
sua estatura. É um dirigente que vive, pelo que pude observar, de
maneira modesta, quase espartana: nenhum luxo, mobiliário austero,
comida saudável e frugal. Hábitos de monge-soldado. Inclusive seus
inimigos admitem que ele figura entre os poucos chefes de Estado que não
se aproveitaram de suas funções para enriquecer.
Sua jornada de trabalho, sete dias por
semana, costuma terminar às cinco ou seis da manhã, quando amanhece o
dia. Mais de uma vez interrompeu a conversa às duas ou três da madrugada
porque ainda tinha, sorridente e cansado, de participar de umas
“reuniões importantes”… Dorme apenas quatro horas por noite e, de vez em
quando, uma ou duas horas mais em qualquer momento do dia. Mas é
também, embora não admita, um grande madrugador. Viagens, deslocamentos,
reuniões, visitas e intervenções encadeiam-se sem trégua, a um ritmo
intenso. Seus assistentes – todos jovens, de cerca de trinta anos de
idade e brilhantes –, no final da jornada acabam exaustos. Dormem em pé,
esgotados, incapazes de acompanhar o ritmo desse incansável moço de
quase oitenta anos. Fidel exige notas, relatórios, telex, notícias da
imprensa internacional e estrangeira, estatísticas, resumos de programas
de televisão ou de rádio, telefonemas, opiniões recolhidas em
frequentes pesquisas nacionais… De uma curiosidade infinita, não deixa
de pensar, de matutar, de animar sua equipe de assessores. É o
antidogmático por antonomásia. Nada mais contrário a ele que o dogma, o
preceito, a regra, o sistema, a verdade revelada. É um transgressor
instintivo e, ainda que pareça óbvio dizer, um rebelde permanente.
Sempre alerta, em ação, à frente de um pequeno Estado-Maior – o grupo
constituído por seus assistentes –, franqueando uma nova batalha.
Refazer a Revolução, outra vez e com firmeza. Sempre com ideias,
pensando o impensável, imaginando o inimaginável. Com um atrevimento
mental espetacular. Incapaz, efetivamente, de conceber uma ideia que não
seja descomunal.
Uma vez discutido e definido um projeto,
nenhum obstáculo o detém. Sua realização lhe parece óbvia. “A
intendência seguirá”, dizia De Gaulle. Fidel pensa da mesma maneira.
Dito e feito. Acredita com paixão no que está fazendo. Seu entusiasmo
move as vontades. Como um fenômeno quase de magia, as idéias parecem
materializar-se diante de nós; as coisas, os acontecimentos se tornam
palpáveis. As palavras se convertem em fatos. Deve ser isso o tal
carisma.
Fidel Castro é um homem dotado de uma
estatura impressionante, de um indiscutível carisma e também de um
poderoso encanto pessoal. Possui uma destreza visceral para se comunicar
com o público. Sabe como ninguém captar a atenção de uma platéia,
dominá-la, eletrizá-la, entusiasmá-la e provocar torrentes de aplausos
por horas e horas. O escritor Gabriel García Márquez, que o conhece bem,
assim relata seu modo de se dirigir às multidões: “Começa sempre com
voz quase inaudível, com um rumo incerto, mas aproveita qualquer lampejo
para ir ganhando terreno, palmo a palmo, até que, como se desse uma
grande bofetada, apodera-se da platéia. É a inspiração, o estado de
graça irresistível e deslumbrante, que só são negados por quem não teve a
glória de vivê-los”.
Tantas vezes descrito, seu domínio da
arte da oratória é prodigioso. Não me refiro a seus discursos públicos,
muito conhecidos, mas a uma simples conversa durante uma refeição. Uma
torrente de palavras, despretensiosas, impactantes. Uma avalanche verbal
que acompanha sempre, agitando o ar, com os gestos graciosos de suas
finas mãos.
Possui um senso da História profundamente
ancorado em si próprio, e uma sensibilidade extrema em relação a tudo
que concerne à identidade nacional. Cita José Martí, o herói da
independência de Cuba, muito mais que a qualquer outro pesonagem da
história do movimento socialista ou operário. Martí constitui sua
principal fonte de inspiração. Ele o lê e relê. É também fascinado pelas
ciências, pela investigação científica. É apaixonado pelo progresso da
medicina. Curar as crianças, todas as crianças. Movido pela compaixão
humanitária e pela solidariedade internacional, sua ambição, mil vez
repetida, é semear saúde e saber, medicina e educação por todo o
planeta. Sonho quimérico? Não é à toa que seu herói favorito na
literatura seja dom Quixote. Vê-se que é uma pessoa que atua por
aspirações nobres em si mesmas, por ideais de justiça e eqüidade. E que
faz pensar na frase de Che Guevara: “Uma grande revolução só pode nascer
de um grande sentimento de amor”.
Fidel gosta da precisão, da exatidão, da
pontualidade. Diante de qualquer tema, realiza cálculos aritméticos com
uma velocidade assombrosa. Com ele, nada de aproximações. Consegue
recordar-se do mais mínimo detalhe. Durante nossas conversas, sempre o
excelente historiador Pedro Álvarez Tabío, que o ajuda, se for
necessário, a precisar um dado, uma data, um nome, uma circunstância… Às
vezes sobre seu próprio passado (“A que horas eu cheguei à granjinha
Siboney na véspera do assalto ao Moncada?”. “A tal hora, comandante”) ou
sobre qualquer aspecto secundário de um acontecimento distante (“Como
se chamava aquele segundo dirigente do Partido Comunista da Bolívia que
não queria ajudar o Che?”. “Fulano”, responde Pedro. Uma segunda memória
ao lado da sua que já é portentosa, de uma precisão inaudita.
Uma memória tão rica que parece
impedi-lo, às vezes, de refletir de maneira sintética. Seu pensamento é
arborescente. Tudo se encadeia. Ramifica-se. Tudo tem a ver com tudo.
Digressões constantes. Parênteses permanentes. O desenvolvimento de um
tema o leva, por associação de idéias, por recordação de uma ou outra
situação ou personagem, a evocar um tema paralelo e outro e outro e
outro, distanciando-se assim do tema central. A tal ponto que o
interlocutor teme, um instante, ter perdido o fio. Mas desanda logo o
que foi andado e volta a retomar a idéia principal.
Em nenhum momento, ao longo de mais de
cem horas de conversa, Fidel impôs um limite qualquer às questões que
teríamos de abordar. Como intelectual que é, não teme o debate. Ao
contrário, ele o requer, necessita dele, o estimula. Sempre disposto a
litigar com quem quer que seja. Com argumentos em abundância. E uma
maestria retórica impactante. Com grande respeito para com o outro. Com
muito tato. É um debatedor e um polemista temível, culto, a quem só
repugnam a má-fé e o ódio.
Se alguma pergunta ou algum tema faltam
neste livro, responsáveis são as minhas carências como entrevistador e
jamais a sua rejeição em abordar um ou outro aspecto de sua longa
experiência política. Como se sabe, algumas conversas, em função da
disparidade intelectual entre aquele que pergunta e aquele que responde,
são na verdade monólogos nos quais aquele que pergunta não possui a
responsabilidade de ter razão. Não se tratava, nessas conversas, de
polemizar nem de discutir – o jornalista não é um estadista –, mas de
compilar sua versão pessoal de um itinerário biográfico e político, que é
histórico. Em nenhum instante me passou pela cabeça evocar sua vida
íntima, sentimental, sua esposa, seus filhos… Creio que não se devem
expor certos limites. Todo homem público, por mais célebre que seja, tem
também direito ao perímetro inviolável de sua privacidade.
Aquelas longas sessões de trabalho de
2003 resultaram num primeiro esboço deste livro. No entanto, os meses
foram passando e o texto não ficava pronto para ser publicado. Enquanto
isso, a vida e os acontecimentos foram seguindo seu curso. Em setembro
de 2004, tive a oportunidade de retornar a Havana e ter outro encontro
com Fidel Castro, no qual aproveitamos para atualizar e completar alguns
temas de nossas primeiras conversas. Em 2005 voltei mais uma vez a
conversar horas com ele, sempre com o objetivo comum de atualizar e
finalizar o livro. Isso, basicamente, foi realizado, porém decidimos
conjuntamente que eu poderia elaborar notas adicionais ao texto da
entrevista para que o leitor compreendesse o que aconteceu e como
evoluíram – até o final de 2005 – alguns dos temas abordados em nossas
conversas. O leitor deverá levar isso em conta. Só inseri essas notas de
“atualização” nos casos imprescindíveis.
A queda do muro de Berlim, a desaparição
da União Soviética e o fracasso histórico do socialismo autoritário de
Estado não parecem ter modificado o sonho de Fidel Castro de instaurar
no seu país uma sociedade de novo tipo, menos desigual, mais saudável e
mais bem educada, sem privatizações nem discriminações, e com uma
cultura global integral. E sua nova e estreita aliança com a Venezuela
do presidente Hugo Chávez consolida suas convicções.
No outono da sua vida, mobilizado agora a
favor da ecologia e do meio ambiente e contra a globalização neoliberal
e a corrupção interna, segue na trincheira, na linha de frente,
conduzindo a batalha pelas ideias em que crê. E às quais, segundo
parece, nada nem ninguém o farão renunciar.
Paris, 31 de dezembro de 2005.
***
Ignacio Ramonet nasceu na Galícia, em 1943. É diretor, em Paris, do Le Monde Diplomatique.
Especialista em geopolítica e estratégia internacional, é professor de
Teoria da Comunicação na Universidade Denis Diderot de Paris. É doutor
em Semiologia e História da Cultura pela Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais, onde foi aluno de Roland Barthes. É um dos fundadores
da Attac e membro do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial.
Pela Boitempo, publicou Fidel: biografia a duas vozes (2006) e Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização do poder (2013).
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